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Artigo retirado da Analytica - Revista de Filosofia, volume 8, número 1, 2004, disponível no LINK.
CIÊNCIA ARISTOTÉLICA E MATEMÁTICA EUCLIDIANA, por Francis Wolff, Ecole Normale Supérieure, Paris.
Aristóteles é sem dúvida o filósofo mais comentado da história da filosofia ocidental. E, entretanto, poucos comentadores contemporâneos arriscaram-se a seguir o caminho dos comentadores antigos (gregos ou árabes): tomar cada obra do Mestre como um todo, considerá-la na sua unidade, lê-la seguindo a ordem do texto, reconstituir-lhe a linha de raciocínio seguida e a lógica intrínseca. Oswaldo Porchat é um dos raros mestres modernos no aristotelismo a ter querido seguir esse método e a ter sabido aplicá-lo aos Segundos Analíticos. Ele define assim seu objetivo e seu procedimento: “Se se lhe (a esse texto) busca desvendar a ordem interna que estrutura, mediante uma leitura repetida, atenta e rigorosa, descobre-se, em verdade, como cremos tê-lo mostrado, um texto ordenado e coerente, que não vem macular nenhuma contradição interna, cumprindo adequadamente o objetivo que o filósofo lhe traçou e oferecendo-nos uma doutrina unitária do saber científico.” (Ciência e Dialética em Aristóteles, p. 27).
Porchat não pretende ter aprendido esse método dos comentadores árabes antigos, mas de seus mestres franceses contemporâneos, com destaque para Victor Goldschmidt. Esse último o aplicava a Platão ou aos estóicos, e, aproximadamente na mesma época, M. Guéroult lia assim Descartes. O desafio para Porchat consistia em aplicar esse método a Aristóteles, cujos trabalhos, tais como chegaram a nós, assemelham-se mais a um acúmulo de notas amalgamadas do que a uma obra sistemática e metodicamente organizada “segundo a ordem das razões”. Além disso, se Porchat seguia assim, com brilho, os passos de seu mestre, ele o fazia na contracorrente de todas as leituras modernas de Aristóteles: de W. Jaeger a P. Aubenque, essas últimas tendiam justamente a fazer explodir a sistematicidade factícia do aristotelismo tal como ela tinha sido artificialmente construída pela tradição tomista, para redescobrir, por um retorno à letra do texto, o que essa última continha de camadas superpostas (Jaeger) ou de aporias inevitáveis (Aubenque). O desafio, para Porchat, consistia, pois, em mostrar a sistematicidade na própria letra do texto. E em fazê-lo “como moderno” armado de todos os instrumentos filológicos, históricos e bibliográficos contemporâneos.
O êxito é exemplar. O que o comentário “porchatiano” demonstra com vigor são dois pontos.
O primeiro concerne à “ciência” tal como a concebe Aristóteles, que é exatamente o que chamaríamos hoje um “sistema dedutivo”. Não apenas Porchat prova, pelo texto dos Segundos Analíticos, que a definição aristotélica da ciência é coerente, sistemática e progressivamente edificada, mas ele mostra também que toda ciência aristotélica se define precisamente como sendo um sistema coerente, edificado como uma seqüência ordenada de deduções rigorosas, dependente de algumas proposições iniciais indemonstráveis, chamadas “princípios”. Porchat exprime e resume esse último ponto nestes termos: “Mostrou-nos a doutrina aristotélica da ciência a existência de princípios (archai), isto é, de proposições imediatas e primeiras, anteriores e mais conhecidas, necessárias e por si, proposições absolutamente indemonstráveis por que as ciências principiam e sobre as quais constroem seus silogismos, delas partindo para demonstrar e concluir as propriedades também necessárias e por si dos gêneros particulares de que se ocupam” (p. 337).
O segundo ponto está ligado ao precedente. O que Porchat mostra, mais uma vez escrutinando escrupulosamente o texto aristotélico, é que o modelo da ciência aristotélica é a matemática. “São as matemáticas e as ciências afins que se tomam explicitamente como exemplos de ciências; em suma, a Ciência que o tratado descreve e caracteriza é um saber construído more geometrico com o rigor, a exatidão e a necessidade que o filósofo reconhece nas ciências matemáticas. Escritos algumas décadas mais tarde mas como resultado, também, de compilações anteriores (...), os Elementos de Euclides ter-se-ão inspirado da doutrina aristotélica da ciência, segundo os Analíticos, e darão aos princípios da geometria um tratamento intimamente aparentado à teoria aristotélica dos princípios da ciência”.
Pretendo apenas, no texto a seguir, render uma homenagem ao belo comentário de Porchat, completando seus dois resultados principais (a ciência aristotélica é um sistema dedutivo e ela toma as matemáticas por modelo) pelo desenvolvimento de uma de suas conseqüências necessárias: a ciência aristotélica tem por efeito – epistemológico e histórico – o monumento euclidiano. Eis por que se pode comparar o sistema dedutivo, tal como Aristóteles o havia concebido, com aquele que Euclides realizou. Mas isso não deixa de ter conseqüências, por sua vez, sobre a interpretação que se pode dar da natureza dos princípios sobre os quais repousa o sistema dedutivo de acordo com os Segundos Analíticos. Isso tampouco deixará de ter conseqüências sobre os princípios da leitura porchatiana desses Segundos Analíticos, talvez demasiadamente fiel aos princípios de seus mestres franceses: a concepção aristotélica dos princípios talvez não seja tão unívoca quanto o sustenta Porchat (pp. 223-250), sem dúvida mais sistemático que Aristóteles sobre esse ponto, e os Segundos Analíticos não sejam tão “claros e distintos” quanto Porchat e seus mestres queriam: talvez haja uma ambigüidade – ou uma riqueza anfibológica – mais “brasileira” do que “francesa” no texto grego (para ficarmos nos estereótipos). Isso é ao menos o que eu gostaria, em uma linha porchatiana, de mostrar abaixo. Quem poderia se permitir esta homenagem, e esta reserva, a não ser um herdeiro (francês) de um e outros, talvez menos francês – ou mais brasileiro (quem sabe?) – do que o professor Oswaldo Porchat Pereira?
Uma das características mais marcantes da ciência grega, e não somente da matemática, é sua busca obstinada da demonstração. Essa preocupação resulta, em sua forma radical, na apresentação exaustiva de todo um corpo de conhecimentos sob a forma de um sistema dedutivo unificado, que se pode certamente chamar de “axiomatizado”, com todas as precauções de uso concernentes à diferença entre a axiomática antiga e a moderna. Hipócrates de Chios, na metade do Vº século, é sem dúvida o autor da primeira coletânea de Elementos [1] , mas ela não parece ainda se apoiar sobre um corpo de proposições absolutamente indemonstráveis [2] , nem distinguir nitidamente as premissas primeiras de uma ciência e as premissas de um conjunto de demonstrações dadas. De qualquer maneira, não há nenhuma prova da existência, anterior a Euclides, de coletâneas completas de tais Elementos, no sentido que o termo já tem, no entanto, em Aristóteles: “Nós damos o nome de elementos a essas proposições geométricas cujas provas são implicadas nas provas de todas as outras, ou de quase todas” (Metaf. B, 998 a 25 sq. [3]). A presença em Aristóteles dessa definição já euclidiana mostra, porém, que em sua época a investigação desses “elementos” dos quais poderiam derivar todas as matemáticas constitui, conforme o “testemunho” de Proclus, o programa de trabalho para os matemáticos dessa geração e das seguintes, até Euclides [4]. Essa busca culmina nos Elementos [5], que constituem a síntese perfeita do saber e do espírito da matemática grega clássica, e como que um concentrado da essência da ciência grega no que ela tem a um só tempo de mais particular e de mais universal. Desde então, uma ciência deveria, idealmente, se apresentar sob a forma de um tal sistema no qual só são consideradas como cientificamente estabelecidas aquelas proposições que são suscetíveis de ser inferidas, em um número finito de mediações, de algumas proposições iniciais. Esse modelo foi reconhecido e adotado em toda a história grega. Depois de Euclides, a apresentação “axiomática” se impôs como forma canônica em vários domínios, nas obras de matemáticas puras (tratados de Arquimedes – Da esfera e do cilindro – ou de Apolônio de Perge – as Cônicas), mas também em ótica (Ptolomeu), nos tratados de mecânica (Arquimedes, Sobre o equilíbrio das figuras planas), em certos ramos da teoria musical, em estática e hidroestática, em certos domínios da astronomia teórica (Aristarco de Samos, Das grandezas e distâncias do sol e da lua).
O monumento de Euclides é ou não a realização da teoria aristotélica da ciência? É para essa questão, bastante clássica, que as considerações abaixo gostariam de contribuir. À primeira vista, não há nenhuma dúvida, de fato, de que as concepções de Aristóteles, tais como elas nos são apresentadas nos Segundos Analíticos, constituem a primeira teoria da exposição dos conhecimentos sob a forma de um sistema dedutivo. Tudo se passa como se, entre a epistemologia aristotélica e a matemática “axiomatizada”, tivesse havido uma espécie de movimento de ida e vinda: enquanto que, de um lado, em seu trabalho epistemológico, Aristóteles reflete e sistematiza a obra dos matemáticos de sua época, de um outro lado, Euclides parece realizar cientificamente o que Aristóteles havia programado epistemologicamente. À primeira vista, tudo parece, pois, simples. A ciência segundo Aristóteles deve ser “demonstrativa”, pois conhecer é não somente conhecer o fato, mas também o por que, e a resposta a esse por que se reduz à colocação em evidência de um elo dedutivo que faz com que uma verdade dependa necessariamente de outras verdades anteriores, já conhecidas. Toda verdade científica (quer ela diga respeito à existência dos objetos ou a suas propriedades) deve, assim, ser demonstrada, com exceção dos “princípios” [6], proposições absolutamente primeiras mas necessariamente admitidas, indemonstráveis mas necessárias e suficientes para demonstrar todas as outras. Esses princípios são postos no começo e constituem o pré-requisito mínimo que permite edificar, por via simplesmente dedutiva, o conjunto completo e ordenado de todos os conhecimentos. Ora, é precisamente o que vem a fazer Euclides nos Elementos, dos quais cada um dos livros se abre com o enunciado do corpo mínimo de proposições necessárias e suficientes para demonstrar a verdade de todas as outras. Há, pois, um acordo entre Aristóteles e Euclides sobre o essencial: sobre o que deve ser uma ciência (ou ao menos sobre a maneira sob a qual ela deve se apresentar), sobre seu método, sobre sua função e sobre a razão de ser de seus princípios.
Entretanto, se a aproximação se mostra grosso modo válida e fecunda, ela coloca numerosos problemas de detalhe, em particular quando se confronta a classificação e a teoria dos diferentes tipos de princípios reconhecidos por Aristóteles e teorizados nos Segundos Analíticos com os diferentes princípios reconhecidos por Euclides e enunciados no primeiro livro dos Elementos. É a essa confrontação que nos dedicaremos a fim de determinar se a ciência, tal como a descreve de direito Aristóteles, se realiza de fato em Euclides, e se, reciprocamente, a ciência euclidiana é fiel a uma epistemologia aristotélica. Essa confrontação choca-se com dois tipos de dificuldade: por um lado, a correspondência entre os princípios de Aristóteles e de Euclides é apenas aproximativa; por outro lado, a teoria aristotélica dos princípios da ciência parece, ela própria, hesitante e perpassada por ambigüidades.
OS PRINCÍPIOS DE EUCLIDES E SUA CORRESPONDÊNCIA COM OS PRINCÍPIOS DE ARISTÓTELES
O primeiro Livro dos Elementos de Euclides começa pelo enunciado de “princípios” no sentido que Aristóteles deu a esse termo, a saber, o de pontos de partida absolutos das cadeias dedutivas. Contam-se vinte e três Definições [7]; a seguir, cinco “Demandas” (ou postulados) [8] e algumas Noções comuns (de cinco a nove, conforme as edições) [9].
As Definições de Euclides correspondem muito exatamente às exigências epistemológicas de Aristóteles. Para esse último, a definição, enquanto princípio, nada deve dizer acerca da existência da coisa definida: “o que significa o termo triângulo, o geômetra o põe; que ele existe, ele o prova” (An. Post. II, 7, 92 b 15-16). A definição não prova nada [10]. E isso é tranqüilizador. Se a definição provasse o que quer que seja, bastaria definir o que é uma coisa para mostrar sua existência, ao passo que, evidentemente, toda existência de um ser matemático deve ser provada (por meio de uma construção, por exemplo). Essas exigências colocadas por Aristóteles são estritamente respeitadas por Euclides [11]. Suas Definições são puramente “nominais” e os termos definidos “à espera de demonstração da existência da coisa” [12]. Assim, o quadrado, por exemplo, é definido de início por Euclides (def. 22: “entre as figuras quadriláteras, é um quadrado aquela que é ao mesmo tempo equilateral e retângula”), mas sua existência não é nunca pressuposta antes da proposição I, 46, na qual sua existência é provada por meio da construção da figura [13]. O mesmo ocorre com todos os outros termos definidos no começo do Livro I: eles dão lugar, ao longo do livro, à construção do definido [14].
