Apresentamos o texto da Apresentação e da Introdução do livro Exame de Textos: Análise de Livros Didáticos de Matemática Para o Ensino Médio, dos seguintes autores:
Elon Lages Lima (editor)
Analistas:
Augusto César Morgado
Edson Durão Júdice Eduardo Wagner Elon Lages Lima João Bosco Pitombeira de Carvalho José Paulo Quinhões Carneiro Maria Laura Magalhães Gomes
Paulo Cezar Pinto Carvalho
e publicado em 2001 por
VITAE - Apoio à Cultura, Educação e Promoção Social IMPA Instituto de Matemática Pura e Aplicada SBM Sociedade Brasileira de Matemática.
Apresentação
Este trabalho contém análises de 36 volumes, que compõem 12 coleções de livros didáticos de Matemática, utilizados nos três anos do Ensino Médio das escolas brasileiras.
Ao publicá-lo, moveu-nos o propósito de contribuir para a melhoria da qualidade dos nossos livros-texto, complementando a ação do MEC, que tem avaliado os livros da primeira à oitava série. Devemos esclarecer, entretanto, que há pelo menos duas diferenças fundamentais entre nossa iniciativa e a do MEC. A primeira é que não nos propomos a fazer avaliações; nem sequer temos mandato para isso. A segunda é que nossas análises têm um cunho de orientação, oferecendo (junto com a crítica) sugestões e propostas, numa linha de pensamento objetivo, com base nos princípios estabelecidos na Introdução que dá início a este livro. Depois de apresentadas as 36 análises, o Posfácio resume ao final a impressão que nos deixou essa longa leitura de mais de 15 mil páginas.
Para cumprir esta tarefa, contei com a competente e dedicada colaboração de um seleto grupo de colegas aos quais tive o privilégio de me associar e tenho agora a satisfação de agradecer publicamente. Muito obrigado, pois, a Augusto César Morgado, Edson Durão Júdice, Eduardo Wagner, João Bosco Pitombeira de Carvalho, José Paulo Quinhões Carneiro, Maria Laura Magalhães Gomes e Paulo Cezar Pinto Carvalho.
Cada coleção foi analisada por dois de nós. No índice, após a referência a cada obra escrutinizada, seguem-se os nomes dos respectivos analistas.
A execução deste projeto só foi possível graças ao honroso patrocínio de VITAE, uma organização privada à qual a Educação em nosso país muito deve. Como sempre, contamos com o apoio do IMPA, que vê corretamente o ensino básico como uma etapa indispensável para a pesquisa, e da SBM, cujo suporte nosso trabalho tem sido constante todos esses anos.
Rio de Janeiro, fevereiro de 2001
Elon Lages Lima
Introdução
Fundamentos para a análise dos livros-texto de Matemática para o Ensino Médio
Análise dos livros-texto para o ensino da Matemática na Escola Média deve levar em conta, acima de tudo, sua adequação às três componentes básicas desse ensino, a saber: Conceituação, Manipulação e Aplicação. Em seguida, deve-se indagar se o livro examinado é organizado de modo a permitir ao seu leitor (professor ou aluno) o acesso aos, a familiarização com, e — posteriormente — a utilização efetiva dos conhecimentos adquiridos.
A Conceituação compreende a formulação de definições, o enunciado de proposições, o estabelecimento de conexões entre os diversos conceitos, bem como a interpretação e a reformulação dos mesmos sob diferentes aspectos. É importante destacar que a conceituação precisa é indispensável para o êxito das aplicações.
A Manipulação, de caráter essencialmente (mas não exclusivamente) algébrico, está para o ensino e o aprendizado da Matemática assim como a prática dos exercícios e escalas musicais está para a Música. A habilidade no manuseio de equações, fórmulas, operações e construções geométricas elementares, o desenvolvimento de atitudes mentais automáticas, verdadeiros reflexos condicionados, permitem ao usuário da Matemática concentrar sua atenção consciente nos pontos realmente cruciais, sem perder tempo e energia com detalhes.
A Aplicação é o emprego de noções e teorias da Matemática em situações que vão de problemas triviais do dia-a-dia a questões mais sutis provenientes de outras áreas, quer científicas quer tecnológicas. Ela é a principal razão pela qual o ensino da Matemática é tão difundido e tão necessário.
Ainda no âmbito dessas considerações gerais, o crítico deve ter em mente que o livro didático é, na maioria dos casos, a única fonte de referência com que conta o professor para organizar suas aulas, e até mesmo para firmar seus conhecimentos e dosar a apresentação que fará em classe. Assim, é necessário que esse livro seja não apenas acessível e atraente para o aluno, como também que ele constitua uma base amiga e confiável para o professor, induzindo-o a praticar os bons hábitos de clareza, objetividade e precisão, além de ilustrar, sempre que possível, as relações entre a Matemática e a sociedade atual.
Conceituação
No exame do livro didático sob o aspecto da Conceituação, os seguintes itens devem ser apreciados:
1. Erros. Este é um quesito de natureza ampla, que abrange, entre outros, os tipos abaixo.
(a) Erros provenientes de desatenção, como erros de cálculo e de impressão. Estes são corrigíveis pelo professor cuidadoso mas são muito desagradáveis para o aluno, que fica perplexo, principalmente quando os encontra nas respostas dos exercícios.
(b) Erros de raciocínio, como confundir uma proposição com sua recíproca, tirar conclusões forçadas (exemplo: afirmar que um fato geral é conseqüência de um caso particular), dividir por algo que pode ser zero, etc.
(c) Erros de definição. Uma definição pode ser incorreta por vários motivos. Ela pode estar em flagrante desacordo com a prática universal (exemplo: “chama-se intervalo a todo conjunto de números reais”), pode conduzir a contradições (exemplo: admitir uma reta como paralela a si própria e, noutro local, dizer que um sistema linear com duas incógnitas é impossível quando as retas que representam as equações são paralelas), pode ser incompleta, deixando de lado casos importantes que deveriam ser incluídos nela, pode ser excessivamente abrangente, etc.
(d) Erros resultantes de conceitos mal formulados e vagos, que dão lugar a ambigüidades, das quais resultam conclusões absurdas, como “no sistema $S$, de $3$ equações com $3$ incógnitas, $x$ e $y$ são indeterminados mas $z$ é impossível”.
2. Excesso de formalismo. Isto ocorre, por exemplo, na definição de função como conjunto de pares ordenados, na desnecessária definição de equação e, de um modo geral, nos capítulos que se referem a conjuntos.
3. Linguagem inadequada. Erros gramaticais, como “o objeto $A$ satisfaz a propriedade $P$”, “grau de uma função”, “raiz de uma função”, “variável” em vez de “incógnita”, “interceptar” em vez de “intersectar”, etc.
4. Imprecisão. Principalmente nas definições. O radiano, por exemplo, raramente é definido corretamente. O comprimento de um arco também. Até mesmo seno e cosseno têm definições vagas. O importante conceito de número real, que deve ser apresentado como o resultado de uma medida, é sempre deixado indefinido.
5. Obscuridade. Aqui a Conceituação e a Didática devem juntar-se para que se dê atenção a trechos ambíguos, ininteligíveis ou contraditórios.
6. Confusão de conceitos. Principalmente nos argumentos demonstrativos.
7. Ainda se pode incluir no item “Conceituação” o importante aspecto do livro didático que diz respeito à sua objetividade, que consiste em não dar relevância a pontos triviais e, ao mesmo tempo, destacar os tópicos, os conceitos e as proposições de importância crucial. Exemplos de desatenção a este princípio são abundantes e refletem uma deficiência realmente danosa, a saber, a ignorância do autor sobre as utilizações posteriores do que está apresentando. Esta deficiência é claramente notada no longo e dispersivo tratamento dado à Trigonometria, com exagero de fórmulas sem importância, impedindo o aluno, e o próprio professor, de distinguir o essencial do supérfluo. Esta grave falta ocorre ainda em vários outros tópicos, como PA, PG, Geometria Analítica, etc.
8. Conexões. Os vários assuntos expostos no livro (ou na coleção) devem ser relacionados uns com os outros, sempre que possível. Exemplos: PA com função afim, PG com função exponencial, função linear e função quadrática com áreas e volumes. A maioria dos livros fala em função inversa no vol. 1 e não menciona que exp e log são inversas; muito menos explora este fato. Sistemas lineares não são vistos sob o ponto de vista geométrico, etc. A conexão entre Trigonometria e Números Complexos tem sido pouco explorada. O mesmo ocorre entre Números Complexos e Geometria Plana.
Manipulação
Este aspecto é tão predominante nos livros didáticos brasileiros que praticamente o público em geral (mesmo os professores e alunos também) considera a Matemática como se resumindo a ele.
A manipulação deve estar presente, principalmente, nos exercícios mas precisa também ocorrer no texto, neste caso (sempre que possível) acompanhada de observações visando ajudar o leitor a ganhar eficiência, evitar erros, refletindo a experiência do autor que oferecerá sugestões para que a prática seja proveitosa.
É bem conhecido o abuso de manipulações desnecessariamente complicadas e inúteis, como por exemplo, os famosos “carroções” e mesmo as expressões (e equações) trigonométricas.
Exercícios de manipulação devem ser comedidos, simples, elegantes e, sempre que possível, úteis para emprego posterior.
Aplicações
Aqui reside a principal deficiência dos livros didáticos brasileiros de Matemática. Um teste revelador sobre a qualidade do livro a este respeito é o seguinte: quais são os exercícios e exemplos nele contidos, onde o objeto principal não é o assunto que acaba de ser estudado? Exemplos: exercícios sobre logaritmos onde a palavra “logaritmo” não ocorra no enunciado; problemas que se resolvam com trigonometria mas que não falem em seno, cosseno, etc.
Qualidades didáticas
As qualidades didáticas de um livro são as características nele contidas que ajudam o leitor a entender mais facilmente as noções ali apresentadas, aprendendo como utilizá-las e, principalmente, motivando-o a prosseguir na leitura, atraído pelo estilo do autor, pela elegância e simplicidade dos seus argumentos e pelos desafios que propõe.
A este respeito, uma importante qualidade que o livro deve possuir é que cada novo conceito apresentado seja precedido de situações-problema que justifiquem sua introdução e acompanhado de vários exemplos que visem não somente exibir suas aplicações como também esclarecer o significado desse conceito e familiarizar o leitor com seu uso. As aplicações podem variar do emprego na vida real até as conexões com outros tópicos matemáticos. Por exemplo, o estudo da função quadrática pode ser ilustrado com aplicações físicas ou por meio de problemas geométricos.
Deve ainda ser incluída entre as boas qualidades didáticas do livro a transmissão que seu(s) autor(es) faça(m) de sua experiência para o leitor, ajudando-o a não cometer erros e a corrigi-los caso os cometa. Por exemplo, sempre que cabível, nos exemplos e exercícios resolvidos no texto, deve ser feita uma estimativa preliminar da ordem de grandeza do resultado. O livro deve ainda incentivar o uso do bom-senso, para que erros sejam detectados por conduzirem a resultados absurdos. Isto, naturalmente, levará os autores a fazerem com que os dados e respostas dos problemas sejam realísticos.
Adequação do livro à realidade atual
O livro deve ajudar a preparação do aluno para tarefas relevantes na sociedade de hoje. Para isso, ele deve libertar-se de tópicos e métodos ultrapassados, substituindo-os por outros que correspondam aos dias de hoje.
Um habito arraigado nos textos tradicionais, fortemente impregnado na mente dos professores (e conseqüentemente dos alunos) é o mito das fórmulas e regras: fórmula das raízes de uma equação do segundo grau, regra de Cramer, fórmulas trigonométricas, regra de extração da raiz quadrada, etc. É necessário conscientizar-se da superioridade dos algoritmos sobre as fórmulas e regras, dos métodos iterativos de aproximação sobre as expressões fechadas e pouco utilizáveis.
Outro exemplo de obsolescência são as tabuas de logaritmos, que foram banidas pela calculadora mas ainda sobrevivem em diversos livros didáticos.
De um modo geral, o uso de calculadoras deve ser estimulado, como meio de evitar o desperdício de tempo com cálculos longos, laboriosos e inúteis (mas nunca como substituto para a tabuada).
