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Sobre a Literatura e Dante Alighieri

Afresco de Luca Signorelli, na capela de San Brizio, Duomo, Orvieto



Tempo de leitura: 60 minutos.

Texto retirado do LINK

CARTA APOSTÓLICA

CANDOR LUCIS AETERNAE

DO SANTO PADRE FRANCISCO

NO VII CENTENÁRIO DA MORTE DE DANTE ALIGHIERI

Esplendor da Luz Eterna, o Verbo de Deus tomou um corpo da Virgem Maria quando, ao anúncio do Anjo, Ela respondeu: «Eis a serva do Senhor» (Lc 1, 38). O dia em que a Liturgia celebra este mistério inefável é particularmente significativo também na vida histórica e literária do insigne poeta Dante Alighieri, profeta de esperança e testemunha da sede de infinito presente no coração do homem. Por isso, nesta ocorrência, desejo unir-me também eu ao coro numeroso de quantos querem honrar a sua memória no VII centenário da sua morte.

Em Florença, de facto, o ano tinha início, segundo o cômputo ab Incarnatione, em 25 de março. Próxima do equinócio da primavera e vista na perspectiva pascal, tal data aparecia associada quer com a criação do mundo quer com a redenção realizada por Cristo na cruz, início da nova criação. À luz do Verbo encarnado, convida a contemplar o desígnio de amor que é o próprio coração e a fonte inspiradora da obra mais célebre do Poeta, a Divina Comédia. No último canto desta, o acontecimento da Encarnação é lembrado por São Bernardo com estes versos famosos: «No ventre teu reacendeu-se amor / e em paz eterna fez que germinasse / a seu calor assim tão bela flor» (Par. XXXIII, 7-9)[*].

Mas, já no Purgatório, Dante representara a cena da Anunciação esculpida num penhasco rochoso (X, 34-37.40-45).

Por isso, nesta circunstância, não pode faltar a voz da Igreja que se associa à comemoração unânime do homem e do poeta Dante Alighieri. Melhor do que muitos outros, soube exprimir, com a beleza da poesia, a profundidade do mistério de Deus e do amor. O seu poema, expressão sublime do génio humano, é fruto duma nova e profunda inspiração, de que o Poeta aliás tem consciência quando fala dele como «poema santo que consagro, / em que puseram mão o céu e a terra» (Par. XXV, 1-2).

Desejo, com esta Carta Apostólica, unir a minha voz à dos meus Antecessores que honraram e celebraram o Poeta, especialmente por ocasião dos aniversários do nascimento ou da morte, para o propor de novo à atenção da Igreja, à universalidade dos fiéis, aos estudiosos de literatura, aos teólogos, aos artistas. Recordarei brevemente estas intervenções, focando a atenção nos Pontífices do último século e nos seus documentos de maior relevo.

1. As palavras sobre Dante Alighieri dos Romanos Pontífices do último século

Há um século, em 1921, por ocasião do VI centenário da morte do Poeta, Bento XV, recolhendo as ideias que surgiram nos pontificados anteriores, particularmente de Leão XIII e São Pio X, comemorou o aniversário de Dante quer com uma Encíclica[1] quer promovendo obras de restauro em Ravena na igreja de São Pedro Maior, chamada popularmente de São Francisco, onde se celebrou o funeral de Alighieri tendo sido sepultado na respetiva área tumular. O Papa, vendo com apreço as numerosas iniciativas tendentes a solenizar a ocorrência, reivindicava o direito da Igreja, «que foi sua mãe», de ser protagonista de tais comemorações, honrando o «seu» Dante.[2] Já na Carta ao Arcebispo de Ravena, D. Pasqual Morganti, com a qual aprovara o programa das celebrações do centenário, Bento XV motivou a sua adesão da seguinte forma: «Além disso (e isto é mais importante) há uma razão particular para considerarmos que se deve celebrar o seu fausto aniversário com grata memória e grande concurso de povo, ou seja, o facto de que Alighieri é nosso. (...) Com efeito, quem poderá negar que o nosso Dante tenha alimentado e fortalecido a chama do engenho e a virtude poética inspirando-se na fé católica, a ponto de cantar num poema quase divino os mistérios sublimes da religião?»[3]

Num momento histórico marcado por sentimentos de hostilidade à Igreja, o Pontífice reiterou, na citada Encíclica, a pertença do Poeta à Igreja, «a união íntima de Dante com esta Cátedra de Pedro»; mais, afirmou que a sua obra, apesar de ser expressão da «prodigiosa vastidão e agudeza do seu engenho», recebeu «um poderoso impulso de inspiração» precisamente da fé cristã. Por isso, «nele – continuava Bento XV – não devemos admirar apenas a altura sublime do engenho, mas também a vastidão do tema que a religião divina ofereceu ao seu canto». E tecia o seu elogio, respondendo indiretamente a quantos negavam ou criticavam a matriz religiosa da sua obra: «Respira-se em Alighieri a mesma piedade que há em nós; a sua fé tem os mesmos sentimentos. (...) O motivo principal de elogio nele é este: ser um poeta cristão e ter cantado com acentuações quase divinas os ideais cristãos dos quais contemplava, com toda a alma, a beleza e o esplendor». E o Pontífice prosseguia: a obra de Dante é um exemplo eloquente e válido para «demonstrar quão falso seja que o obséquio da mente e do coração a Deus corte as asas do engenho; pelo contrário, estimula-o e eleva-o». Por isso, defendia ainda o Papa, «os ensinamentos que Dante nos deixou em todas as suas obras, mas sobretudo no seu triplo poema» podem servir «como guia validíssimo para os homens do nosso tempo», e de modo particular para alunos e estudiosos, já que ele, «ao compor o seu poema, não teve outro objetivo senão levantar os mortais do estado de miséria, isto é, do pecado e conduzi-los ao estado de beatitude, isto é, da graça divina».