Sem dúvida, Aristóteles reconhece também um certo tipo de “definições” que implicam ademais uma assunção de existência: “algumas vezes é preciso conhecer os dois, o sentido da palavra e a existência da coisa” (An. Post. I, 1, 71 a 13-15), e ele dá o exemplo da unidade; mas esses enunciados que dizem o que significa um termo ao mesmo tempo que assumem a existência da coisa são explicitamente distinguidos das definições propriamente ditas e são chamados de “hipóteses” (I, 2, 72 a 21-25). Essas últimas só podem dizer respeito ao que Aristóteles chama de “o gênero”, isto é, o objeto ou o domínio de objetos da ciência em questão, por exemplo, o movimento para o físico, a quantidade (em geral) para o matemático “generalista”, a quantidade divisível, isto é, a grandeza, para o geômetra, e a quantidade indivisível, isto é, a unidade (e por conseguinte o número como coleção de unidades) para o aritmético. Constatamos aí também, ainda que de uma maneira indireta, a fidelidade de Euclides ao aristotelismo. Sem dúvida, ele não formula essas “hipóteses” como tais [15] ; mas Aristóteles não indica que o cientista deva necessariamente fazê-lo de forma explícita; ele mostra apenas que nenhuma ciência pode se passar de assumir a existência de seu domínio de objetos [16]. Constatamos, pois, que, ao menos por sua prática, Euclides respeita essa exigência nos livros geométricos: a grandeza não é, assim, jamais definida, e, inversamente, certas definições que “envolvem a admissão tácita da existência dos gêneros primeiros... não correspondem a demonstrações ulteriores de existência” [17], por exemplo, as definições da linha (I, 2) e da superfície (I, 5), que pressupõem a existência da grandeza.
Em suma, as Definições euclidianas parecem certamente realizar o ideal das definições aristotélicas [18]: elas não enunciam nenhuma verdade, mas somente a significação de certos termos, necessários para a formulação de todos os enunciados da ciência, mas evitando qualquer assunção de existência ou de propriedade que necessitaria de uma demonstração.
Quando nos voltamos para as Noções comuns euclidianas, constatamos uma correspondência igualmente boa com os “axiomas” aristotélicos [19]. Eles são, como quer Aristóteles, proposições “a partir das quais [20] se efetua a demonstração” (An. Post. I, 7, 75 a 42) [21]. É exatamente o uso que Euclides faz de suas Noções comuns: elas são postas sem demonstração e servem para as demonstrações de todas as outras proposições: elas são, além disso, as únicas proposições não demonstradas [22] utilizadas ao longo das demonstrações dos teoremas propriamente ditos, os três primeiros Postulados sendo utilizados apenas ao longo das construções [23]. Quanto à exigência de Aristóteles de que os axiomas devam ser “comuns a muitas ciências” [24] (An. Post. I, 10, 76 a 38 [25]), ela também é respeitada exatamente por Euclides: só o Livro I comporta Noções Comuns, que, de direito assim como de fato, são comuns ao conjunto de todas as matemáticas dos Elementos, isto é, ao mesmo tempo aos livros aritméticos e geométricos [26]. Além disso, como recomendava Aristóteles, o matemático faz delas um uso “analógico” (ibid) [27]: assim, a noção de igualdade, que está em questão em quase todas as Noções Comuns [28], regula as relações entre quantidades quaisquer, quer essas quantidades sejam números ou grandezas [29]. O mesmo ocorre com a Noção Comum 8 (“o todo é maior do que a parte”), que diz respeito indiferentemente às grandezas ou aos números. Reciprocamente, pode-se recordar que o exemplo típico do axioma aristotélico é “se de coisas iguais se retiram coisas iguais, os restos são iguais” [30], que é a Noção Comum 3 de Euclides [31]. Há, pois, entre os “axiomas” aristotélicos e as Noções Comuns euclidianas, uma correspondência quase perfeita de extensão, de definição e de função.
A questão coloca-se evidentemente em termos muito diferentes para os Postulados (ou “demandas”). Os de Euclides não se aparentam de nenhum modo com os “postulados” descritos por Aristóteles (An. Post. I, 10, 76 b 32-34) e colocam por si mesmos inúmeros e pesados problemas. Os três primeiros são “demandas” de possibilidade de construção de certas figuras de base [32], a linha reta (indefinidamente prolongada) e o círculo (de um raio qualquer). Do ponto de vista da ciência de Euclides, essas “demandas” são legítimas na medida em que toda sua geometria só reconhece construções, como se diz algumas vezes, “com a ajuda da régua e do compasso”, o que torna necessário explicitar esse direito que nos concedemos, portanto, de “postulá-lo” [33]. Por outro lado, dado que as Definições iniciais fazem apelo à linha reta (Def. 4 e, por conseguinte, Def. 7 a 12, depois Def. 19 e seg.) e ao círculo (Def. 15, depois 16 a 18) e que, contrariamente ao que se passa nas outras figuras (por exemplo, o triângulo equilátero, na Prop. I, 1, o quadrado em I, 46, etc.), jamais, na sequência, a existência dessas duas figuras de base, das quais são “compostas” todas as outras, será demonstrada, é certamente necessário “demandar” que a possibilidade de sua construção seja inicialmente concedida. Compreende-se, pois, que um Geminus [34] fará dos Postulados o análogo, para os problemas, do que são as Noções comuns para os teoremas: os Postulados põem as existências necessárias e suficientes para as construções (e, portanto, para as demonstrações de existência) efetuadas pelos problemas, assim como as Noções comuns põem as propriedades necessárias e suficientes para as propriedades demonstradas nos teoremas.
Os três primeiros Postulados euclidianos têm, pois, uma função bastante próxima do que Aristóteles chamava de “hipóteses”: quando nos damos a possibilidade de certas construções, pomos ou “supomos”, por isso mesmo, existências, o que não podem fazer por si mesmas as Definições, e supomos as existências dos objetos que não podem ser demonstradas, mas que são necessárias e suficientes para demonstrar as de todos os outros, e próprias ao gênero do qual se trata (no caso, em geometria, o da grandeza). O gênio de Euclides teria então consistido em reduzir todas as existências dos seres geométricos, não exatamente à existência de seu gênero (a grandeza), como se se tratasse de “hipóteses” no sentido aristotélico, mas às existências de duas figuras particulares, a reta e o círculo, que não são Noções comuns (porque elas são próprias), as quais é preciso então “demandar” (porque elas não podem ser provadas). Observemos, entretanto, que essa aproximação só diz respeito evidentemente aos três primeiros postulados, o quarto (“E que todos os ângulos retos sejam iguais entre si”) e o quinto (“E que, se uma reta caindo sobre duas retas faz os ângulos internos e do mesmo lado menores que dois retos, as duas retas, indefinidamente prolongadas, encontram-se do lado onde estão os ângulos menores que dois retos”), aparentando-se antes com axiomas (salvo que eles não têm nada de “comum”) e mesmo com proposições demonstráveis, como observou (para o deplorar) a maior parte dos comentadores desde a Antigüidade [35].
Extrai-se, dessa rápida análise, uma correlação bastante boa entre a prática e o uso por Euclides de seus três tipos de princípios e as exigências epistemológicas dos Segundos Analíticos: as Definições de Euclides correspondem aos desejos de Aristóteles; as Noções Comuns de Euclides respondem bastante estritamente às esperanças formuladas por Aristóteles concernindo aos “axiomas”. E os três primeiros Postulados euclidianos, mesmo que não correspondam aos “postulados” de Aristóteles, respondem a certas exigências concernindo a suas “hipóteses” [36]. Euclides executou adequadamente, pois, um programa que se encontra em Aristóteles: no sentido retrospectivo, de Euclides em direção a Aristóteles, a determinação é muito boa.
Não ocorre o mesmo no sentido inverso, de Aristóteles em direção a Euclides. Pois há numerosos aspectos da teoria dos princípios da ciência em Aristóteles a que nada, de fato nem de direito, corresponde no uso euclidiano dos princípios. Não somente porque há certos princípios de Aristóteles (“teses”, “hipóteses”) dos quais não se encontra o equivalente em Euclides, não somente porque suas definições respectivas de “postulado” são amplamente diferentes, mas, o que é mais grave, porque não há uma teoria única, harmônica e coerente dos princípios em Aristóteles. De modo que os “princípios”, tais como os encontramos em Euclides, podem certamente corresponder a certas exigências formuladas por Aristóteles, mas não a todas, quanto mais não seja porque elas não são todas compatíveis entre si e não formam um sistema uniforme. É o que veremos agora.
AS HESITAÇÕES DOS SEGUNDOS ANALÍTICOS
Aristóteles aborda a questão dos princípios ao longo de toda a primeira parte dos Segundos Analíticos, e mais particularmente nos capítulos 2 e 10. É possível harmonizar quase todas as suas análises até o capítulo 10: os pontos de vista variam de uma maneira significativa, mas o conjunto permanece coerente.
No capítulo 1 (71 a 11-17), Aristóteles distingue dois tipos de pré-conhecimentos exigidos por toda ciência: “que a coisa é”, ou, dito de outra forma, proposições verdadeiras (e ele dá como exemplo o princípio do terceiro excluído) e “o que o termo significa” (por exemplo, o “triângulo”); “às vezes, acrescenta ele, é preciso conhecer os dois” (71 a 12), sentido da palavra e existência da coisa (por exemplo, “a unidade”, 71 a 16-17). É claro, com efeito, que a unidade, sendo o que define o gênero da aritmética (seu objeto próprio, do qual, como explicará o capítulo 7, se trata de estudar as propriedades essenciais), é necessário pôr sua existência, ela não pode ser demonstrada [37]; este terceiro caso corresponde ao que será chamado, no capítulo 2, de “hipótese”, enquanto os dois primeiros corresponderão respectivamente aos “axiomas” e às “definições”. Notemos que, neste primeiro capítulo, o vocabulário é o do aprendizado: são todo ensino (didaskalia) e todo aprendizado (maqhsi~) que requerem conhecimentos anteriores da parte do aprendiz (71 a 1) [38], sem os quais ele nada poderia aprender, seja indutivamente (devemos conhecer o particular) ou dedutivamente (devemos conhecer as premissas); e é ainda ele, o aprendiz, que deve compreender (ξυνιέναι) o termo utilizado.
O desenvolvimento do capítulo 2 (72 a 14-22) conduz finalmente a uma divisão tripartite comparável, mesmo se a perspectiva é diferente e permite algumas precisões. A noção geral de “princípio...não demonstrável” é dividida em “tese”, que “não é indispensável a quem quer aprender algo”, e “axioma”, “indispensável a quem quer aprender algo, seja o que for”; e a “tese”, ela própria, é dividida em “hipótese”, que implica uma assunção de existência (por exemplo, a afirmação da existência da unidade), e “definição”, sem assunção de existência (por exemplo, a afirmação de que a unidade é o que é indivisível segundo a quantidade). A problemática geral deste capítulo permanece didática, como no precedente, mas o ponto de vista aqui é antes o do mestre que o do aluno: o mestre põe o que significam os termos, enquanto o aluno tem apenas de “compreendê-los”.
Observemos, entretanto, uma ambigüidade na oposição do axioma e da tese. Ou compreendemos que ela correlaciona o que é “necessário para aprender todas as coisas” e o que “não é necessário a todas as coisas”, ou seja, o comum e o próprio, e vemos aí uma antecipação da distinção feita no capítulo 10 (76 a 37 – b2) entre os princípios comuns e os princípios próprios a cada ciência (hipóteses e definições) [39]; ou compreendemos que ela opõe o necessário e o não necessário, ou seja, o que necessariamente é pré-requisito para qualquer aprendizado que seja e o que acontece ser posto (em “tese”) pelo mestre, sem ser indispensável a qualquer aprendizado que seja: neste caso, haveria antes antecipação da distinção feita em uma passagem ulterior do mesmo capítulo 10 (76 b 23 – 77 a 4) entre, de um lado, os axiomas ( a despeito da ausência da palavra), e, do outro, as “hipóteses” e os “postulados”.
Não há maior dificuldade na passagem do capítulo 7 (75 a 39 – b2) que distingue, na demonstração, as “conclusões” (isto é, as proposições demonstradas), os axiomas “a partir dos quais se efetua a demonstração” e “o gênero subjacente”, isto é, o objeto próprio da ciência “do qual a demonstração faz aparecer as propriedades e os atributos essenciais”. Notemos apenas que, neste último texto, ao contrário dos precedentes, a consideração não é mais “didática”, mas “gnoseológica” e “sistemática”. Uma ciência não é mais considerada tacitamente como uma disciplina de estudo cujos elementos são aprendidos de uma maneira progressiva, mas como um corpo de conhecimentos apresentados e ordenados sistematicamente através da demonstração: os pré-requisitos do aluno dos capítulos 1 e 2 são desta vez definidos como sendo exigências da própria operação dedutiva; e as verdades que eram definidas como devendo ao mesmo tempo ser já assumidas e ser compreendidas pelo aluno (ou seja, as hipóteses de existência dos capítulos 1 e 2) são desta vez definidas pelo domínio dos objetos concernidos pela operação dedutiva.
As verdadeiras dificuldades se encontram no capítulo 10, no qual podemos distinguir quatro tratamentos sucessivos do sistema dos princípios.
O primeiro parágrafo (76 a 32-36) introduz um novo ponto de vista. Os princípios são desta vez considerados a partir dos objetos do conhecimento científico. Há primeiramente o ponto de vista “intensional”, que resulta do entrecruzamento entre duas oposições: a da “palavra” e da “coisa” (distinção significação/existência e a do “primitivo” e do “derivado” (distinção não-demonstrado/demonstrado). Daí, o quadro seguinte: a significação do nome é posta tanto para os termos primitivos quanto para os termos derivados [40]. Quanto à existência da coisa, ela é posta para os primitivos (por exemplo, a unidade e a grandeza) e demonstrada para os outros [41]. Vemos portanto que as “coisas” cuja existência deve ser posta são também aquelas cujos “termos” devem ser definidos, e correspondem às “hipóteses” do capítulo 2 e ao “gênero” estudado por tal ou tal ciência do capítulo 7 (a unidade para a aritmética ou a grandeza para a geometria). Embora a perspectiva deste parágrafo, que se modela sobre os próprios objetos, seja nova, ela pode sem dificuldade ser conciliada com a perspectiva didática do capítulo 7 e sua distinção entre “hipóteses” e “definições”.