Ainda dentro deste item se enquadra a escolha dos assuntos tratados pelo livro, que deve conter material que, além de atraente e ilustrativo, seja relevante por seu conteúdo básico e por suas aplicações, tanto a outras áreas da Matemática como a outras Ciências e à vida de hoje. Naturalmente esta seleção, para ser bem feita, requer do autor uma visão ampla, consultas a especialistas diversos e uma pesquisa cuidadosa em fontes variadas.
Papel educativo da avaliação
Cada relatório concernente à análise de uma coleção deverá trazer (além dos destaques dos pontos positivos e das críticas às suas deficiências) sugestões no sentido de corrigir as falhas, dando assim oportunidade a que os autores e editores de boa-vontade possam, em edições posteriores, reformular os textos, adaptando-os aos objetivos do Ensino Médio, conforme definidos na Lei de Diretrizes e Bases.
Livros analisados
Antônio dos Santos Machado - Matemática na Escola do Segundo Grau. Editora Saraiva.
(Analisado por Elon Lages Lima e Eduardo Wagner)
Benigno Barreto Filho e Cláudio Xavier da Silva - Matemática, Aula por Aula. Editora FTD.
(Analisado por Elon Lages Lima e Eduardo Wagner)
Edwaldo Bianchini e Herval Paccola - Matemática. Editora Moderna.
(Analisado por Analisado por Paulo Cezar P. Carvalho e João Bosco Pitombeira de Carvalho)
Gelson Iezzi, Osvaldo Dolce, José Carlos Teixeira, Nilson José Machado, Márcio Cintra Goulart, Luiz Roberto da Silveira Castro e Antônio dos Santos Machado - Matemática. Editora Saraiva.
(Analisado por Eduardo Wagner e Augusto César Morgado)
Nelson Gentil, Carlos Alberto Marcondes dos Santos, Antonio Carlos Greco, Antônio Bellotto Filho e Sérgio Emílio Greco - Coleção Matemática para o Segundo Grau. Editora Ática.
(Analisado por Paulo Cezar P. Carvalho e João Bosco Pitombeira de Carvalho)
José Ruy Giovanni e José Roberto Bonjorno - Coleção Matemática. Editora FTD.
(Analisado por José Paulo Q. Carneiro e Augusto César Morgado)
Texto retirado dos Prefácios e Introdução do livro A arte de resolver problemas, de George Polya, Tradução Heitor Lisboa de Araújo, Editora Interciência, 2006.
Prefácio à Primeira Tiragem
Uma grande descoberta resolve um grande problema, mas há sempre uma pitada de descoberta na resolução de qualquer problema. O problema pode ser modesto, mas se ele desafiar a curiosidade e puser em jogo as faculdades inventivas, quem o resolver por seus próprios meios, experimentará a tensão e gozará o triunfo da descoberta. Experiências tais, numa idade susceptível, poderão gerar o gosto pelo trabalho mental e deixar, por toda a vida, a sua marca na mente e no caráter.
Um professor de Matemática tem, assim, uma grande oportunidade. Se ele preenche o tempo que lhe é concedido a exercitar seus alunos em operações rotineiras, aniquila o interesse e tolhe o desenvolvimento intelectual dos estudantes, desperdiçando, dessa maneira, a sua oportunidade. Mas se ele desafia a curiosidade dos alunos, apresentando-lhes problemas compatíveis com os conhecimentos destes e auxiliando-os por meio de indagações estimulantes, poderá incutir-lhes o gosto pelo raciocínio independente e proporcionar-lhes certos meios para alcançar este objetivo.
Um estudante cujo curso inclui Matemática tem, também, uma oportunidade única, que ficará evidentemente perdida se ele considerar esta matéria como uma disciplina com que precisa obter tantos créditos e a qual deverá esquecer, o mais rápido possível, assim que passar pelas provas finais. A oportunidade pode ser desperdiçada até mesmo se o estudante tiver algum talento natural para a Matemática, pois ele, como todos os outros, precisa descobrir seus talentos e seus gostos: ninguém poderá saber se gosta de torta de maçã se nunca a houver provado. É possível, porém, que chegue a perceber que um problema de Matemática pode ser tão divertido quanto um jogo de palavras cruzadas, ou que o intenso trabalho mental pode ser um exercício tão agradável quanto uma animada partida de tênis. Tendo experimentado prazer no estudo da Matemática, ele não a esquecerá facilmente e haverá, então, uma boa probabilidade de que ela se torne alguma coisa mais: um hobby, um instrumento profissional, a própria profissão ou uma grande ambição.
O autor recorda-se do seu tempo de estudante, um aluno um pouco ambicioso, ávido por compreender alguma coisa de Matemática e de Física. Ele assistia às aulas, lia livros, tentava assimilar as resoluções e os fatos que lhe eram apresentados, mas havia uma questão que o perturbava repetidamente: "Sim, a resolução parece que funciona, que está certa, mas como seria possível inventar, eu próprio, essas coisas?" Hoje o autor ensina Matemática numa universidade. Pensa, ou espera, que alguns dos seus alunos mais interessados façam perguntas semelhantes e procura satisfazer a curiosidade deles. Na tentativa de compreender, não só como se resolve este ou aquele problema, mas também as motivações e procedimentos da resolução, e procurando explicar a outros essas motivações e esses procedimentos, ele foi afinal levado a escrever o presente livro. O autor tem a esperança de que este venha a ser útil a professores que desejem desenvolver nos seus alunos a capacidade de resolver problemas e a estudantes que realmente queiram desenvolver a sua própria capacidade.
Muito embora este livro dedique atenção especial às necessidades de alunos e professores, ele deverá interessar a qualquer um que se preocupe com os meios e as maneiras da invenção e da descoberta. É possível que este interesse seja mais difundido do que se presume, sem maior reflexão. O espaço dedicado pelos jornais e revistas populares a palavras cruzadas e a outros enigmas parece revelar que as pessoas passam algum tempo resolvendo problemas sem aplicação prática. Por trás do desejo de resolver este ou aquele problema que não resulta em nenhuma vantagem material, pode haver uma curiosidade mais profunda, um desejo de compreender os meios e as maneiras, as motivações e os procedimentos da resolução.
As páginas seguintes foram escritas de forma um pouco concisa, mas tão simples quanto possível, e fundamentam-se num longo e sério estudo dos métodos de resolução. Este tipo de estudo, chamado Heurística por alguns autores, não está em moda nos dias que correm, mas tem um longo passado e, talvez, algum futuro.
Pelo estudo dos métodos de resolução de problemas, percebemos um novo aspecto da Matemática. Sim, porque ela tem dois aspectos: é a rigorosa ciência de Euclides, mas é também uma outra coisa. A Matemática, apresentada da maneira euclidiana, revela-se uma ciência dedutiva, sistemática, mas a Matemática em desenvolvimento apresenta-se como uma ciência indutiva, experimental. Ambos os aspectos são tão antigos quanto a própria ciência. Mas o segundo aspecto é novo sob um certo ponto de vista: a Matemática in statu nascendi, no processo de ser inventada, jamais foi apresentada exatamente desta maneira aos estudantes, aos professores ou ao grande público.
A Heurística tem múltiplas conexões; matemáticos, lógicos, psicólogos, educadores e até filósofos reivindicam partes deste estudo para os seus domínios particulares. O autor, bem ciente da possibilidade de crítica de certos setores e perfeitamente cônscio de suas limitações, tem uma reivindicação a fazer: ele tem alguma experiência na resolução de problemas e no ensino da Matemática em diversos níveis.
O assunto é tratado pelo autor com maior profundidade num livro mais extenso que está em fase de conclusão.
Universidade Stanford, 1 de agosto de 1944
Prefácio à Sétima Tiragem
Tenho o prazer de comunicar que consegui agora cumprir, pelo menos em parte, uma promessa feita no prefácio à primeira tiragem: os dois volumes que, sob os títulos Induction and Analogy in Mathematics e Patterns of Plausible Inference, constituem a minha recente obra Mathematics and Plausible Reasoning, continuam a linha de raciocínio iniciada neste livro.
Zurich, 30 de agosto de 1954
Prefácio à Segunda Edição
À presente segunda edição é acrescentada, além de pequenas melhorias, uma nova quarta parte, sob o título "Problemas, Indicações, Soluções".
Quando esta edição estava sendo preparada para impressão, apareceu um estudo (Educational Testing Service, Princeton, N. J. cf. Time, 18 de junho de 1956) que parece ter formulado algumas observações muito pertinentes - elas não constituem novidade para as pessoas que sabem das coisas, mas já era tempo de apresentá-las ao grande público: "... a Matemática tem a duvidosa honra de ser a matéria menos apreciada do curso... Os futuros professores passam pelas escolas elementares a aprender a detestar a Matemática... Depois, voltam à escola elementar para ensinar uma nova geração a detestá-la".
Tenho a esperança de que a presente edição, destinada a uma difusão mais ampla, convença alguns de seus leitores de que a Matemática, além de indispensável aos profissionais da Engenharia e ao conhecimento científico, pode ser divertida e também descortinar um panorama de atividade mental no mais alto nível.
Zurich, 30 de junho de 1956
Introdução
As considerações que seguem giram em torno da lista de indagações e sugestões que, sob o título "Como Resolver um Problema", encontram-se nas duas páginas anteriores. Qualquer uma destas questões, quando citada no texto, aparecerá impressa em itálico. A lista por elas constituída será mencionada simplesmente como "a lista" ou "a nossa lista".
As páginas seguintes discutirão o objetivo da lista, ilustrarão o seu emprego prático com o auxílio de exemplos e explicarão os seus fundamentos básicos e as respectivas operações mentais. A título de explicação preliminar, pode-se indagar: se, utilizando-as adequadamente, apresentar tais questões a si próprio ajudará a resolver o seu problema; se, utilizando-as adequadamente, dirigir as mesmas questões a um de seus alunos, ajudá-lo-á a resolver o problema que lhe é proposto.
O livro está dividido em quatro partes.
O título da primeira parte é "Em Aula". Contém vinte seções, cada uma delas designada pelo seu número em negrito, como, por exemplo, "seção 7". As seções 1 a 5 explanam, em termos gerais, o "Objetivo" de nossa lista. As seções 6 a 10 descrevem o que são as "Divisões Principais, Questões Principais" da lista e discutem um primeiro exemplo prático. As seções 18, 19 e 20 acrescentam "Outros Exemplos".
O título da segunda parte, muito curta, é "Como Resolver um Problema". É apresentada em forma de diálogo, no qual um aluno algo idealizado responde as perguntas de um professor, também algo idealizado.
A terceira parte, a mais extensa, constitui um "Pequeno Dicionário de Heurística". Será mencionada simplesmente como o "Dicionário". Compreende sessenta e sete artigos, dispostos em ordem alfabética. Por exemplo, o significado da palavra HEURÍSTICA (assim, em MAIÚSCULAS) está exposto num artigo com este título, encontrado à página 86. Toda referência feita no texto a um dos artigos do Dicionário estará impressa em MAIÚSCULAS. Certos parágrafos de alguns artigos são mais técnicos e, por isto, aparecem entre colchetes. Alguns dos artigos estão intimamente ligados à primeira parte, à qual eles acrescentam alguns exemplos e comentários mais específicos. Outros artigos vão além do objetivo da primeira parte e explicam os seus fundamentos. Há um artigo-chave sobre HEURÍSTICA MODERNA, que descreve a conexão existente entre os principais artigos e o plano em que se baseia o Dicionário, além de conter instruções para a procura de informações relativas a pontos específicos da lista. É preciso frisar que há um plano básico e uma certa unidade no Dicionário, porque os seus artigos aparentam uma grande variedade. Há alguns artigos mais longos dedicados à discussão sistemática, embora condensada, de alguns temas mais gerais. Certos artigos contêm comentários mais específicos e outros tratam de remissões, dados históricos, citações, aforismas ou, até mesmo, anedotas.
O Dicionário não deverá ser lido muito depressa, pois o texto está muitas vezes condensado e é, aqui e ali, um pouco sutil. O leitor poderá recorrer ao Dicionário para obter informação sobre temas gerais. Se o assunto procurado surgir da experiência com seus próprios problemas ou dos de seus alunos, a leitura terá muito maior probabilidade de ser proveitosa.