Passando a São Paulo VI, as suas várias intervenções estão relacionadas com o VII centenário do nascimento, em 1965. No dia 19 de setembro, ofereceu uma cruz dourada para embelezar a Capela de Ravena que guarda o túmulo de Dante, até então desprovida de «tal sinal de religião e esperança».[4] Em 14 de novembro, enviou a Florença uma coroa áurea de louros para ser encastoada no Batistério de São João. Finalmente, no termo dos trabalhos do Concílio Ecuménico Vaticano II, quis doar aos Padres Conciliares uma edição artística da Divina Comédia. Mas sobretudo honrou a memória do insigne Poeta com a Carta Apostólica Altissimi cantus,[5] na qual reiterava a forte ligação entre a Igreja e Dante Alighieri: «Se alguém quisesse perguntar por que motivo a Igreja Católica, por vontade do seu Chefe visível, tenha a peito cultivar a memória e celebrar a glória do poeta florentino, é fácil a nossa resposta: porque, por um direito particular, Dante é nosso! Nosso, queremos dizer da fé católica, porque tudo nele respira amor a Cristo; nosso, porque muito amou a Igreja, cujas glórias ele cantou; e nosso, porque no Romano Pontífice reconheceu e venerou o Vigário de Cristo».

Mas tal direito, continuava o Papa, longe de autorizar atitudes triunfalistas, constitui um compromisso. «Dante é nosso: podemos justamente repeti-lo. E afirmamo-lo, não para fazer dele um almejado troféu de glória egoísta, mas antes para nos lembrar a nós próprios o dever de o reconhecer como tal e explorar na sua obra os tesouros inestimáveis do pensamento e sentimento cristãos, convencidos como estamos de que só quem penetra na alma religiosa do insigne Poeta pode compreender profundamente e saborear as suas maravilhosas riquezas espirituais». E este compromisso não dispensa a Igreja de acolher também as palavras de crítica profética pronunciadas pelo Poeta contra quem devia anunciar o Evangelho e representar, não a si próprio, mas a Cristo: «Nem me custa recordar que a voz de Dante se ergueu, pungente e severa, contra mais de um Romano Pontífice, e teve amargas reprimendas para instituições eclesiásticas e pessoas que foram ministros e representantes da Igreja»; contudo resulta claro que «tais atitudes inexoráveis nunca abalaram a sua fé católica firme nem o seu afeto filial à santa Igreja».

Depois Paulo VI ilustrava as caraterísticas que fazem do poema de Dante uma fonte de riqueza espiritual ao alcance de todos: «O poema de Dante é universal: na sua amplitude imensa, abraça céu e terra, eternidade e tempo, os mistérios de Deus e as vicissitudes dos homens, a doutrina sagrada e a que deriva da luz da razão, os dados da experiência pessoal e as memórias da história». Mas sobretudo especificava a finalidade intrínseca da obra de Dante, particularmente da Divina Comédia (finalidade essa, nem sempre claramente apreciada e avaliada): «O objetivo da Divina Comédia é primariamente prático e transformador. Não se propõe apenas ser poeticamente bela e moralmente boa, mas capaz de mudar radicalmente o homem e levá-lo da desordem à sabedoria, do pecado à santidade, da miséria à felicidade, da visão terrificante do inferno à contemplação beatificante do paraíso».

Num momento histórico denso de tensões entre os povos, o Papa tinha a peito o ideal da paz e encontrava na obra do Poeta uma reflexão preciosa para a promover e suscitar: «Esta paz dos indivíduos, das famílias, das nações, da sociedade humana, paz interna e externa, paz individual e pública, tranquilidade da ordem, é perturbada e abalada, porque são espezinhadas a piedade e a justiça. E, para restaurar a ordem e a salvação, são chamadas a trabalhar em harmonia a fé e a razão, Beatriz e Virgílio, a Cruz e a Águia, a Igreja e o Império». Nesta linha, assim definia a obra poética na perspectiva da paz: «A Divina Comédia é poema da paz: lúgubre canto da paz perdida para sempre é o Inferno, suave canto da paz esperada é o Purgatório, epinício triunfal de paz eterna e plenamente possuída é o Paraíso».

Nesta perspectiva, continuava o Pontífice, a Divina Comédia «é o poema da melhoria social na conquista duma liberdade, que está isenta da escravidão do mal e nos leva a encontrar e amar a Deus (…) professando um humanismo, cujas qualidades julgamos ter ficado bem esclarecidas». E Paulo VI reiterava uma vez mais quais eram as qualidades do humanismo de Dante: «Em Dante, todos os valores humanos (intelectuais, morais, afetivos, culturais, civis) são reconhecidos, exaltados; e é muito importante notar que este apreço e honra se verificam enquanto ele mergulha no divino, quando a contemplação teria podido anular os elementos terrenos». Daí, afirmava o Papa, nasce – e justamente – o apelativo de Sumo Poeta e o atributo de divina dado à Comédia, bem como a proclamação de Dante como «senhor do altíssimo canto», no incipit da própria Carta Apostólica.