O segundo tratamento dos princípios no capítulo 10 (76 a 37 – b 10) considera também os objetos da ciência, mas o ponto de vista desta vez é “extensional” e se funda sobre a oposição “próprio/comum”. O que é próprio a cada ciência é seu domínio de objetos, “dos quais ela põe a existência, e dos quais ela estuda os atributos essenciais” (76 b 3-4) (por exemplo, a unidade em aritmética; em geometria o ponto e a linha, postos ao mesmo tempo em sua significação e em sua existência); mas o que é próprio é também (76 a 38 – 76 b 2) a significação dos termos do que se pode chamar os atributos essenciais demonstráveis (por exemplo, em aritmética: par, impar, quadrado e cubo; em geometria: irracional, linha quebrada, oblíqua). Vemos que o “próprio” reagrupa dois tipos de princípios do capítulo 2, a saber, as “hipóteses” e as “definições”. Há, por outro lado, o que é “comum a várias ciências, por analogia”, por exemplo: “se, de coisas iguais, retiramos coisas iguais, os restos são iguais”. Somos remetidos a um tipo de princípio chamado “axioma” no capítulo 2: ele só é legítimo, com efeito, se ele for comum a várias ciências, senão seria uma espécie de direito exorbitante que o cientista se concederia o de recorrer a princípios não demonstrados para as necessidades de seu próprio domínio. Embora este ponto de vista “objetivo” sobre os “axiomas” seja diferente do ponto de vista didático dos capítulos 1 e 2, ele não o contradiz.
Um pouco mais longe, no mesmo capítulo (76 b 11 – 22), um terceiro ponto de vista sobre os princípios é considerado, que reata com aquele adotado pelo capítulo 7, onde uma ciência era considerada como um sistema dedutivo. Aristóteles distingue “o gênero”, do qual “a existência é posta” e do qual ela “estuda as propriedades essenciais”, os princípios “comuns, ditos axiomas”, “a partir dos quais se efetua a demonstração”, e as propriedades do gênero, que são demonstradas e cuja significação foi posta (76 b 15). É a mesma classificação que no capítulo 7, e ela não diz respeito apenas aos princípios, embora possamos aí reconhecer nisso sucessivamente as hipóteses, os axiomas e as definições.
Embora todos os pontos de vista considerados até agora sejam distintos e impliquem diferentes concepções da natureza da ciência, eles são compatíveis entre si e conduzem a um mesmo sistema tripartite. O mesmo não ocorre com o último texto do capítulo 10 (76 b 23 – 77 a 4), que acumula as dificuldades e propõe uma nova classificação.
Haveria primeiramente “o que não é nem uma hipótese nem um postulado” (76 b 23). Este último termo é surpreendente; ele jamais foi mencionado e faz, assim, uma aparição bastante subreptícia. “O que não é nem uma hipótese nem um postulado” é definido, positivamente, como sendo “o que é necessário por si e que devemos necessariamente admitir (dokeîn)” (76 b 23-24), porque ele “se dirige ao discurso interior da alma e não ao discurso exterior: não se pode nada objetar a ele (ένστῆναι)” (76 b 26-27). Qual é esse novo “princípio”? Já que ele não é uma hipótese e não pode ser uma definição, tratar-se-ia do axioma que seria assim definido por dois novos critérios: verdade necessária, por um lado intrinsecamente e, por outro, pela adesão que se lhe dá? Não apenas os critérios são novos, mas o vocabulário utilizado é surpreendente [42].
Há em seguida uma segunda espécie de princípios, “o que, demonstrável, é, no entanto, posto sem demonstração pelo mestre”, espécie na qual distinguimos aquele que é posto “com o assentimento do aluno: é a hipótese (relativa ao aluno)”, e aquele que é posto sem o assentimento do aluno, “se o aluno não tem opinião ou tem uma opinião contrária”: é o postulado (76 b 27-31).
Há aqui uma série de dificuldades. Temos primeiramente uma verdadeira contradição. Trata-se de uma nova definição da hipótese, incompatível com a precedente. Esta é demonstrável, enquanto a que era definida no capítulo 2 (como proposição que põe a existência do gênero) era indemonstrável; esta depende do assentimento do aluno, aquela era uma condição objetiva da ciência (é preciso, necessariamente, para estudar um domínio de objetos, pôr esse domínio e, portanto, “fazer como se”, hipoteticamente, ou pelo menos a priori, esse gênero existisse). Para conciliar esses dois textos, a única solução consistiria em distinguir, forçando os textos, dois tipos de hipóteses: a “hipótese absoluta”, que seria a hipótese no sentido definido no capítulo 2, e “a hipótese relativa a tal aluno”, definida aqui.
Por outro lado, esse texto faz aparecer um novo tipo de princípio do qual nunca se tinha falado: o “postulado”. Notaremos que este sentido técnico de “postulado” é único em Aristóteles; a palavra tem em outras passagens um sentido muito mais fraco [43]. Notaremos também, com J.Barnes [44], que “hipótese” e “postulado” são aqui termos relativos: quando uma proposição é demonstrável e o mestre a assume sem demonstração, se o aluno a admite, então o mestre a supõe e é uma hipótese relativamente a este aluno; se ele a recusa, então o mestre a “demanda” (ou a “postula”) e é um “postulado”. Mas, de qualquer maneira, o sentido é muito diferente em Euclides, cujos cinco Postulados compreendem três “demandas” de construção e duas “demandas” de propriedades, sem nenhuma referência à relação a um aluno, ou a uma contestação possível [45].
As linhas seguintes do texto apresentam uma nova dificuldade. O “postulado” é distinguido da “hipótese” da seguinte maneira: “o postulado é o que é contrário à opinião do aluno, ou o que é demonstrável mas posto e utilizado sem demonstração” (76 b 32-34). Notemos que o texto dos manuscritos propõe aqui duas definições recapitulativas do postulado, embora vários editores, querendo ver aí apenas uma única definição, suprimam o “ou” (ἣ) [46] e tentam conciliar as duas formulações. E. Heath, no entanto, em sua edição dos Elementos de Euclides, cita Aristóteles no texto dos manuscritos [47], o que lhe permite notar que a segunda definição concorda com a prática de Euclides, e mesmo com a de Arquimedes no Do equilíbrio dos fluídos. Sem dúvida, mas isso, na melhor das hipóteses, só valeria para os postulados 4 e 5. Além disso, que fazer então da primeira definição? E por que as duas definições não têm nada a ver entre si? Tudo se passa como se a primeira definição fosse feita do ponto de vista didático, da relação ao aluno (como a “hipótese” no capítulo 2), e como se a segunda se referisse à operação dedutiva, em conformidade com o ponto de vista adotado no capítulo 7.
Após isso, Aristóteles considera o problema dos termos (ὃροι) e ele os distingue das “hipóteses”. “Estes não dizem nada da existência ou da não-existência...; os termos apenas exigem ser compreendidos (xuniesqai), ao contrário da hipótese (pois nem tudo o que entendemos é uma hipótese)” (76 b 35-37)... “As hipóteses são tais que, quando elas foram postas, algo de distinto delas resulta pelo simples fato de elas terem sido postas” (76 b 38). Se consideramos que horoi (termos) é aqui equivalente a “definição”, o que parece legítimo, estaríamos aí diante de uma nova descrição da “definição”, feita, ao contrário do capítulo 2, mas como em certas passagens do capítulo 1, do ponto de vista do aluno, quer dizer, da compreensão dos termos (pede-se ao aluno apenas que “compreenda” os termos [48] utilizados [49]) e não do ponto de vista do mestre, quer dizer, do estabelecimento das definições (o mestre põe o que os termos significam, sua determinação, horismos). Aqui, como na distinção entre “hipótese” e “postulado” que acaba de ser feita, a “definição” é considerada principalmente do ponto de vista do aprendiz.
A última surpresa do texto é a (ou as) nova (novas) definição (definições) que ele propõe do conceito de “hipótese”. Ela parece realmente ser tomada aqui no sentido muito geral de “premissa” – e não no sentido bastante estreito que foi até agora o seu nos Segundos Analíticos. Com efeito, em toda parte, na sua teoria da dedução silogística, Aristóteles define as “premissas de uma dedução” como aquelas proposições “tais que, quando elas foram postas, algo de distinto delas resulta pelo simples fato de que elas foram postas” [50], isto é, as proposições tomadas como pontos de partida de uma demonstração. É possível, na realidade, que nesse texto (76 b 35 – 77 a 3) Aristóteles esteja passando em revista diversos sentidos da palavra “hipótese”, pois, nas linhas seguintes, ela parece ter ainda um outro sentido: “Tampouco deve-se admitir que o geômetra ponha hipóteses falsas...quando ele afirma que a linha traçada é de um pé de comprimento, ou é reta, enquanto ela não é nem de um pé de comprimento nem reta. De fato, o geômetra não tira nenhuma conclusão do que é a linha particular de que ele fala, mas apenas do que as figuras revelam” (76 b 39-77 a 3) [51]: esta caracterização da “hipótese” a aproximaria da “ectese” euclidiana [52], esta etapa da demonstração na qual nos apoiamos sobre uma figura para instanciar, sobre um exemplo particular, os dados de um teorema (ou de um problema) que deverá no entanto ser demonstrado (ou resolvido) em termos universais. Mas Aristóteles parece de fato voltar, bem no final do capítulo, a essa outra hipótese, correlativa do postulado, que ele acaba de introduzir no capítulo, isto é, ao sentido de proposição demonstrável mas, no entanto, posta pelo mestre sem demonstração; com efeito, ele nota (em 77 a 3): “além disso, toda hipótese, como todo postulado, é ou universal ou particular, enquanto os termos não são nem uma coisa nem outra”; o que mostra que a “hipótese” e/ou o “postulado” são dois tipos de premissas, de forma proposicional, ao contrário das “definições”, e que elas são assumidas sem demonstração para poder levar a termo tal demonstração particular. Estamos longe, em todo caso, da “hipótese” dos capítulos 1 a 7, indemonstrável, definitória do gênero, e cuja existência deve necessariamente ser assumida a priori para que uma ciência seja possível.
Concluamos essa revisão das diferentes concepções do princípio nos Segundos Analíticos pondo em relevo os diferentes problemas que elas formulam:
A noção de “tese” (ausente em Euclides e, ao que parece, própria a Aristóteles), reagrupando “hipótese” e “definição”, aparece no capítulo 2 e não no capítulo 10.
A noção de “postulado” (presente em Euclides, mas em um sentido diferente, ou em um sentido compatível apenas com uma das definições de Aristóteles) aparece no capítulo 10, e não aparece no capítulo 2.
Há várias maneiras de definir os principais conceitos. “Axioma” é definido no capítulo 2 como sendo “indispensável a quem quer aprender algo, seja o que for”, no capítulo 10 primeiramente pela idéia de comunidade entre as ciências e depois pela idéia de necessidade ao mesmo tempo objetiva e subjetiva. “Definição” é definido alternativamente como sendo o resultado do trabalho de estabelecimento e de determinação de um objeto ou como sendo o que só precisa ser compreendido. “Postulado” é definido na mesma fórmula como “o que é contrário à opinião do aluno, ou o que é demonstrável mas posto e utilizado sem demonstração”.
Enfim, há, para a “hipótese”, duas definições contraditórias. No capítulo 2, é um princípio indemonstrável, não indispensável (porque “genérico”, segundo o capítulo 7) com assunção de existência – e reencontramos implicitamente esta definição em duas das passagens do capítulo 10. Mas, na última das passagens, a “hipótese” é definida como o que é “demonstrável” mas posto pelo mestre sem demonstração – supondo que não haja uma ou várias outras definições de “hipótese”, no sentido geral de premissa de uma dedução qualquer ou no sentido “de instanciação dos dados”. Às dificuldades de harmonizar o sistema dos princípios de Aristóteles com o de Euclides se acrescentariam, portanto, as dificuldades de harmonizar o de Aristóteles consigo mesmo.
A menos... que elas não se eliminem! – e que estas expliquem em parte aquelas. Com efeito, já que, quando remontamos de Euclides a Aristóteles, encontramos nos Segundos Analíticos, de um lado, uma teoria inteiramente compatível com a prática de Euclides e, de outro, um sistema coerente, e que as dificuldades começam quando fazemos a operação inversa, de Aristóteles em direção a Euclides, temos o direito de supor que não há nos Segundos Analíticos um sistema de classificação dos princípios, mas dois, perfeitamente coerentes mas incompatíveis entre si. O segundo (cronologicamente) seria aquele que deveria ser utilizado pelos matemáticos e que reencontraremos, portanto, no texto de Euclides. O primeiro, mais antigo, seria aquele que estava em uso anteriormente, talvez, por exemplo, nos meios acadêmicos. E já que descobrimos, lendo os Segundos Analíticos, que Aristóteles concebia a ciência ora do ponto de vista do aprendizado, ora do ponto de vista do conhecimento, podemos supor que estes dois pontos de vista correspondem respectivamente a duas concepções do sistema de princípios. Em suma, nós nos propomos a resolver as dificuldades precedentes através da hipótese segundo a qual a “axiomática” antiga não foi, inicialmente, um saber, quer dizer, um corpo organizado de conhecimentos, mas a formalização dos procedimentos do discurso que deve empregar o professor ideal (sabendo tudo) para transmitir racionalmente (quer dizer, sem a ajuda do argumento de autoridade ou do apelo à experiência) todo o seu saber a um aluno ideal (ignorando tudo) [53]. É apenas progressivamente que se teria constituído historicamente um sistema dedutivo “axiomatizado” culminando nos Elementos de Euclides, onde os antigos procedimentos dialógicos e didáticos são “fossilizados” em um discurso puramente gnoseológico (ou “objetivo”). O sistema dos princípios apresentado nos Segundos Analíticos seria assim um sistema instável, intermediário histórico entre duas concepções: na primeira, “didática”, em vias de ser ultrapassada, os princípios são considerados dialogicamente como os conhecimentos mínimos pré-exigidos por um aluno para aprender a integralidade do saber de um professor; na segunda, “gnoseológica”, em vias de ser constituída, os princípios são considerados objetivamente como os conhecimentos a priori necessários e suficientes para edificar o conjunto de um saber. Descrevamos sucessivamente estes dois sistemas.