A quarta parte é intitulada "Problemas, Indicações, Soluções". Nela são propostos alguns problemas ao leitor mais interessado. Cada "problema" é seguido (a uma distância apropriada) por uma "indicação" que pode revelar o caminho para chegar ao resultado, que está explicado na "solução".
Mencionamos, repetidamente, o "aluno" ou o "estudante", e o "professor" e a eles voltamos muitas e muitas vezes. É bom observar que o "estudante" tanto poderá ser um aluno de curso secundário ou superior como qualquer pessoa que esteja estudando Matemática. Da mesma maneira, o "professor" poderá ser secundário ou universitário, ou qualquer pessoa interessada na técnica do ensino da Matemática. O autor encara a situação umas vezes sob o ponto de vista do aluno e outras, do professor (o último caso é preponderante na primeira parte). No entanto, na maior parte das vezes, o ponto de vista é o de alguém que não é nem professor nem aluno, mas deseja resolver o problema que se lhe apresenta.
Como Resolver Um Problema
COMPREENSÃO DO PROBLEMA
Primeiro
Qual é a incógnita? Quais são os dados? Qual é a condicionante?
É preciso compreender o problema.
É possível satisfazer a condicionante? A condicionante é suficiente para deter- minar a incógnita? Ou é insuficiente? Ou redundante? Ou contraditória?
Trace uma figura. Adote uma notação adequada.
Separe as diversas partes da condicionante. É possível anotá-las?
ESTABELECIMENTO DE UM PLANO
Segundo
Já o viu antes? Ou já viu o mesmo problema apresentado sob uma forma ligeira mente diferente?
Encontre a conexão entre os dados e a incógnita.
É possível que seja obrigado a considerar problemas auxiliares se não puder encontrar uma conexão imediata,
É preciso chegar afinal a um plano para a resolução.
Conhece um problema correlato?
Conhece um problema que lhe poderia ser útil?
Considere a incógnita! E procure pensar num problema conhecido que tenha a mesma incógnita ou outra semelhante.
Eis um problema correlato e já antes resolvido. É possível utilizá-lo? É possível utilizar o seu resultado? É possível utilizar o seu método?
Deve-se introduzir algum elemento auxiliar para tornar possível a sua utilização?
É possível reformular o problema? É possível reformulá-lo ainda de outra maneira? Volte às definições.
Se não puder resolver o problema proposto, procure antes resolver algum problema correlato. É possível imaginar um problema correlato mais acessível? Um problema mais genérico? Um problema mais específico? Um problema análogo? É possível resolver uma parte do problema? Mantenha apenas uma parte da condicionante, deixe a outra de lado; até que ponto fica assim determinada a incógnita? Como pode ela variar? É possível obter dos dados alguma coisa de útil? É possível pensar em outros dados apropriados para determinar a incógnita? É possível variar a incógnita, ou os dados, ou todos eles, se necessário, de tal maneira que fiquem mais próximos entre si?
Utilizou todos os dados? Utilizou toda a condicionante? Levou em conta todas as noções essenciais implicadas no problema?
EXECUÇÃO DO PLANO
Terceiro
Ao executar o seu plano de resolução, verifique cada passo.
Execute o seu plano.
É possível verificar claramente que o passo está correto? É possível demonstrar que ele está correto?
RETROSPECTO
Quarto
É possível verificar o resultado? É possível verificar o argumento?
Examine a solução obtida.
É possível chegar ao resultado por um caminho diferente? É possível perceber isto num relance?
É possível utilizar o resultado, ou o método, em algum outro problema?
Alunos de uma escola francesa, no início do século XX.
No quadro de ardósia: “O povo que possui as melhores escolas
é o primeiro entre todos os povos; se o não é hoje, sê-lo-á
amanhã. Buigny-los-Gamaches, Somme. Dezembro”
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Tempo de leitura: 22 minutos.
Texto disponível no LINK, original em inglês link.
Os Objetivos da Educação Matemática, por George Polya (cerca de 1969)
O ensaio que se segue é uma transcrição ligeiramente editada inédita, de uma palestra em vídeo que o professor Polya apresentou em serviço da educação matemática para estudantes PPS no final de 1960. — TC O’Brien – O’Brien TC
PARTE 1
Quero falar com você sobre o ensino de matemática na escola primária. Na verdade minha palestra consistirá de duas partes. Na primeira parte, irei falar sobre os objetivos do ensino de matemática na escola primária. E na segunda parte, como ensiná-lo.
Devo confessar que estou falando essas coisas como um outsider. Eu sempre fui interessado em ensinar, mas a maioria do meu tempo, cerca de meio século, eu ensinei na universidade ou em universidades diferentes. E nos últimos quinze anos, eu estava preocupado principalmente com o ensino no nível médio. Assim, eu estou falando com você como um outsider, mas você pode encontrar um ou dois pontos em que eu estou dizendo que pode ser útil na sua profissão.
Qual é o objetivo do ensino de matemática na escola primária? É melhor considerar a questão mais geral: Qual é o objetivo das escolas? E a melhor pergunta é: O que as pessoas geralmente pensam que é o objetivo das escolas? Seu vizinho Sr. Smith tem um filho Jimmy. He is against Jimmy being a dropout. Ele é contra Jimmy sendo um abandono. Ele diz que se Jimmy cai fora da escola, ele nunca vai conseguir um emprego certo. Então, o objetivo da escola de acordo com Smith e todos os Mr. Smiths, outro no público em geral, é se preparar para um trabalho, para preparar as crianças para ganhar a vida. É a mesma coisa. A comunidade, o país, o estado e a cidade que todos querem as pessoas para ganhar a vida e pagar impostos e não vive da assistência pública. Assim, a comunidade também quer a escola para preparar os jovens para ter um emprego.
Se os pais pensam um pouco mais longe, e com a comunidade pensa um pouco mais distante, o objetivo é um pouco alterado. Pais razoáveis, um razoável Mr. Smith, que quer que seu filho Jimmy deva ter um trabalho para o qual ele está bem equipado. Vai ganhar mais e se sentir mais feliz. Este é também o objetivo da comunidade – que têm empregos de um lado e as pessoas do outro lado têm que atribuir a pessoas tais empregos que eles são os melhores totalmente equipados que produzem a maior saída. Ou melhor ainda, que a soma total da felicidade deve ser uma máxima. O que a escola pode fazer para isso? O ponto é que quando a criança chega à escola, você não sabe ainda o trabalho que virá depois, e você não sabe em que trabalho que ela está bem equipada, ela é a melhor equipada. Devemos preparar os jovens para que eles possam escolher entre todas as tarefas possíveis. Eles devem ter uma visão de todo o mundo ao seu redor para reconhecer que os trabalhos estarão bem equipados. Você pode expressá-lo de muitas maneiras. Eu gosto da seguinte expressão: as escolas devem desenvolver todos os recursos interiores da criança.
Temos, portanto, dois tipos de objetivos nas escolas. Temos objetivos e pontaria boa. As escolas devem acabar com os adultos de empregabilidade – adultos que podem preencher um emprego. Mas o maior objetivo é desenvolver todos os recursos da criança em crescimento, a fim de que ela possa preencher o cargo para o qual ela é a melhor equipada. Assim, o objetivo maior, posso exprimi-lo assim, é desenvolver todos os recursos internos da criança.
E sobre o ensino da matemática? Matemática nas escolas primárias tem uma boa pontaria estreita e isso é muito claro nas escolas primárias. Um adulto que é totalmente analfabeto não é empregável numa sociedade moderna. Todo mundo deve ser capaz de ler e escrever e fazer um pouco de aritmética, e talvez um pouco mais. Portanto, a boa pontaria estreita da escola primária é ensinar as habilidades aritméticas – adição, subtração, multiplicação, divisão, e talvez um pouco mais, assim como para ensinar frações, porcentagens, taxas, e talvez até um pouco mais. Todo mundo deve ter uma idéia de como medir comprimentos, áreas, volumes. Esta é uma boa pontaria estreita das escolas primárias – para transmitir esse conhecimento – e não devemos esquecê-lo.
Queremos desenvolver todos os recursos da criança em crescimento. E a parte que a matemática desempenha é principalmente sobre o pensamento. A matemática é uma boa escola de pensamento. Mas o que está pensando? O pensamento que você pode aprender em matemática, por exemplo, para lidar com abstrações. A matemática é sobre números. Numbers are an abstraction. Os números são uma abstração. Quando resolver um problema prático, então a partir deste problema prático que deve fazer primeiro um problema abstrato. Matemática se aplica diretamente às abstrações. Alguns matemáticos devem possibilitar à criança, pelo menos, para lidar com abstrações, para lidar com estruturas abstratas. Não é uma má palavra.
Mas acho que há um ponto que é ainda mais importante. Matemática, você vê, não é um esporte de espectador. Para entender a matemática significa ser capaz de fazer matemática. E o que significa fazer matemática? Em primeiro lugar, isso significa ser capaz de resolver problemas matemáticos. Para os objetivos maiores em relação à qual estou falando agora são algumas táticas gerais dos problemas. Para ter a atitude certa para os problemas e ser capaz de atacar todos os tipos de problemas, não só problemas muito simples, que podem ser resolvidos com as habilidades da escola primária, mas os mais complicados problemas de engenharia, física e assim por diante, que serão desenvolvidos no colégio. Mas as fundações devem ser iniciadas na escola primária. E então eu acho que um ponto essencial na escola primária é introduzir as crianças para as táticas de resolução de problemas. Não é para resolver este ou aquele tipo de problema, não apenas de fazer divisões longas ou qualquer coisa assim, mas para desenvolver uma atitude geral para a solução de problemas.
PARTE II
Ensinar não é uma ciência, é uma arte. Se o ensino fosse uma ciência, haveria uma melhor maneira de ensinar e de toda a gente teria de ensinar assim. Como o ensino não é uma ciência, existe uma grande latitude e mais possibilidades para as diferenças pessoais. Em um antigo manual britânico havia a seguinte frase: “Seja qual for o assunto, o que o professor realmente ensina é ele mesmo.” Assim, pois, quando eu estou dizendo a você para ensinar de modo mais ou menos, leve-o no espírito certo. Tome-se como muito de meus conselhos como ele se encaixa pessoalmente. Vocês devem ensinar a si mesmo.
Existem tantas boas maneiras de ensinar, pois há bons professores. Mas deixe-me dizer-lhe que a minha idéia de ensinar é talvez o primeiro ponto, que é amplamente aceito, é que o ensino deve ser ativo, ou melhor, a aprendizagem ativa. Essa é a melhor expressão.
Você não pode aprender apenas lendo. Você não pode aprender apenas ouvindo as palestras. Você não pode aprender só de olhar para os filmes. Você deve adicionar a partir da ação de sua própria mente, a fim de aprender alguma coisa. Você pode chamar esse método socrático desde que Sócrates expressou dois mil anos atrás. Ele disse que a idéia deve ser carregada na conta do aluno e o professor deve apenas agir como uma parteira. A idéia deve fazer nascer no aluno o espírito naturalmente e a parteira não deve interferir muito, muito cedo. Mas se o trabalho de parto é muito longo, a parteira deve intervir. Este é um princípio muito antigo e não é um nome moderno para ele – método de descoberta. O aluno aprende por sua própria ação. A ação mais importante da aprendizagem é descobrir por si mesmo. Esta será a parte mais importante no ensino de tal forma que o que você descobrir por si próprio vai durar mais e será melhor compreendida.
Existem outros princípios de ensino. Se você não gosta da palavra princípios, as regras de uso das palavras ou do polegar. Aprendizado deve ser ativo. Outro também foi afirmado muitas vezes por todos os famosos grandes educadores – por Sócrates, Platão, Comenius, Montessori – e isso é que existem certas prioridades. Por exemplo, as coisas vêm antes de palavras e assim por diante. Isso tem sido afirmado muitas vezes em muitas formas, mas deixe-me citar Kant, que disse: “Todas as cognições humanas começam com intuições, procedem, portanto, de concepções, e terminam em idéias”. Deixe-me traduzir esta palavra em termos mais simples. Eu diria, “A aprendizagem começa com a ação e percepção, procede, portanto, as palavras e conceitos, e deve terminar em bons hábitos mentais”.