Além disso, avaliando as qualidades artísticas e literárias extraordinárias de Dante, Paulo VI reiterava um princípio por ele afirmado muitas outras vezes. «A teologia e a filosofia têm com a beleza ainda outra relação, e é esta: a beleza, ao emprestar à doutrina o seu vestido e ornamento, com a suavidade do canto e a visibilidade da arte figurativa e plástica, abre a estrada para os seus preciosos ensinamentos chegarem a muitos. As pesquisas profundas, os raciocínios subtis resultam inacessíveis aos humildes, que são uma multidão, e famintos também eles do pão da verdade. Entretanto estes percebem, sentem e apreciam o influxo da beleza e, por este veículo, brilha mais facilmente para eles a verdade e nutre-os. Bem o compreendeu e realizou o senhor do altíssimo canto, cuja beleza se tornou serva da bondade e da verdade, e a bondade matéria da beleza». Por fim, citando a Divina Comédia, Paulo VI exortava a todos: «Honrai agora o altíssimo poeta» (Inf. IV, 80).

De São João Paulo II, que repetidamente citou nos seus discursos as obras do insigne Poeta, quero lembrar apenas a intervenção de 30 de maio de 1985 na inauguração da Exposição Dante no Vaticano. Como Paulo VI, também ele destacou a sua genialidade artística: a obra de Dante é interpretada como «uma realidade visualizada, que fala da vida do além-túmulo e do mistério de Deus com a força própria do pensamento teológico, transfigurado pelo esplendor da arte e da poesia, simultaneamente conjuntas». Depois o Pontífice deteve-se a examinar um termo chave da obra de Dante: «“transumanar”, ultrapassar o humano. Foi este o esforço supremo de Dante: fazer que o peso do humano não destruísse o divino que existe em nós, nem a grandeza do divino anulasse o valor do humano. Por esta razão, o Poeta leu justamente a própria vicissitude pessoal e a da inteira humanidade em chave teológica».

Bento XVI falou frequentemente do itinerário de Dante, tirando das suas obras tópicos de reflexão e meditação. Por exemplo, ao apresentar a sua primeira Encíclica – a Deus caritas est –, partiu precisamente da visão de Deus que tinha Dante e na qual «luz e amor são uma coisa só», para propor novamente uma sua reflexão sobre a novidade da obra de Dante: «O olhar de Dante vislumbra uma coisa totalmente nova (…). A Luz eterna apresenta-se em três círculos aos quais se dirige com estes versos densos que conhecemos: “Luz eterna que só tens sede em ti, / e a ti entendes, e por ti intelecta / e entendente, te amas, ris assi!” (Par. XXXIII, 124-126). Na realidade, ainda mais impressionante que esta revelação de Deus como círculo trinitário de conhecimento e amor é a perceção dum rosto humano – o rosto de Jesus Cristo – que aparece a Dante no círculo central da Luz. (…) Este Deus tem um rosto humano e – podemos acrescentar – um coração humano».[6] O Papa destacou a originalidade da visão de Dante na qual se comunica poeticamente a novidade da experiência cristã, decorrente do mistério da Encarnação: «A novidade dum amor que impeliu Deus a assumir um rosto humano; mais, a assumir carne e sangue, o ser humano inteiro».[7]

Por minha vez, na primeira Encíclica,[8] fiz referência a Dante para expressar a luz da fé, citando um verso do Paraíso onde ela é descrita como «a cintila / que se dilata em chama então vivaz, / e qual astro no céu, em mim rutila» (Par. XXIV, 145-147). Pelos 750 anos do nascimento do Poeta, quis honrar a sua memória com uma mensagem, almejando que «a figura de Alighieri e a sua obra sejam novamente compreendidas e valorizadas»; e propunha que se lesse a Divina Comédia como «um grande itinerário, aliás como uma verdadeira peregrinação, tanto pessoal e interior, como comunitária, eclesial, social e histórica»; com efeito, «ela representa o paradigma de cada viagem autêntica para a qual a humanidade está chamada a abandonar a terra que Dante define “a jeira que nos torna tão ferozes” (Par. XXII, 151), para chegar a uma nova condição, marcada pela harmonia, a paz, a felicidade».[9] Por isso, apresentei a figura do insigne Poeta aos nossos contemporâneos, propondo-o como «profeta de esperança, anunciador da possibilidade de resgate, da libertação, da mudança profunda de cada homem e mulher, de toda a humanidade».[10]

Por fim, no dia 10 de outubro de 2020, ao receber a Delegação da Arquidiocese de Ravena-Cervia por ocasião da abertura do Ano de Dante e anunciar este documento, sublinhei como a obra de Dante pode ainda hoje enriquecer a mente e o coração de muitos, sobretudo jovens, que, abeirando-se da sua poesia «numa forma acessível a eles, constatam, por um lado, inevitavelmente toda a distância do autor e do seu mundo; mas, por outro, captam uma ressonância surpreendente».[11]

2. A vida de Dante Alighieri, paradigma da condição humana

Com esta Carta Apostólica, desejo também eu abeirar-me da vida e obra do ilustre Poeta, para captar precisamente esta ressonância, manifestando tanto a atualidade como a sua perenidade, e recolher aquelas advertências e reflexões que ainda hoje são essenciais não apenas para os crentes mas para toda a humanidade. Com efeito, a obra de Dante é parte integrante da nossa cultura, remete-nos para as raízes cristãs da Europa e do Ocidente, representa o património de ideais e valores que também hoje a Igreja e a sociedade civil propõem como base da convivência humana, na qual podemos e devemos reconhecer-nos todos irmãos. Sem me embrenhar na complexa história pessoal, política e judiciária de Alighieri, gostaria de lembrar apenas alguns momentos e factos da sua existência, pelos quais ele aparece extraordinariamente próximo de muitos dos nossos contemporâneos e que são essenciais para compreender a sua obra.