OS DOIS SISTEMAS DE PRINCÍPIOS
a/ Os princípios da ciência como sistema de conhecimentos
Consideremos, em primeiro lugar, a ciência como um sistema de conhecimentos e, consequentemente, seus princípios como as proposições primitivas de uma “axiomática”. Esse é o ponto de vista sobre a exposição aristotélica dos princípios geralmente adotado pelos historiadores das matemáticas [54]. Estes privilegiam, então, pelo menos implicitamente, a dimensão “objetiva” da ciência antiga (quer dizer, a relação do discurso científico com seus objetos) em detrimento de sua dimensão “interlocutiva” (quer dizer, o discurso científico como relação dialógica entre um professor e um aluno). Esse é, com efeito, o ponto de vista que, como vimos, Aristóteles adota no capítulo 7 e nas três primeiras partes do capítulo 10 (76 a 31 – b 22).
Se uma ciência é um corpo de conhecimentos, sua relação aos objetos conhecidos pode ser, com efeito, encarada seja de uma maneira “extensional” (segundo a oposição do próprio e do comum), seja de uma maneira “intensional”, na qual se pode distinguir o ponto de vista semântico (o da significação dos termos) e o ponto de vista “ontológico” (o da existência dos objetos). Por outro lado, é preciso distinguir, tanto na ordem semântica quanto na ordem ontológica, entre o que é posto no começo e o que é “derivado”, graças à dedução, para os objetos e suas propriedades e, graças à definição, para os termos.
Tem-se, então, o seguinte esquema, que se pode chamar de sistema objetivo dos princípios (ponto de vista gnoseológico) [55]:
Todo conhecimento (de objetos) supõe pré-conhecimentos (ou “elementos”) que se dividem em:
1) Axiomas, princípios comuns [56], que põem as propriedades indemonstráveis necessárias à demonstração de todas as outras (ver 76 a 38 – b 2 e 75 b 2).
2) Teses, princípios indemonstráveis próprios, dentre os quais se pode distinguir
2a) as definições, que põem as significações de termos, mas não a existência de objetos (ver 76 a 32 e também 72 a 21-23),
2b) as hipóteses, que põem a existência dos objetos indemonstráveis (ver 76 a 33-36 e também 72 a 23-24).
É aproximadamente esse sistema de princípios – sua natureza, sua função, as relações entre eles – que vai se impor nas práticas científicas ulteriores e notadamente nos Elementos de Euclides (se se retém o valor “hipotético” no sentido aristotélico que aqui têm os três primeiros postulados, como se sugeriu mais acima).
b/ Os princípios da ciência como sistema didático
Mas a ciência não é somente um sistema de conhecimentos, ela é também um certo tipo de prática discursiva. Como diz Aristóteles, “o discurso da ciência é o do ensino” (Ret. I, 1, 1355 a 25). É porque se pode também considerar os princípios da ciência – e é igualmente o que faz Aristóteles (notadamente nos capítulos 1 e 2 e na última parte do capítulo 10 dos Segundos Analíticos) – segundo sua dimensão interlocutiva, como os enunciados do mestre que explicita o saber mínimo que ele deve necessariamente imputar de início a um aluno que ainda nada aprendeu para que o aprendizado seja possível. É o ponto de vista que Aristóteles recolhe, sem dúvida a partir de práticas discursivas correntes em sua época, por exemplo na Academia. É-se, então, levado a definir de uma maneira totalmente distinta os princípios que acabamos de distinguir “objetivamente”, assim como a distinguir novos princípios.
Consideremos primeiramente a distinção entre teses e axiomas. “Objetivamente” eles se diferenciam de um ponto de vista extensional: as teses são próprias a um domínio de objetos, os axiomas são comuns a várias ciências. Mas, “interlocutivamente”, a diferenciação é diversa. Uma “tese” é um princípio que “não é demonstrável mas que não é necessário que se possua para aprender alguma coisa” (An. Post. I, 2, 72 a 16). Dito de outro modo, a tese é, como seu nome indica (qesi~, de tiqenai, pôr), posta pelo mestre, enquanto que o axioma é definido como “aquilo que é necessário para aprender o que quer que seja” (ibid. I, 2, 72 a 17). Dito de outro modo, é definido como aquilo que já é necessariamente possuído pelo aluno antes de todo discurso do professor a fim de que o primeiro possa aprender alguma coisa do último: é preciso que o aluno possua um saber (mínimo e comum a todas as coisas) para poder adquirir qualquer conhecimento tirado de uma ciência particular. Por isso a ambiguidade das definições do capítulo 2, que traduz essa hesitação entre dois sistemas: ou o axioma se opõe à tese como o comum ao próprio (ponto de vista extensional do sistema objetivo) ou ele se opõe à tese como o posto pelo mestre ao possuído pelo aluno (sistema interlocutivo).
Consideremos os diferentes axiomas. Objetivamente, os axiomas são chamados de “comuns”: eles diferenciam-se segundo a extensão do domínio científico que eles governam quer eles sejam transgenéricos (como os princípios de contradição ou do terceiro excluído) ou genéricos [57], como os axiomas da quantidade. Interlocutivamente, a diferença é outra. Com efeito, segundo a primeira frase dos Segundos Analíticos, “todo ensinamento e toda aprendizagem racional (dianohtikh) supõem conhecimentos pré-existentes”. Como a palavra “tese” se refere à prática do mestre que põe inicialmente sem demonstrar o que ele poderia demonstrar, a palavra “axioma” se refere à prática do mestre que formula proposições indemonstráveis mas às quais o aluno não pode recusar seu assentimento (ἀξίωμα de ἀξιόω, “julgar corretamente”) [58]. O axioma é definido em geral de uma maneira conforme ao que a palavra indica: “aquilo cuja posse é necessária àquele que quer aprender algo (ti)” (An. post. I, 2, 72 a 16), ou mesmo “o que quer que seja (ὀτιοῦν)” (72 a 17). Essa definição geral do axioma pelo saber do qual dispõe o aluno antes de toda aprendizagem implica evidentemente que seu conteúdo depende do que o aluno quer aprender. Para “aprender” em geral, isto é, para adquirir racionalmente um saber (sem nenhuma prova exterior ao discurso nem apelo à autoridade de um mestre), é preciso poder demonstrar – e é, então, necessário admitir os princípios de contradição e do terceiro excluído, que são os princípios da ciência do ser enquanto ser. Assim, o axioma mais extensivo, o princípio de contradição, é definido na Metafísica como “um princípio cuja posse é necessária àquele que quer apreender não importa qual dos entes” (Γ 3, 1005 b 15 [59]). Para aprender tal ciência - as matemáticas, por exemplo – é necessário, em acréscimo, conhecer os axiomas da quantidade. O aluno poderá a partir daí abordar não importa qual ramo das matemáticas sem precisar admitir, em acréscimo, a verdade desses axiomas no caso particular dos números ou das grandezas.
Consideremos agora a distinção “hipótese”/”definição”. Viu-se qual é a sua diferença “objetiva”; é aquela que distingue o ponto de vista semântico do ponto de vista ontológico: “uma tese que assume uma das duas partes de uma contradição (quero dizer, por exemplo, que uma coisa é ou não é), eu a chamo de uma hipótese; senão [isto é, sem a posição de existência] é uma definição” (An. post. I, 2, 76 a 19-21). Mas a diferença “interlocutiva” é bem diversa. Do ponto de vista do “ouvinte”, com efeito, as definições “requerem somente ser compreendidas; esse não é o caso das hipóteses – a menos que se pretenda que o simples fato de ouvir (akouein) constitua uma hipótese” (An. post. I, 10, 76 b 35-37 [60]). Em face da definição espera-se, então, do aluno apenas uma atitude: a da escuta (akouein) e, por conseqüência, a compreensão da língua na qual se fala com ele. Ao contrário, em face do axioma, que é uma asserção do professor, este espera uma atitude que engaje sua “faculdade de julgar”: o aluno deve necessariamente julgar verdadeiro (dokeîn, 76 b 24) o que lhe é afirmado – e não somente em palavras, aprovando o discurso exterior que lhe dirige o professor, mas realmente, aprovando o discurso interior que se dirige a si mesmo em sua alma (76 b 26-27) [61].
O fato de que “a ciência” (a episteme) seja dirigida a um aluno que dispõe de uma “faculdade de julgar” (doxa) permite aliás introduzir uma nova distinção entre os princípios que a análise “objetiva” não permitia: dessa vez entre “hipóteses” ( = suposições) e “postulados” ( = demandas). “Aquilo que, sendo demonstrável, é posto pelo professor sem demonstração, se ele o faz em conformidade com a opinião do aluno (dokoûnta), é uma hipótese – uma hipótese relativamente ao aluno. Se, ao contrário, essa mesma assunção é feita quando o aluno não tem nenhuma opinião sobre a questão ou tem uma opinião contrária, é um postulado. Tal é a diferença entre hipótese e postulado: este é contrário à opinião do aluno e, ainda que demonstrável, é posto e utilizado pelo mestre sem demonstração” (76 b 27-34). Toda contradição dessa passagem com o resto dos Segundos Analíticos desaparece se ela se lê à luz de uma outra concepção da “ciência”. Em uma “ciência” como sistema “axiomatizado”, uma hipótese é uma afirmação de existência do objeto próprio a uma ciência. Essa hipótese é indemonstrável, mas legítima na medida em que ela determina o objeto a estudar e está, portanto, no fundamento (outro sentido de hypothesis) mesmo do sistema. Em um sistema ideal de transmissão dos conhecimentos, uma “hipótese” é uma afirmação feita pelo mestre acerca de alguma coisa que ele (que idealmente sabe tudo) já sabe (e é, então, nesse sentido, demonstrável), mas que não faz ainda parte do saber de seu aluno e que ele deve, então, “supor”. Compreende-se por que a distinção entre “hipóteses” e “postulados” não podia ser feita do ponto de vista “objetivo”. A mesma proposição é, segundo as situações interlocutivas, hipotética ou postulada. Quando o mestre enuncia sem demonstração que P (que, entretanto, é demonstrável), ele formula indistintamente uma hipótese ou um postulado; unicamente a atitude do aluno determina que essa mesma assunção (to auto, 76 b 31) é posta hipoteticamente (se ele a aprova) ou postulada (se ele a desaprova).
Assim considerados interlocutivamente, os princípios não decorrem de uma “teoria transcendental do conhecimento”, mas de uma “teoria transcendental da aprendizagem”. A questão não é: o que é preciso conhecer (a priori) para daí poder deduzir o conjunto dos conhecimentos verdadeiros?; mas sim: o que é preciso saber (a priori) para poder aprender alguma coisa? Daí a “axiomática da aprendizagem”: para que o aluno aprenda, é preciso, de um lado, que ele compreenda (definições), de outro lado, que ele julgue verdadeiras (teses), e, dentre estas, há aquelas que ele deve necessariamente julgar verdadeiras – os axiomas – e aquelas que ele pode julgar verdadeiras ou não: se sim, são hipóteses, se não, são postulados.
Vejamos de mais perto esses quatro tipos de pré-requisitos do aluno correspondendo, então, a três faculdades do interlocutor no diálogo. Para poder lhe ensinar alguma coisa, o mestre espera do aluno que ele exerça sua aptidão a compreender e sua aptidão a julgar. A “compreensão” é aquela que é requerida de todo homem em geral – e não somente de um aluno. É essa aptidão humana face à linguagem que, por exemplo, distingue o homem do vegetal (Metaf. Γ, 3, 1006 a 15) ou ainda aquele que fala grego do bárbaro [62]. É porque se pode imputar a todo homem essa capacidade de compreender o sentido das palavras que se pode refutar aquele que pretenderia negar o princípio de contradição – e, desse ponto de vista, esse axioma se diferencia dos outros: basta que o adversário fale, ou ao menos que fale a mesma língua que nós, para admitir que “as palavras têm um sentido determinado e único” (Metaf. Γ, 3, 1006 a 29-30 e b 16-18) sem o que “não haveria mais diálogo nem de uns com os outros nem mesmo consigo mesmo” (ibid. 1006 b 8-9). É também a primeira faculdade necessária ao aluno: é preciso que ele compreenda as palavras do professor, por exemplo “reto”, “quadrado”, “unidade”, “número”. Dessa compreensão o mestre deve aliás assegurar-se “definindo”, isto é, enunciando esse sentido “determinado e único” no qual ele empregará essas palavras ao longo de seu ensino e que será, assim, o mesmo para ele e para o aluno.
Por outro lado, para que o aluno possa aprender “racionalmente” algo, é preciso que ele possa “julgar verdadeiro” o que lhe afirmam, discriminar o verdadeiro do falso. Essa exigência, ao contrário da precedente, não remete ao uso geral da linguagem (do diálogo), mas somente a seu uso “assertivo” (a afirmação e a negação), e ela é requerida da parte dos dois interlocutores: tanto aquele que afirma algo quanto aquele a quem se afirma devem estar convencidos. O professor funda seus raciocínios sobre premissas verdadeiras e reconhecidas como tais por seu interlocutor. Tal é o próprio, com efeito, dos argumentos didáticos: há, com efeito, “quatro gêneros de argumentos na prática do diálogo: os argumentos didáticos, dialéticos, críticos e erísticos. São didáticos os argumentos que concluem a partir dos princípios próprios a cada disciplina, e não das opiniões daquele que responde, pois é necessário que o aluno esteja convencido (πιστεύειν)” (Soph. El. 2, 165 b 4). Assim considerada, a demonstração científica distingue-se das outras formas de prática dialógica pela convicção (πίστις) daquele a quem o discurso é dirigido; convicção essa sem a qual os raciocínios científicos estariam condenados à contingência das argumentações dialéticas. E essa adesão confiante do aluno ao saber, é preciso e suficiente que ela se manifeste face aos princípios, a partir dos quais ela se transmite a tudo o que o aluno aprende e que deles depende.
