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Sobre Euclides, sua Geometria e seus Elementos - parte 1

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Tempo de leitura: 55 minutos.

Apresentamos o Prefácio e parte da Introdução do livro Os Elementos de Euclides, traduzido por Irineu Bicudo, Editora Unesp, 2009.

A parte II pode ser encontrada aqui (em breve) e a parte III aqui (em breve).


Prefácio


É-me forte a impressão de, desde sempre, eu ter querido estudar o grego clássico. Lembro com que sentimento de encanto folheava o caderno que um vizinho me emprestara, contendo as lições de um quase nada daquela língua que ele aprendera quando seminarista. Cursava eu, então, a antiga escola primária. Essa vontade cresceu com as aulas de latim nas quatro séries ginasiais. Em várias épocas, cheguei a comprar gramáticas e livros com textos em grego. Mas a oportunidade (καιρός: “Quando pousa / o pássaro // quando acorda / o espelho // quando amadurece / a hora”) [1] só surgiu, de fato, arrebatadora, no segundo semestre de 1988, na disciplina de Língua Grega, ministrada pelo Professor Dr. Henrique Graciano Murachco, no Programa de Extensão Universitária da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Então, por dez anos, sempre que minhas atividades como professor, vice-diretor e depois diretor do Instituto de Geociências e Exatas da UNESP de Rio Claro e algumas viagens ao exterior me permitiram, participei com dedicação e entusiasmo, nas tardes das sextas-feiras, com um grupo de pessoas de várias procedências profissionais, do que o Professor Henrique chamava de “Oficina de Tradução”. Ali vertemos para o português longas passagens de Homero, Heródoto, Píndaro, Sófocles, Platão, Xenofonte, Aristóteles. O meu envolvimento com as letras aumentava com o tempo, e a consequência disso foram os múltiplos e honrosos convites, sempre aceitos, para participar de bancas examinadoras de concurso para ingresso de professor, de teses de doutoramento, de concurso de livre-docência e de dois concursos de professor titular, todos do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da velha universidade.

O livro que ora dou a público é o fruto amadurecido, desde então, pelos

longos anos de aprendizagem. Com ele viso, evidentemente, aos estudantes de Matemática e aos professores dessa ciência. Incluo no público-alvo também as pessoas cultas em geral que se interessem pelas conquistas gregas na Antiguidade, os estudantes de Filosofia e os de Letras Clássicas (grego), cujo curso, do meu ponto de vista, deixa aberta uma imensa lacuna no conhecimento da cultura grega ao não estudar obras matemáticas e hipocráticas, grandiosos monumentos daquela civilização.

Proclus, para mostrar a excelência do trabalho de Euclides, descreve algumas qualidades que um trabalho desse tipo deva ter, e que o de Euclides, de fato, tem.

Assim, diz:

É preciso a obra que tal desembaraçar-se de todo o supérfluo – pois isso é um obstáculo à instrução [2];

muita preocupação (deve) ter sido efetivada relativa a clarezas e, ao mesmo tempo, a concisões – pois os contrários dessas turvam a nossa inteligência [3].

De fato, a prática de Euclides frequentemente contempla a concisão – por exemplo, em lugar de “o quadrado sobre a AB (isto é, de lado AB)” diz, na maioria das vezes, “o sobre a AB”; e, “o pelas AB, CD”, em lugar de “o retângulo contido pelas AB, CD (ou seja, de lados AB, CD)”; “cortar em duas” sempre significa “cortar em duas partes iguais (isto é, bissectar)” etc. Mas se, por um lado, a concisão leva, entre outras coisas, a esse encurtamento das expressões, que mantive na tradução em respeito ao estilo euclidiano, ao contrário do que faz a recente versão francesa que se farta de palavras ausentes no grego, por outro lado, a clareza não abandona o leitor atencioso que logo se habituará com essas particularidades.

Chamo a atenção para o fato de, em grego, o termo “lado” (πλευρά) ser feminino e assim só esse gênero aparecer ao referir-se o texto a “o lado AB do triângulo...” ou a “a reta (ou seja, segmento) AB do triângulo...”. Então, a tradução usa, nesses casos, indiferentemente, os artigos masculino ou feminino.

Previno, por fim, a quem possa interessar, que é preciso fôlego para acompanhar muitíssimas das demonstrações que aqui se encontram, e determinação. Garanto, no entanto, que, vencida a inércia, ultrapassado o obstáculo, alcançado o objetivo com a compreensão do resultado, cabe a recompensa de ter mergulhado no próprio processo do que denominamos “pensar” e de haver podido apreendê-lo em toda a sua abrangência. Mais: brotará disso a convicção de que, se com Homero a língua grega alcançou a perfeição, atinge com Euclides a precisão. E o método formular, que consiste em usar um conjunto de frases fixas que cobrem muitas ideias e situações comuns, poderoso auxílio à memória em um tempo de cultura e de ensino eminentemente orais, serve para aproximar o geômetra do poeta e então mostrar que perfeição e precisão podem ser faces da mesma medalha.

Agradeço à minha esposa, Elizabeth Christina Plombon, que digitou com carinho e cuidado todo o trabalho, confeccionando-lhe as, muitas vezes, complicadas figuras, e sendo de importante ajuda nas revisões; ao Prof. Dr. Henrique Murachco, pelo ensino e a amizade, e ao Prof. Dr. José Rodrigues Seabra Filho, docente de latim da USP, e companheiro daquelas sextas-feiras, por ter conferido comigo a tradução que fiz do Prefácio Latino de Stamatis. 

Sou o único responsável por todas as traduções do grego e do latim, e por quase todas as do inglês, francês, alemão e italiano.

Pois, tendo aprendido algo, jamais neguei, fazendo o conhecimento ser como uma descoberta minha; mas louvo como sábio o que me instruiu, tornando públicas as coisas que aprendi com ele.

