Página do Livro de Kells. Trecho de Mateus 23, 12–15. Folio 99, verso. |
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A língua que ressuscitou dentre os mortos [1], por Scott Randall Paine
“UMA LÍNGUA DEVE MORRER, PARA QUE SEJA IMORTAL”
Quando se trata de expressar as verdades eternas e imutáveis da fé cristã, a única língua adequada é a língua morta. Certa vez, Chesterton proferiu uma resposta desconfortante à desvalorização costumeira que considera o latim uma língua morta. Simplesmente ele ressaltou que isso de nenhum modo é uma desvalorização, pois bem contrário à intenção do detrator, essa afirmação traz à tona a superioridade clara do latim sobre todas as atuais línguas “vivas”.
É uma questão de uma língua morta ou de outra que jaz agonizante, pois toda língua viva é uma língua moribunda, mesmo que não morra. Partes dela estão a todo momento perecendo ou mudando de sentido; e há apenas um jeito de escapar desse fluxo: ela deve morrer para que seja imortal [2].
De fato, o latim pagão retornou ao pó, e a mentalidade ocidental passou a demasiadamente saborear o novo amontoado de línguas que começou a se espalhar confusamente por todo o mapa linguístico europeu. Dentre elas, a lucidez intensa do francês, o vigor irresistível do italiano, a velocidade enérgica do espanhol e a sinceridade nasal do português sobressaíram-se em sua longa evolução, cada uma delas atraindo milhares de vozes do discurso secular em sua nova constelação de ênfases. Mas a língua dourada de Cícero estava de saída, e junto com o Império, cujo corpo estava desmembrado e servindo como semente de um novo jardim de nações, essa língua antiga estava também prestes a ser enterrada.
Mas eis que veio uma daquelas reviravoltas bizarras da história humana que nos leva a questionar o quão humana realmente é. Após Roma ter perdido sua dignidade imperial para Bizâncio, ademais de ter se afundado moralmente ensopando suas arenas com sangue cristão, não surpreenderia ninguém que as sílabas moribundas finais da língua imperial permanecessem mudas por toda a história. Mas no início do Século V, o idioma que uma vez vibrou na língua de Catão estava soando vibrante e brilhantemente uma vez mais, e precisamente no momento em que as muralhas do Império colapsavam. Os vândalos se moveram da Espanha para o norte da África, e em um período de vinte anos velejariam para o norte e assaltariam a própria capital. Enquanto isso, dentro das muralhas africanas de Hipona, Santo Agostinho estava finalizando o último capítulo de A Cidade de Deus e talvez, em seu escritório, chegou a contar os minutos pensando se as hordas de Genserico estavam indo desmoronar sua residência episcopal sobre sua cabeça. Com a graça de Deus, ele finalmente terminou seu livro, mas nesse ínterim os vândalos também tinham posto um fim a Hipona.
O latim morreu para o mundo. Foi em 430. Poucos anos antes, São Jerônimo tinha terminado sua tradução latina da Bíblia, destinada a se tornar o texto bíblico mais influente de todos. A maior parte do trabalho de São Jerônimo foi na Palestina, como tinha sido a África para Santo Agostinho. Mas na própria Roma, onde os convertidos judeus helenizados tinham chegado com as Boas-Novas da Palestina, muitos deles focaram suas energias na tradução do Evangelho grego e de sua liturgia para o latim, que os romanos arruinados poderiam entender. A língua estava morrendo, mas as almas daqueles que ainda a falavam estavam, não obstante, necessitando de salvação.
Para surpresa de todos, surgiu desse campo de esforço puramente instrumental algo como um renascimento linguístico, conforme um conjunto de prefácios, coleções, orações, segredos e pós-comunhões cresciam no que hoje conhecemos como o Sacramentário Leonino. A civilização romana surgiu e morreu; seu último imperador deixou a cena sem cerimônias em 476. Mas, paradoxalmente, o coração da língua latina estava ainda pulsando fortemente, e suas conjugações e declinações foram levadas para respirar ar novo com um novo grupo de falantes. Mas há uma diferença: sobre o que esses homens estavam falando era algo, até então, inédito nas esquinas das ruas da história, e em nenhum período de Cícero as afirmações que estavam sendo feitas tinham sido abrangidas, mesmo que remotamente.