Essa convicção pode ser necessária ou contingente. Ela é necessária no caso do saber (episteme) pois aquilo que se sabe sabe-se como necessariamente verdadeiro, não se pode nem negá-lo nem dele duvidar [63]; ela é contingente no caso da opinião [64]. Para poder ensinar algo ao aluno é preciso, de um lado, que ele saiba certas coisas (os axiomas), isto é, que ele admita necessariamente sua verdade sem poder duvidar deles: aquele que nada sabe nada pode aprender. E justamente, isso que o aluno deve necessariamente saber inicialmente é o que lhe é impossível ignorar e, ao mesmo tempo, aquilo cuja verdade é inegável, por exemplo, o fato de que “se de coisas iguais se subtraem coisas iguais, os restos são iguais”. A convicção do aluno pode também ser contingente. É aquela que se obtém dele como de qualquer um a quem se peça sua opinião. É aquela a que se faz apelo na prática ordinária da dialética – ou mesmo na retórica – quando se espera do interlocutor que ele aquiesça à questão que se põe a ele, ou que ele aprove o que se lhe afirma, que ele tenha nisso a “fé” que ele poderia muito bem recusar. Em seu “regime normal”, a episteme não deve recorrer a essas convicções contingentes e o mestre tem de fazer apelo às opiniões de seu aluno, pois o saber (episteme) é necessariamente verdadeiro, sem o que não seria um saber. A episteme deve, então, partir do que já é sabido e dele deduzir algo de sabido: tudo o que o professor põe como verdadeiro, ele o demonstra a partir do que já é sabido. A regra geral da transmissão epistêmica é a seguinte: não admitir jamais como verdadeiro senão o que o outro a quem se está dirigindo já reconhece como verdadeiro. Assim, demonstrar uma proposição é fazer o aluno reconhecer, a partir das únicas proposições que ele já sabe – e, notadamente, dos “princípios”, que ele já sabe “desde sempre” -, a verdade de uma proposição ainda ignorada. Mas pode acontecer circunstancialmente, acidentalmente, que um professor precise demonstrar algo a um aluno a partir de um princípio que não pertence – ou ainda não pertence – ao saber do aluno, ainda que pertença ao saber do professor. Na medida em que ele pertence ao saber do professor, esse princípio é de direito demonstrável, mas na medida em que o professor se serve dele como princípio sem querer ou sem poder demonstrá-lo ao aluno (isto é, fazer-lhe reconhecer a verdade a partir das únicas verdades que ele possui) ele permanece não demonstrado para o aluno. O professor pede ao aluno que dê sua concordância: esse princípio é “suposto” (hipótese) ou “pedido” (postulado). Esse procedimento altera apenas de maneira acidental a regra geral da transmissão epistêmica; e ele é legítimo, uma vez que se trata de enunciados demonstráveis, ou seja, que pertencem ao corpo daqueles que poderiam ser deduzidos de enunciados anteriores. O mestre, que sabe que esse enunciado é verdadeiro, o põe, então, a princípio, como verdadeiro para o aluno – que não sabe que ele é verdadeiro – a fim de que ele o aceite. Se ele o aceita, esse princípio é uma hipótese, relativamente ao aluno; se ele não o aceita, é um postulado, também relativamente ao aluno. De fato, do ponto de vista do aluno, a diferença é importante, já que o enunciado demonstrado o terá sido, no primeiro caso, a partir somente de enunciados que ele próprio terá reconhecido como verdadeiros, enquanto que no outro caso o mestre terá recorrido a um princípio (o postulado) do qual ele não admitiu a verdade. Mas de direito isso não muda nada, pois a opinião do aluno não deve jamais ser levada em conta na construção de seu próprio saber.
Tem-se, então, desta vez o quadro seguinte que se pode chamar de sistema “interlocutivo” dos princípios, que abraça o “ponto de vista didático” sobre a axiomática:
Para poder aprender algo é preciso:
1) compreender os termos (oroi). É preciso, então, entender-se sobre – e por meio de – “definições” (ver 71 a 13, e também 76 b 37)
2) e, por outro lado, julgar verdadeiras proposições iniciais (dokein):
e dentre essas há, de um lado,
2a) aquelas das quais a convicção (pistis) é necessária: sabemo-las necessariamente – são os “axiomas” (ver 76 b 23-27, assim como 72 a 16-17) (O professor diz ao aluno: “Uma vez que você sabe que P”).
2b) aquelas das quais a convicção é contingente (doxa) e é, então, “demandada” pelo professor (ele interroga o aluno: “você aceita que P?”)
2b1) são hipóteses se o aluno concorda com elas (76 b 27-30)
2b2) são postulados se ele se recusa a dar seu acordo ao professor (76 b 30-33).
Esse quadro dá conta dos diferentes princípios nos Segundos Analíticos de uma maneira completamente independente do quadro anterior. O sistema é tão coerente quanto o precedente, mas ele decorre de uma perspectiva distinta e chega a definições diferentes das definições e dos axiomas, a uma definição de hipótese incompatível com a precedente e a um princípio inexistente no quadro precedente (o postulado). Assim, o conjunto das dificuldades textuais que levantamos pode ser resolvido.
Nesse quadro há também virtualmente, observemo-lo de passagem, diferentes concepções do “método geométrico”. Um sistema de aprendizagem do saber que reconheceria somente princípios do tipo 1 assemelhar-se-ia muito à “idéia de um método ainda mais eminente e perfeito [que o da geometria] mas onde os homens jamais conseguiriam chegar” e que “consistiria em duas coisas principais: a primeira, em não empregar nenhum termo do qual não se tivesse explicado anteriormente o sentido; a outra, em não avançar jamais nenhuma proposição que não se tivesse demonstrado por meio de verdades já conhecidas” (Pascal, Do espírito geométrico, seção I). Um sistema que reconhecesse somente os princípios 1 e 2a seria o sistema ideal que visa a axiomática antiga, já que aí se respeita a única regra fundamental do sistema de transmissão racional do saber: ensinar somente o que se pode deduzir do que o aluno já sabe. São, portanto, eliminados os princípios 2b, que repousam sobre a doxa, a faculdade própria à retórica e à dialética, da qual a ciência poderia idealmente prescindir. O sistema dos princípios 1, 2a e 2b1 é o sistema que se regularia pela exigência geral de todas as “técnicas dialógicas” (dialética, retórica, apodeixis: admitir por verdadeiro somente aquilo com o qual o interlocutor concorda [65]. O sistema completo é aquele que, de fato, o professor é obrigado a reconhecer, esperando que ele possa demonstrar sem “demandar” nada, isto é, que o fato esteja em acordo com o direito.
Finalmente, pode-se ver nesses dois quadros como as duas perspectivas segundo as quais são considerados os princípios da ciência podem ser postas em correlação com duas perspectivas segundo as quais se pode encarar o logos: seja de modo “objetivo”, seja de modo “interlocutivo”.
“Objetivamente”, os princípios correspondem a três tipos de conhecimentos a priori (definições de termos, axiomas que enunciam propriedades, e hipóteses que põem existências) necessários para construir todo o edifício da ciência. Eles podem ser postos em correlação com três determinações “objetivas” de todo enunciado: o que seus termos significam, a existência daquilo de que se fala – o sujeito – e a propriedade que é dele predicada. Tem-se aí três elementos necessários da linguagem concebida “objetivamente” como uma relação ao mundo.
“Interlocutivamente”, os princípios correspondem a três tipos de disposições pré-requeridas de um aluno em situação de aprender algo do discurso que lhe dirige um professor: poder compreender a língua utilizada pelo mestre (esse assegura-se disso enunciando definições); poder julgar acerca da verdade daquilo que ele em si mesmo reconhece já saber necessariamente e não pode, portanto, negar (os axiomas); poder (se for o caso) julgar acerca da verdade do que pode ser verdadeiro ou falso (opinar) e assim admitir ou recusar certas proposições postas sem demonstração pelo mestre (hipóteses ou postulados). Esses três tipos de disposições correspondem, ao mesmo tempo, a três tipos de faculdades colocadas em jogo nessa troca interlocutiva que é a ciência – isto é, a transmissão do saber – e, portanto, a três exigências do logos como relação interlocutiva. No grau mais baixo, há a compreensão necessária a todo homem para poder falar, e falar a qualquer um de qualquer maneira o que quer que seja (essa faculdade é coextensiva à linguagem); no grau intermediário, há a opinião necessária a todo homem para poder afirmar ou negar e necessária, portanto, a todo ato de asserção qualquer que ele seja; no grau superior, há o saber necessário a certas proposições às quais ninguém pode recusão sua adesão. Tem-se aí três elementos da linguagem concebida “interlocutivamente” como relação entre homens.
DA CIÊNCIA COMO DIDÁTICA IDEAL À CIÊNCIA COMO SISTEMA DE CONHECIMENTOS
As duas faces (objetiva e interlocutiva) da linguagem correspondem, assim, a duas concepções da essência da demonstração e mesmo a duas idéias da ciência que coexistem mais ou menos bem no texto de Aristóteles. Pode-se, primeiramente, conceber a demonstração em termos lógicos – isto é, “monológicos”: demonstrar é inferir, por meio de regras formais, uma proposição nova de um conjunto de proposições anteriores. É nisso que consiste o conhecimento puramente racional. Mas se pode também concebê-lo, em termos “dialógicos”, como um dos modos por meio dos quais os homens se esforçam para compartilhar verdades sem fazer apelo nem à autoridade daquele que fala nem à experiência que eles têm do mundo – concedendo àqueles a quem eles se dirigem o poder de julgar acerca da verdade do que eles lhes dizem. É assim que procede a aprendizagem racional e que o professor deve proceder. Ele deveria partir da “tábula rasa”: com efeito, o aluno ideal não sabe nada. Mas, entretanto, a quem nada sabe não se pode ensinar nada; sabe-se isso desde Menon (80 d – 81 e) – e é daí que Aristóteles parte nos Segundos Analíticos. Acontece que, felizmente (Platão e, depois, Aristóteles esforçam-se para mostrá-lo, cada um à sua maneira: Platão através de sua teoria da reminiscência, Aristóteles por meio de sua teoria dos “princípios” da ciência), mesmo aquele que nada sabe, que nada aprendeu de nada nem de ninguém, dispõe de uma forma de saber anterior a toda aprendizagem e, ao mesmo tempo, necessária – nesse duplo sentido em que ele não pode nem deixar de possuir esse saber nem de aderir a ele. Para Aristóteles, sabendo falar ele pode apreender o sentido das palavras e pode, portanto, compreender o trabalho de determinação definicional efetuada por seu interlocutor. E ademais, há verdade às quais todo homem deve dar necessariamente sua adesão. Deveria, então, bastar, de direito, formular explicitamente esse saber pré-requerido (definições compreendidas e axiomas admitidos) para que seja possível, a partir dele, “demonstrar” tudo, atendo-se sempre e somente ao saber do outro (não importa quão ignorante ele seja). Demonstrar não é “ensinar”, é mesmo exatamente o contrário: não é transmitir nada do próprio saber, não é transmitir ao aluno nada que ele já não saiba; demonstrar é mostrar ao outro o que ele sabe sem saber que o sabe [66]. Cada momento da demonstração recapitula o que já é sabido pelo outro até à conclusão nova; e, de demonstração em demonstração, o aluno “aprende” sem que nada lhe seja ensinado, desde seu estado de ignorância inicial quase absoluta (com exceção unicamente do “pré-saber” dos princípios) até o estado de saber total, isto é, até o ponto onde seu saber seja igual ao do professor. A demonstração não é somente uma certa prática didática; ela é a forma absoluta e ideal de uma transmissão sem ensinamento, a única maneira de compartilhar o saber igualmente entre todos, não supondo neles nada além do poder de compreender e de julgar, as competências universais dos ignorantes.
É provavelmente essa segunda concepção da “demonstração” como operação didática, e mesmo como didática “ideal” que estava em vigência antes de Aristóteles, e notadamente nos meios acadêmicos. Mas foi a concepção “formal” da demonstração que, sem dúvida, se impôs progressivamente, como se vê em Euclides, cujos Elementos permanecem para nós, como para os antigos, um “sistema axiomatizado de conhecimentos” quase perfeito, a realização mais próxima possível de um ideal de racionalidade monológica pura. É assim que se vê neles um corpo de conhecimentos depurados de toda empiricidade, mas também completamente livres do arbitrário ou da opinião contingente e, por conseqüência, de todo traço de um assunto de enunciação particular ou de uma relação interlocutiva determinada. A ciência euclidiana é o exemplo típico do discurso que ninguém diz em lugar nenhum, nunca, a ninguém, do discurso anônimo no presente eterno, o menos “discurso” de todos os discursos. Não restaria, então, em Euclides, nada da origem didática e dialógica da prática demonstrativa, não restaria nada nesse discurso em estilo tão “objetivo” de sua origem “interlocutiva”? Quase nada, ou apenas vestígios, dois resíduos fossilizados da antiga relação professor-aluno: a primeira na demonstração (o “diorismo”), a segunda, nos princípios não demonstrados (“o postulado”).