Platão, Hippias Menor, 372 c5-8 [4]

P.S.: (i) Conforme salienta Kirk (The Songs of Homer [5]: “Finally that perennial problem, the spelling of Greek names.” [6]), a solução que adotei, nem sempre com sucesso, foi a de preservar as formas usuais em português dos mais conhecidos, e prover para os outros a latinizada, como, de hábito, praticam-na os de língua inglesa.

(ii) O uso de colchetes na tradução reproduz o que se encontra no texto grego e, ali, indica o que Heiberg julga ter sido inserido por terceiros no escrito de Euclides.

(iii) Ensina Said Ali na sua Gramática (p.171-2):

Nos enunciados de caráter condicional, em que a hipótese é um fato inexistente cuja realização não se espera ou não parece provável, emprega-se o imperfeito do conjuntivo para esta hipótese condicionante, e o futuro do pretérito para a oração principal.

Na linguagem familiar costuma-se substituir o futuro do pretérito pela forma do imperfeito do indicativo. É substituição permitida em linguagem literária (grifo meu):

“Se Deus nos deixara tentar mais do que podem as nossas forças, então tínhamos justa causa de recusar as tentações.” (Vieira)

Por isso, apoiado na autoridade de um Vieira, vali-me dessa forma na tradução, por exemplo, das Proposições I.19, I.25 etc., ficando assim rente ao original.

Irineu Bicudo


Notas:

[1] FONTELA, O. Poesia Reunida. São Paulo: 7 Letras/CosacNaify, 2006 [1969/1996].

[2] δεῖ δὲ τὴν τοιαύτην πραγματεία πᾶν μὲν ἀπεσκευάσθαι τὸ περιττόν ὲμπόδιον γὰπ τοῦτο πρὸς τὴν μάθησιν

[3] σαφανείας δ'ἂμα καὶ συντομίας πολλὴν πεποιῆσθαι πρόνοιαν τὰ γὰρ ἐπιθολοῖ τὴν διάνοιαν ἠμῶν.

[4] οὺ γὰρ πώποτε ἒξαρνος ἐγενόμην μαθών τι, ὲμαυτοῦ ποιούμενος τὸ μὰθνμα εῖναι ὠς εὔρημα. ὰλλ'ὲγκωμιάζω τὸν διδάξαντά με ώς σοφὸν ὂντα, ὰποφαίνων ἂ ἔμαθον παρ'αὐτου.

[5] Os poemas de Homero, Prefácio.

[6] [“Finalmente, aquele problema constante, a grafia dos nomes gregos”].


Introdução


Sinto-me compelido ao trabalho literário: (...) pelo meu
não reconhecimento da fronteira realidade-irrealidade;
(...) pelo meu amor platônico às matemáticas; (...) 
porque através do lirismo propendo à geometria.

Murilo Mendes

Sinopse

No prefácio do seu livro Euclid. The Creation of Mathematics [1], o matemático alemão Benno Artmann escreve:

Este livro é para todos os amantes da matemática. É uma tentativa de entender a natureza da matemática do ponto de vista da sua fonte antiga mais importante.

Mesmo que o material coberto por Euclides possa ser considerado elementar na sua maior parte, o modo como ele o apresenta estabeleceu o padrão por mais de dois mil anos. Conhecer os Elementos de Euclides pode ser da mesma importância para o matemático hoje que o conhecimento da arquitetura grega para um arquiteto.

É claro que nenhum arquiteto contemporâneo construirá um templo dórico, muito menos organizará um local de construção como os antigos o faziam. Mas, para o treino do julgamento estético de um arquiteto, um conhecimento da herança grega é indispensável. Concordo com Peter Hilton quando diz que a matemática genuína constitui uma das mais finas expressões do espírito humano, e posso acrescentar que aqui, como em tantos outros casos, aprendemos dos gregos aquela linguagem de expressão.

Enquanto apresenta a geometria e a aritmética, Euclides ensina-nos aspectos essenciais da matemática em um sentido muito mais geral. Exibe o fundamento axiomático de uma teoria matemática e o seu desenvolvimento consciente rumo à solução de um problema específico. Vemos como a abstração trabalha e impõe a apresentação estritamente dedutiva de uma teoria.

Aprendemos o que são definições criativas e como uma compreensão conceitual leva à classificação dos objetos relevantes. Euclides criou o famoso

algoritmo que leva o seu nome para a solução de problemas específicos na aritmética e mostrou-nos como dominar o infinito nas suas várias manifestações.

Um dos poderes maiores do pensamento científico é a habilidade de desvelar verdades que são visíveis somente “aos olhos da mente”, como diz Platão, e de desenvolver modos e meios de lidar com elas. É isso que Euclides faz no caso das magnitudes irracionais ou incomensuráveis. E, finalmente, nos Elementos encontramos tantas amostras de bela matemática que são facilmente acessíveis e que podem ser minuciosamente estudadas por qualquer um que possua um treino mínimo em matemática.

Vendo tais fenômenos gerais do pensamento matemático que são tão válidos hoje quanto o foram no tempo dos antigos gregos, não podemos deixar de concordar com o filósofo Immanuel Kant, que escreveu em 1783, na introdução à sua filosofia sob o título “Afinal, é a metafísica possível?”: “Não há absolutamente livro na metafísica como temos na matemática. Se quiserdes conhecer o que é a matemática, basta olhardes os Elementos de Euclides.”

Benno Artmann ofereceu-nos, na passagem que acabamos de enunciar, um voo panorâmico da famosa obra do geômetra grego. Mas, do alto, os montes pouco se destacam, fios de água parecem os rios, a vegetação é apenas uma cobertura verde. Há mister de viajar por terra.

A citação de Kant faz eco ao fato de, até o final do século XIX, ser Euclides sinônimo de geometria, daquela geometria de régua e compasso. Assim, a história dos Elementos confunde-se, em larga escala, com a história da matemática grega. Mas a história de um domínio tão relevante do pensamento humano dificilmente se desvincularia da história mesma do homem. Hajamos, pois, por bem começar a nossa história, a nossa expedição terrestre, pelo era uma vez na antiga Grécia.