É isso que Chesterton quer nos dizer. A língua latina morreu, de fato, mas a morte que sofreu, foi a morte para o mundo. No pequeno enclave da Igreja Cristã, a mesma língua experimentou nada menos que uma ressurreição miraculosa; e a analogia pode ser levada até o extremo. A carcaça sem sangue da língua, cheia até à pele com os esquemas terrenos dos antigos, não podia mais responder à alma do paganismo; como todo corpo simplesmente natural, a vida que o sustentava era meramente mortal. Assim a história lentamente arrastou-a até o túmulo, e mais uma poderia ser adicionada às mil línguas decadentes da época.
Mas eis que veio a aurora pascal do latim, pois após o Evangelho de Cristo ter sido rejeitado pelos judeus, o Príncipe dos Apóstolos selou seu testemunho do Mestre avermelhando uma colina romana, que hoje chamamos de Vaticano. E então como um furacão abruptamente alterando seu curso, a fúria completa da mensagem de Cristo voltou-se repentinamente e excitadamente sobre essa língua prostrada dos romanos, e levantando a mão por sobre essa pilha de palavras sem vida – todas elas com a língua presa por séculos de questões não respondidas – bradou: “Ephphatha!” – assim a língua foi solta, e o latim cristão começou a falar com o mundo.
Nunca apreciaremos a importância grandiosa da língua latina para nossa Igreja e nossa fé até que entendamos o caráter sobrenatural do que acabei de descrever. Em Cristo, a história mesma foi condicionada por Deus, e desde então nada, mesmo a língua, permaneceu como era antes.
A Igreja não adotou o latim apenas porque era uma ferramenta pronta que as condições históricas forneceram e que ela então com apreço escolheu. Seria tão mentira quanto dizer que Bach escolheu a fuga porque todos os outros estavam escolhendo-a, quando, na verdade, todos a estavam abandonando. O fato de as fugas serem tão importantes na história da música decorre do fato nada banal de que Bach as escolheu quando todos tinham se cansado delas; ignorando os “ventos da mudança”, ele criou sua própria tempestade de gênio na velha forma, enquanto os outros, com rostos rosados e têmporas latejantes, voltaram-se finalmente para os desafios mais domesticados da novidade. Da mesma maneira, a Igreja resgatou os morfemas descartados do latim.
Esforçamo-nos com um prejuízo particular ao tentar entender isso hoje em dia. O clero da Renascença e, em maior medida, os jesuítas da Contra Reforma estavam ambos ansiosos para não ficarem em segundo plano comparados aos humanistas; assim, começaram a aplicar os paradigmas do latim clássico nas academias eclesiásticas e relutantemente concordaram quando a língua cristã de Santo Agostinho e São Bernardo foi rebaixada abaixo dos padrões vangloriados dos antigos.
Muito do descontentamento do clero moderno com o latim tem a ver com ser aterrorizado pela linguagem tortuosa de muitos documentos da Igreja, incluindo as encíclicas modernas, e a obrigação de estudar Cícero e Virgílio, quando tudo o que queriam fazer era assistir a Missa. Em vez de desfrutar da prosa mais acessível de muitos dos Padres e do latim simples da Summa de São Tomás, o adestramento da mente nas complexidades e sutilezas do latim antigo foi entendido como o batismo inevitável de fogo na língua nativa da Igreja. E muitos, previsivelmente, queimaram-se por esse fogo.
O latim clássico é grandioso, inegavelmente majestático, e irrevogavelmente morto; pois a Renascença não o ressuscitou, mas apenas retirou seus esqueletos dos túmulos e nos ensinou a maravilhar-nos com o modo intensamente interessante como os ossos se unem. Os estudiosos clássicos podem mais ou menos se aproximar disso ao imaginar a carne e a sensação do pulso da língua no seu verdadeiro Sitz im Leben (“contexto vital”), e poucos homens como Erasmo podem tornar esse tipo de coisa atraente. Mas a língua não está novamente viva, nem como fez na antiguidade, nem por meio da infusão de uma nova vida; pois o humanista não tem nenhuma vida para dar. Quando estruturados nesse meio não-natural, as asserções simples e sublimes e os quase inspirados neologismos da teologia cristã parecem configurar-se desajeitadamente num falatório em meio a todo o florescimento e seriedade mensurada das construções ciceronianas.
