Uma cópia do Borgianus Latinus, um missal de Natal feito para o Papa Alexandre VI |
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Apresentamos o prefácio do livro Gramática Latina de Napoleão Mendes de Almeida, Saraiva, 29ª ed. 2000.
Se a idéia do bem constitui o objeto supremo do conhecimento, a educação para o estudo constitui a finalidade precípua do latim.
A VERDADEIRA IMPORTÂNCIA DO LATIM
1 - É de todo falso pensar que a primeira finalidade do estudo do latim está no benefício que traz ao aprendizado do português. Vejamos, por meio de fatos e de pessoas, onde reside a primeira importância do estudo desse idioma.
Chegados ao Brasil, três eminentes matemáticos de renome internacional, Gleb Wataghin, professor de mecânica racional e de mecânica celeste, Giacomo Albanese, professor de geometria, e Luigi Fantapié, professor de análise matemática, que vieram contratados para lecionar na recém-fundada Faculdade de Filosofia de S. Paulo - o professor Wataghin é considerado, no mundo inteiro, um dos maiores pesquisadores de raios cósmicos cuidaram, logo após os primeiros meses de aula, de enviar um ofício ao então ministro da educação, que na época cogitava de reformar o ensino secundário. Vejamos o que, mais de esperança que de desânimo, continha esse ofício, do qual tive conhecimento antes do seu endereçamento, dada a solicitação dos três grandes professores de uma revisão minha do seu português:
"Chegados ao Brasil, ficamos admirados com o cabedal de fórmulas decoradas de matemática com que os estudantes brasileiros deixam o curso secundário, fórmulas que na Itália - os três professores eram catedráticos de diferentes faculdades italianas - são ensinadas só no segundo ano de faculdade; ficamos, porém, chocados com a pobreza de raciocínio, com a falta de ilação dos estudantes brasileiros; pedimos a vossa excelência que na reforma que se projeta se dê menos matemática e MAIS LATIM no curso secundário, para que possamos ensinar matemática no curso superior".
2 - O professor Albanese costumava dizer - e muitas pessoas são disto prova - "Deem-me um bom aluno de latim, que farei dele um grande matemático".
3 - Outra prova de que é falso pensar que a primeira finalidade do latim está no proveito que traz ao conhecimento do português posso aduzir com este fato, comigo ocorrido.
Indo a visitar um amigo, encontrei-o a conversar com um senhor, de forte sotaque estrangeiro, que explicava as razões de certa modificação na planta de um prédio por construir; como, no decorrer da troca de idéias, tivesse por duas vezes proferido sentenças latinas, perguntei-lhe se havia feito algum curso especial de latim.
- Curso especial de latim? Não fiz, senhor.
- Mas o senhor esteve em algum seminário?
- Não, senhor; sou engenheiro.
- Percebo que o senhor é engenheiro; mas onde estudou latim? - Na Áustria.
- Quantos anos?
Sete anos.
- Sete anos?! Todo o engenheiro austríaco tem sete anos de latim?
- Sim, senhor; quem se destina a estudos superiores na Áustria estuda sete anos o latim.
Pois bem, relatando a um alemão esse fato, mostrou-se admirado com não saber eu que na Alemanha se estuda nove anos o latim e não somente sete.
4 - É também inteiramente falso educadores - assim chamados porque dentro das lutas e ambições políticas ocuparam pastas de educação ou, quando muito, escreveram livros de psicologia infantil - dizerem que estas palavras foram proferidas numa sessão da comissão de "diretrizes e bases do ensino", comissão nomeada para cumprimento do artigo 5, inciso XV, d, da constituição federal - "nos Estados Unidos da América, país que ninguém nega estar na vanguarda do progresso, não se estuda latim".
Felizmente, nessa mesma reunião, a desastrada afirmação não ficou sem resposta; um dos membros da comissão não se fez esperar: "Como não se estuda? É fácil provar; peçamos de diversos estabelecimentos americanos de diversos, porque a programação do ensino secundário aí não é única como no Brasil - o programa, que veremos a verdade". Dias e dias decorreram, e nada de programas; interrogado, o "educador" respondeu que não tinham chegado; um dia, porém não sei de quem foi maior a distração - o defensor do latim examina uma gaveta, esquecida aberta, e aí vê, guardados ou escondidos, os programas solicitados, e em todos eles o latim rigorosamente exigido.
Esse "educador" era, a esse tempo... presidente de uma seção estadual de partido político.
5 - Não encontra o pobre estudante brasileiro quem lhe prove ser o latim, dentre todas as disciplinas, a que mais favorece o desenvolvimento da inteligência. Talvez nem mesmo compreenda o significado de "desenvolver a inteligência", tal a rudeza de sua mente, preocupada com outras coisas que não estudos.
O hábito da análise, o espírito de observação, a educação do raciocínio dificilmente podemos, pobres professores, conseguir de um estudante preocupado tão só com médias, com férias, com bolas, com revistas.