À cidade de Florença, onde nasceu em 1265 e se casou com Gema Donati gerando quatro filhos, esteve primeiramente ligado por um forte sentimento de pertença, o qual, por causa de dissensões políticas, com o tempo se transformou em aberto contraste. Contudo nunca morreu nele o desejo de lá regressar, não só pelo afeto que continuou em todo o caso a nutrir pela sua cidade, mas sobretudo para ser coroado poeta lá onde recebera o Batismo e a fé (cf. Par. XXV, 1-9). No cabeçalho de algumas das suas Cartas (III, V, VI e VII), Dante define-se como «florentinus et exul inmeritus – florentino imerecido no exílio», enquanto na carta XIII, dirigida a Cangrande della Scala, especifica «florentinus natione non moribus – florentino de nascimento, não de costumes». Guelfo da fação branca, vê-se envolvido no conflito entre Guelfos e Gibelinos, entre Guelfos brancos e negros, e depois de ter ocupado cargos públicos cada vez mais importantes até se tornar Prior, em 1302, devido às vicissitudes políticas adversas, é exilado por dois anos, banido dos cargos públicos e condenado ao pagamento duma multa. Dante rejeita a sentença, em sua opinião injusta, e o julgamento contra ele torna-se ainda mais severo: exílio perpétuo, confiscação dos bens e pena de morte em caso de regresso à terra natal. Assim começa a dolorosa história de Dante, que tenta em vão poder regressar à sua amada Florença, pela qual lutara com paixão.

Torna-se assim o exilado, o «peregrino pensativo», caído numa condição de «penosa pobreza» (Convívio, I, III, 5) que o impele a procurar refúgio e proteção junto de alguns suseranos locais, entre os quais os Scaligeri de Verona e os Malaspina na Lunigiana. Nas palavras de Cacciaguida, antepassado do Poeta, intuem-se a amargura e o desconforto desta nova condição: «Deixarás toda a cousa que é dileta / mais caramente; e este é dardo tal / que o arco do exílio antes projeta. / Tu provarás assim sabor a sal / do alheio pão e como é duro mal / se desça escada alheia ou já se escale» (Par. XVII, 55-60).

Depois, não aceitando as condições humilhantes da amnistia que lhe teria permitido o regresso a Florença, em 1315 foi de novo condenado à morte, desta vez, juntamente com os seus filhos adolescentes. A última etapa do seu exílio foi Ravena, onde foi acolhido por Guido Novello da Polenta, e lá faleceu – regressava duma missão a Veneza – aos 56 anos, na noite de 13 para 14 de setembro de 1321. A sua sepultura num sarcófago em São Pedro Maior, por trás do muro externo do antigo claustro franciscano, foi posteriormente transferida para a adjacente Capela do século XVIII, onde em 1865, depois de atribuladas vicissitudes, foram colocados os seus restos mortais. O lugar é ainda hoje meta de inúmeros visitantes e admiradores do insigne Poeta, pai da língua e literatura italianas.

No exílio, o amor à sua cidade, traído pelos «celerados florentinos» (Epist. VI, 1), transformou-se em triste saudade. A profunda desilusão pela queda dos seus ideais políticos e civis, juntamente com a penosa peregrinação duma cidade para outra à procura de refúgio e apoio não são alheias à sua obra literária e poética; pelo contrário, constituem a sua raiz essencial e a motivação de fundo. Quando Dante descreve os peregrinos que se põem a caminho para visitar os lugares sagrados, de certo modo descreve a sua condição existencial e manifesta os seus sentimentos mais íntimos: «Oh peregrinos que partis pensativos...» {Vita Nova, 29 [XL (XLI), 9], v. 1}. O motivo reaparece mais vezes, por exemplo nestes versos do Purgatório: «Como romeiros pensativos lançam, / cruzando pela via gente ignota, / apenas um olhar e não descansam» (XXIII, 16-18). A pungente melancolia de Dante peregrino e exilado adivinha-se também nos famosos versos do canto VIII do Purgatório: «Era hora em que a saudade aos navegantes / regressa e os enternece já de cor / o adeus a amigos doces dito antes» (VIII, 1-3).

Dante, refletindo profundamente sobre a sua situação pessoal de exílio, incerteza radical, fragilidade, mobilidade contínua, transforma-a, sublimando-a, num paradigma da condição humana, que se apresenta como um caminho – mais interior que exterior – sem paragem alguma enquanto não atingir a meta. Deparamo-nos, assim, com dois temas fundamentais de toda a obra de Dante: o ponto de partida de todo o itinerário existencial, o desejo, presente no ânimo humano, e o ponto de chegada, a felicidade, dada pela visão do Amor que é Deus.

O insigne Poeta, embora atravessando vicissitudes dramáticas, tristes e angustiantes, nunca se resigna, não sucumbe, nem aceita suprimir a ânsia de plenitude e felicidade que está no seu coração, e muito menos se resigna a ceder à injustiça, à hipocrisia, à arrogância do poder, ao egoísmo que faz do nosso mundo «a jeira que nos torna tão ferozes» (Par. XXII, 151).

3. A missão do Poeta, profeta de esperança

Deste modo, relendo a sua vida sobretudo à luz da fé, Dante descobre também a vocação e a missão que lhe foram confiadas, de modo que, paradoxalmente, de homem aparentemente falido e desiludido, pecador e desanimado, transforma-se em profeta de esperança. Na Carta a Cangrande della Scala, com extraordinária nitidez, deixa claro o objetivo da sua obra, que se concretiza e explicita, já não através de ações políticas ou militares, mas graças à poesia, à arte da palavra que, dirigida a todos, tudo pode mudar: «É preciso dizer brevemente que a finalidade do todo e da parte é tirar os viventes nesta existência dum estado de miséria e conduzi-los a um estado de felicidade» [XIII, 39 (15)]. Tal finalidade desencadeia um caminho de libertação de todas as formas de miséria e degradação humanas (a «selva escura») e simultaneamente aponta para a meta derradeira: a felicidade, entendida quer como plenitude de vida na história quer como bem-aventurança eterna em Deus.