O que é digno de nota na forma ritualizada da demonstração euclidiana, o que dá uma contribuição importante a seu estilo e sua majestade únicas é, dentre outras coisas, a ausência de toda referência às condições da enunciação (e, portanto, de todo recurso aos “dêiticos”). A universalidade do discurso demonstrativo manifesta-se em uma forma tão impessoal quanto possível. É assim, por exemplo, “que as formas verbais sistematicamente utilizadas nos problemas e nos teoremas para introduzir os elementos da construção estão no presente passivo do imperativo” (em português, por exemplo: “que seja descrito...”, “que sejam unidas...”). “De uma maneira mais geral, acrescenta B. Vitrac, os objetos matemáticos são muito frequentemente os sujeitos dos verbos, o ‘matemático’ anulando-se diante daquilo que ele contempla (ou diante daquilo que ele constrói à ‘imagem’ do que já está lá)” [67]. Essa impessoalidade é reforçada pelo caráter quase mecânico do processo que conduz a cada verdade, as mesmas etapas sendo sempre percorridas segundo uma ordem ritual: proposição – protasis -, exposição – ectese -, determinação – diorismos -, construção – kataskeué -, demonstração – apodeixis -, e conclusão – sumperasma -. Mas, justamente, há nessa mecânica uma exceção significativa, à primeira vista surpreendente, à gramática impessoal do texto. O diorismo, parte da demonstração que, como o diz Proclus, “explica claramente à parte o que é precisamente a coisa buscada” [68], anuncia-se sistematicamente pela fórmula “eu digo que...”. Trata-se, após a instanciação das variáveis efetuada pela ectese, de repetir a proposição a demonstrar que tinha sido formulada ao infinito na prótase, geralmente sob a forma hipotética (“se ... então”). Notemos que a fórmula “eu digo que” (λέγω ὂτι) é muito antiga, uma vez que já a encontramos na prática demonstrativa de Autolycos [69] e que era utilizada por Eudemo [70]. Trata-se aqui seguramente de uma herança residual do “diálogo” entre professor e aluno que se pode conceber mais ou menos da seguinte maneira: o professor enuncia primeiramente (“prótase”) a proposição a demonstrar (ou o problema a resolver) pelo aluno ao qual ele se dirige. Depois, ele desenha a figura correspondente e se apóia sobre ela para instanciar, na “exposição”, todas as variáveis do teorema, “deixando falar” a figura – o que explica a forma passiva da expressão [71]. Depois vem o “diorismo”, onde a proposição inicial é retomada mas particularizada graças às instanciações que acabam de ser efetuadas: por exemplo, “Eu digo que BD está em alinhamento com CD” (I, 14). “Eu, parece dizer esse sujeito anônimo e sem voz, eu sustento, por já o saber, que ...”: nessa enunciação escuta-se o eco da antiga voz do professor. Compreende-se, com efeito, por que esse é o momento, o único, onde o professor toma a palavra em seu próprio nome (“eu digo que”): é, com efeito, o único momento da demonstração [72] onde é dita uma verdade que não se impõe por si mesma e que, portanto, não poderia ser dita, ao menos não poderia ser dita como verdade, por aquele a quem ela é dirigida. O professor, nesse momento da demonstração, sabe que “BD está em alinhamento com CD” e é o único a já poder sabê-lo. Ele o anuncia então, e o anuncia como uma dimensão de seu próprio saber – em contradição aparente com a regra fundamental do discurso demonstrativo, que quer que não se afirme nunca nada que o outro já não saiba ou reconheça. A seqüência (construção, demonstração, conclusão) poderá fazer-se de novo na forma impessoal, uma vez que mais nada é dito que não se imponha por si mesmo a qualquer um. Pode-se, aliás, supor que o momento da apodeixis propriamente dita se fazia inicialmente sob uma forma realmente dialogada: “não é verdadeiro que P?”, quando o professor faz apelo a proposições cuja verdade se impõe (“axiomas”); “você não admite já que P?”, quando se trata de fazer apelo a teoremas anteriormente demonstrados; “você admite ou não que P?”, quando o professor deve fazer apelo a proposições não ainda demonstradas (hipóteses ou postulados, de acordo com a resposta do aluno). E, nos três casos, o professor pode dizer, de cada proposição necessária à demonstração: “que P seja então posto” – fórmula na forma passiva impessoal que reterão os manuais matemáticos e, em particular, os Elementos. Da mesma maneira, os manuais reterão a volta, na conclusão, à formulação geral da proposição (isto é, à forma que ela tinha na “protase” antes de toda instanciação), que mostra que é propriamente ela, e não um caso particular, que foi demonstrado. Eles reterão também a fórmula canônica pela qual o professor exibia essa volta (“o que era preciso mostrar” – no caso das proposições – “o que era preciso fazer” – no caso dos problemas), que pontuava, ao mesmo tempo, sua própria “exibição” e o fato que o que ele anunciava estava bem ao alcance do saber ou do savoir-faire do aluno.
O segundo traço, em Euclides, da antiga relação dialógica encontra-se nos “princípios” e singularmente na noção de “postulado”. Recorde-se que o texto de Aristóteles, mesmo se ele propõe finalmente duas definições desse termo (“o que é contrário à opinião do aluno, ou o que é demonstrável mas posto e utilizado sem demonstração”, 76 b 32-34), explicita apenas o primeiro sentido, que se refere sem dúvida à prática antiga do professor “demandando” que o aluno lhe conceda aquilo que é requerido para as necessidades da demonstração. Parece, portanto, a priori incongruente que Euclides recorra a esse termo e a essa prática no começo de um “manual”; e parece enigmático que ele coloque aí precisamente essas cinco proposições. Pode-se tentar explicar as coisas da seguinte maneira. Ao mesmo tempo em que ele tenta assentar o conjunto das matemáticas sobre seus elementos primeiros, e a demonstração sobre regras puramente lógicas, sem apelo à “evidência sensível”, Euclides tenta também eliminar todo traço de contingência enunciativa ou de arbitrário dos interlocutores. De direito, ele não deveria, portanto, ter nada a “exigir” de seu destinatário; ele não deveria, portanto, ter “demandas” nos Elementos, e tudo deveria poder idealmente ser referido a definições (de termos) ou a noções comuns da quantidade (concernindo às relações como a de igualdade, por exemplo). Segundo o programa epistemológico aristotélico, o único princípio legítimo suplementar deveria concernir ao gênero (por exemplo, em geometria, a grandeza), que deveria ser necessário e suficiente pressupor para que daí se possa deduzir a existência e as propriedades de todos os seres (geométricos). Pode-se conceber que todo o trabalho dos matemáticos à busca dos“elementos”, até Euclides inclusive, consistiu, assim, em tentar referir todas as existências geométricas a um mínimo de objetos simples a partir dos quais todos os outros pudessem ser demonstrados por construção, da mesma maneira que eles se esforçam por referir todas as propriedades a um mínimo de propriedades gerais indemonstráveis (as “noções comuns” a todas as quantidades). É exatamente o que se vê em Euclides, que chegou a reduzir todas as figuras a duas figuras simples, a reta e o círculo. Essas são, portanto, as duas únicas existências que lhe restam para “supor”, no sentido que Aristóteles dava a esse termo quando ele falava do que era preciso, ao mesmo tempo, pôr em sua existência e em sua essência (a hipótese): não exatamente o gênero da figura plana, mas duas figuras particulares fáceis de construir [73]. Mas, ao lado dessas existências nem demonstradas nem demonstráveis, há um outro “resíduo” indemonstrado e ele concerne a propriedades. Restam, com efeito, duas proposições propriamente geométricas e que, entretanto, não são demonstradas, ainda que sendo necessárias às demonstrações das outras: a proposição da igualdade dos ângulos retos e a “das paralelas”. Estas devem, portanto, ser “demandadas”, à maneira dos antigos “postulados” postos pelo professor quando ele prescindia do acordo do aluno. Os matemáticos em torno de Euclides encontram-se, então, face a dois tipos de proposições indemonstráveis que não são noções comuns, e concernem a existências e a propriedades. Colocando todas sob a mesma forma impessoal e sob o mesmo modo de “demandas” (hthsqw, “que seja ‘demandado’ ”, sucessivamente três autorizações de construção para a reta e o círculo e duas admissões de propriedades), Euclides mostra por esse meio seus pontos comuns de proposições propriamente geométricas não ainda demonstradas e que é preciso, entretanto, pôr em princípio; é claro, por outro lado, que as três “demandas” de construção serão facilmente acordadas (conforme as antigas hipóteses, nos dois sentidos do termo [74]) e que as “demandas” de propriedades, qualquer que seja sua “evidência sensível”, poderão ser recusadas [75]. Mas essa disparidade pode parecer secundária em relação aos pontos comuns. Além disso, essa diferença de assentimento que recebem as cinco “demandas” de Euclides não faz mais que retomar a antiga distinção, perfeitamente contingente, entre as “demandas” que acontece serem aceitas pelo aluno (hipóteses) e aquelas que são recusadas (postulados). Compreende-se, então, como esse grupo, matematicamente heterogêneo mas homogêneo em relação à nova idéia de demonstração, pôde ser reagrupado por Euclides em um mesmo conjunto e sob o nome comum de “postulados”, um nome que havia perdido seu sentido propriamente “dialógico”, mas que evocava a mesma situação objetiva no trabalho do matemático. Ele retomava desse modo o segundo sentido da palavra ao qual faz alusão Aristóteles (“aquilo que é demonstrável, mas é posto e utilizado sem demonstração”, 76 b 33-34), – o que contribuiria para provar que este é sem dúvida, ainda nesse ponto, contemporâneo da passagem do sentido didático ao sentido gnoseológico da palavra “postulado”, e, em termos mais gerais, testemunha da passagem de uma concepção dialógica a uma concepção monológica da demonstração.
Entre o Platão do Menon e o Euclides dos Elementos, o Aristóteles dos Segundos Analíticos oferece como que um elo que faltava. Mas a ponte que ele lança de uma margem à outra da ciência demonstrativa, da ciência como aprendizagem à ciência como conhecimento, está em equilíbrio instável. Eis por que duas lógicas independentes permitem dar conta do sistema de princípios nos Segundos Analíticos. Essa dualidade revela sem dúvida algo da doutrina aristotélica da ciência: para Aristóteles, a episteme é, ao mesmo tempo, um sistema de conhecimentos e uma formalização dos procedimentos de transmissão discursiva, da mesma maneira que o discurso é, para ele, analisável tanto segundo sua dimensão “objetiva” quanto segundo sua dimensão “interlocutiva”. Mas essa dualidade exprime sem dúvida também uma verdade histórica: Aristóteles é testemunha de duas épocas e, ao mesmo tempo, o condutor da antiga episteme à nova. A montante, na Academia ou nos meios científicos da época de Platão, a questão dos princípios da episteme é a do pré-requisito mínimo necessário e suficiente para a aprendizagem racional total. A jusante e notadamente nos meios matemáticos nos quais nasceram os Elementos, a questão dos princípios da episteme é a dos pré-conhecimentos necessários e suficientes ao edifício do saber racional total. Poder aprender tudo a partir de nada, ou quase, poder conhecer tudo a partir de nada, ou quase, é precisamente, nos dois casos, aprender ou conhecer racionalmente, isto é, por si mesmo: nos dois casos, a racionalidade epistêmica é a recusa do mestre e da empiricidade, nos dois casos o “si mesmo” é um sujeito universalmente substituível. Entretanto, o “sujeito” do conhecimento não é mais inteiramente aquele da aprendizagem, pois a racionalidade dialógica que fundamenta esta não é ainda a racionalidade monológica que determina aquela: aprender sem mestre é dialogar com um professor qualquer; conhecer por si mesmo é inferir segundo regras universais. No tempo de Aristóteles essas duas questões misturam-se. Isso obscurece talvez sua “doutrina” – tal qual O. Porchat a reconstituiu magnificamente. Mas isso contribui talvez para esclarecer a história da constituição da ciência.
RESUMO
O notável comentário de Pochat prova que a definição aristotélica de ciência é consistente, sistemática e construída gradativamente e que a ciência aristotélica é um sistema consistente e ordenado que supõe um modelo matemático. No texto a seguir, quero somente sugerir alguns desenvolvimentos às idéias centrais de Porchat. Por que a ciência aristotélica e, em geral, a ciência grega buscaram sua realização na forma axiomática? Tento responder a esta questão confrontando o programa epistemológico aristotélico de axiomatização das ciências nos Segundos Analíticos com sua efetivação nos Elementos de Euclides. Resulta que os diferentes primeiros princípios de Euclides seguem à linha os requisitos aristotélicos. Mas o inverso não é verdadeiro. Mais ainda, contrariamente à aposta de Porchat, não vejo como se possa tirar um conceito coerente de primeiros princípios dos Segundos Analíticos. Sugiro que se pode resolver ambas as dificuldades com uma mesma suposição. A constituição histórica de um sistema dedutivo faz-se a partir de procedimentos formalizados de transmissão de conhecimento no discurso de um professor ideal (aquele que conhece tudo) dirigindo-se a um aluno ideal (que nada sabe). O sistema dos primeiros princípios nos Segundos Analíticos fica assim intermediário e instável entre dois sistemas coerentes. O primeiro comporta termos a serem compreendidos (definições) e proposições tomadas como verdadeiras, ou necessariamente (axiomas) ou contingentemente; estas, por sua vez, podem ser ainda divididas em hipóteses e postulados, em função do assentimento ou dissentimento do ouvinte. O segundo sistema comporta axiomas que enunciam propriedades que não podem ser provadas, definições de termos e hipóteses de existência. Deste modo, os Segundos Analíticos buscam reconciliar os dois conceitos gregos de ciência. Segundo o primeiro conceito, ciência é um sistema de transmissão interlocutiva; de acordo com o segundo, é um sistema de conhecimento objetivo. Os Elementos de Euclides estão no final do desenvolvimento histórico da axiomática antiga.