Muita gente há, alheia a assuntos de educação, que se admira com ver o latim pleiteado no curso secundário, mal sabendo que ensinar não é ditar e educar não é ensinar. É ensinar dar independência de pensamento ao aluno, fazendo com que de per si progrida: o professor é guia. É educar incutir no estudante o espírito de análise, de observação, de raciocínio, capacitando-o a ir além da simples letra do texto, do simples conteúdo de um livro, incentivando-o, animando-o. No fazer do estudante de hoje o cidadão de amanhã está o trabalho educacional do professor.
6 - Quando o aluno compreender quanta atenção exige o latim, quanto The prendem o intelecto e lhe deleitam o espírito as várias formas flexionais latinas, a diversidade de ordem dos termos, a variedade de construções de um período, terá de sobejo visto a excelente cooperação, a real e insubstituível utilidade do latim na formação do seu espírito e a razão de ser o latim obrigatório nos países civilizados.
Ser culto não é conhecer idiomas diversos. Não é o conhecimento do inglês nem do francês que vem comprovar cultura no indivíduo. Tanto marinheiro, tanto mascate, tanto cigano há a quem meia dúzia de idiomas são familiares sem que, no entanto, possuam cultura.
Não é para ser falado que o latim deve ser estudado. Para aguçar seu intelecto, para tornar-se mais observador, para aperfeiçoar-se no poder de concentração de espírito, para obrigar-se à atenção, para desenvolver o espírito de análise, para acostumar- se à calma e à ponderação, qualidades imprescindíveis ao homem de ciência, é que o aluno estuda esse idioma.
"lo, lo, omnes adsunt - indeed! We who teach Latin would do a far grater service to the cause if we channeled pupil interest toward the task of learning Latin rather than into such academic (sic) shenanigans as chariot racing (an event at the Albuqueque convention of Latin students). The intelligent 20th century teen-ager will work hard at Latin when he is shown some of the many genuine values in such study. We need not always entertain him with superficialities" (Fred Moore, Chairman, Language Department, Riverside High School, Painesville, Ohio, USA).
7 - Muitos indagam a razão da fatuidade, da leviandade, da aridez intelectual da geração moça de hoje. É que, tendo aprendido a ler pelo método analítico, tão prático e fácil, julga o estudante que a disciplina que prática e facilidade no aprendizado não contiver não lhe trará proveito, senão tédio e perda de tempo. Acostumado a tudo assimilar com facilidade no primeiro grau, esbarra o aluno no segundo com a obrigação de pensar, e ele estranha, e ele se abate, e ele se rebela. O menino que no primeiro grau era o primeiro da classe passa para lugar inferior no segundo; perda de inteligência, diferença de idade? Não: falta de hábito de pensar. O que no primeiro grau estava em quinto, em décimo lugar passa no segundo às primeiras colocações; aquisição de inteligência? Também não: pensamento mais demorado, mais firme por isso mesmo, sobrepuja agora os colegas de intelecto mais vivo, vivo porém tão só para as coisas objetivas e de evidência.
Raciocinar é, partindo de idéias conhecidas, diferentes, chegar a uma terceira, desconhecida, e é o latim, quando estudado com método, calma e ponderação, o maior fator para aguçar o poder de raciocínio do estudante, tornando-lhe mais claras e mais firmes as conclusões.
8 - O que é certo, inteiramente certo, é não conhecerem alguns homens que nos representam no congresso o que é educação, o que é cultura. Fato ocorrido não há muito tempo vem prová-lo.
Discorrendo sobre a necessidade de nova reforma de ensino, um deputado citava as disciplinas inúteis nos diversos anos do curso secundário, quando é apoiado por um colega, que acrescenta: "O latim para as meninas".
Para este herói, o latim é inútil para as meninas, porque elas não vão ser padres: é a única justificação que até agora pude entrever nesse tão infeliz aparte. As meninas, pobrezinhas, por que ensinar-lhes latim se não vão ler breviário?
Por que esse "para as meninas"? E por que, pergunto, não é também inútil para os meninos? Que distinção cultural faz esse deputado entre menino e menina? Que quer ele para elas? Aulas de arte culinária? Aulas de corte e costura? Pretende dizer que as suas meninas não devem estudar ou quer com isso afirmar que o latim só interessa a padres?
A questão não é o que os meninos vão fazer do latim, mas o que o latim vai fazer dos meninos: The question is not what your boy will do with Latin, but what Latin will do for your boy, dizia com o bom senso pachorrento e inato de sua gente o senador Arnold.
PORQUE É O LATIM REPUDIADO
9 - A quem conhecia o regime de estudos de um seminário tornava-se dispensável toda e qualquer critica a programas de latim. A quem não conhecia não era demais dizer que nos seminários não existia programa de latim... Existia estudo de latim com seis horas semanais, existia consciência do que se fazia. Em que seminário já se ouviu falar em "sintaxe do verbo?" Pois assim estava no programa do último ano clássico. Procure-se, agora, em todo o programa, "verba timendi", "verba declarandi", "verba voluntatis", "verba impediendi", orações finais, orações interrogativas, orações dubitativas, orações causais, orações relativas, orações infinitivas, orações condicionais etc.; nada disso se encontrava. Por que então programa?