Desta dupla finalidade, deste audacioso programa de vida, Dante é mensageiro, profeta e testemunha, confirmado na sua missão por Beatriz: «Por isso, em prol do mundo que mal vive, / ao carro põe os olhos e o que vês / lá regressado, a tua escrita o arquive» (Purg. XXXII, 103-105). Também o seu antepassado Cacciaguida o exorta a não desfalecer na sua missão. Ao Poeta, que recorda brevemente o seu caminho nos três reinos do Além e assinala a dificuldade de comunicar as verdades que doem e incomodam, o ilustre antepassado responde: «… A consciência fusca / ou já da própria ou de alheia vergonha / bem sentirá tua palavra brusca. / E tu porém, sem que a mentir se ponha, / toda tua visão faz manifesta; / e deixa que se cocem onde hão ronha» (Par. XVII, 124-129). Um idêntico incitamento a viver com coragem a sua missão profética é dirigido a Dante, no Paraíso, por São Pedro, quando o Apóstolo, depois duma tremenda invetiva contra Bonifácio VIII, se dirige ao Poeta desta forma: «E tu, filho, que voltarás aonde o / mortal peso há de pôr-te, abre a boca, / e não escondas o que eu não escondo» (Par. XXVII, 64-66).

Assim, na missão profética de Dante, inserem-se também a denúncia e a crítica contra os crentes, tanto Pontífices como simples fiéis, que atraiçoam a adesão a Cristo e transformam a Igreja num instrumento em prol dos próprios interesses, esquecendo o espírito das Bem-aventuranças e a caridade para com os pequenos e os pobres e idolatrando o poder e a riqueza: «Que quanto a Igreja guarda, é atributo / todo da gente que por Deus demande; / não de parentes nem de outro mais bruto» (Par. XXII, 82-84). Mas, através das palavras de São Pedro Damião, São Bento e São Pedro, o Poeta, ao mesmo tempo que denuncia a corrupção dalguns setores da Igreja, faz-se porta-voz de uma renovação profunda e invoca a Providência para que a favoreça e torne possível: «Mas a alta providência, que a Cipião / foi a romana glória nas mãos pondo, / cedo virá, em minha conceção» (Par. XXVII, 61-63).

E assim Dante exilado, peregrino, frágil, mas agora forte pela profunda e íntima experiência que o transformou, renascido graças à visão que, das profundezas dos infernos, da mais degradada condição humana, o elevou à própria visão de Deus, ascende a mensageiro duma nova existência, a profeta duma nova humanidade que anseia pela paz e a felicidade.

4. Dante cantor do desejo humano

Dante é capaz de ler o coração humano em profundidade; e em todos, mesmo nas figuras mais abjetas e molestas, consegue vislumbrar uma cintila de desejo de alcançar alguma felicidade, uma plenitude de vida. Detém-se a escutar as almas que encontra, dialoga com elas, interpela-as para se adentrar e participar nos seus tormentos ou na sua beatitude. Assim, partindo da sua condição pessoal, o Poeta faz-se intérprete do desejo que todo o ser humano tem de continuar o caminho enquanto não chegar ao destino final, não encontrar a verdade, a resposta aos porquês da existência, enquanto o coração – como já afirmava Santo Agostinho[12] – não encontrar repouso e paz em Deus.

No Convívio, analisa precisamente o dinamismo do desejo. «O desejo supremo de todas as coisas, conferido de início pela natureza, é retornar ao seu princípio. E como Deus é princípio das nossas almas, (...) a alma deseja intensamente retornar a Ele. E como um peregrino, que segue um caminho nunca antes percorrido por ele – quando avista de longe uma casa espera que seja a hospedaria, acabando depois por verificar que não o é, então deposita a sua esperança noutra e assim, de casa em casa, até encontrar finalmente a hospedaria –, a nossa alma, ansiosa por ter entrado no novo e nunca percorrido caminho desta vida, dirige o olhar para a meta do seu bem supremo, acreditando encontrá-lo em tudo o que vê e lhe parece ter em si algum bem» (IV, XII, 14-15).

O itinerário de Dante, ilustrado sobretudo na Divina Comédia, é verdadeiramente o caminho do desejo, da necessidade profunda e interior de mudar a sua própria vida para poder alcançar a felicidade e, assim, mostrar a estrada a quem se encontra, como ele, numa «selva escura» e perdeu «a direita via». Além disso, é significativo que, desde a primeira etapa deste percurso, o seu guia – o grande poeta latino Virgílio – lhe indique a meta aonde deve chegar, incitando-o a não ceder ao medo nem ao cansaço: «Mas porque volves ao ansioso enleio? / Porque não vais ao deleitoso monte / que é razão da alegria e dela cheio?» (Inf. I, 76-78).

5. Poeta da misericórdia de Deus e da liberdade humana

Trata-se de um caminho que não é ilusório nem utópico, mas realista e possível, onde todos podem entrar, porque a misericórdia de Deus oferece sempre a possibilidade de mudar, converter-se, encontrar-se a si mesmo e encontrar a via para a felicidade. A propósito, são significativos alguns episódios e personagens da Divina Comédia, que mostram como tal via não esteja vedada a ninguém na terra; exemplo disso é o imperador Trajano, pagão mas colocado no Paraíso. Dante justifica esta presença assim: «Regnum coelorum a violência há de / sofrer de quente amor, viva esperança, / que vence assim a divinal vontade; / não de homem que homem a vencer se lança, / mas vence-a, pois quer ela ser vencida, / para vencer então benigna e mansa» (Par. XX, 94-99). O gesto de caridade de Trajano para com uma «viúva» (Par. XX, 45) ou a «lagrimeta» de arrependimento derramada à hora da morte pelo Buonconte de Montefeltro (Purg. V, 107) não só mostram a infinita misericórdia de Deus, mas confirmam também que o ser humano pode sempre, com a sua liberdade, escolher qual caminho seguir e qual sorte merecer.