Era uma vez


Estranho animal é este bicho homem (...)

José Saramago

Certamente, é um assunto admiravelmente vão, variado
e inconstante o homem. É difícil fundar nele julgamento
firme e uniforme.

Michel de Montaigne

Sustentam muitos pensadores ser o homem uma estranha criatura. De fato oscila, constantemente, entre o passado, que deseja conhecer, e o imperscrutável futuro, incapaz de aceitar que a vida de todos os dias retoma, invariavelmente, a cada dia, o seu dia.

A memória prende-o ao que foi; o desejo, ao que será.

Como antecipar o que ainda não é equivale a chorar antes do tempo, e como o que há de ser virá, claro, na madrugada, com os seus raios, deixemos de lado o porvir, que a si próprio se basta, pois os invisíveis dedos das coisas e dos atos idos, próximos e longínquos, tecem, no tear do Fado, o manto que nos vestirá para sempre.

Somos o que os séculos nos fizeram!

O que somos de razão e vontade, o que somos de pensamento e ação, o que somos de sensibilidade e frieza, de trabalho e lazer, de descrença e esperança, o que somos de bílis e coração é terem existido outros, é terem traçado rumos, e terem aberto estradas, é terem apontado caminhos!

Eis nossos predecessores!

Para entendermos a nós próprios é preciso entendê-los. E os predecessores dos predecessores; e assim por diante, continuando essa busca, pois é sem fundo o poço do passado da espécie humana, essa essência enigmática, cujo mistério “inclui o nosso próprio mistério e é o alfa e o ômega de todas as nossas questões, emprestando um imediatismo candente a tudo o que dizemos e um significado a todo o nosso esforço”[2].

Consultemos, pois, os velhos registros, leiamos as obras de antanho que chegaram até nós, procuremos em alfarrábios o que pareça haver de nós nos que vieram antes, e, assim, começaremos a compreender o que pensávamos saber: quem somos, o que nos é possível conhecer, que estrelas e que sóis poderemos acrescentar ao universo herdado.

Em nosso caso de povo ocidental e no que tange à ciência da nossa predileção, a busca conduz-nos ao era uma vez.

Era uma vez, acima de todas, em que “os atributos da juventude humana tornam-se os atributos de um povo, as características de uma civilização” e em que

um sopro de encantadora adolescência passou roçando pelo rosto de uma raça. Quando a Grécia nasceu, os deuses presentearam-na com o segredo da sua imorredoura juventude. A Grécia é a alma jovem. “Aquele que, em Delfos, contempla a densa multidão de jônios”, diz um dos hinos homéricos, “imagina que eles jamais haverão de envelhecer” [3].

Michelet comparou a atividade da alma helênica a um jogo festivo, em torno de que se reúnem e sorriem todas as nações do mundo. Mas, desse jogo de crianças, nas praias do arquipélago e à sombra das oliveiras da Jônia, nasceram a Arte, a Filosofia, a livre reflexão, “a curiosidade da investigação, a consciência da dignidade humana, todos esses estímulos que ainda são a nossa inspiração e orgulho”, e a Matemática.

Era uma vez a origem do pensamento ocidental. A Filosofia e a Matemática, no período mais pujante daquele distante passado, falam o grego clássico.


O grego clássico


A língua grega é um dos ramos mais importantes do grupo linguístico chamado indo-europeu. A sua origem remonta ao “indo-europeu primitivo”. O que possui em palavras e formas de flexão é herança, na sua maior parte, de um tempo que precede a sua existência separada.

Os traços característicos, no entanto, que dão ao grego a sua peculiaridade frente às outras línguas suas irmãs, surgiram, manifestadamente, só depois do desmembramento da primitiva comunidade de povos, e é provável que esse ajuste tenha tido lugar já em solo grego.

A ideia de um “grego primitivo” homogêneo, isto é, com uma verdadeira unidade, é problemática.

O que podemos dizer é que, no momento em que a encontramos nos documentos autênticos, a língua grega está dividida em certo número de dialetos falados, classificáveis comodamente em quatro grupos: o jônio, o árcade-cipriota, o eólio e os diferentes falares chamados comumente dórios.

E. Ragon ensina-nos que, à exceção do árcade-cipriota, cada um desses grupos desenvolveu uma língua literária, cuja tonalidade morfológica varia com a data dos autores e com o gênero literário adotado.

O primeiro daqueles dialetos, o jônio, falado na Ásia Menor, tem por marca evitar as contrações e foi empregado pelos prosadores Heródoto e Hipócrates. Mas, misturado a elementos eólios, serve ao ápice da perfeição, sendo o pano de fundo dos poemas homéricos que influenciaram a língua de todos os poetas da Grécia.

O pouco que resta do eólio é o que conhecemos das odes de Alceu e da grande Safo.

O dialeto dório, de sons graves e musicais, está gravado no bronze eterno dos poemas de Píndaro e de Teócrito.

Por fim, o grego clássico ou o dialeto ático, um ramo privilegiado do jônio. É o falado na áurea época de Atenas, os séculos V e IV a.C. Torna-se com Ésquilo, Sófocles e Eurípides a linguagem dos deuses e dos heróis; com Aristófanes é o idioma da sabedoria que zomba da sapiência; é história com Tucídides; defesa pública e exortação, com Isócrates, Ésquines e Demóstenes; memória e ensinamento com Xenofonte; e, acima de tudo, Verdade e Beleza, com Platão.

Para ter acesso a toda essa cultura grega, da qual a matemática é uma das importantes partes, o vestíbulo do conhecimento autêntico, há mister de aprender-lhe a língua. Como substituto dessa insubstituível necessidade, a tradução.


