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Este é um blog sobre Matemática em geral, com ênfase no período clássico-medieval, também sobre as Artes liberais (Trivium e Quadrivium), so...

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Aristotelismo e Filosofia da Matemática - por Deividi Pansera

Platão e Aristóteles na Escola
de Atenas (1509–1510),  fresco
de Rafael Sanzio,  na Stanza
della Segnatura, nos Museus Vaticanos
Platonismo, Nominalismo, Aristotelismo e Conceptualismo Divino

por Deividi Pansera

Matemática é essencial para a vida intelectual e estrutura do pensamento. Todo intelectual sério, até bem pouco tempo, sabia do que se tratava Os Elementos de Euclides e, mais ainda, sabia demonstrar teoremas nele presentes. Segundo uma tradição, na Academia de Platão existia uma inscrição que proibia a entrada de pessoas que não sabiam geometria. Ademais, ao longo da República, alguns argumentos em favor do aprendizado da matemática são dados. Aristóteles, no Órganon, em Primeiros Analíticos, utiliza a demonstração da irracionalidade de raiz de dois como um exemplo de um argumento Reductio ad Absurdum. Aliás, todo o pensamento filosófico grego está, de uma forma ou de outra, entrelaçado com o pensamento matemático e vice-versa.

Diversos foram os filósofos que estudaram, e alguns até desenvolveram, matemática. Platão, Aristóteles, Boécio, Hugo de São Vitor, Roberto Grosseteste, Thomas Bradwardine, Santo Alberto Magno, Santo Tomás de Aquino, Duns Scotus, Francisco Suárez, João de São Tomás, Descartes, Leibniz, Frege, Edmund Husserl, Alfred Whitehead, Henri Poincaré, Charles Peirce, Pascal, Hilary Putnam, Alfred Tarski, Bernard Lonergan, James Franklin etc.

Matemática e filosofia são duas disciplinas antigas e abstratas. Duas grandes conquistas do espírito humano. A matemática, porém, sempre foi um problema difícil para a filosofia ao mesmo tempo que a filosofia sempre colocou reflexões pertinentes sobre o fazer matemática. Como é possível que haja tanto conhecimento que seja alcançável pelo pensamento puro, apenas com lápis e papel? O que são (ontologicamente) “números”, “funções”, “variedades diferenciáveis” e “espaços de Hilbert”? Ou ainda, o que é um infinito quantitativo? Como é possível a aplicabilidade da matemática no mundo real?

A matemática é uma invenção da mente humana? Ela é trivial, tautológica ou uma manipulação puramente formal de símbolos a partir de um conjunto de inferências? Afinal, a matemática trata do quê?

Essas, e muitas outras, são questões que a filosofia da matemática tenta responder.

A dicotomia moderna

Na História, com exceção da Idade Média, período em que a escolástica, fortemente influenciada pelo pensamento de Aristóteles, prevaleceu, duas grandes correntes disputaram o troféu da Filosofia da Matemática. O platonismo e o nominalismo.

O nominalismo sustenta que os universais não são reais, que são apenas palavras, conceitos ou classes, e que as únicas realidades são coisas particulares. Na filosofia da matemática, o logicismo e o formalismo são teorias de tendência nominalista, pois consideram a matemática não como uma realidade externa ao matemático, mas uma questão de símbolos. O principal problema para o nominalismo é sua incapacidade de explicar por que diferentes indivíduos devem ser reunidos sob o mesmo nome (ou conceito ou classe), se os universais não forem admitidos. No “nominalismo de predicados”, por exemplo (isto é, o nominalismo que considera os universais como meras palavras), “a palavra «branco» se aplica corretamente a Sócrates” é anterior a “Sócrates é branco”. Isso parece contra-intuitivo, uma vez que parece que as coisas são brancas antes da linguagem existir. E nosso reconhecimento dessa semelhança, que é uma condição para aprendermos a aplicar a palavra corretamente, surge da capacidade de todas as coisas brancas nos afetarem da mesma maneira – «a causalidade é a marca do ser». Um outro problema é que os predicados ou conceitos usados pelos nominalistas para unir os particulares são eles próprios universais – a palavra “branco” não significa uma inscrição particular em uma determinada página, mas a palavra digitada “branco” em geral.

Uma tentativa séria de mostrar que a matemática pode ser feita sob a ótica nominalista é feita por Hartry Field.

O platonismo (pelo menos em sua versão extrema, que é a versão usualmente encontrada na filosofia da matemática) sustenta que existem universais, mas são Formas puras em um mundo abstrato, sendo os objetos do nosso mundo relacionados a eles por uma misteriosa relação de “participação” ou “aproximação”. Assim, o que une todas as coisas azuis é apenas sua relação com a Forma do azul, e o que une todos os pares é sua relação com o número abstrato 2. O uso irrefletido pelos matemáticos de nomes como “2”, “o contínuo” etc., como se eles nomeassem entidades particulares com as quais os matemáticos lidam, parece apoiar uma visão platônica de tais entes.