Sob esta luz, é significativo o rei Manfredo, colocado por Dante no Purgatório e que assim recorda o seu fim e a sentença divina: «Depois que se rompeu minha pessoa / de feridas mortais, eu me rendi, / chorando, a quem de bom grado perdoa. / Eu horríveis pecados cometi; / mas bondade infinita tanto abraça / que quem se a ela volta aceitar vi» (Purg. III, 118-123). Parece quase vislumbrar-se a figura do pai da parábola evangélica, com os braços abertos pronto a acolher o filho pródigo que volta para ele (cf. Lc 15, 11-32).

Dante faz-se paladino da dignidade de todo o ser humano e da liberdade como condição fundamental tanto das opções de vida como da própria fé. O destino eterno do homem – sugere Dante ao narrar-nos as histórias de tantas personagens, ilustres ou pouco conhecidas – depende das suas escolhas, da sua liberdade: os próprios gestos diários, aparentemente insignificantes, têm um alcance que se estende para além do tempo, são projetados na dimensão eterna. O maior dom de Deus ao homem, para que possa alcançar a meta última, é precisamente a liberdade, como afirma Beatriz: «O maior dom que Deus em tal largueza / já fez criando e à sua bondade / mais conformado e esse que mais preza, / foi ter-se de vontade liberdade» (Par. V, 19-22). Não são afirmações retóricas e vagas, visto que brotam da existência de quem conhece o preço da liberdade: «Liberdade ele busca, que é tão cara, / e sabe-o quem por ela a vida enjeita» (Purg. I, 71-72).

Mas a liberdade – lembra-nos Alighieri – não é fim em si mesma; é condição para subir continuamente. E o percurso nos três reinos ilustra-nos plasticamente esta subida até tocar o Céu, alcançar a plena felicidade. O «alto desejo» (Par. XXII, 61), suscitado pela liberdade, não pode extinguir-se senão em presença da meta, na visão última e na bem-aventurança: «E eu que ao termo da ânsia toda vi / me aproximava, tal como devia, / o fim de tal ardor em mi senti» (Par. XXXIII, 46-48). Depois o desejo faz-se também oração, súplica, intercessão, canto que acompanha e assinala o itinerário de Dante, tal como a oração litúrgica cadencia as horas e os momentos da jornada. A paráfrase do Pai Nosso, que o Poeta propõe (cf. Purg. XI, 1-21), entrelaça o texto do Evangelho com a experiência pessoal, com as suas dificuldades e sofrimentos: «Venha a nós do teu reino assim tamanho / a paz, que só por nós não vamos ter (…). Dá-nos hoje a maná quotidiana, / sem a qual por este áspero deserto, / atrás vai quem avante mais se afana» (7-8.13-15). A liberdade de quem acredita em Deus como Pai misericordioso não pode senão confiar-se a Ele na oração, não sendo por isso minimamente lesada, mas antes reforçada.

6. A imagem do homem na visão de Deus

No itinerário da Divina Comédia, como já sublinhava o Papa Bento XVI, o caminho da liberdade e do desejo não traz consigo – como porventura se poderia imaginar – uma redução do humano na sua realidade concreta, não aliena a pessoa de si mesma, não anula nem negligencia o que constituiu a sua existência histórica. Com efeito, mesmo no Paraíso, Dante representa os bem-aventurados – as «alvas» (Par. XXX, 129) – no seu aspecto corpóreo, evoca os seus afetos e emoções, os seus olhares e gestos, em resumo, mostra-nos a humanidade na sua perfeição completa de alma e corpo, prefigurando a ressurreição da carne. São Bernardo, que acompanha Dante no último trecho do caminho, mostra ao Poeta as crianças presentes na rosa dos bem-aventurados e convida-o a observá-las e ouvi-las: «Dos rostos podes vê-lo se os perscrutas / e também pelas vozes pueris, / se já os bem contemplas e os escutas» (Par. XXXII, 46-48). Resulta comovente ver como esta manifestação dos bem-aventurados na sua luminosa humanidade integral é motivada não só por sentimentos de afeto pelos seus entes queridos, mas sobretudo pelo desejo explícito de voltar a ver os seus corpos, as feições terrenas: «Seus corpos desejando antes da morte; / talvez não só por si, mas pela mãe, / pelo pai, pelos mais que cada amava, / antes de eterna chama ser também» (Par. XIV, 63-66).

E, finalmente, no centro da visão última, no encontro com o Mistério da Santíssima Trindade, Dante vislumbra precisamente um Rosto humano, o de Cristo, da Palavra eterna feita carne no seio de Maria: «E na profunda e clara subsistência / do alto lume três círculos vi vir / de três cores e de uma continência (...). Nessa circulação, que assim concepta / parecia em ti lume refletido, / dos olhos meus um pouco circunspecta, / dentro de si, do próprio colorido, / me apareceu pintada nossa efígie» (Par. XXXIII 115-117.127-131). Só na visão de Deus se aplaca o desejo do homem, e termina todo o seu fatigoso caminho: «Então a mente me era percutida / por um fulgor em que seu querer veio. / Foi a alta fantasia aqui colhida» (Par. XXXIII, 140-142).