Princípios de fé desta tradução


Há, por certo, imensa gama de concepções a respeito do que deva ser o traduzir. No que tange à versão de uma obra científica, parece haver acordo em que a precisão não deva ser sacrificada no altar da sutileza. Parodiando Novalis, quanto mais precisa, mais verdadeira.

De um modo grosseiro, poderíamos classificar os tipos de tradução como traduções à francesa e traduções à alemã.

O ideal das primeiras encontra expressão na passagem: “Se há algum mérito em traduzir, só pode ser o de aperfeiçoar, se possível, o seu original, de embelezá-lo, de apropriar-se dele, dar-lhe um ar nacional e naturalizar, de certa maneira, essa planta estrangeira”.

A meta das segundas está refletida nas seguintes críticas de Schlegel e de Goethe àquelas do primeiro grupo. Schlegel: “(...) é como se eles desejassem que cada estrangeiro, no país deles, se comportasse e se vestisse segundo os seus costumes, o que os leva a nunca conhecerem realmente um estrangeiro”. Goethe: “O francês, assim como adapta à sua garganta as palavras estrangeiras, faz o mesmo com os sentimentos, os pensamentos e até os objetos; exige a qualquer preço, para cada fruto estrangeiro, um equivalente que tenha crescido no seu próprio território”.

Evidentemente, esse modo de agrupar nada tem a ver com a nacionalidade do tradutor, mas com a sua maneira de trabalhar. Freud, por exemplo, traduzia “à francesa”, pois, segundo Jones, na sua biografia do pai da psicanálise, este “em vez de transcrever laboriosamente, a partir da língua estrangeira, idiotismos e todo o resto, lia um trecho, fechava o livro e perguntava-se como um escritor alemão teria vestido os mesmos pensamentos”.

Chateaubriand, o célebre escritor francês, mantém, sem reservas, o ponto de vista contrário, na sua tradução de Milton:

Se eu quisesse ter feito apenas uma tradução elegante do Paraíso perdido, talvez se considere que tenho suficiente conhecimento da arte para que não me fosse impossível atingir a altura de uma tradução dessa natureza; mas o que empreendi foi uma tradução literal, em toda força do termo, uma tradução que uma criança e um poeta poderão acompanhar no texto, linha por linha, palavra por palavra, como um dicionário aberto sob os seus olhos.

Por entendermos que a tradução de um texto antigo, de uma tradição com pensamentos próprios e próprios modos de expressão é um ato de reverência e entrega, adotamos, como Chateaubriand, uma versão literal, “em toda a força do termo”, esperando acordar no leitor a curiosidade que o conduza a acompanhar a tradução contra o original, “linha por linha, palavra por palavra”. Sendo o grego uma língua sintética e o português, uma analítica, é fácil dar-se conta do grau de afastamento das suas sintaxes. Por isso, por permanecermos o mais possível ligado ao original, prevenimos poder o leitor estranhar algumas vezes o resultado alcançado.

Usamos como texto grego a edição de Heiberg-Stamatis, da Editora Teubner, de Leipzig, 1969-1977.


O texto grego e a Ecdótica


O que significa falar do texto grego dos Elementos de Euclides? Qual o sentido de se mencionar a edição de Heiberg-Stamatis?

Tendo essa obra sido escrita por volta do final do século IV a.C., é difícil que se possa imaginar ter chegado até nós o manuscrito do seu autor, o chamado manuscrito autógrafo. De fato, não possuímos tais manuscritos dos autores clássicos – gregos e latinos. O tempo, esse “deus atroz que os próprios filhos devora sempre”[4], é a correnteza que leva os dias, os homens, os saberes. Mas a obra de valor a tudo afronta e na placa da memória “grava seu ser / durando nela” [5]. Se não temos os originais, possuímos cópias. Infelizmente, o que nelas reluz é só imitação do ouro. De fato, “os deuses vendem quando dão” [6], pois quem diz cópia, diz erro. Para agravar a situação, relativamente aos Elementos, os manuscritos mais antigos sobreviventes distam séculos de Euclides.

Como o arqueólogo tenta, a partir de pequenas peças de evidência, reconstruir a vida e a cultura de povos antigos, o filólogo, voltado à Ecdótica, trata de, com apoio nos manuscritos, trazer à luz, por reconstituição, aquele original, o texto autógrafo, o arquétipo de que os que temos são cópias. O assim idealmente produzido, com todo o aparato da crítica textual ou Ecdótica (do verbo grego ἐκδίδωμι “publicar”), é referido como o texto crítico da obra em questão.

Como é produzido o texto crítico?

É preciso lembrar, primeiramente, que muitos autores clássicos chegaram até os dias de hoje em manuscritos em pergaminho ou em papel, que raramente são anteriores ao século IX, e frequentemente são até do século XVI. Alguns trabalhos foram preservados em um único manuscrito, outros, em centenas. Muitos manuscritos clássicos estão agora em bibliotecas europeias ou em coleções de museus, alguns também em monastérios, particularmente da Grécia, e alguns pertencendo a particulares; há-os ainda em lugares como Istambul ou Jerusalém, ou em bibliotecas americanas. Entre as maiores coleções, é lídimo mencionar aquelas da Biblioteca do Vaticano, de especial importância no nosso caso – em virtude do manuscrito Gr. 190 –, da Ambrosiana em Milão, da Marciana em Veneza, da Österreichische Nationalbibliothek em Viena, da Bibliothèque Nationale em Paris e do British Museum em Londres.

De volta, então, à edição crítica de um texto da Antiguidade. Para levá-la a termo, há duas etapas a cumprir:

(i) A da fixação do texto, isto é, o seu preparo segundo as normas da crítica textual;

(ii) A da apresentação do texto, a sua organização técnica, contemplando, em geral, os seguintes elementos elucidativos: história dos manuscritos usados, informações sobre os critérios adotados, aparato crítico (certamente o elemento mais importante) etc., tendo em vista a sua publicação.