Ou se divide a matéria, ou seja, ou ela é realmente programada pelas séries ou então programa não se faz. Se o programa na lexeologia pedia "qui, quae, quod", descendo a uma discriminação quase cômica, partilhando dessa forma a matéria, como falar depois, retumbantemente, em "período composto", em "discurso indireto", em "emprego dos modos e dos tempos nas orações subordinadas"?
10 - Com todos os erros de que estava eivado o programa de latim, o descalabro se tornou ainda maior quando se considera que uma portaria reduziu o número de aulas semanais de três para duas; modificaram o programa? Não; continuou o mesmo, com todas as incongruências, deficiências e disparates.
Era de tal forma pedida a parte gramatical e tão poucas as horas de aula que não havia possibilidade de traduzirem os alunos os autores exigidos a menos que desejasse o professor provar aos seus discípulos ser o latim intraduzível.
Considere-se ainda que pessoas existiam a lecionar latim mais acanhadas de equilíbrio mental do que de capacidade didática, pessoas que, na primeira aula, isto diziam: "Eu sei que vocês não vão aprender latim" - "Eu sou contra o latim"
"Eu sou cego", "Eu não sei por que os meus alunos não aprendem", "Eu não sei ensinar" - é que deveriam confessar aos alunos esses truões.
11 - Preocupação nefasta para o ensino do latim é a da tradução de autores latinos. Dar a alunos sem conhecimento de princípios essenciais do latim trechos para traduzir é dar-lhes pedradas, é dar-lhes cacetadas. Nem Eutrópio, nem Fedro, nem César, nem Cicero previram portarias ministeriais; nem Ovídio, nem Virgílio, nem Horácio escreveram latim para estudantes que nem sequer sabem o que é agente da passiva, o que é ablativo absoluto, o que é sujeito acusativo; nem Publílio Siro, nem Valério Máximo escreveram latim para estudantes, quer meninos quer meninas, que nem do idioma pátrio têm aulas de gramática, para meninos ou para meninas que nem sabem o que é objeto direto, o que é adjunto adverbial, o que é predicativo, o que é aposto.
Conseqüência dessa impossibilidade era darem certos professores irresponsáveis a tradução já pronta para que os alunos a decorassem, fato por si bastante para provar ou a incompetência do professor, ou o erro do programador, ou a conivência de ambos no desbarato do ensino em nossa terra, na decadência e no despautério educacionais a que em nossa pátria vimos assistindo.
12 - Com lacunas de toda a sorte, o latim tornou-se ainda mais antipatizado, seu ensino passou a ser ainda mais dificultado com a introdução, mormente em estados do Sul, e de maneira especial em S. Paulo, da pronúncia reconstituída, galicamente chamada pronúncia "restaurada". Apedrejados e vergastados como se já não bastasse, nossos pirralhos passaram a ser torturados por ex-alunos universitários que de faculdades de filosofia saíam cientes de latim mas inscientes de didática, rapazes e moças que, tão preocupados em mostrar sabença, passavam a ensinar a tal pronúncia e se esqueciam de ensinar latim.
"Para nós - são palavras do eminente educador, padre Augusto Magne - o que interessa no latim é sua literatura, sua virtude formadora do espírito. Desviar o estudo do latim para a especialização em questiúnculas de pronúncia reconstituída é desvirtuar aquela disciplina e tirar-lhe seu poder formador para recair no eruditismo balofo, pretensioso e estéril."
Por que não ensinam nas faculdades de letras de S. Paulo a pronunciar o portu- guês à lusitana, se a pronúncia de um idioma deve ser a dos seus clássicos? Precisa- mente aí está a explicação da pronúncia novidadeira do latim; quem a introduziu em S. Paulo foi um professor lusitano que, achando mais fácil ensinar o latim pela pro- núncia da Alemanha que pela de Portugal, impingiu-a aos alunos da faculdade, que então teimavam em pretender passá-la adiante.
Se não é para falar latim que um estudante vai aprendê-lo, muito menos deve estudá-lo para o pronunciar mais à alemã que à portuguesa, tirando do latim até a própria utilidade para o vernáculo.
MÉTODO
13- Não há professor de latim que deixe de lastimar a pobreza de conhecimentos do vernáculo em seus discípulos. Vendo na deficiência de conhecimento dos princípios fundamentais de análise sintática do período português a causa principal desse desajustamento é que me pus a redigir este curso, mostrando ao aluno o que realmente dificulta o aprendizado do latim e fazendo com que, através de questionários e de exercícios muito graduados, demonstre conhecimento do essencial e suficientemente necessário ao estudo desse idioma.
Como obrigar um aluno a decorar a conjugação total de um verbo se ele não sabe o que é particípio presente, o que é gerúndio, o que é supino? Como dar-lhe a voz passiva se ele não sabe o que é agente da passiva? De que lhe adianta saber muito bem de cor o "qui, quae, quod", se não sabe analisar um relativo em frase portuguesa?
Asas de um pássaro, o latim e o português devem voar juntos: tal é a minha convicção, tal a minha preocupação em todas estas 104 lições.
Napoleão Almeida
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