Este é o objetivo geral do ensino da matemática – desenvolver em cada aluno o máximo possível do mental bons hábitos de combater qualquer tipo de problema.
Você deve desenvolver a personalidade integral do aluno e o ensino da matemática devem especialmente desenvolver o pensamento. O ensino da Matemática poderia desenvolver também a clareza e poder de permanência. Poderia também desenvolver o caráter, em certa medida, mas mais importante é o desenvolvimento do pensamento.
Meu ponto de vista é que a parte mais importante de pensar que é desenvolvido em matemática é a atitude certa na resolução de problemas, no tratamento de problemas. Nós temos problemas na vida cotidiana. Temos problemas na ciência. Temos problemas na política. Temos problemas em todos os lugares. A atitude do direito de pensar é talvez um pouco diferente de um domínio para outro, mas temos apenas uma cabeça, e, portanto, é natural que, finalmente, deve haver apenas um método para combater todos os tipos de problemas. Minha opinião pessoal é que o ponto principal no ensino da matemática é desenvolver as táticas de resolução de problemas.
Os dois princípios de aprendizagem ativa – a prioridade de ação e percepção – são tidos em conta por quase todas as direções no ensino de matemática que são comuns hoje em dia e ter alguma influência.
Mas talvez o melhor desenvolvido na última hora foi na Grã-Bretanha. Existe uma fundação chamada Nuffield Foundation, que propaga a idéia de uma aprendizagem ativa e a prioridade de ação e percepção na aprendizagem. É alegadamente um provérbio chinês que diz: “Eu ouço e esqueço. Vejo e me lembro. Faço e compreendo”.
Portanto, “Eu ouço e esqueço.” Que você acabou de ouvir você esquece rapidamente. Um bom conselho é rapidamente esquecido. O que você vê com seus próprios olhos é recordado melhor, mas você realmente entende quando você faz isso com suas próprias mãos. Portanto, o lema é “Eu ouço e esqueço. Vejo e lembro-me. Eu faço e compreendo”.
Portanto, as escolas, especialmente as escolas primárias, hoje estão em uma evolução. Uma fração considerável, de dez a vinte por cento, já tem o novo método de ensino que pode ser caracterizado da seguinte forma em comparação com o antigo método de ensino. O método antigo é autoritário e professor. O novo método é permissivo e centrado no aluno. Nos tempos antigos o professor estava no centro da classe, ou na frente da classe. Todo mundo olhava para ele e ele falava. Hoje os estudantes indivíduos devem estar no centro da classe, e eles devem ser autorizados a fazer o que boa idéia vem à sua mente. Eles devem ser autorizados a praticá-la em sua própria maneira, cada um por si ou em pequenos grupos. Se um aluno tem uma boa idéia em discussão em classe, em seguida, o professor muda os planos e entra na boa idéia e agora a classe segue essa idéia.
Devo dizer-lhe um nome. Esta é a pessoa que é particularmente ativa neste sentido e que é muito inteligente, muito boa. Ela é uma talentosa professora particular que fica no com grande entusiasmo e talento para isso permissiva e centrada no aluno de ensino.
Em tal permissivo e centrado no aluno uma classe, cada grupo de miúdos fazem outra coisa. Jogam (vamos apenas dizer que eles pensam que eles jogam, mas realmente eles aprendem). O professor dá-lhes mais diversos materiais. A aula consiste em o professor dar às crianças diversos materiais. Eles brincam e desenvolvem suas próprias idéias em jogo. Por exemplo, um dos materiais é de papel quadrado. E uma boa oferta de cubos, os cubos de uma polegada e meia de várias dezenas deles, talvez até uma centena. Então as crianças brincam com isso. É a atividade docente – ensino pela ação e percepção.
Deixe-me dar um exemplo desta atividade. A classe discute pequenos retângulos. Deve vir – esse é o ponto principal – a partir de ação e percepção. Deve vir de coisas que os miúdos têm visto com freqüência suficiente e tocou. Então todo mundo tem visto uma sala, e as paredes de um quarto ordinário são retângulos, retângulos ou quase. Assim você aprenderá o que é um retângulo. O piso da sala comum é um retângulo. E toda a parede é um retângulo. O teto é um retângulo. Um dos objetivos do ensino bom, então, é entender o comprimento e a área. Então você medir o comprimento dos retângulos e vem com a idéia do perímetro dos retângulos. Então, você lida com a área do retângulo. Você constrói o retângulo de casas iguais, de praças da unidade, e vir para a noção de área. Enfim, estamos agora em uma classe que está pouco familiarizada com a área e o perímetro de retângulos. Na mesma folha de papel, desenhar retângulos, com o mesmo perímetro – um perímetro de vinte anos. Acontece que há nove retângulos tais.
Há muitas coisas para observar – ação e percepção. Algumas das crianças serão atingidas pela observação de que todos os cantos desses retângulos estão em uma linha reta. Então eles vão perceber que um desses retângulos tem lados iguais e você pode fazer muitas perguntas sobre isso. Um dos pontos interessantes é que o professor não deve fazer a pergunta, mas as crianças devem fazer as perguntas. Todos têm o mesmo perímetro. Será que eles têm a mesma área? Qual deles tem a maior área?
Aqui é outra atividade com retângulos? Novamente tomar papéis quadrados e cortar retângulos diferentes com as mesmas áreas, digamos área de 24 unidades quadradas. Sobrepõem-los no mesmo papel. Agora, os cantos opostos de um canto em que se sobrepõem não estão em uma linha reta. Existe algum tipo engraçado de linha curva.
Crianças com uma imaginação se juntam a estas para fazer linhas curvas. Então isso é uma outra consideração. Este é um exemplo de uma atividade com retângulos onde as crianças têm a sua própria escolha. Eles fazem suas próprias observações e o professor apenas ajuda um pouco agora e depois, com algumas dicas. Se as crianças não têm idéias de todos, em seguida, bem instruído o professor, que é usada para este aluno de ensino centrado, pode dar uma boa dica.
Talvez um ponto que Miss Biggs e da Fundação Nuffield não enfatizam suficientemente é a regra de adivinhação. Adivinhar nos vem naturalmente. Todo mundo tenta adivinhar e não tem de ser ensinado. O que tem de ser ensinado é razoável supor. E, especialmente, o que tem de ser ensinada é a de não acreditar os seus palpites, mas para testá-los. E as atividade os alunos irão começar muito melhor se você iniciá-los por adivinhar.
Aqui está um exemplo. Uma atividade é medir o comprimento e a largura da sala de aula. Agora, para algumas crianças pode ser “furada” se elas já fizeram isso com um antigo professor. Você pode começar com um pouco mais de atenção se você começar com um palpite. Você pode dizer: “Parece-me que esta sala de aula é o dobro do tempo que é grande. É mesmo?” Eu espero que algumas das crianças irão dizer: “Não, é mais do que duas vezes.” Outros dirão: “Não, ele é mais curto.” Muito poucos dirão: “Exatamente.” Depois de ter adivinhado, que fará a medição com mais interesse muito, porque todo mundo está interessado se o seu palpite virá verdadeiro ou não. Este é um caso muito especial em táticas de resolução de problemas. Se você for mais longe, você vai notar que adivinhando desempenha um papel importante. A solução para um problema, naturalmente, começa sempre com um palpite – nem sempre com um bom palpite. Ao contrário, geralmente o palpite é nunca completamente bom. É apenas um pouco fora do centro e da arte de resolver problemas consiste em grande parte, para corrigir os seus palpites.
Eu lhe dei as minhas idéias sobre como você deve ensinar matemática. Não são as idéias de uma aprendizagem ativa, a prioridade de ação e percepção, e pela atividade de ensino das crianças para iniciá-los, deixando-os adivinhar. Espero que num desses pontos encontra-se a simpatia com alguns de vocês. Obrigado.
***
Esta palestra gravada foi transcrita por Thomas C. O’Brien, só possível graças ao técnico meticuloso trabalho de John Ruiz e Steve Berkemeier. Ele apareceu pela primeira vez o comunicador, a revista do Conselho de Matemática da Califórnia . Parte I apareceu em setembro de 2001, e Parte II apareceu em Dezembro de 2001.
Manuscrito do século XV mostrando Ocidental e pensador Árabe praticando geometria juntos.
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Concluímos com a apresentação da Introdução do livro Os Elementos de Euclides, traduzido por Irineu Bicudo, Editora Unesp, 2009.
A parte I pode ser encontrada AQUI e a parte IIaqui.
Os comentaristas gregos dos Elementos
Na Antiguidade e na Idade Média, o modo de abordagem de uma obra e do seu ensino era o Comentário. De fato, um comentário ou exposição do pensamento de algum autor era um dos métodos básicos de ensino nas escolas medievais. E o comentário como instrumento pedagógico por excelência foi herdado tanto dos padres da Igreja quanto dos escritores árabes, e essas duas fontes têm a mesma origem: os escritos literários e científicos do último período do pensamento grego. Duas bicas, mas uma só água. Era esse, também, o modo de enriquecer o conhecimento pela confluência de vários saberes.
No Ocidente, o comentário tomou várias formas. A maneira especial, empregada, por exemplo, por Boécio nas suas exposições das Categorias e do De interpretatione de Aristóteles consiste em proceder sistematicamente por partes, tomando, de cada vez, uma pequena porção do texto original em tradução (latina, no caso) e explicando-lhe o conteúdo de modo mais simples. É, aproximadamente, como o faz Proclus no seu Comentário ao livro I dos elementos. Depois de um longo Prólogo em duas partes, trata pormenorizada e separadamente das “Definições”, dos “Postulados”, dos “Axiomas” (“Noções Comuns”, como está nos Elementos) e das “Proposições”, uma a uma. Proclus é o grande escoliasta dessa obra de Euclides. Poder-se-ia dizer que ele está para este como Alexandre de Aphrodisia, para Aristóteles. Alexandre era conhecido como “o Comentarista” entre os escoliastas gregos do estagirita; Proclus bem poderia ter esse epíteto no tocante a Euclides.
Antes dele, no entanto, houve outros tantos. Ele próprio diz (p.84, 11-18) que não procederá no seu texto como muitos deles, dando lemas, casos etc.,
pois estamos saciados dessas coisas e raramente trataremos delas.
Mas, quantas têm teorias mais importantes e contribuem para a filosofia como um todo, dessas faremos a menção guiadora, emulando os pitagóricos para os quais estava à mão também esta alegoria “uma figura e um passo, não uma figura e três óbulos”, mostrando, portanto, como é preciso perseguir aquela geometria... [77]
Em um outro lugar (p.200.10):
Voltemos à explicação das coisas demonstradas pelo autor dos Elementos, coletando, por um lado, as mais exatas das escritas sobre elas pelos antigos, cortando-lhes a ilimitada loquacidade, dando, por outro lado, as mais sistemáticas e portadoras dos métodos científicos [78].
Proclus não nomeia os seus predecessores nessa lida, mas parece certo que os mais importantes tenham sido Herão, Porfírio e Pappus. Posterior a Proclus, aparece também Simplício.
Herão de Alexandria
Proclus faz alusão a esse comentarista em seis passagens. A primeira delas a propósito da Mechanica que Herão escrevera, e as cinco restantes por conta dos Elementos de Euclides. Ei-las:
41.8-10:
(...)
[a arte que faz instrumentos] (...), como então também Arquimedes é dito ter construído instrumentos aptos a repelir ataque dos que se fazem hostis a Siracusa, e arte de fazer prodígios, umas executadas habilmente pelos ventos, como elaboraram tanto Ctesibius quanto Herão, outras, pelos pesos (...) [79]
196.15-17:
E certamente também nem é preciso reduzir o número deles [isto é, dos axiomas/noções comuns] ao menor, como faz Herão que expõe somente três (...) [80]
305.21-25:
[Falando sobre o enunciado da “Proposição XVI” do Livro I dos Elementos.]
Os que fabricaram antes, de modo negligente, esse enunciado, sem o “tendo sido prolongado um lado”, forneceram ocasião igualmente tanto a alguns outros, mas também a Felipe, diz o mecânico/engenheiro Herão, para acusação [81].