Um dos problemas para o platonismo é a dificuldade de explicar a natureza da relação de “participação” ou “aproximação”. Epistemologicamente também, o platonismo tem dificuldades por causa de sua natureza relacional. Ou há uma intuição semelhante à percepção no reino das Formas, ou temos conhecimento delas através de algum processo de inferência. Uma espécie de “intuição matemática” que permite o acesso a tais Formas — visão defendida, por exemplo, por Kurt Gödel.

Aristotelismo

A dicotomia platônico-nominalista, desde o fim da escolástica, é dominante na maior parte da filosofia da matemática. Entretanto, há um terceiro posicionamento que está ganhando cada vez mais adeptos e já fundou uma escola: The Sydney School, liderada pelo filósofo da matemática James Franklin e fortemente influenciada pelo trabalho de David M. Armstrong. Segundo essa escola, a matemática, assim como a biologia e a física, trata do mundo real e estão intimamente conectadas com as categorias aristotélicas da quantidade e da relação. Se o platonismo significa “há objetos abstratos” e o nominalismo significa “não há”, então pode parecer que platonismo e nominalismo são posições mutuamente exclusivas e exaustivas. No entanto, as palavras “abstrato” e “objeto” desviam a atenção da alternativa aristotélica: “abstrato” ao sugerir uma desconexão platônica do mundo físico e “objeto” ao sugerir a particularidade e talvez a simplicidade sem uma universalidade. O próprio conceito de “objeto abstrato”, que é tão comum em filosofia da matemática, é uma noção recente e, na verdade, obscura. Em particular, a noção é uma criação da conclusão de Frege (um platonista) de que, uma vez que os objetos da matemática não são concretos nem mentais, eles devem habitar algum “terceiro reino” do puramente abstrato.

Os aristotélicos não aceitam a dicotomia dos objetos matemáticos em abstrato e concreto, no sentido usado para falar de “objetos abstratos”. Uma propriedade como o azul não é um particular concreto, mas também não possui as características clássicas centrais de um “objeto abstrato”, ineficácia causal e separação do mundo físico. Ao contrário, a posse de um objeto concreto da propriedade azul é exatamente o que lhe confere eficácia causal (ser percebido como azul).

Assim, uma entidade de interesse para a filosofia da matemática – digamos, a razão entre duas alturas – poderia ser um habitante de um mundo não-causal e “abstrato” dos Números ou uma relação do mundo real entre comprimentos, ou nada. As três opções – platônica, aristotélica e nominalista – precisam ser mantidas distintas e sobre a mesa, ou a discussão será confusa desde o início.

O aristotelismo, a fim de explicar o conhecimento da matemática, fundamenta-se em uma teoria da abstração. Entretanto, enfrenta um problema sério. Não consegue explicar satisfatoriamente os universais não instanciados e o conhecimento que temos deles. Por exemplo, em teoria dos conjuntos, quando falamos de cardinais transfinitos. Ou ainda, números naturais extremamente grandes que não são instanciados. Como os conhecemos pela via abstrativa? Ou um Espaço de Hilbert de dimensão infinita?

A mente divina - conceptualismo divino

Uma das soluções para o problema dos universais não instanciados é a “platonização” de Aristóteles. Ou, como também é chamado, o realismo escolástico. Ou seja, os entes da matemática são alocados na mente divina.

Ao menos por enquanto, esse campo de pesquisa é, como Pierre Hoenen disse, “um campo de pesquisa para o escolasticismo”. Não há como escapar, nessa visão, de um tratamento sobre a natureza da abstração pelo intelecto humano, sobre o uso de signos (semiótica) e sobre alguma doutrina da analogia. Se os entes da matemática residem na mente de Deus, sendo alguns instanciados no nosso mundo e outros não, sustentando a doutrina da simplicidade divina (a idéia de que Deus é simples e, assim, n’Ele não há partes, fazendo com que Ele se identifique com cada um dos Seus atributos), comum ao Teísmo clássico, é necessário concluir que Deus é a matemática.

Mas se Deus é a matemática, então só podemos falar dela analogicamente. Em termos de teorias formais que expressam entes matemáticos, isso significa que as próprias teorias matemáticas devem ser interpretadas analogicamente. Os famosos teoremas da Incompletude de Kurt Gödel e, em menor escala, o teorema de Löwenheim-Skolem parecem dar suporte à tese do conceptualismo divino (tema para outro escrito).

O campo de pesquisa está aberto e é um convite às mentes curiosas. 

[1] James Franklin, An Aristotelian Realist Philosophy of Mathematics: Mathematics as the science of quantity and structure.

[2] E. Maziarz, The Philosophy of Mathematics.

[3] Armand Maurer, Thomists and Thomas Aquinas on the foundation of Mathematics, The review of Metaphysics (1993), 43–61.

Fonte: https://deividipansera.substack.com/p/aristotelismo-e-filosofia-da-matematica


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