O mistério da Encarnação, que hoje celebramos, é o verdadeiro centro inspirador e o núcleo essencial de todo o poema. Nele realiza-se o que os Padres da Igreja chamavam «divinização», admirabile commercium – o prodigioso intercâmbio, pelo qual, ao mesmo tempo que Deus entra na nossa história fazendo-Se carne, o ser humano, com a sua carne, pode entrar na realidade divina, simbolizada pela rosa dos bem-aventurados. A humanidade, na sua realidade concreta, com os gestos e as palavras diárias, com a sua inteligência e afetos, com o corpo e as emoções, é assumida em Deus, no Qual encontra a verdadeira felicidade e a realização plena e última, meta de todo o seu caminho. Dante havia desejado e previsto esta meta no início do Paraíso: «Mais o desejo aceso então surgiu / de ver aquela essência em que se vê / como nossa natura e Deus se uniu. / Lá se verá o que se tem por fé, / não demonstrado, mas por si é noto / qual verdade primeira que o homem crê» (Par. II, 40-45).

7. As três mulheres da Divina Comédia: Maria, Beatriz, Luzia

Cantando o mistério da Encarnação, fonte de salvação e alegria para toda a humanidade, Dante não pode deixar de cantar os louvores de Maria, a Virgem Mãe que, com o seu «sim», com a sua aceitação plena e total do projeto de Deus, torna possível que o Verbo Se faça carne. Na obra de Dante, encontramos um tratado estupendo de mariologia: com acentuações líricas sublimes, particularmente na oração pronunciada por São Bernardo, sintetiza toda a reflexão teológica sobre Maria e a sua participação no mistério de Deus: «Virgem e mãe, que és filha de teu filho, / humilde e alta mais que criatura, / de eterno querer termo fixo e brilho, / aquela és que a humanal natura / tanto nobilitaste, que o fator / não desdenhou fazer de si feitura» (Par. XXXIII, 1-6). O oximoro inicial e a sucessão de termos antitéticos destacam a originalidade da figura de Maria, a sua beleza singular.

São Bernardo, mostrando os bem-aventurados colocados na rosa mística, convida Dante a contemplar Maria, que deu as feições humanas ao Verbo Encarnado: «Contempla agora a face tal que a Cristo / mais se assemelha, pois sua clareza / só te pode dispor a veres Cristo» (Par. XXXII, 85-87). O mistério da Encarnação é de novo evocado pela presença do Arcanjo Gabriel. Dante pergunta a São Bernardo: «Quem é esse anjo em tão festivo jogo / que na nossa rainha o olhar atina, / e tão enamorado é quase fogo?» (Par. XXXII, 103-105). E o Santo responde: «Ele é esse que levou a palma / lá a Maria quando o Filho de Deus / quis carregar com toda a nossa xalma» (Par. XXXII, 112-114). A referência a Maria é constante em toda a Divina Comédia. Ao longo do percurso no Purgatório, é o modelo das virtudes que se opõem aos vícios; é a estrela da manhã que ajuda a sair da selva escura para se encaminhar rumo ao monte de Deus; é a presença constante, através da sua invocação («Nome da bela flor que sempre rogo, / manhã e tarde, …»: Par. XXIII, 88-89), que prepara para o encontro com Cristo e com o mistério da Deus.

Dante, que nunca está sozinho no seu caminho, mas se deixa guiar primeiro por Virgílio, símbolo da razão humana, e depois por Beatriz e São Bernardo, agora, graças à intercessão de Maria, pode chegar à pátria e gozar a alegria plena desejada em cada momento da existência: «… e ainda me distila / ao coração dulçor que lhe começa» (Par. XXXIII, 62-63). Não nos salvamos sozinhos (parece repetir-nos o Poeta, consciente da sua insuficiência): «Por mim próprio não venho» (Inf. X, 61); é necessário que o caminho seja empreendido em companhia de quem nos possa apoiar e guiar com sabedoria e prudência.

Neste contexto, resulta significativa a presença feminina. No início do fatigoso itinerário, Virgílio – o primeiro guia – conforta e encoraja Dante a prosseguir, porque três mulheres intercedem por ele e o hão de guiar: Maria, a Mãe de Deus, figura da caridade; Beatriz, símbolo de esperança; Santa Luzia, imagem da fé. Com palavras comoventes, assim se apresenta Beatriz: «Eu sou Beatriz, ora a fazer-te andar; / do lugar venho a que voltar pretendo, / e amor me move, que me faz falar» (Inf. II, 70-72), afirmando que a única fonte que nos pode dar a salvação é o amor, o amor divino que transfigura o amor humano. Depois Beatriz remete para a intercessão doutra mulher, a Virgem Maria: «Uma gentil senhora no céu plange / o impedimento a que enviar-te entendo, / e o mais duro juízo assim confrange» (Inf. II, 94-96). Depois intervém Luzia, que se dirige a Beatriz: «Beatriz, divina loa verdadeira, / pois não socorrerás quem te amou tanto, / que abandonou por ti vulgar fileira?» (Inf. II, 103-105). Dante reconhece que somente quem é movido pelo amor pode verdadeiramente apoiar-nos no caminho e levar-nos à salvação, ao renovamento da vida e, consequentemente, à felicidade.

8. Francisco, esposo da senhora Pobreza

Na cândida rosa dos bem-aventurados, em cujo centro brilha a figura de Maria, Dante coloca também numerosos santos, cuja vida e missão esboça, para os propor como figuras que, na realidade concreta da sua existência e mesmo através de numerosas provações, alcançaram a finalidade da sua vida e da sua vocação. Mencionarei brevemente apenas a figura de São Francisco de Assis, ilustrada no canto XI do Paraíso, onde se fala dos espíritos sapientes.