Quanto a autores gregos e romanos, existem editoras que se notabilizam pela publicação das suas edições críticas, como a Editora Teubner (Teubner Verlag) de Leipzig, com a sua Bibliotheca Scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana, por certo a mais importante e abrangente, a Editora da Universidade de Oxford, com a sua Scriptorum Classicorum Oxoniensis, a Société D’Édition “Les Belles Lettres”, Paris, e a sua Collection des Universités de France, sob os auspícios da Association Guillaume Budé e a Harvard University Press com a Loeb Classical Library.

No que segue, visamos a dar uma pálida ideia da complexidade envolvida nos dois passos acima mencionados.


A fixação do texto


Observada a doutrina de Karl Lachmann, o fundador da moderna crítica textual, a fixação do texto passa por uma série de operações agrupadas em três fases, a saber, recensio (do verbo latino recensere: “fazer uma revisão”), estemática (de stemma codicum: “a árvore genealógica dos códices” – essa fase é referida por Lachmann como originem detegere: “descobrir a origem, revelar a ascendência”) e emendatio (de emendere: “emendar, corrigir”).

A recensio consiste na pesquisa e coleta de todo o material existente de uma obra. Isso constitui a sua tradição, que pode ser direta – formada pelos seus manuscritos – ou indireta, compreendendo as fontes, as traduções, as citações, os comentários, as glosas e as paráfrases, as alusões e as imitações, vale dizer, tudo o que circula à volta da obra, que é dela sem ser ela própria.

Reconhecidos os testemunhos obtidos, passa-se à collatio codicum, a “comparação dos manuscritos”. Faz-se o cotejo de tudo o que se possua da tradição direta contra um manuscrito mais completo ou que pareça bom, denominado o exemplar de colação. Dessa operação resultará o expurgo dos testemunhos inúteis, a eliminatio codicum descriptorum, rejeição das cópias coincidentes, de acordo com a máxima filológica frustra fit per plura quod fieri potest per pauciora (“é feito inutilmente por meio de muitos o que pode ser feito por meio de poucos”). Existindo o modelo, rejeita-se a sua cópia. Com essa eliminação termina a primeira fase.

A análise acurada dos manuscritos – principalmente o confronto dos chamados lugares ou pontos críticos e o exame sistemático dos chamados erros comuns – possibilita estabelecer tanto a dependência entre os manuscritos quanto a afinidade ou parentesco entre eles. Aqui a hipótese tomada é “pouco, simples e razoável”. Se o mesmo erro ocorrer em dois manuscritos, é razoável considerar não terem surgido independentemente, a menos que esteja envolvido um engano muito simples e natural. Depois, supõe-se que o copista não corrija o trabalho do seu predecessor. Uma consequência disso, em conjunção com a propensão dos seres humanos de cometerem erros – “os deuses vendem quando dão” [7] – é que os textos se tornem mais e mais corrompidos com as sucessivas cópias. O que resulta dessas hipóteses de trabalho é o estabelecimento da árvore genealógica dos códices, stemma codicum, depois de arrolados os elementos da tradição em famílias, cada uma formada segundo os pontos críticos comuns, e de construídos, caso necessário, os cabíveis subarquétipos (os “pais das famílias”) e o arquétipo ou codex interpositus (“o pai de todos”), aquele que se interpõe entre o original e as cópias da tradição, e que tomará o papel do original perdido “em negro vaso / de água do esquecimento”. O sistema assinala a dependência e também a contaminação que pode existir entre exemplares de famílias distintas. Assim a estemática é feita.

A reconstituição de uma obra clássica finda com a emendatio, a parada mais importante nessa verdadeira via crucis, pois, de novo, vale o postulado da tradição manuscrita: “quem diz cópia, diz erro”. O exame de qualquer cópia (manuscrito apógrafo) revela o seu caráter contingente: passagens mal transcritas, obscuras, com interpolações, discrepâncias gramaticais e estilísticas com o que se conhece do autor, e muitos outros problemas. Grande desafio ao filólogo-editor no seu afã de restabelecer, ou ao menos aproximar-se o mais possível do que fora um dia a obra original.

Diante do erro, o editor procede segundo as condições da tradição manuscrita, empregando a bateria do seu conhecimento geral, daquele da obra e da época em que floresceu o seu autor e também da sua intuição divinatória, e isso é, a mais das vezes, um trabalho de gigante. Prezemos, pois, e muito, os filólogos-editores dos textos da Antiguidade.

Se a correção dos erros for possibilitada pelos próprios manuscritos e pelo que os demais testemunhos coletados oferecem, tem-se a denominada emendatio ope codicum, “correção com a ajuda dos manuscritos”. Caso tal auxílio não seja suficiente à consecução da tarefa, há o editor de recorrer à sua intuição e aos seus saberes, e ter-se-á a dita emendatio ope ingenii ou emendatio ope conjecturae ou ainda divinatio ou crítica conjectural.

Está, pois, dada conta da (i) fixação do texto.


A apresentação do texto


Na (ii) apresentação do texto reconstituído, o arquétipo do qual todos os manuscritos são cópias, vale ressaltar o aparato crítico, isto é, as variantes encontradas, dispostas no pé de cada página, com a indicação dos manuscritos em que figuram. Com isso, o editor oferece a oportunidade de o leitor fazer a sua própria escolha da expressão que deva estar em determinado ponto do texto, com um possível significado novo para a passagem que a contenha.