323.5-9:
Mas é preciso também descrever as outras demonstrações do proposto teorema, quantas os à volta [isto é, os discípulos] de Herão e de Porfírio expuseram da reta não prolongada, a qual fez o autor dos Elementos [82].
346.12-15:
A demonstração que tal é a de Menelau, ao passo que Herão, o mecânico/engenheiro, do mesmo modo prova a mesma coisa não por impossível [83].
429.9-15:
Mas, sendo a demonstração do autor dos Elementos evidente, penso nada supérfluo ser necessário acrescentar, mas serem suficientes as coisas escritas, mesmo porque quantos acrescentarem algo mais, como os discípulos de Herão e de Pappus, foram forçados a tomar além disso alguma coisa das mostradas no sexto [livro], em razão de nada importante [84].
As datas tocantes a Herão são motivo de controvérsia. Indiretamente, tem sido posto no século I.
Que tenha escrito um comentário sobre os Elementos pode ser inferido do que aparece nas passagens citadas de Proclus, mas mostra-se bem certo pelas referências a ele feitas por escritores árabes. No Kitab al – Fihrist (A lista das ciências) está que “Herão escreveu um comentário sobre esse livro [Os elementos], a fim de explicar os pontos obscuros”.
O comentário propriamente dito não parece conter muitas coisas que possam ser consideradas de relevância. Há algumas notas gerais, como a que indica o fato de ele não aceitar mais do que três axiomas/noções comuns, já vista acima. Há a exploração de casos particulares de certas proposições euclidianas, motivados por diferentes maneiras de desenhar as figuras. Há demonstrações alternativas, umas dadas sem figura, de modo “puramente algébrico”, outras para “sanar” o motivo de uma objeção a alguma construção de Euclides, e ainda outras tentando evitar a redução ao absurdo usada na prova original. Há o acréscimo de certas recíprocas de proposições dos Elementos e igualmente umas adições e algumas extensões de proposições. E não há nada mais.
Eis o que foi Herão como comentarista dos Elementos.
Porfírio
O neoplatônico Porfírio, discípulo de Plotino, revisor e editor da obra deste, parece ter escrito um comentário sobre os Elementos. Isso é deduzido do que se acha em Proclus, que o dá como fazendo observações a respeito das proposições I.14 e I.16 e sobre demonstrações alternativas às proposições I.18 e I.20.
Aqui, a possibilidade é que o trabalho de Porfírio tenha sido usado por Pappus ao escrever o seu próprio comentário, e deste tenha se valido Proclus para as suas referências.
Seja como for, dada a evidente vocação pedagógica demonstrada por Porfírio – basta ver a sua Εἰσαγωγή (Introdução), epístola dirigida ao seu discípulo Chrisaorius e que, tendo sido traduzida para o latim por Boécio, serviu por toda a Idade Média e na Renascença como a mais importante introdução à Lógica de Aristóteles – pode-se concluir que o seu interesse pelos Elementos tinha apoio menos em um desejo de contribuir com novos resultados e mais no de manter a precisão da linguagem matemática, levando os seus leitores a entendê-la.
Pappus
Existem em Proclus poucas alusões a Pappus. Há, no entanto, outra evidência de ter ele escrito um comentário sobre os Elementos. Um escoliasta sobre as definições dos Data escreve: “como diz Pappus no começo do seu comentário do Livro X de Euclides” (conforme a edição dos Data por Menge, p.262).
Assevera-se também no Fihrist que Pappus compusera um comentário sobre o Livro X dos Elementos em duas partes. De fato, restam-nos fragmentos do seu trabalho em um manuscrito – Paris n.952.2 – descrito por Woepcke nas Mémoires présentés à L’Academie des Sciences [85], 1856, v.XIV, p.658-719.
Ainda Eutocius, na sua nota sobre o Περὶ σφαίρας καὶ κυλίνδρου, I.13, (Sobre a esfera e o cilindro), de Arquimedes, afirma:
Como, de fato, inscrever no círculo dado um polígono semelhante ao inscrito em um outro é evidente, e foi mencionado também por Pappus no comentário dos Elementos [86].
O objeto da observação estaria, provavelmente, no comentário do Livro XII.
Passemos aos extratos de Proclus em que Pappus figura:
Sobre o quarto postulado [87] (“e serem todos os ângulos retos iguais entre si”) lê-se:
189.12-15:
Pappus estabeleceu-nos corretamente que a recíproca não mais é verdadeira, o ser, de todo ângulo, o ângulo igual ao reto, reto [88].
E ao tratar dos axiomas/noções comuns:
197.6-10:
E, com esses axiomas, Pappus diz registrar ao mesmo tempo que também, se desiguais sejam adicionados a iguais, o excesso entre os totais é igual ao entre os adicionados, e inversamente, caso iguais sejam adicionados a desiguais, o excesso entre os totais é igual ao entre os do princípio [89].
Mas Proclus prossegue:
198.3-15:
Essas coisas, de fato, seguem dos axiomas mencionados antes e, com razão, são omitidas na maioria das cópias, e quantas outras dessas ele [isto é, Pappus] acrescenta são antecipadas pelas definições e seguem daquelas; por exemplo, que todas as porções do plano e da reta ajustam-se umas às outras – pois as coisas estendidas ao extremo têm uma natureza que tal – e que um ponto divide uma linha, e uma linha, uma superfície, e uma superfície, um sólido – pois todas são divididas por essas, pelas quais são limitadas imediatamente – e que o ilimitado nas magnitudes existe tanto pelo acréscimo quanto pela destruição, mas cada uma em potência; pois toda coisa contínua é divisível e pode crescer ilimitadamente [90].
249.20-21:
[A propósito da “Proposição I.5”]
E ainda Pappus demonstra de modo curto, tendo necessitado de nenhuma adição, assim: (...) [91]
E a referência em 429.9-15, já posta acima sob a rubrica Herão de Alexandria.
Além dessas menções, Heath propõe ser razoável concordar com Van Pesch (De Procli fontibus, p.134 e ss.) que afiança Proclus valer-se, sem mencionar a autoridade, do comentário de Pappus em vários outros passos do seu próprio comentário.
Proclus
Como já foi mencionado, o Comentário de Proclus sobre o Livro I dos Elementos é uma das duas principais fontes de informação sobre a história da geometria grega que possuímos, a outra sendo a Coleção de Pappus. O Comentário visa mais à geometria elementar, a da régua e do compasso, ao passo que a Coleção volta-se para a geometria avançada. A importância dessas duas obras repousa no fato de não terem sobrevivido os trabalhos originais dos predecessores de Euclides, Arquimedes e Apolônio.
Proclus viveu no século V (410 a 485), tendo assim escoado um tempo suficiente para que a tradição relativa aos geômetras pré-euclidianos se tornasse obscura e falha. Daí fazer muito sentido a investigação, realizada por alguns pioneiros da história da matemática nos últimos cem anos, das fontes utilizadas no seu trabalho; pois são menos confiáveis aquelas que mais se afastam do tempo dos fatos relatados.
Proclus iniciou a sua educação em Alexandria, sendo orientado na filosofia de Aristóteles por Olympiodorus, este também um escoliasta do estagirita, e na matemática por um tal Herão, que não deve ser confundido com o mechanicus Herão. Vai depois para Atenas, onde é instruído por Plutarco e por Syrianus na filosofia neoplatônica, à qual se dedicou profundamente, a ponto de, sendo um discípulo de rápida aprendizagem, tornar-se-lhe um dos máximos expoentes e ser alçado, depois da morte do seu mestre Syrianus, a chefe da escola neoplatônica de Atenas. Proeminente no alcance do seu saber, foi chamado por Zeller na sua Die Philosophie der Griechen, “Der Gelehrte, dem kein Feld damaligen Wissens verschlossen ist” (“o erudito, para quem nenhum campo de conhecimento daquele tempo está fechado”). Foi matemático e poeta, devoto adorador de divindades gregas e orientais, mente tranquila em um mundo de grandes convulsões.
Na qualidade de neoplatônico, uma das suas doutrinas fundamentais sustentava que um nível mais baixo da realidade é, de algum modo, uma “imagem” [92] do mais alto. Uma aplicação dessa ideia encontra abrigo no Comentário e, pode-se dizer, constitui a base da sua filosofia da matemática. Para ele, a matemática reflete a natureza do mundo espiritual, e este pode ser compreendido estudando-se as figuras geométricas. Em poucas palavras, entendia a matemática como via de acesso às mais altas regiões do espírito, representadas pela filosofia; daí, ser inferior a esta. Isso está expresso no seguinte excerto, em que Proclus se refere a Platão:
31.11-22:
E dividindo, por sua vez, essa ciência, que distinguimos das artes, ele quer uma ser não hipotética, a outra partida de hipótese, e a não hipotética estar apta a conhecer a universalidade das coisas, subindo até o Bem e a causa mais alta de todas as coisas, e fazendo do Bem o fim da ascensão, enquanto a que tendo se colocado à frente princípios determinados, valendo-se desses demonstrar as suas consequências, indo não para um princípio mas para um fim. E assim, então, ele diz a matemática, como a que se serve de hipóteses, ser deixada para trás pela ciência não hipotética e acabada [vale dizer, a dialética platônica] [93].
Sabemos que na escola neoplatônica, segundo o preceito exposto na República, os jovens estudantes deveriam ser instruídos na matemática e era missão do chefe da escola ensiná-la. Eis a origem do seu comentário – o ensino dessa ciência. Além disso, em um ponto da obra torna-se evidente que os seus ouvintes são principiantes, pois mantém que:
272.7-14:
E outros fizeram a mesma coisa com as quadratrizes de Hippias e Nicomedes, também esses servindo-se de linhas mistas, as quadratrizes. E outros, partindo das hélices arquimedianas cortaram o ângulo retilíneo dado na razão dada; os conceitos das quais coisas sendo difíceis de entender para os iniciantes, deixamo-las presentemente de lado [94].
Há, por outro lado, passagens sobre hélice cilíndrica (104.26-105.2) e sobre concoides e cissoides (113.3-6).
104.26-105.2:
E alguns disputam a respeito dessa divisão e dizem existir não somente duas linhas simples, mas também uma outra, terceira, a traçada em torno da hélice de um cilindro... [95]
113.3-6:
E deve-se submeter as demonstrações das (afirmações) daquele [Geminus] aos amantes do conhecimento, porque ele dá as gerações tanto das linhas espirais quanto das concoides como das cissoides [96].
Por essas e outras, somos levados a concluir que Proclus também tinha em mira um público mais amplo, ou, antes, produzir uma obra de referência.
Ao comentar as proposições euclidianas, o escoliasta segue um plano bem estabelecido:
(i) explica as demonstrações dadas pelo geômetra;
(ii) dá alguns casos diferentes, por questões práticas;
(iii) refuta objeções provenientes de detratores de Euclides a certas proposições. Este item encontra a seguinte justificativa:
375.8-12:
Adicionei explicações relativas a essas coisas pelas importunações sofistas e pelo estado de espírito natural da juventude dos ouvintes. A maioria rejubila-se encontrando paralogismos que tais e introduzindo dificuldades supérfluas aos possuidores do perfeito conhecimento [97].
Uma questão tão natural quanto o respirar para viver é a de saber se o Comentário ao livro I não se estendeu aos demais livros dos Elementos. Alusões ali encontradas mostram que Proclus intentava prosseguir e possuiria notas nesse sentido. No entanto, o último trecho do trabalho parece indicar não ter havido a desejada continuidade:
432.9-19:
E nós, por um lado, caso possamos ir do mesmo modo aos restantes, renderíamos graça aos deuses, caso, por outro lado, outros cuidados nos desviem, demandamos aos amantes da contemplação deste estudo fazer, segundo o mesmo método, também a exegese dos livros seguintes, investigando o absolutamente importante e facilmente divisível, porque ao menos os comentários que agora circulam têm a confusão muita e variada que leva ao mesmo tempo nenhuma explicação às causas nem ao julgamento dialético nem ao estudo filosófico [98].