Palavras-chave: Aristóteles, Euclides, ciência, axioma
ABSTRACT
Porchat’s outstanding commentary proves both that Aristotle’s definition of science is consistent, systematic and gradually constructed, and that an Aristotelian science is a consistent and systematic system which supposes a mathematic model. In the following text, I only want to suggest some developments of Porchat’s great ideas. Why did Aristotelian science, and more generally Greek science, searched for its own achievement in the axiomatic form? I try to answer this question by confronting Aristotelian epistemological program of axiomatisation of the sciences in Posterior Analytics with its realisation in Euclid’s Elements. It appears that the different Euclidean first principles fit quite exactly Aristotelian requirements. But the converse is not true. Moreover, contrary to Porchat’s challenge, I cannot find it possible to draw a coherent concept of first principles from the text of Posterior Analytics. I suggest that it is possible to resolve both types of difficulties by a single assumption. The historical constitution of a deductive system stands from formalised procedures of transmission of knowledge in the discourse of an ideal teacher (who knows everything) talking to an ideal pupil (who knows nothing). The system of first principles in Posterior Analytics is thus unstable and intermediate between two coherent systems. The first one comprises terms to be understood (definitions), and propositions held to be true, either by necessity (axioms) or contingently; these, in turn, can further be divided into hypotheses and postulates, depending on assent or dissent of the hearer. The second system comprises axioms stating unprovable properties, definitions of terms and hypotheses of existence. Thus, Posterior Analytics seek to reconcile the two Greek concepts of science. According to the first one, science is a system of interlocutive transmission; according to the later one, it is a system of objective knowledge. Euclid’s Elements are at the end of this prehistorical development of ancient axiomatic.
Keywords: Aristotle, Euclid, science, axiom.
Notas:
[1] Ver Proclus, Comentário sobre os Elementos de Euclides 66, 7 sq.: “Hipócrates escreveu um livro sobre os elementos, o primeiro do qual nos resta algum traço”. O termo “agrupamento” empregado por Proclus um pouco mais adiante (68, 1) para qualificar o trabalho de Euclides sobre os “elementos” anteriores é discutível e não permite avaliar o alcance do referido trabalho.
[2] O termo archai, empregado por Proclus em 61, 5, tem o sentido de “premissas”, pontos de partida da demonstração.
[3] Ver também Tóp. VIII, 3, 159 b 35 e 14, 163 b 23.
[4] Proclus (66, 14 sq.) assinala os nomes de 14 matemáticos entre Hipócrates e Euclides (dentre os quais Archytas, Teeteto e Eudoxo) que se teriam dedicado a essa investigação.
[5] Há tratados científicos anteriores a Euclides que têm a forma dedutiva. Ver Autolycos de Pitane, La sphère en mouvement e Levers et couchers héliaques (ed. trad. por G. Aujac em colaboração com J.-P. Brunet e R. Nadal, Paris, Belles Lettres, 1979), cuja data é sem dúvida cerca de vinte anos anterior a Euclides, e que tratam de uma geometria elementar da esfera (“pequena astronomia”), sob uma forma axiomatizada.
[6] Elas são, pois, os “elementos” no sentido definido acima. Recordemos, entretanto, que o termo “elemento” não se encontra nos Segundos Analíticos no sentido técnico que Aristóteles, por outro lado, lhe reconhece.
[7] As cinco primeiras são as seguintes: “Um ponto é aquilo que não tem nenhuma parte; uma linha é um comprimento sem largura; os limites de uma linha são pontos; uma linha reta é a que está posicionada de maneira igual relativamente aos pontos que estão sobre ela; uma superfície é o que tem somente comprimento e largura”
[8] “1. Que seja postulado levar uma linha reta de todo ponto a todo ponto.
2. E prolongar continuamente em linha reta uma linha reta limitada.
3. E descrever um círculo a partir de todo centro e por meio de todo intervalo.
4. E que todos os ângulos retos sejam iguais entre si.
5. E que se uma reta caindo sobre duas retas faz ângulos internos e do mesmo lado menores que dois retos, as duas retas, indefinidamente prolongadas, encontram-se do lado onde estão os ângulos menores que dois retos.”
[9] “Noções comuns: 1. Coisas iguais a uma mesma coisa são também iguais entre si.
2. E se, a coisas iguais, coisas iguais são acrescentadas, os todos serão iguais.
3. E se, a partir de coisas iguais, coisas iguais são retiradas, os restos serão iguais.
[4. E se, a coisas desiguais, coisas iguais são acrescentadas, os todos serão desiguais.]
[5. E os dobros do mesmo serão iguais entre si.]
[6. E as metades do mesmo serão iguais entre si].
7. E as coisas que se ajustam umas sobre as outras são iguais entre si.
8. E o todo é maior do que a parte.
[9. E duas retas não contêm uma área.] (N.B.: Estão entre colchetes as proposições duvidosas, que não figuram em todas as edições).
[10] Ver O. Porchat, op. cit., p. 226 e 228.
[11] Ver a análise de E. Heath, The Thirteen Books of Euclid’s Elements, Dover, 1956, vol. I, p. 146, que toma também como exemplo a definição de quadrado.
[12] M. Caveing, “Introduction générale” a Euclides de Alexandria, Les Eléments, Paris, PUF, vol. I, p. 126.
[13] A proposição I, 46 enuncia, de fato, o seguinte problema: “Descrever um quadrado sobre uma reta dada”. Recordemos que as proposições de Euclides são quer problemas (de construção) destinados a demonstrar existência, quer teoremas destinados a demonstrar propriedades essenciais (Ver a discussão dessa divisão em Proclus, op. cit. 77-81). Reencontramos nessa divisão a classificação aristotélica das investigações científicas entre questões de fato (oti) e questões de existência (ei esti), que necessitam, uma e outra, da busca de um termo médio, isto é, da resposta ao por que (dioti) para as questões de fato (demonstrações de teoremas) e da resposta à questão da essência (ti esti) para as questões de existência (cf. An. Post. II, 1 e 2). Nos dois casos, há, pois, demonstração.
[14] À exceção da de “superfície plana” (I, 7), como observa M. Caveing (op. cit. p. 128).
[15] M. Caveing observa: “É um fato que, relativamente, por exemplo, à existência da unidade aritmética ou da grandeza geométrica, elas seriam daquelas que nunca foram contestadas na tradição matemática grega... Em um tal caso, Aristóteles autoriza a admissão tácita e Euclides começa diretamente suas Definições utilizando as espécies da grandeza, como comprimento, largura e profundidade, tratando a existência da grandeza como admitida e o sentido desses termos como conhecido” (op. cit. p. 121). Notemos, entretanto, que essa admissão tácita diz respeito apenas aos livros geométricos, pois o primeiro dos livros aritméticos (o livro VII) se abre com as definições da unidade e do número: “É unidade aquilo segundo o qual cada uma das coisas existentes é dita; e um número é a multiplicidade composta de unidades” (cf. trad. de B. Vitrac).
[16] “Tal ciência pode se dispensar de explicitar a existência do gênero se essa existência é manifesta (de fato, a existência do número não é tão evidente quanto a do calor e do frio)” (An. Post. I, 10, 76 b 17-19). Ver O. Porchat, op. cit. p. 230.
[17] Ver M. Caveing, op. cit. p. 127.
[18] As Definições euclidianas satisfazem além disso a outras exigências positivas enunciadas por Aristóteles para que elas possam ser admitidas como princípio da ciência. Ver E. Heath, op. cit. p. 143-151 e M. Caveing op. cit. p. 128-132.
[19] Aliás, Aristóteles chama às vezes seus “axiomas” de “opiniões comuns” (Metaf. B 2, 996 b 28, 997 a 21, 22, gama 3, 1005 B 33, 1061 B 19-25) ou de “princípios comuns” (An. Post. I, 10, 76 b 14, II, 32, 88 a 36), e mesmo de “comuns” (ta koina), ibid. I, 11, 77 a 27 sq., I, 76 a 38, 41, 76 b 10, etc. Proclus nota a equivalência entre os “axiomas” de Aristóteles e as “noções comuns” dos matemáticos (op. cit. 194, 8-9).
[20] Ver o excelente comentário dessa expressão “a partir de” por O. Porchat, op. cit. p. 241 e sq.
[21] Sobre o sentido da palavra “axioma” em Aristóteles, ver O. Porchat, op. cit. p. 235-236, nota 109.
[22] Recordemos que, para Aristóteles, as “definições” não são, stricto sensu, “proposições”, que enunciam algo de algo (ti kata tinos), suscetíveis de verdade ou de falsidade, porque elas não envolvem nenhuma verdade (Ver An. Post. II, 3, 90 b 34 – 91 a 1).
[23] O mesmo não vale para os Postulados 4 e 5 que, por essa razão mesma, foram freqüentemente considerados pelos Antigos como “axiomas” ou proposições demonstráveis (Ver E. Heath, op. cit. p. 123-124). Para o 4, é a opinião de Geminus: “Se admitimos esse enunciado como evidente e não requerendo demonstração, não é um postulado segundo Geminus, mas um axioma; pois ele atribui uma propriedade intrínseca aos ângulos retos e não demanda que algo seja produzido por simples reflexão. E não é tampouco um postulado segundo a classificação aristotélica, pois, segundo sua opinião, um postulado requer uma demonstração. Mas, se dizemos que ele pode ser demonstrado e procuramos demonstrá-lo, então, mesmo segundo a tese de Geminus, ele não pode ser classificado como um postulado” (Proclus 188, 2-11); o que significa que ele deve ser considerado por Geminus como um axioma, pois, para ele, o postulado está para o problema como o axioma está para o teorema, isto é, é uma construção admitida para que se possa efetuar outras construções, como o axioma é uma verdade admitida para que se possa demonstrar outras verdades (Proclus, op. cit. 178, 1 – 184, 29). Quanto ao Postulado 5, dito “postulado das paralelas”, sabe-se suficientemente como ele foi, desde a Antigüidade, considerado como uma proposição demonstrável mais do que como um Postulado.
[24] Como diz O. Porchat: “constituem os koina os liames por que se comunicam, umas com as outras, todas as ciências, cuja multiplicidade e diversidade genérica não se reduz, então, à condição de compartimentos absolutamente estanques de um saber irremediavelmente fragmentado” (op. cit. p. 239).
[25] Ver também ibid. I, 7, 75 b 2 e o desenvolvimento de I, 11, 77 a 26-35.
[26] Certas Noções Comuns são de fato tacitamente utilizadas em aritmética. De acordo com o quadro de B. Vitrac, in Euclide d’Alexandrie, Les Eléments, Paris, PUF, vol. 2, 1994, p. 538, as únicas utilizações das Noções Comuns por Euclides nos livros aritméticos são a Noção Comum 2 em VII, 5, a Noção Comum 3 em VII, 7 e as Noções Comuns 1, 2 e 3 em VII, 8.
[27] Ver O. Porchat, op. cit. p. 238.
[28] À exceção da Noção Comum 9, que, sendo a única propriamente geométrica (e, portanto, não “comum”), era, por isso mesmo, recusada ou considerada como interpolada pelos Antigos (ver B. Vitrac, op. cit. vol. I, 1990, p. 179).
[29] Ver Aristóteles An. Post. I, 10, 76 a 37 – b 2.
[30] Por exemplo, An. Post. I, 10, 76 a 41, 76 b 21, I, 11, 77 a 30.
[31] Sobre essa relação entre os axiomas matemáticos, a matemática universal e a filosofia primeira, ver O. Porchat, op. cit. p. 244 sq. Aristóteles reconhece, de fato, para além desses princípios comuns a muitas ciências, a existência de princípios comuns a todas as ciências, a saber, os princípios de contradição e do terceiro excluído (An. Post. I, 11 e Metaf. gama). Mas como eles são comuns a todas as ciências enquanto tais, isto é, enquanto dedutivas (e enquanto, por conseqüência, eles são comuns também à dialética, ver An. Post. I, 11, 77 a 26-35), nenhum cientista precisa enunciá-los. (Ver M. Caveing, op. cit. p. 119, n. 287).
[32] Ver B. Vitrac, op. cit. vol. I, p. 171.
[33] Ainda que, como observa B. Vitrac, op. cit. p. 171, “não haja evidentemente menção a instrumento nos postulados”. Sobre o lugar e as funções dos três primeiros postulados, remetemos a suas análises p. 169-173.
[34] Ver acima, n. 19.
[35] Sobre essa questão, Proclus nos deixou um testemunho longo e preciso, retraçando as discussões dos Antigos (op. cit. 178, I – 184, 29). Para Geminus, por exemplo, o postulado 4 é um axioma (ver acima, n. 20); Proclus tenta, por seu lado, demonstrá-lo. São conhecidas, além disso, as inumeráveis tentativas de demonstração do famoso quinto postulado desde a Antigüidade. Observemos, seguindo M. Caveing, que o mesmo ocorre com os editores modernos: “a edição princeps de Bâle e a de Gregory colocam os Postulados 4 e 5 entre os Axiomas, com os números 10 e 11” (op. cit. p. 123, n. 11).
[36] Proclus observa essa correlação notável entre os três tipos de princípios de Euclides e os de Aristóteles (op. cit. 75, 5 – 77,6); “Quando o que é assumido e contado como princípio é ao mesmo tempo conhecido do aluno e convincente em si mesmo, então é um axioma, e.g. a proposição segundo a qual as coisas iguais a uma mesma coisa são iguais entre si. Quando, por outro lado, o aluno não tem a noção do que se lhe diz, que traz sua convicção em si mesmo, mas entretanto a aceita e aprova que se a assuma, é uma hipótese. Assim, não preconcebemos por uma noção comum e sem que nos tenha sido ensinado que o círculo é tal ou tal figura, mas quando isso nos é dito, o admitimos sem demonstração. Quando, enfim, o que é afirmado é ao mesmo tempo desconhecido e assumido mesmo sem o assentimento do aluno, então estamos lidando com um postulado, e.g. que os ângulos retos são iguais”. Constatamos que Proclus é obrigado a selecionar entre os textos de Aristóteles aqueles que permitem a aproximação e sobretudo que, para poder fazer a aproximação entre o postulado de Aristóteles e o postulado de Euclides, ele é obrigado a só tomar como exemplo o quarto postulado de Euclides; ele deve, além disso, modificar o vocabulário para poder fazer corresponder as “definições” de Euclides às “hipóteses” de Aristóteles.