A fim de que se avalie a importância da edição crítica com o seu respectivo aparato para quem se interessa pela Antiguidade e tencione estudar as próprias obras em grego (ou em latim), transcrevemos um trecho do início do livro Textual Criticism and Editorial Technique, de M. L.West [8], helenista e editor de clássicos:

Edward Fraenkel, na sua introdução aos Ausgewählte Kleine Schriften [9], de [Friedrich] Leo conta a seguinte experiência traumática que teve quando jovem estudante:

“Eu tinha, por aquele tempo, lido a maior parte de Aristófanes e comecei a falar com demasiado entusiasmo sobre isso a Leo e a crescer em eloquência sobre a magia dessa poesia, a beleza das odes corais, e assim por diante. Leo deixou-me falar, talvez por dez minutos, sem mostrar qualquer sinal de desaprovação ou impaciência. Quando terminei, perguntou: ‘Em que edição você leu Aristófanes?’ Pensei: ele não estava ouvindo? O que a sua questão tinha a ver com o que eu lhe dissera? Depois de uma agitada hesitação de momento, respondi: ‘A Teubner.’ Leo: ‘Oh, você leu Aristófanes sem um aparato crítico.’ Disse-o bem calmamente, sem qualquer aspereza, sem nem um traço de sarcasmo, apenas sinceramente surpreso que fosse possível a um jovem tolerantemente inteligente fazer tal coisa. Olhei para o gramado próximo e tive uma única, irresistível sensação: νῦν μοι χάνοι εὐρεῖα χθῶν (‘agora que a terra se entreabra para mim’, Ilíada 4,182). Posteriormente, pareceu-me que naquele momento entendi o significado real da sabedoria.”

(...)

Segue que qualquer um que queira fazer sério uso de textos antigos deve prestar atenção às incertezas da transmissão; mesmo a beleza das odes corais que ele admira tanto pode confirmar-se haver nelas uma mistura de conjecturas editoriais, e se ele não estiver interessado na autenticidade e confiança de pormenores, poderá ser um amante verdadeiro da beleza, porém não um sério estudante da Antiguidade.


A edição crítica dos Elementos


Théon de Alexandria, pai de Hypatia – a primeira mulher a ter o nome preservado pela história da matemática –, foi um eminente e influente estudioso do século IV. No seu Comentário ao tratado astronômico de Cláudio Ptolomeu de Alexandria, conhecido como Almageste (do árabe almajistí, adaptação de al, o artigo definido árabe, e do adjetivo superlativo grego μεγίστη (entenda-se μεγίστη σύνταξις), isto é, “a maior composição”, “o maior tratado sistemático”), escreve a certa altura: “Mas que setores em círculos iguais estão entre si como os ângulos sobre que se apoiam foi provado por mim na minha edição dos Elementos, no final do sexto livro”.

Sabemos então, da própria pena do comentarista, ter ele editado a obra de Euclides, com a adicional informação de ser da sua lavra a segunda parte da “Proposição XXXIII” do Livro VI, como encontrada em quase todos os manuscritos remanescentes. Daí provirem tais manuscritos daquela edição de Théon. Aliás, a maior parte deles traz no seu título ou a frase ἐκ τῆς Θέωνος ἐκδόσεως (“da edição de Théon”) ou ἀπὸ συνουσιῶν τοῦ Θέωνος (“das aulas de Théon” ou “dos ensinamentos de Théon”).

Desse modo, qualquer edição dos Elementos feita anteriormente a 1814 era baseada numa família de manuscritos cujo arquétipo era o texto dado à luz por Théon.

Para conta do que então ocorreu, fazendo toda a diferença, mudando o rumo da história das edições dos Elementos, citamos, por extenso, um trecho do prefácio de François Peyrard ao seu trabalho Les œuvres D’Euclide, traduites littéralement, d’après un manuscript grec très-ancien, resté inconu jusqu’a nos jours [10], Paris, 1819:

No prefácio da minha tradução dos Livros I, II, III, IV, V, VI, XI e XII dos Elementos de Euclides, que apareceu em 1804, e que eu fizera segundo a edição de Oxford, propus-me o compromisso de publicar as traduções completas de Euclides, de Arquimedes e de Apolônio. A minha tradução das Obras de Arquimedes apareceu em 1808. Antes de dar à impressão a minha tradução das Obras de Euclides, quis consultar os manuscritos da Biblioteca do Rei. Esses manuscritos, vinte e três em número, foram-me confiados, e não tardei a me aperceber que esses manuscritos preenchiam lacunas, restabeleciam passagens alteradas que se encontram na edição da Basileia e naquela de Oxford, cujo texto grego é apenas uma cópia frequentemente infiel, como provei na sequência do prefácio do terceiro volume do meu Euclides em três línguas. A maior parte desses manuscritos rejeita uma multidão de superficialidades que mãos ignaras tinham introduzido no texto, e que se encontra em grande parte nos textos das edições da Basileia e de Oxford.

Todos esses manuscritos, exceto o n.190, são, com pequena diferença, conformes uns aos outros, salvo os erros dos copistas e as superficialidades de que acabo de falar.

O manuscrito 190 traz todos os caracteres do nono século, ou pelo menos do começo do décimo, enquanto que os outros são-lhe posteriores de quatro, de cinco, e mesmo de seis séculos.

Esse manuscrito, cujos caracteres são da maior beleza, e sem ligaduras, restabelece lacunas e passagens alteradas, o que teria sido impossível de restabelecer com a ajuda dos outros manuscritos. Encontra-se nele uma multidão de lições que merecem, quase sem exceção, a preferência às lições dos outros manuscritos.

O manuscrito 190, que permanecera desconhecido até os nossos dias, pertencia à Biblioteca do Vaticano. Foi enviado de Roma a Paris por Monge e Bertholet, quando o exército francês tornou-se senhor daquela cidade.

Na segunda invasão dos exércitos coligados, a França viu-se obrigada a restituir todos os objetos de arte que haviam sido recolhidos aos povos vencidos. Por solicitação do Governo Francês, o Santo Padre houve por bem ter a bondade de deixar-me às mãos esse precioso manuscrito até a completa publicação do meu Euclides.

Tendo, então, à minha disposição esse manuscrito, como todos aqueles da Biblioteca do Rei, determinei-me a dar uma edição grega, latina e francesa das Obras de Euclides. O primeiro volume apareceu em 1814, o segundo em 1816, e o terceiro em 1818.