Ian Mueller (Mathematics and Philosophy in Proclus’ Commentary on Book I of Euclid’s Elements in Proclus, lecteur et interprète des anciens, 310) [99] propõe, o que é evidente, a seguinte divisão do Comentário e uma interessante classificação do seu conteúdo:
A Divisão:
I. Prólogo:
A. Parte I (Matemática em geral);
B. Parte II (Geometria).
II. As definições do Livro I dos Elementos.
III. As asserções do Livro I:
A. Os postulados e axiomas;
B. As proposições.
A Classificação:
(1) Especulação neoplatônico-neopitagórica: os principais exemplos disso são interpretações de conceitos e proposições como imagens de coisas mais elevadas [como já apontamos anteriormente]; um outro exemplo seria a tentativa de relacionar a matemática com os princípios Limitado–Ilimitado.
(2) Discussão menos especulativa, mais analítico-filosófica: a distinção entre a discussão filosófica e a especulação fica, algumas vezes, obscurecida quando tal discussão é feita por causa da especulação ou no contexto de ideias especulativas.
(3) Classificações e pontos semânticos, lógicos ou metodológicos: incluídas nesse item estão explicações de termos ou proposições, aplicações de pontos da lógica, usualmente do trabalho de Aristóteles, análises da estrutura da argumentação euclidiana, definições alternativas, e classificações, usualmente por gênero e espécie, de objetos geométricos.
(4) Raciocínio mais estritamente matemático: isso é usualmente encontrado em demonstrações alternativas, demonstrações de casos não considerados por Euclides, ou em respostas a objeções; em geral, o raciocínio é bem elementar.
(5) Observações históricas; incluo aqui somente observações que parecem não ter outro propósito exceto o de prover informação histórica, em geral, que Oinopides foi o primeiro a provar certa proposição; outras afirmações com um conteúdo histórico, na maioria, apresentações.
Ian Mueller assevera:
(...) há um tipo de divisão óbvia entre (1)-(2) e (3)-(4), e particularmente entre (1), que poderia ser chamado de jambricano e (3)-(4) que poderiam ser chamados porfirianos. Não surpreendentemente, historiadores da filosofia têm se concentrado no material que cai nos itens (1)-(2), ao passo que historiadores da matemática negligenciam-nos amplamente, concentrando-se nas categorias (3)-(4).
Como Simplício em relação à obra de Aristóteles, Proclus também usou, na elaboração do seu Comentário, tudo o que de útil encontrara no que escreveram aqueles que o precederam. Mas vale, com certeza, para ele o que alguém já disse: “Nós nada somos sem o trabalho dos nossos predecessores. (...) E, no entanto, somos mais do que isso.” O escoliasta fez uma compilação, porém uma “no melhor sentido”. Pois achou um enorme bloco de pedra, “tosco, bruto, informe, e depois de desbastar o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão” e começa a dar-lhe vida. Seleciona passos antes desconexos, apara expressões inapropriadas, recorta o que lhe parece bom, e veste-lhes o manto da harmoniosa coerência; “aqui desprega, ali arruga, acolá recama” e, “naquele movimento hierático da clara língua” grega “majestosa, naquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive”, fica pronta a obra que, ao explicar Euclides, preserva-nos muito do que podemos afirmar das conquistas gregas no fecundo campo da matemática.
Simplício
O neoplatônico Simplício (século VI) foi, por longo tempo, considerado importante sobretudo como fonte de fragmentos de outros filósofos. No conjunto das suas obras, de proporção considerável, consistindo exclusivamente em comentários, cita as opiniões de um grande número dos que vieram antes, como anota Michael Chase, na Introdução da sua tradução inglesa do Comentário de Simplício às Categorias de Aristóteles, p.1-4. E tais menções são, com frequência, as únicas coisas que sobreviveram de muitos desses antepassados. O seu papel de preservador dos fragmentos dos pré-socráticos é inestimável e ele deve ser sempre altissimamente tido pela existência de fragmentos de Parmênides, Empédocles, Anaxágoras e Diógenes Apolônio. O seu valor como fonte de peripatéticos como Eudemo de Rodes, Andrônico e Boécio é inexcedível, sendo igualmente o guardião do que se conhece de certos autores pitagóricos e pseudopitagóricos, como Moderatus de Gades e Árquitas, bem como de membros da Academia Tardia e dos chamados platônicos médios. Muito dos comentários perdidos às Categorias, escritos por Porfírio e Jâmbrico, pode ser reconstruído somente pelo uso de Simplício como intermediário.
Um Colóquio Internacional, “Simplicius – Sa vie, son œuvre, sa survie” [100], foi organizado em Paris, de 28 de setembro a 1o de outubro de 1985, tendo a sua ata editada por Ilsetraut Hadot.
Sobre a obra do comentarista, I. Hadot, na sua primeira contribuição àquela publicação, faz saber:
Como o observa H. Gätje no artigo que acabo de citar [H. Gätje, Simplikios in Der Arabischen Überlieferung [101], in Der Islan, 59 (1982)], a literatura árabe guardou os traços da personalidade sábia de Simplício que nos permaneceriam desconhecidos se levássemos em consideração apenas as obras gregas que os acasos da transmissão manuscrita nos conservaram.
Mais uma vez apoiada no trabalho de Gätje, observa (p.36):
O mesmo Fihrist de Al-Nadim, do qual já falamos no tangente ao resumo sobre o comentário de Simplício ao De anima [de Aristóteles], atesta igualmente a existência do comentário às Categorias, como mais tarde Al-Qifti, que retoma em regra geral o material que se encontra em Al-Nadim com alguns acréscimos, omissões e variantes. Mas sobre os outros comentários de Simplício sobre Aristóteles, as fontes bibliográficas árabes calam-se. Em compensação [e eis o que nos interessa], nos dois autores árabes, Simplício é nomeado, na qualidade de matemático e astrônomo, como tendo escrito um comentário sobre o primeiro livro dos Elementos de Euclides. Al-Qifti ajunta nesse contexto (...) que Simplício fundara uma escola e que teve alunos que foram chamados segundo o seu nome. A. I. Sabra, no seu artigo “Simplicius’ Proof of Euclid’s Parallels Postulate [Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, 32 (1969), p.1-24], reuniu, além dos extratos citados desse comentário por al-Nayrizi [matemático que viveu no século IX] em árabe, no seu próprio comentário sobre os Elementos de Euclides, um extrato contido em uma carta de Alam al-Din Qaysar ibn Abi ’L-Qasim a Nasir al-Din al-Tusi e, além disso, um texto contido no manuscrito árabe, Bodleianus Thurston 3, fol. 148. O comentário de al-Nayrizi será conhecido no Ocidente pela tradução de Geraldo de Cremona. Simplício é aí citado sob o nome de Sambelichos. A tradição grega não nos permite, senão indiretamente, concluir sobre as qualidades de matemático de Simplício. (...) Em primeiro lugar, o Fahrist faz indiscutivelmente a ligação entre o filósofo e o matemático, e, por outro lado, sabemos que cada filósofo neoplatônico era matemático ao mesmo tempo que filósofo. (...)
Acrescentemos, nesse contexto, ainda um pormenor interessante. Em um dos fragmentos textuais do comentário de Simplício sobre o primeiro livro dos Elementos de Euclides, relatados por al-Nayrizi, Simplício fala do seu “sahib”, nomeado Aghanis e cita uma demonstração matemática dele. Qual pode ser o termo grego subjacente? A. I. Sabra traduz por “our associate”, o que pode eventualmente fazer pensar em um professor associado na escola que, segundo al-Nadim, Simplício havia dirigido. Pode tratar-se talvez também de uma tradução árabe do termo grego ἑταῖρος que, no uso que dele fazem os neoplatônicos, designa um companheiro de estudos admitido no estreito círculo dos verdadeiros adeptos da filosofia neoplatônica.
De fato, Simplício dá, verbatim, em uma longa passagem colocada por al-Nayrizi depois da “Proposição XXIX” do Livro I dos Elementos, uma tentativa de Aghanis, que virá erroneamente a ser confundido com Geminus, de demonstrar o postulado das paralelas. Começa, realmente, com uma definição de paralela que concorda com a versão de Geminus sobre elas, como está em Proclus:
177.21-23:
E das [linhas] que se mantêm separadas por distância sempre igual, as retas que nunca tornam menor a entre elas em um plano são paralelas [102].
E está intimamente conectada com a definição dada por Posidonius em Proclus:
176.6-10:
E Posidonius diz: paralelas são as que nem convergem nem divergem em um plano, mas as que têm iguais todas as perpendiculares traçadas dos pontos de uma até a outra [103].
Fiquemos com as considerações acima, no que tange aos comentaristas, aditando:
Do Comentário
Quando os deuses, do Olimpo, poderosos
Enviam a cristalina chuva
Que caudalosos faz os rios
E viva a terra agradecida,
As gotas dágua suspensas no horizonte
Revelam o mistério da cor branca:
Combinação perfeita, harmoniosa
Das outras sete do arco-íris.
Assim o comentário dos antigos,
Como as gotas da chuva cristalina,
Mostram que os Elementos de Euclides,
Obra hercúlea, valorosa,
São a, dos trabalhos de Eudoxo e Teeteto,
De Teodoro e outros grandes gregos,
Com a pitada de sal
Que faz a vida mais gostosa,
Combinação ousada, majestosa.
A Geometria Grega e os Elementos
Pode-se dizer, parece que sem qualquer sombra de dúvida, que o conhecimento matemático tanto egípcio quanto o babilônico – este, sabemos hoje graças ao trabalho de Otto Neugebauer, bem mais refinado do que aquele – tinha a experiência como critério de verdade.
Os gregos herdaram, assim nos diz a tradição, tal conhecimento. Mas, o que satisfazia egípcios e babilônios não bastou para contentar a exigência grega. Com os matemáticos da Grécia, a razão suplanta a empeiria como critério de verdade e a matemática ganha características de uma ciência dedutiva.
Como sucede com inúmeros fenômenos culturais, as causas dessa transformação por que passou essa área de conhecimento jazem ocultas nas
brumas de um passado remoto. Cada tentativa de reencontrá-las tece-se de conjecturas mais ou menos consubstanciadas nos testemunhos, quase sempre duvidosos, de épocas menos recuadas. No que nos interessa, o historiador assemelha-se a um equilibrista a andar em um fio de aço suspenso entre dois distantes pontos, a uma altura estonteante, sem a rede protetora que lhe amorteça uma possível malfadada queda. Porém, com o desafio lançado, a adrenalina agita o sangue, esporeia os rins, enrijece os músculos, faz pulsar acelerado o coração, incitando a audácia humana: é preciso ousar!
É o que faz Szabó quando explica a referida mudança pelo impacto, na matemática, da filosofia eleática, ou, mais precisamente, da dialética de Zenão.
Ora, se a dialética de Zenão, sendo uma técnica retórica, pode ter sido a causa do princípio da axiomatização, não parece ser o bastante para firmar a axiomatização como um programa a ser levado a cabo. Julgamos lídimo afirmar que para tanto foram necessárias a influência de Platão e a extensão que faz da dialética eleática.
Platão elege a dialética [104], já o vimos, como a mais importante das ciências, a única não-hipotética. Enquanto a matemática tem hipóteses como pontos de partida, indo dessas, em movimento descendente (κάτω), à dedução das suas consequências, a dialética, em movimento ascendente (ἂνω) caminha para o alto, ainda mais alto, até alcançar, se possível, o fundamento incondicional (República, 510.b6-7: “[a alma] indo da hipótese ao princípio não hipotético.” 511.b5 [105]: “fazendo as hipóteses não princípios mas realmente hipóteses” [106]).
Na ordenação das realidades, a trajetória (ascendente e depois descendente, isto é, uma espécie de análise e síntese dos geômetras gregos) não ficaria facilitada, se feita com base em uma axiomatização dessa ciência intermediária entre o sensível e o inteligível? Isso não imporia tal axiomatização como um projeto da Academia, sob a influente autoridade de Platão?
Platão, matemático?
Quem pretenda enfrentar as questões acima terá antes que se haver com esta outra: À parte o estudioso da matemática, o entusiasta por essa ciência, Platão foi também um efetivo matemático, como arrolado entre outros no Sumário de Eudemo? Descobriu ele resultados matemáticos, resolveu complexos problemas, vislumbrou novas teorias, imprimiu, em suma, a sua pegada no fértil solo dessa disciplina?