[37] Já observamos que se trata da primeira definição de Euclides no início dos livros aritméticos (L. VII): “é unidade aquilo segundo o qual cada uma das coisas existentes é dita uma; a segunda é o número: “multiplicidade composta de unidades”.
(38) Cf. J. Barnes: “Aristóteles considera em termos gerais algumas das condições para a aquisição do conhecimento” (Aristotle’s Posterior Analytics, Oxford, Clarendon, 1975, p.89 e notas ad. loc.).
[39] É, por exemplo, o que faz J. Barnes, op.cit., n. ad.loc. p.103.
[40] Os exemplos de Aristóteles são “unidade, reta, triângulo”, e se referem respectivamente a um termo primitivo e a dois termos derivados, que correspondem bem, com efeito, a três “definições” em Euclides (respectivamente I,7, I,4 e I,19, “trilátero”).
[41] Ver M. Caveing, op.cit. p.118.
[42] Esta “fraseologia”, como diz Barnes, op.cit. p. 135, é única em Aristóteles. Ela lembra evidentemente a tese de Platão (Teeteto 189 e) sobre o pensamento como diálogo interior, mas também a posição de Aristóteles sobre o princípio de contradição: podemos recusar-nos em palavras a crer nele, mas não em pensamento, como é o caso de Heráclito (Metaf. Γ, 3 1005 b 11-34) – o que confirmaria que Aristóteles faz aqui alusão ao axioma.
[43] Na Ret. a Alexandre 10, 1433 b 17-28, “demanda” tem um sentido retórico: os postulados no discurso são “demandas” feitas pelos oradores à audiência; algumas são legítimas, outras não. É justo, por exemplo, exigir que os ouvintes prestem atenção ao que é dito e tenham uma escuta favorável, julguem conforme à lei, tenham compaixão pela infelicidade etc.
[44] J. Barnes, op. cit,. n. ad. loc. p.136.
[45] A fim de aproximar os dois usos do termo postulado, M. Caveing (op.cit. p.120) supõe que os postulados aristotélicos se refeririam a hipóteses contestadas e, portanto, se teriam tornado postulados comparáveis aos de Euclides: “que seja pedido que se trace uma linha reta de qualquer ponto a qualquer ponto”, etc.
[46] J. Barnes, por exemplo, nota (op.cit. p.136): “isso é insensato”. J.Tricot (éd. Vrin, 1979, ad. loc. p.58) nota, sem justificativa: “L. 33, nós suprimimos, com G. R. Mure, ἣ depois de doxh”. H. Tredenick e E. S. Forsters editam o texto dos manuscritos, mas notam: “eu duvido se duas definições de aithma são oferecidas aqui, como Ross conclui”. Com efeito, D. Ross conserva o texto do manuscrito e assinala em seu aparato crítico a supressão do ἣ por Hayduck.
[47] “Se nós tomamos a outra descrição, na qual ele é distinguido da hipótese, como sendo uma assunção de algo que é tema apropriado de demonstração sem o assentimento ou contra a opinião do aluno, ele parece ajustar-se bastante bem aos Postulados de Euclides” (E. Heath, op. cit. p. 119-120).
[48] Haveria, entre o ponto de vista daquele que põe uma definição (o “mestre”) e o ponto de vista daquele que a compreende (o “aluno”), o princípio de uma distinção entre os conceitos de oros e de orismos, cujas significações são difíceis de diferenciar (ver Bonitz, Index, 530 a 4-16)?
[49] Observemos que nas passagens do capítulo 1 que adotam também o “ponto de vista da compreensão” (71 a 12, por oposição a 14), o conceito de “definição” (orismos) justamente não aparece.
[50] Ver a definição da dedução (συλλογισμός) em Tóp. I, 1, 100 a 25, e An. Pr. I, 1, 24 b 18-20. Esse sentido de “hipótese” é corrente em Aristóteles. Ver Bonitz, Index, 796 b 59 – 797 a 15.
[51] A aproximar do que Aristóteles diz em Metaf. B 2, 997 b 35 – 998 a 4 (citado por J. Barnes, op. cit. p.137): “as linhas sensíveis não são tais como o geômetra as diz (pois os sentidos não nos dão nem linha reta nem curva conforme à definição)”.
[52] Ver adiante nota 67.
[53] Ver a este respeito o artigo de J. Barnes, “Aristotle’s Theory of Demonstration”, publicado originalmente em Phronesis 14 (1969), p. 123-52, reproduzido em Articles on Aristotle, 1, Science, ed. by J.Barnes, M.Schofield, R.Sorabji, London, Duckworth, 1975. Ver também nosso “Trois techniques de vérité dans la Grèce classique”, Hermès, 15, 1995. Lembremos que, desde as primeiras frases, os Segundos Analíticos se inscrevem em uma problemática da transmissão dos conhecimentos (“todo ensino e todo aprendizado racionais necessitam de conhecimentos preexistentes, etc.”) na continuidade direta da questão do Menon: “como é possível aprender o que quer que seja?”. J. Barnes lembra, além disso, que os conceitos de “tese”, “axioma”, “hipótese”, “postulado” são tomados de empréstimo ao ensino, e que além disso Aristóteles toma permanentemente o cuidado de distinguir sua teoria da “demonstração” da teoria da interrogação dialética – o que mostra que ele concebe fundamentalmente estes dois tipos de discurso como dependendo de um mesmo quadro, o do diálogo: diálogo em um sentido único com o aluno, se distinguindo tanto do diálogo assimétrico com o “respondente” (dialética), quanto do monólogo público diante de um auditório (retórica).
[54] Por exemplo, T. Heath, op. cit. pág. 117-120 e M. Caveing, op. cit. pág. 117-122. Mas essa maneira de ler o texto dos Segundos Analíticos a partir de Euclides remonta a Proclus.
[55] Esse quadro inspira-se, parcialmente, no de M. Caveing, op. cit., pág. 121.
[56] Para Aristóteles, a “comunidade” à qual se referem os axiomas é de dois tipos, segundo se tratem de axiomas do ser enquanto ser, comunidade transgenérica, ou do ser na medida em que ele depende de tal ou tal gênero determinado, comunidade genérica. A comunidade mais extensiva concerne a todos os objetos (o ser) e os axiomas da “ciência do ser enquanto ser” são também comuns a todas as ciências – por exemplo aos três grandes tipos de ciências distinguidas em Metaf. E, 1: matemáticas, físicas e teológicas – na medida em que todas as ciências são demonstrativas. Mas como toda ciência estuda o ser sob um certo gênero – por exemplo, as ciências matemáticas estudam o ser sob o gênero (isto é, na ocorrência, sob a categoria) da quantidade, logo os seres imutáveis mas abstratos (ver Metaf. E, 1), enquanto que as ciências físicas estudam os seres naturais (concretos mas mutáveis) –, os princípios comuns a todas as ciências são ao mesmo tempo os da ciência do “ser enquanto ser” (Metaf. Γ, 3, 1005 a 23-28), são os princípios da contradição e o do terceiro excluído: “Nenhuma ciência os enuncia tais quais, mas todas os reconhecem implicitamente” (An. post. I, 11, 77 a 10 sq., onde Aristóteles destaca também os casos onde eles podem ser explicitados), pois eles são necessários aos próprios procedimentos dedutivos. Eis por que eles são comuns não somente a todas as ciências mas também à dialética (77 a 28), a qual compartilha com elas seus procedimentos argumentativos (notadamente o “raciocínio dedutivo”) e graças à qual se pode justamente “demonstrar” (não apoditicamente) esses princípios (ibid.). No interior de cada gênero de ser, cada ciência propriamente dita considera seu gênero próprio, tomado desta vez no sentido estrito de objeto – assim, a aritmética estuda a quantidade descontinua (o número) e a geometria a quantidade contínua (a grandeza) –, mas os axiomas são comuns a todos esses objetos na medida em que eles dizem respeito ao mesmo “gênero” de seres, por exemplo, os seres quantificáveis: são os axiomas da matemática geral. O uso “analógico” dos axiomas consiste em subsumir sob um conceito geral (por exemplo, “quantidade”) o domínio de objetos considerados. Assim, o geômetra se serve do axioma “subtraídas coisas iguais de coisas iguais, os restos são iguais” e o aplica à quantidade contínua, substituindo a variável “coisa” por “grandezas”, enquanto que o aritmético se serve do mesmo axioma, aplicando-o aos números (I, 10, 76 a 37 – b 2). É possível que Aristóteles tenha também em vista a possibilidade de uma ciência da quantidade em geral, tendo por modelo a teoria eudoxiana das proporções, como o atestaria o começo do capítulo M 3 da Metafísica (cf. 1077 b 17-22).
[57] Ver a nota precedente.
[58] Notemos que é, com efeito, nos contextos didáticos que Aristóteles emprega esse termo “axioma”, enquanto que ele emprega “comum” nos contextos “objetivos”. A equivalência é colocada em An. post. I, 10, 76 b 14 (“os axiomas chamados de comuns”).
[59] Notemos que essa determinação “interlocutiva” é, nesse texto, imediatamente seguida de seu pendant “objetivo”: “o que é necessário conhecer para conhecer o que quer que seja” (ibid. 1005 b 16-17).
[60] Ver o mesmo termo “compreender” (ξυνιέναι) já no capítulo 1, 71 a 13.
[61] Se, como nós o sugerimos, essa concepção didática dos axiomas é anterior a Aristóteles e data da Academia, isso contribui para explicar o recurso, raro, com efeito, em Aristóteles, a esse vocabulário do diálogo interior (ver acima nota 42).
[62] Ver já em Platão a questão que põe Sócrates a propósito do escravo antes de se engajar em um problema de geometria com ele: “ele fala grego?” (Menon, 82 b).
[63] Ver Ét. Nic. VI, 3, 1139 b17, De Anima III, 3, 428 a 17-19, An. Post. II, 19, 100 b 5-8.
[64] Sobre o fato de que a pistis é comum à episteme e à doxa, ver Et. Nic. VII, 5, 1146 b 25-31. “Em realidade, a opinião acarreta convicção, pois é impossível ter uma opinião sem aderir a ela” (“De Anima III, 3, 428 a 19-21”); “Além do mais, a opinião supõe sempre a convicção, a convicção supõe que se tenha sido convencido e isso supõe o discurso” (ibid. III, 3, 428 a 23).
[65] Ver Platão, Górgias 486 e: “Estou seguro de que todas as opiniões de minha alma com as quais você estará de acordo serão, a partir desse momento, verdades”. Ver também 472 b-c e Menon 75 d.
[66] Ver já na interrogação do escravo do Menon as observações contínuas de Sócrates: “você vê que eu não lhe ensino nada” (82 e; e também 82 b, 84 d, 85 b-c).
[67] B. Vitrac, op. cit., p. 195.
[68] M. Caveing o diz mais precisamente: É “de maneira simétrica à exposição [instanciação dos dados], uma instanciação do objeto da investigação pelos mesmos meios” (op. cit. p. 138). Notemos que a fórmula “eu digo que” aparece apenas nos teoremas; nos problemas ela é substituída pela fórmula “é preciso então”.
[69] Autolycos de Pitane, Sph. 2, e 12. Ver acima, nota 5.
[70] Segundo Simplicius, Phys. 68. 30.
[71] É sem dúvida a esse momento da prática demonstrativa que Aristóteles faz alusão em An. post. I, 10, 76 a 30 – 77 b 3, chamando “hipótese” o que será nomeado doravante “ectese”.
[72] À exceção, é claro, da protase, que é também dita pelo professor. Mas no momento de sua enunciação, ela não é anunciada como uma verdade posta pelo professor, mas proposta ao aluno como questão geral a resolver.
[73] Poder-se-ia, assim, tentar traçar uma linha histórica única que conduz das hipóteses platônicas (ao menos aquelas da Rep. VI, 510 b-c) aos três primeiros postulados euclidianos, passando por diferentes sentidos da palavra “hipótese” que coabitam no texto aristotélico. A crítica geral de Platão na República deixa entender que as “hipóteses” que se concedem os matemáticos concernem a todos os objetos (“par, impar, figuras, três espécies de ângulos, etc”, 510 c) dos quais eles “demandam” que se lhes conceda a existência ao mesmo tempo em que põem a sua essência (nas definições, por exemplo). Os textos dos Segundos Analíticos (I, 1, 2, 7) deixam entender que os matemáticos contemporâneos de Aristóteles, sensíveis talvez à crítica platônica, tentam eliminar todas essas “hipóteses” de existência de objetos, ou ao menos reduzi-las a um mínimo – a saber, ao objeto mesmo sobre o qual eles trabalham (o um e o número para os aritméticos, a grandeza para os geômetras). O texto euclidiano mostra até onde, de fato, eles chegaram: assume-se implicitamente a existência do “gênero” (e o termo “hipótese” desaparece completamente) e reduziram-se todos os objetos geométricos a dois (reta e círculo), cuja possibilidade de construção será, então, “demandada”.
[74] Tanto no sentido de proposição indemonstrável pondo a existência do objeto primeiro como no de “demanda” concedida pelo interlocutor (An. post. I, 2, 72 a 20-24 e I, 10, 76 b 3-5).
[75] É, aliás, bem isso o que se passa, historicamente. São os postulados 4 e 5 que se tentou demonstrar.
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