O manuscrito Gr. 190 da Biblioteca do Vaticano, denominado P por Heiberg, em homenagem ao padre Peyrard, o seu descobridor, não pertence, pois, à família theonina, e serviu como exemplar de colação para a edição crítica do filólogo dinamarquês, aquela que permanece aceita até hoje. A história das edições críticas dos Elementos assinala a seguinte sequência:

− A editio princips, “primeira edição”, Basileia, 1533, a cargo de Simon Grynaeus, baseada em dois manuscritos – Venetus Marcianus 301 e Paris Gr. 2343 – do século XVI, que estão entre os piores existentes. Essa edição servia de fundamento para;

− A de Oxford, Euclidis quae supersunt omnia. Ex recensione Davidis Gregorii M. D. Astronomiae Professoris Saviliani et R. S. S. Oxoniae, et Theatro Sheldiano. An. Dom. MDCCIII. Para levar a cabo o seu trabalho, Gregory consultou somente os manuscritos legados à Universidade por Sir Henry Savile, nos lugares em que o texto da Basileia diferia da excelente tradução latina de Commandinus (1572). Essa célebre edição das obras de Euclides é a única completa antes da de Heiberg e Menge;

− A de Peyrard, na trilíngue acima citada, na qual usou P somente para corrigir a da Basileia;

− A de E. F. August (1826-9), que segue P mais de perto, tendo também usado o manuscrito Vienense Gr. 103.

De Morgan recomenda vivamente o alcançado por August: “Ao estudioso que queira uma edição dos Elementos, devemos decididamente recomendar esta, por unir tudo o que foi feito para o texto do maior trabalho de Euclides”.

Tendo assim alcançado a sua hora fugaz de celebridade, esta edição acaba por cumprir o vaticínio do célebre historiador francês da matemática, Paul Tannery, em uma carta a Heiberg: “todos os trabalhos de erudição são em grande parte destinados a perecer para serem substituídos por outros”. Pois, coube precisamente a este sancionar aquela predição;

− A edição de Heiberg, baseada em P e nos melhores manuscritos theoninos, e considerando também outras fontes como Herão e Proclus, tornou-se o novo e definitivo texto grego dos Elementos;

− Por fim, a edição elaborada por E. S. Stamatis não lança no limbo das coisas ultrapassadas aquela do sábio dinamarquês, um trabalho de erudição que insiste em não perecer. Para dar fé do que dizemos, traduzimos do latim boa parte da adição ao prefácio (additamentum praefationis) de Heiberg, escrito por Stamatis ao texto crítico por ele dado a público.

Nenhum dentre os homens versados em geometria antiga existe que não julgue ser necessária agora uma nova edição dos Elementos, de Euclides. De fato, os exemplares da notável edição Heiberguiana há muito foram vendidos, além disso os estudos referentes aos Elementos em nossos dias desenvolveram-se grandemente. Por esse motivo, tendo sido convidado por um estimadíssimo livreiro, por exortação do Instituto de Ciência da Antiguidade Greco-Romana, que foi fundado por decisão da Academia Alemã de Ciências de Berlim, para que eu cuidasse de nova edição dos Elementos de Euclides acolhi essa ocupação com o coração gratíssimo. Realmente, sei que muitos admiradores da ciência matemática, que sabem grego, desejam conhecer o texto euclidiano.

Agradou-me muito o plano do estimadíssimo livreiro que me persuadiu a que eu omitisse a tradução latina que Heiberg preparara para a sua edição pelo que a nova edição saísse à luz mais curta. De fato, é evidente os versados na língua grega não terem muita necessidade da tradução latina. Pois que assim seja, o plano da nova edição foi organizado assim como é indicado abaixo [11]:

Para o texto do primeiro volume, considerei as coisas que deviam ser antecipadas, que foram ensinadas sobre os Elementos e sobre a vida de Euclides e sobre os princípios e os primórdios da geometria (Textui primo voluminis praemittenda, quae de Elementis et de vita Euclidis et de principiis primordiisque geometriae tradita sunt, existimavi).

[Realmente, no HOC VOLVMINE CONTINENTVR, lê-se o seguinte:

Testimonia:

De Euclides elementorum et vitae memoria

De principiorum geometriae memoria]

Acrescentei imediatamente três índices (annexui continuo tres indices).

Em terceiro lugar, ajuntei uma sinopse, em que as notabilíssimas edições dos Elementos de Euclides são recordadas (tertio loco conspectum, in quo praestantissimae Euclidis Elementorum editiones, adiunxi).

(De fato, Stamatis adicionou o seguinte:

CONSPECTVS EDITIONVM

Recensio antiquior quam editio Theonis Alexandrini

Theon Alexandrinus Alexandriae circa 370 p.Chr.

Simon Grynaeus Basileae 1530 (editio 2: 1533 apud Ioan.

Hervagium (“Hervagiana”), ed.3: 1537,

ed.4: 1539, ed.5: 1546, ed.6: 1558

Angelus Caianus Romae 1545 (sine demonstr.)

I.Camerarius Lipsiae 1549

I. Scheybl Basileae 1550 (1-6)

S.T. Gracilis Lutetiae 1558, 1573, 1598

C. Dasypodius Argentorati 1564

I. Sthen Vitebergae 1564

M. Steinmetz Lipsiae 1577 (cum demonstr.)

Dav. Gregorius Oxonii 1703

Fr. Peyrard Parisii 1814-18

I.G. Camerer et C.Fr. Hauber Berolini 1824-25 (1-6)

G.C. Neide Halis Saxonum 1825 (1-6, 11,12)

E.F. August Berolini 1826-29

I.L. Heiberg Lipsiae 1883-88

E.S. Stamatis Athenis 1952-57.

Stamatis indica no pé da página as obras consultadas para a confecção da lista acima. Revive com ela o gosto antigo pelas listas ou catálogo, como o “Catálogo dos navios”, no Segundo Canto da Ilíada, ou o “Catálogo dos geômetras”, do desaparecido livro de História da geometria, de Eudemo, discípulo de Aristóteles, mas preservado por Proclus no seu Comentário ao livro I dos elementos de Euclides.