Além do mais, tudo isso é perda de tempo, pois os mistérios cristãos tinham já forjado sua própria linguagem, e lá, como em nenhum outro lugar, eles desvelavam suas verdades não apenas acuradamente, mas também naturalmente. Essa foi a grande descoberta de Santo Agostinho sobre a Bíblia latina; pois após voltar-se para ela anos depois de Cícero, ele se deparou com um estilo descontinuado e bárbaro, fazendo-o questionar quais ideias simples espreitavam-se por trás de tal ingenuidade. De fato, as Escrituras “pareciam-me indignas de serem comparadas com o grandioso estilo de Cícero”. Mas assim que foi tocado pelos mistérios de além do estilo, ele descobriu a razão da simplicidade:
“... o que eu vi foi algo que não se descobre pelo orgulhoso e não se está aberto às crianças; de princípio é baixo e humilde, mas ao abrir seu cofre encontram-se elevados e ocultos mistérios... essas Escrituras cresceriam juntas com uma pequena criança; eu, no entanto, me tinha em tão alta estima que não podia ser uma pequena criança; assim, cheio de orgulho, eu era, perante meus olhos, um adulto crescido” [3].
O latim cristão que se encontra na Vulgata, em Santo Agostinho, nos Padres latinos, e nos antigos Sacramentários não é um latim restaurado, sacudido, de que se varreu o pó e grosseiramente reciclado em uma época que tinha perdido a inspiração dos dias de Virgílio e Horácio. Assim era como a Renascença via o caso. É na verdade uma linguagem renascida pela obstetrícia, irreduzível à evolução linguística comum; e o que os literatos confundem com uma não-sofisticação bárbara é ao contrário a simplicidade dignificada exigida pelos mistérios de um Deus que é a própria Simplicidade. A unção do Espírito parece forçar esse latim a se mover mais modestamente numa marcha de autoesquecimento, mas por causa disso se move mais próximo do mundo silencioso dos segredos mais íntimos de Deus.
É isso que primeiro gostaria de declarar sobre o latim cristão, ou seja, que ele era a mesma língua que tinha “conhecido” a sabedoria da antiguidade greco-romana, mas sofreu uma morte natural quando aquela sabedoria esgotou seus recursos. Foi então ressuscitado dos mortos pela Verdade sobrenatural de Cristo. Após muita calúnia, a opinião acadêmica veio a reconhecer esse quase-milagre, especialmente depois das pesquisas do Século XIX de Ozanam, Roensch, Goelzer e outros.
Minha segunda declaração é uma de duas consequências do que acabei de dizer: embora o latim cristão não nasceu com o próprio Cristianismo, mesmo assim nasceu com a teologia cristã, e assim não apenas sua simplicidade característica (ao menos quando comparada com o latim clássico), mas também seu novo mundo de significados cresceu rapidamente com o novo entendimento da fé. Aqui, certamente, o latim cristão estava ligado ao grego cristão, pelo menos nos séculos iniciais. Mas os poderes únicos da especulação ocidental, começando com Agostinho para num dia ter seu clímax no edifício latino esmagador de Aquino, foram os frutos gerados na língua em que o pensamento cristão primeiro moveu-se e amadureceu. Dentro da gramática e do vocabulário latinos, as reflexões piedosas sobre a revelação de Cristo tiveram seus passos inaugurais, moldaram seus primeiros instrumentos conceptuais, e obrigaram a sintaxe e a morfologia a renderem-se às exigências soberanas da própria Palavra da PALAVRA. Tudo isso fez a teologia cristã e o latim cristão serem realidades correlativas, cada uma sendo a mãe da outra, por sua vez.