Aqui a resposta de duas eminentes autoridades:
G. J. Allman (Greek Geometry: from Thales to Euclid [107], p.124):
Deve-se recordar que Platão – que em matemática parece ter sido mais diligente que inventivo (...) De fato, temos somente que comparar a solução atribuída a Platão, para o problema de achar duas médias proporcionais (...) com as soluções altamente racionais para o mesmo problema de Arquitas e Menaechmus, para ver o amplo intervalo entre estes e aquele, de um ponto de vista matemático. (...) É, então, provável que Platão, que, tanto quanto sabemos, nunca resolveu uma questão geométrica (...)
N. Bourbaki (Éléments d’histoire des mathématiques [108], p.12): “Pode-se dizer que Platão era quase obcecado pela matemática; sem ser ele mesmo um inventor nesse domínio (...)”
A próxima questão: Pôde Platão, sem ter sido propriamente um matemático, ter dado uma contribuição importante ao estabelecimento e à estruturação da matemática grega?
Isso abre um amplo campo de debate.
A tradição, concretizada no Sumário de Eudemo, assim como alguns historiadores modernos consideram decisivo o seu papel para o desenvolvimento dessa ciência, mormente no que respeita ao método, à sistematização e aos fundamentos desta, tanto quanto à sua emancipação da experiência. Outros negam-lhe a influência significativa.
Aos exemplos!
B. L. Van der Waerden (Science Awakening [109], p.148):
O período [século de Platão] começa com a morte de Sócrates (399 a.C.) e encerra-se no momento em que Alexandre, o Grande, espalha a semente da cultura helenista sobre o mundo todo da Antiguidade.
Esse período é de decadência política; mas para a filosofia e para as ciências exatas é uma era de florescimento sem precedente. No centro da vida científica encontra-se a personalidade de Platão. Ele guiou e inspirou o trabalho científico dentro e fora da sua Academia. Os grandes matemáticos Teeteto e Eudoxo, e todos os outros enumerados no Catálogo de Proclus, foram seus amigos, seus mestres em matemática e seus discípulos em filosofia. O seu grande aluno, Aristóteles, o professor de Alexandre, o Grande, passou vinte anos da sua vida no glorioso mundo da Academia.
J. A. Gow (A Short History of Greek Mathematics [110], p.175-6):
… Platão foi mais um forjador de matemáticos do que um matemático distinguido por descobertas originais, e as suas contribuições à geometria estão mais na melhora do seu método do que em adições ao seu conteúdo. Foi ele que transformou a lógica intuitiva dos antigos geômetras em um método a ser considerado conscientemente e sem receio. Com ele, aparentemente, começaram aquelas definições dos termos geométricos, aquele enunciado distinto de postulado e axiomas que Euclides adotou. (grifo nosso)
Gino Loria (Storia delle Matematiche [111], p.78): “Mais direta e visível foi a benéfica influência de Platão sobre a Ciência Exata”.
Por outro lado,
Otto Neugebauer (The Exact Sciences in Antiquity [112], p.152):
Parece-me igualmente impossível dar qualquer “explicação” conclusiva para a origem da matemática superior nos séculos V e IV, em Atenas e nas colônias gregas. Do lado negativo, entretanto, penso que é evidente que o papel de Platão foi amplamente exagerado. A sua contribuição direta para o conhecimento matemático foi obviamente nula. Que por um certo período matemáticos da estatura de Eudoxo tenham pertencido ao seu círculo não é prova da influência de Platão na pesquisa matemática. O caráter excessivamente elementar dos exemplos de procedimentos matemáticos citados por Platão e por Aristóteles não dão suporte à hipótese de que Teeteto ou Eudoxo tenham aprendido qualquer coisa com Platão.
Cabe invocar agora o testemunho de Eudemo, no Catálogo dos geômetras, sobre o impulso que o filósofo dera à ciência matemática e, em particular, à geometria, despertando a admiração por esse estudo e orientando discípulos na pesquisa geométrica.
Como Eudemo é um dos observadores mais próximos do tempo de Platão, é razoável darmos-lhe crédito. É possível que ele seja o inspirador das seguintes palavras de J. Cajori, p.26 [113]:
Com Platão como chefe da Escola não nos devemos surpreender que a escola platônica tenha produzido um tão grande número de matemáticos. Platão realizou pouco trabalho realmente original, mas fez aperfeiçoamentos valiosos na lógica e nos métodos empregados. (grifo nosso)
Aceitamos, pois, que, mesmo não sendo efetivamente um “working mathematician”, o filósofo, até pela sua missão de filósofo, contribuiu para o desenvolvimento da matemática grega, em especial da geometria, como esta aparece nos Elementos de Euclides.
Como se organiza a matemática
Comecemos descrevendo, sucintamente, em que consiste, depois de Cauchy, Weierstrass, Bolzano, Dedekind, Cantor, Frege, Hilbert, Bourbaki, e outros grandes do século XIX e XX, uma teoria matemática.
No seu trabalho, o que compete ao matemático é definir os conceitos de que se servirá e demonstrar as propriedades desses conceitos.
Ora, definir um conceito significa explicá-lo em termos de outros conceitos já definidos, e demonstrar uma proposição equivale a argumentar pela sua veracidade, usando as regras de inferência válidas fornecidas pela lógica, com base em proposições anteriormente demonstradas. Assim, um certo conceito $c_0$ é definido recorrendo-se aos conceitos $c_1, c_2, ..., c_k$, todos eles já definidos, tendo tais definições dos $c_1, c_2, ..., c_k$ ocorrido em função de outros conceitos, anteriores na estrutura, “e assim por diante”. De modo análogo, para provarmos uma proposição, utilizamo-nos de proposições anteriormente provadas e que foram provadas com o auxílio de outras já provadas que as antecedem na ordenação da teoria, “e assim por diante”.
Quer na definição de conceitos quer nas demonstrações de propriedades, o problema jaz na frase “e assim por diante”. Como não há, dada a nossa finitude, possibilidade de um retrocesso ad infinitum, é preciso dar uma solução ao “e assim por diante”.
No caso da definição, os dicionários oferecem a solução do “círculo vicioso”: um termo é definido em função de um outro e este outro, em função daquele. É evidente que o matemático não pode aceitar essa situação. A sua solução (de conveniência, é verdade) consiste em tomar alguns conceitos sem definição. Como lembra J. M. C. Duhamel (Des méthodes dans les sciences de raisonnement [114], p.16-7): “É por entendê-lo desse modo que diremos que a definição de uma coisa é a expressão das suas relações com coisas conhecidas. E, por consequência, nem todas as coisas podem ser definidas, pois que, para isso, seria necessário conhecer já as outras.” Assim procedendo, o matemático assume o compromisso de, valendo-se desses conceitos não definidos, que devem ser escolhidos no menor número possível, definir todos os demais conceitos de que deva lançar mão.
No caso da demonstração de propriedades/proposições, uma conduta similar leva-o a acolher umas tantas proposições, no menor número exequível, sem demonstração e procurar provar todas as outras afirmações que venha a fazer a partir daquelas.
Os conceitos não definidos são chamados conceitos ou termos primitivos e todos os outros, conceitos ou termos derivados. As proposições admitidas sem
demonstração são ditas axiomas (hoje não se faz qualquer distinção entre
postulado e axioma), e as demais, demonstradas, teoremas.
Essa estruturação das disciplinas matemáticas em conceitos primitivos e derivados, axiomas e teoremas fornece “a arquitetura” da nossa ciência. E isso é “com pouca corrupção” herança grega. Conforme sustenta Bourbaki (op. cit., p.10): “a noção de demonstração nesses autores [Euclides, Arquimedes, Apolônio] não difere em nada da nossa”.
A matemática grega
Um dos capítulos mais importantes da história cultural, embora pouco conhecido, é a transformação do primitivo conhecimento matemático empírico de egípcios e babilônios na ciência matemática grega, dedutiva, sistemática, baseada em definições e axiomas.
Quem se achegue descuidadamente a essa história terá a impressão de a geometria ter nascido inteiramente radiante da cabeça de Euclides, como Atenas da de Zeus. Tal foi o êxito dos seus Elementos no resumir, corrigir, dar base sólida e ampliar os resultados até então conhecidos que apagou, quase que completamente, os rastros dos que o precederam.
“Não há, hoje, qualquer dúvida”, salienta Bourbaki (op. cit., p.9), “de que existiu uma matemática pré-helênica bem desenvolvida. Não somente são as noções (já mais abstratas) de número inteiro e de medida de quantidade comumente usadas nos documentos mais antigos que nos chegaram do Egito e da Caldeia, mas a álgebra babilônia, por causa da elegância e segurança dos seus métodos, não deve ser concebida como uma simples coleção de problemas resolvidos por um tatear empírico.”
No entanto, não encontramos, seja nos documentos egípcios seja nos babilônios, que nos chegaram aos milhares, qualquer esboço do que se assemelhe a uma “demonstração”, no sentido formal do conceito. A noção de ciência dedutiva era desconhecida dos povos orientais da Antiguidade. Os seus textos matemáticos mostram-se, em que pese o afirmado por Bourbaki, como uma coletânea de problemas, mais ou menos interessantes, e as suas soluções, em forma de uma receita prescrita, como as indicações das etapas de um ritual oferecido a uma deidade. Nada de definições, nada de axiomas, nada de teoremas! Sobre tais coisas repousa a sombra!
Agora, a questão fundamental.
Ao herdarem esse conhecimento – Heródoto, Aristóteles e Eudemo afiançam-nos ter a geometria sido importada do Egito – por que os gregos não se contentaram com o seu fundamento empírico? Por que substituíram a coleção existente das receitas matemáticas por uma ciência dedutiva sistemática? O que os levou a confiar mais no que podiam demonstrar do que naquilo que podiam “ver” como correto? Por que a transformação no critério de verdade ali usado, trocando a justificativa baseada na experiência por aquela sustentada por razões teóricas?
É na moldagem dessa nova configuração da matemática, julgamos, que foi decisiva a influência de Platão.
A mudança
Tanto no Egito quanto na Mesopotâmia, era a classe sacerdotal a detentora do conhecimento. Ora, os sacerdotes punham-se de intermediários entre a deidade e o povo. Os desígnios da divindade não carecem de explicações; seus desejos devem ser satisfeitos com os rituais que, aplacando-lhe a ira, lhe atrai o beneplácito. É função dos sacerdotes interpretar a vontade dos deuses, guiando o povo nos passos do rito apaziguador.
Procedem do mesmo modo, enunciando as passadas, sem lhes dar justificação, nos seus documentos matemáticos!
Quando tal conhecimento chega à Grécia, por volta do século VI a.C., não encontra ali uma classe sacerdotal. “Foi provavelmente graças aos aqueus”, pondera J. Burnet (Early Greek Philosophy, p.4) [115], “que os gregos nunca tiveram uma classe sacerdotal, e isso pode bem ter tido algo a ver com o aparecimento da ciência livre entre eles.” Além disso, “a visão tradicional de mundo e as costumeiras regras de vida tinham colapsado” (idem, ibidem, p.1), e os mais antigos filósofos especulavam sobre o mundo à sua volta. Essa pesquisa cosmológica deu origem “à ampla divergência entre ciência e senso comum que era, por si só, um problema que demandava solução, e, além disso, forçava os filósofos ao estudo dos meios de defender os seus paradoxos contra os preconceitos da (visão) não científica” (idem, ibidem, p.1). Há, então, que se acrescentar que “a impressão geral que parece resultar dos textos (muitos fragmentários) que possuímos sobre o pensamento filosófico grego do século V a.C. é ser ele dominado por um esforço mais e mais consciente para estender, a todo o campo do pensamento, os procedimentos de articulação do discurso empregados com tanto sucesso pelas retórica e matemática contemporâneas – em outras palavras, para criar a Lógica, no sentido mais geral dessa palavra. O tom dos escritos filosóficos sofrem, nessa época, uma mudança básica: ao passo que, nos séculos VII e VI, os filósofos afirmam ou vaticinam (ou ao menos esboçam vagos raciocínios, fundados sobre igualmente vagas analogias), a partir de Parmênides e, sobretudo, de Zenão, argumentam e procuram resgatar princípios gerais que possam servir de base à sua dialética” (Bourbaki, op. cit., p.11), cuja invenção Aristóteles atribui a Zenão; “é em Parmênides que se encontra a primeira afirmação do princípio do terceiro excluído, e as demonstrações ‘por absurdo’ de Zenão de Elea permaneceram famosas” (idem, ibidem, p.11).