Chamamos ainda a atenção para o fato de que, ao tecer anteriormente considerações concernentes às edições dos Elementos, consideramos apenas, dentre “as notabilíssimas”, as principais.)

Decidi abordar o que, para o texto, diz respeito aos vestígios da edição de Heiberg. Com efeito, é certo entre todos os homens instruídos ser muito bom o serviço prestado por Heiberg aos Elementos de Euclides. Nem, de fato, depois da sua morte, códices novos, além do que ele examinara, foram comparados nem a nossa colheita de papiros forneceu novas lições. Ora, justamente, terminando a minha edição dos Elementos de Euclides, que foi impressa em Atenas, nos anos 1952-1957, eu próprio reconheci a perfeição e a exatidão da edição Heiberguiana [12].

Fechemos logo, no entanto, as portas do templo em que acabamos de acender as velas no altar da adoração, para que o vento da discordância não as apague todas. Há, no entanto, uma voz que clama na ágora e seria prudente ouvi-la.

O historiador da matemática Wilbur R. Knorr, prematuramente falecido, publicou na revista Centaurus, 38 (1996) um longo trabalho – 69 páginas – com o título “The Wrong Text of Euclid: on Heiberg’s Text and its Alternatives” [13]. Eis o seu resumo:

Em dois artigos publicados em 1881 e 1884, dois jovens acadêmicos, Martin Klamroth e Johan L. Heiberg, engajaram-se em um breve debate sobre as escolhas textuais que deveriam governar a publicação de uma nova edição crítica dos Elementos de Euclides. Esse curto debate parece ter assentado o problema a favor de Heiberg sobre o que deveria ser tomado como o texto definitivo dos Elementos de Euclides. Mas a questão deve ser considerada de novo porque há boas razões para a reivindicação de que Klamroth estava certo, e Heiberg, errado. Se assim for, temos consultado e continuamos a consultar o texto errado para interpretar a tradição euclidiana. A fim de dar substância a essa afirmação, a questão textual debatida por Klamroth e Heiberg é ensaiada de novo, e as razões principais trazidas por Heiberg contra a posição de Klamroth são reconstruídas. Espécimes de três amplas áreas de evidência – estrutural, linguística e técnica – serão considerados. Eles revelam como a tradição medieval do texto advogado por Klamroth exibe superioridade em relação à tradição grega promovida por Heiberg. Uma tal reconstituição dos textos tem o potencial de mudar significantemente nossa compreensão da matemática antiga.

Se Knorr tem ou não razão é difícil de decidir. O peso da tradição é esmagador e o tempo passado entre aquele debate mencionado e hoje ajuda a sedimentar a opinião favorável à escolha de Heiberg.

De um modo ou de outro, a existência de divergência socorre-nos quando nos preparamos para responder às perguntas iniciais: “O que significa falar do texto grego dos Elementos?” e “Qual o sentido de mencionar-se a edição de Heiberg–Stamatis?”; e, com isso, completar o círculo das considerações. A edição de Heiberg–Stamatis do texto grego dos Elementos é o que Heiberg diz, com a confirmação de Stamatis, ser a coisa mais próxima do texto original de Euclides.


Notas:

[1] [Euclides. A criação da matemática].

[2] MANN, T. “José e seus irmãos”. As histórias de Jacó. O jovem José. v.1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1983.

[3] RODO, J. E. Ariel. Campinas: Editora da Unicamp, 1991.

[4] PESSOA, F. Obra poética. Volume único. Rio de Janeiro: Companhia Nova Aguilar, 1965.

[5] Idem, ibidem.

[6] Idem, ibidem.

[7] PESSOA, F., ibidem.

[8] Crítica textual e técnica editorial. Stuttgart: B. G. Teubner, 1973.

[9] [Pequenos escritos escolhidos].

[10] [As obras de Euclides, traduzidas literalmente, com base em um manuscrito grego antiquíssimo, desconhecido até nossos dias].

[11] Nemo ex viris antiquæ geometriae peritis est quin putet nova editione Euclidis Elementorum in praesenti opus esse. Exemplaria enim praeclarae editionis Heibergianae iamdudum divendita sunt, studia autem ad Elementa pertinentia nostra aetate admodum increverunt. Qua de re cum a bibliopola honestissimo, hortatu Instituti scientiae antiquitatis Graecoromanae, quod auctoritate Academiae Scientiarum Germanicae Berlinensis constitutum est, invitatus essem, ut novam Euclidis Elementorum editionem curarem, gratissimo animo hoc negotium suscepi. Nam multos studiosos scientiae mathematicae, qui Graece sciunt, Euclidianum textum desiderare cognovi.

Valde autem mihi consilium bibliopolae honestissimi placuit, qui mihi suasit, ut translationem Latinam qua Heiberg editionem suam instruxerat omitterem, quo nova editio brevior in lucem prodiret. Patet enim linguae Graecae peritos Latina translatione non nimis egere. Quae cum ita sint, ratio novae editionis, ita ut infra indicatur, ordenata est.

[12] Quod ad textum attinet Heibergianae editionis vestigia ingredi statui. Nam inter omnes viros doctos Heiberg optime de Euclidis Elementis meritum esse constat. Neque enim post obitum eius codices novi, praeter quos ille inspexerat, collati sunt, neque seges papyrorum nobis novas lectiones praebuit. Ipse autem editionis Heibergianae perfectionem absolutionemque perspexi, cum meam Euclidis Elementorum editionem, quae annis 1952-1957 Athenis impressa est, absolverem.

[13] [O texto errado de Euclides: sobre o texto de Heiberg e suas alternativas].

Continua em breve.

***

Leia mais em Elementos de Euclides

Leia mais em Sobre as Geometrias Não-Euclidianas e Não-Arquimédicas



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