Minha terceira declaração é a mais pertinente de todas, pelo menos para nós que cavalgamos na debandada do progresso moderno. Chesterton tinha observado que o único modo para uma língua se manter verdadeiramente viva é morrer e renascer pelo poder de uma força mais elevada e doadora de vida, tal como a Igreja. As línguas vernaculares comuns do dia-a-dia estão imersas nas contingências do tempo e sujeitas aos caprichos das correntes de mudança do mundo. As palavras estão morrendo quase que diariamente, com outras novas surgindo para tomar seu lugar. Com as enxurradas de mudança tecnológica do rei da montanha, uma atrás da outra, muitas de nossas palavras parecem perder o alvo antes mesmo de serem ditas.
Do mesmo modo – repito em tom fúnebre – a língua inglesa está morrendo e com ela todas as outras línguas “vivas” do mundo. E muitas vezes elas estão se dividindo ao meio. O que se passa com o português brasileiro quando comparado com o português continental (como presenciei em primeira mão) é um caso mais dramático que o do inglês americano quando comparado com o britânico. Todas as línguas faladas do mundo estão sofrendo uma morte lenta, e partes delas são envoltas em mortalhas todo dia. Mas a única razão de eu trazer isso à tona é o efeito que isso tem em nossa habilidade de pensar e falar sobre doutrinas imutáveis.
Se é verdade que estamos em posse de uma revelação sobrenatural de verdades que não estão morrendo, ou seja, que estão enraizadas na eternidade e não são sujeitas às mudanças do tempo e do calendário, então vem à razão que elas serão preservadas imperfeitamente se seus únicos recipientes são os velhos odres rachados dos idiomas contemporâneos. Se as verdades da fé são eternamente novas (como na sua grande maioria o são), então deveríamos preservá-las dentro de uma língua que já foi alçada acima do mortuário linguístico que habitamos, herdeira de uma parte do status imutável da eternidade, e assim morta para este mundo, mas viva para o outro. Para nós da Igreja Ocidental, o eterno novo odre foi sempre o latim, e se essa bebida serve para refrescar nosso caminho todo à eternidade, devemos olhar com ceticismo qualquer odre novo e aprimorado que nos é oferecido atualmente.
É claro que precisamos falar de verdades sobrenaturais nas línguas vernaculares também, mas receio termos que beber da doutrina rapidamente, pois esses velhos odres são como sacos de papel, e a fraqueza de nossas línguas contemporâneas inconstantes está criando fissuras no tecido de uma linguagem quase tão rapidamente quanto proferimos nossas palavras. Por vezes é impossível de se encontrar palavras cujo fundo não vaza ao tentarmos inserir verdades nelas.
Tente, por exemplo, inserir a doutrina da Trindade ou da Encarnação no inglês americano moderno sem ter a necessidade de uma página de elucidação para tentar aproximar as palavras “pessoa” e “natureza”, conforme as usamos hoje, do conteúdo teológico; e essa necessidade será ainda mais acentuada quando se tentar falar da substância da Eucaristia. Sem pelo menos um corpo considerável do latim no plano de fundo de nossa memória, todas as três dessas noções fundamentais (e junto delas o fardo de nossa fé) poderiam facilmente se perder perante as palavras inglesas originalmente geradas. As palavras, lançadas pela história e incapazes de designar nada além dela, podem ser disparadas do passado e apressarem-se para o futuro, atravessando o presente apenas num encontro acidental, incomum e desconcertante.
O latim vive na eternidade. Toda a glória do latim cristão é que ele reside no maior presente verbal: o “agora” da eternidade. Nunca precisando ser atualizado, ele se mantém livre do perigo de sempre precisar se atualizar. E nós que passamos horas falando interminavelmente sobre coisas que passam, devemos ser capazes de nos voltar para a reflexão teológica dos mistérios imutáveis de Deus, e por meio de uma língua ainda inspirada pelo Sopro que vem da Terra dos Vivos.
Notas:
[1] Artigo pela primeira vez publicado na edição de julho de 1990, de The Homiletic Pastoral Review; e novamente publicado em julho de 2018 no site “Memoria Press”.
[2] G.K. Chesterton, “Some of Our Errors”, The Thing (New York: Dodd, Mead, & Co., 1930), p. 193.
[3] “The Confessions of St. Augustine”, trans., Rex Warner (New York: Mentor-Omega, 1963), p. 57.
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