Pois bem, a solução proposta por Sazbó para a origem da matemática dedutiva sistemática grega consiste no impacto, sofrido pela ciência, da filosofia eleática ou, mais precisamente, da sua dialética.
A filosofia eleática, falando perfunctoriamente, foi preparada por Xenófanes, estabelecida por Parmênides, seguida e defendida por Zenão e Melisso, e tem como fundamentos:
(i) a unidade, a imutabilidade e a necessidade do ser – em Teeteto 181 a 6-7, Platão refere-se aos eleatas como οἱ τοῦ ὃλου στασιῶται “os partidários do todo”, e Aristóteles, Metafísica 986b 24, escreve
“[Xenófanes], tendo contemplado o céu todo, disse o um ser deus.” [116].
(ii) a acessibilidade do ser somente ao pensamento racional e a condenação do mundo sensível e do conhecimento sensível como aparência.
Claro está que a aceitação do pressuposto (ii) vai ao encontro da nova visão da matemática.
A conjectura de Szabó
Euclides abre os Elementos arrolando três tipos de princípios matemáticos: definições (ὃροι), postulados (αἰτήματα) e noções comuns (κοιναὶ ἒννοιαι) ou axiomas.
Proclus examina os princípios não provados nos seguintes termos:
75.5-18:
Explicaremos o arranjo todo das proposições nele [o livro dos Elementos] por esta maneira. Por essa ciência, a geometria, ser de hipótese, dizemos, e demonstrar as coisas na sequência a partir dos princípios de partida – pois uma única é a não hipotética, e as outras recebem de junto daquela os princípios – é necessário, de algum modo, o organizador dos elementos na geometria transmitir, por um lado, separadamente os princípios da ciência, e, por outro lado, separadamente as conclusões a partir dos princípios, e não dar uma razão para os princípios, mas para as consequências pelos princípios. Pois, nenhuma ciência demonstra os princípios dela própria, nem faz discurso sobre eles, mas tem-nos como autoconfiáveis, e, para ela, são mais evidentes do que os na sequência. E sabe-os por causa deles próprios, ao passo que as coisas depois dessas, por causa daqueles [117].
As palavras acima são a caixa de ressonância do seguinte trecho da República de Platão.
510. c2-d3:
Penso, pois, saberes que os que se esforçam com a geometria e também com a aritmética e com coisas que tais, tendo suposto tanto o ímpar quanto o par, quanto as figuras e as três espécies de ângulos, e as outras coisas afins a essas, segundo cada pesquisa, como sabedores dessas coisas, tendo-as feito hipóteses, nenhuma razão nem a si próprios nem a outros julgam, então, conveniente dar sobre elas, como evidentes a todos, e, partindo dessas coisas, passando daí através das restantes, terminam, de modo conforme, nisso, no exame do qual começaram [118].
Tais considerações mostram que os matemáticos daquela época, dos quais os maiores estavam, de algum modo, associados à Academia, tinham já uma nova concepção da matemática como uma ciência dedutiva e entendiam a não necessidade de demonstrarem os seus princípios. Deixam igualmente claro que os conceitos arrolados – o ímpar e o par, as figuras e os três tipos de ângulos – são hipóteses dessa ciência, que, por contê-las, é uma ciência hipotética.
Ora, a palavra ὑπόθεσις, “hipótese”, deriva do verbo ὑποτίθημι, “pôr embaixo, supor (sub-pôr)”, e significa aquilo que os participantes de um debate (retórico) concordam em aceitar por base e ponto de partida da argumentação de cada um. Assim, ὑπόθεσις, quer na dialética (retórica) quer na matemática, é um fundamento, um princípio, um ponto de partida aceito e sobre cuja veracidade não se cogita.
Então, segundo Szabó, os matemáticos chegaram à conclusão de que não precisavam (e não podiam) demonstrar os princípios da sua ciência pela prática da dialética. Estariam habituados com o fato de que, quando um dos debatedores queria provar algo para os outros, limitava-se a começar a partir do que tinha sido convencionado verdadeiro por todos os participantes.
Ainda Platão
A mudança resultante de paradigma está intimamente associada ao caráter idealista, antiempírico da filosofia eleática, mas sobretudo da filosofia platônica. Como nota Van der Waerden (op. cit., p.148) a respeito desta:
Verdade que significa as ideias. São as ideias que têm Ser verdadeiro, não as coisas que são observadas pelos sentidos. As ideias podem às vezes ser contempladas, em momentos de Graça, através da reminiscência do tempo em que a alma vivia mais perto de Deus, no reino da verdade; mas isso pode acontecer somente depois de os erros dos sentidos terem sido conquistados pelo pensamento concentrado. O caminho que leva a esse estado é aquele da dialética (...)
Platão incentiva a estruturação dedutiva sistemática da ciência que ele considera propedêutica a mais alta ciência, a dialética.
L. Brunschvicg (Les étapes de la Philosophie Mathématique [119], p.56) pondera:
Separando-se, ao mesmo tempo, dos pitagóricos, que mantinham no mesmo plano ciência e filosofia, e de Sócrates, cuja investigação prudente parece ter-se detido na determinação da hipótese, Platão conduz a filosofia matemática a um caminho todo novo. A matemática situada na região da διάνοια é apenas uma ciência intermediária (Aristóteles, Metafísica 997b2: “as coisas intermediárias, acerca das quais dizem ser a ciência matemática” [120]). A sua verdade reside em uma ciência superior, que está em relação a ela como ela própria em relação à percepção do concreto. A dialética tem por função retomar as hipóteses das técnicas particulares e conduzi-las até o seu princípio (República VII, 533.c6-7: “a investigação dialética só é conduzida por esse modo, eliminando as hipóteses, em direção ao próprio princípio” [121]), toma posse do incondicional; e daí, por uma marcha que é inversa à da análise, forja uma cadeia ininterrupta de ideias (República VI, 511.b3-c2: “Dizendo eu: compreende então a outra seção de inteligível, isso a que a própria razão alcança pelo poder da dialética, fazendo das hipóteses não princípios, mas realmente hipóteses, do mesmo modo que degraus e também trampolins, a fim de que, indo até o não-hipotético no princípio de tudo, tendo-o alcançado, de novo, obtendo as coisas que são obtidas daquele, desça assim para um fim, servindo-se absolutamente de nada sensível, mas das próprias ideias/formas, através delas para elas, e acaba em ideias/formas”.) que, suspensa no princípio absoluto, constituirá um mundo completamente independente do sensível, o mundo da νόησις. A filosofia da matemática de Platão, no seu grau mais alto e sob a sua forma definitiva será então a dialética [122].
Cotejemos o que acabamos de citar com a seguinte passagem do livro Introduction to Mathematical Philosophy, p.1, de Bertrand Russell [123]:
A matemática é um estudo que, quando começamos a partir das suas porções mais familiares, pode ser perseguido em uma de duas direções opostas. A direção mais familiar é construtiva, para complexidade gradualmente crescente: dos inteiros para as frações, números reais, números complexos; da adição e multiplicação para a diferenciação e a integração e para a matemática superior. A outra direção, que é menos familiar, procede, por análise, para a abstração e a simplicidade lógica cada vez maiores; em vez de perguntar o que pode ser definido e deduzido do que é suposto no princípio, perguntamos que ideias e princípios mais gerais podem ser encontrados, em termos dos quais o nosso ponto de partida possa ser definido ou deduzido. É o fato de perseguir essa direção oposta que caracteriza a filosofia matemática como oposta à matemática usual.
Enquanto Zenão toma uma hipótese como uma suposição que se faz para um presente propósito, Platão no Fédon e nos Livros VI e VII da República, como aponta J. Lucas (Plato and the Axiomatic Method [124], p.13),
tenta tornar as suas suposições aquelas que não têm que ser tomadas como certas para o presente caso particular; tenta torná-las aquelas que devem ser aceitas por todos. Essa é a procura do ἀνυπόθετον ἀρχή (“princípio não-hipotético”), o axioma fundamental que não tem que pedir a alguém para aceitá-lo; é algo que deve ser aceito por qualquer um (...) É por essa razão que Platão sugere à consideração o ideal axiomático: que deveríamos tentar e desenvolver o todo da nossa matemática por raciocínio dedutivo, διάνοια, com base em alguns princípios que (erradamente) pensou poderiam ser estabelecidos além de toda questão possível. Platão apresentou o seu programa. Os seus discípulos realizaram-no em grande parte. Temos o resultado final codificado por Euclides.
Desse modo, sob a influência de Platão, o que nos mostram os Elementos de Euclides é, na expressão de Wordsworth,
An independent world,
Created out of pure intelligence [125].
Feitas tais ponderações, damos o trabalho por findo. Não que tenhamos esgotado tudo. Mas o sol se pôs, e esta é, depois do dia todo de labuta, a hora dos cansaços. Recolhemos as ferramentas como os homens se recolhem na tristeza do moribundo dia, como as flores fecham-se nos campos, e as aves voltam céleres ao ninho.
(Mas quando imergiu a radiante luz do sol
Os que vão descansar vão, cada um, para a sua casa,
Onde para cada um u’a mansão o famoso manco
Hefaístos fez com hábil entendimento.) [126]
(Ilíada, I, 605-8)
Há temas que ficaram intratados; é infinita a arqueologia dos dizeres, mas lembremos aqueles que Camões põe na boca de Vasco da Gama dirigindo-se ao Rei de Melinde (Lusíadas, III, 3-4):
Mandas-me, ó Rei, que conte declarando
De minha gente a grão genealogia;
Não me mandas contar estranha história
Mas mandas-me louvar dos meus a glória.
Que outrem possa louvar esforço alheio,
Coisa é que se costuma e se deseja;
Mas louvar os próprios, arreceio
Que louvor tão suspeito mal me esteja;
E, para dizer tudo, temo e creio
Que qualquer longo tempo curto seja;
Mas, pois o mandas, tudo se te deve;
Irei contra o que devo, e serei breve. (grifo nosso)
Na brevidade das nossas observações, de modo pessoal, abordamos as dificuldades da rememoração do passado, espiamos por cima do muro da filologia, esboçamos o personagem, comentamos-lhe a obra. Subimos ao pico das certezas, poucas, marchamos pela planície das suposições, muitas, pois, afinal, de certezas e suposições é que se tece a história, speculum vitae. É possível que onde viramos à esquerda, outros dobrassem à direita; é possível que gritassem, onde mantivemos obsequioso silêncio; corressem, onde paramos; estacionassem, quem sabe à beira do abismo, quando avançamos; quisessem paz, quando clamamos por guerra; ficassem a pregar, quando saímos a divulgar a boa nova, eles nos paços, nós com os nossos passos – porque pode-se ser tudo isso sem ser nada disso – e, por fim, é possível, diante de tantos contrastes, estarmos falando as mesmas coisas.
Providenciamos mesas, cadeiras, cabides para casacos, recipientes para guarda-chuvas, porcelana, copos, talheres, toalhas de mesa, guardanapos, travessas, réchauds, cafeteiras com torneira. Encomendamos o gelo, colocamos as toalhas e os guardanapos nas mesas, arranjando-os para o jantar. Preparamos o bar, organizamos as bandejas de licores e café, acertamos a disposição dos móveis, dispusemos os descansos para copos onde necessários e arrumamos as flores, tudo conforme O livro completo de etiqueta.
Que quantos são os convidados tantos sejam os convivas e que o que passamos a lhes servir agora lhes agrade o paladar e a alma, assim os deuses nos concedam, do Olimpo, poderosos, ao som da lira de Apolo, acompanhando das Musas o harmonioso canto.
Irineu Bicudo
Bibliografia
ALLMAN, G. J. Greek Geometry – From Thales to Euclid. Nova York: Arno Press, 1976.
ARTMANN, B. Euclid. The Creation of Mathematics. Nova York: Springer, 1999.
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