Existe uma profunda sintonia entre São Francisco e Dante: o primeiro, juntamente com os seus companheiros, saiu do convento e foi para o meio do povo, pelas estradas de aldeias e cidades, pregando ao povo, parando nas casas; o segundo fez a escolha, então incompreensível, de usar no grande poema do Além a linguagem de todos e povoando a sua narração com personagens conhecidos e menos conhecidos, mas completamente iguais em dignidade aos poderosos da terra. Outro traço une os dois personagens: a abertura à beleza e ao valor do mundo das criaturas, espelho e «vestígio» do seu Criador. Como não reconhecer nestes versos da paráfrase de Dante ao Pai-Nosso – «sejas louvado em nome e em valor / por toda a criatura…» (Purg. XI, 4-5) – uma referência ao Cântico das Criaturas de São Francisco?

No canto XI do Paraíso, essa consonância aparece com um novo aspecto, que os torna ainda mais semelhantes. A santidade e a sabedoria de Francisco sobressaem precisamente porque Dante, olhando do céu a nossa terra, vislumbra a tacanhez de quem confia nos bens terrenos: «Ó cuidar insensato dos mortais, / por quantos defetivos silogismos / fazem que asas ao fundo a dar tu vais!» (Par. XI, 1-3). Toda a história ou, melhor, a «vida admirável» do santo assenta sobre a sua relação privilegiada com a senhora Pobreza: «Mas por que eu não pareça assaz escuso, / Francisco e a Pobreza por amantes / entendas ora em meu falar difuso» (Par. XI, 73-75). No canto de São Francisco, recordam-se os momentos salientes da sua vida, as suas provações e por fim o acontecimento no qual a sua configuração a Cristo, pobre e crucificado, encontra a sua extrema, divina confirmação na marca dos estigmas: «Porque de mais azeda já observa / a gente à fé, por não ficar em vão, / ao fruto regressou da ítala erva, / e entre Arno e Tibre em cru penedo então / foi ter de Cristo o último sigilo, / que dois anos seus membros levarão» (Par. XI, 103-108).

9. Acolher o testemunho de Dante Alighieri

No final deste olhar sintético à obra de Dante Alighieri, uma mina quase infinita de conhecimentos, experiências, considerações em todos os campos da pesquisa humana, impõe-se uma reflexão. A riqueza de figuras, narrações, símbolos, imagens sugestivas e atraentes que Dante nos propõe suscita certamente admiração, maravilha, gratidão. Nele podemos quase entrever um precursor da nossa cultura multimediática, na qual palavras e imagens, símbolos e sons, poesia e dança se fundem numa única mensagem. Assim se compreende por que o seu poema tenha inspirado a criação de inúmeras obras de arte de todo o género.

Mas a obra do insigne Poeta suscita também alguns desafios para os nossos dias. Que poderá ela comunicar-nos, no nosso tempo? Terá ainda algo a dizer-nos, a oferecer-nos? Terá a sua mensagem alguma função a desempenhar também para nós na atualidade? Poderá ainda interpelar-nos?

Hoje Dante – tentemos fazer-nos intérpretes da sua voz – não nos pede para ser simplesmente lido, comentado, estudado, analisado. Pede-nos sobretudo para ser escutado, ser de certo modo imitado, fazer-nos seus companheiros de viagem, porque quer-nos mostrar também hoje qual é o itinerário para a felicidade, a direita via para viver plenamente a nossa humanidade, superando as selvas escuras onde perdemos a orientação e a dignidade. A viagem de Dante e a sua visão da vida além da morte não são simplesmente objeto duma narração, não constituem apenas um acontecimento pessoal, embora excecional.

Se Dante conta tudo isto (e fá-lo de maneira admirável), usando a linguagem vulgar do povo, a língua que todos podiam compreender, elevando-a a língua universal, é porque tem uma mensagem importante a transmitir-nos, uma palavra que quer tocar o nosso coração e a nossa mente, destinada a transformar-nos e mudar-nos já agora, nesta vida. É uma mensagem que pode e deve tornar-nos plenamente conscientes daquilo que somos e daquilo que vivemos dia após dia na tensão interior e contínua para a felicidade, para a plenitude da existência, para a pátria última onde estaremos em plena comunhão com Deus, Amor infinito e eterno. Embora Dante seja um homem do seu tempo e possua sensibilidade diferente da nossa em alguns assuntos, todavia o seu humanismo é ainda válido e atual e pode certamente constituir um ponto de referência para aquilo que queremos construir no nosso tempo.

Por isso, aproveitando esta ocasião propícia do centenário, é importante que a obra de Dante seja dada a conhecer ainda melhor e de maneira mais adequada, isto é, seja tornada acessível e atraente não só para alunos e estudiosos, mas também para todos aqueles que, ansiosos por dar resposta às questões interiores, desejosos de realizar em plenitude a sua existência, querem viver o seu itinerário de vida e de fé de forma consciente, acolhendo e vivendo com gratidão o dom e o compromisso da liberdade.

Congratulo-me naturalmente com os professores que são capazes de comunicar com paixão a mensagem de Dante, introduzir no tesouro cultural, religioso e moral contido nas suas obras. Mas este património pede para ser tornado acessível fora das aulas das escolas e universidades.

Exorto as comunidades cristãs, sobretudo as estabelecidas nas cidades que conservam as memórias de Dante, as instituições académicas, as associações e os movimentos culturais a promoverem iniciativas visando o conhecimento e a difusão da mensagem de Dante na sua plenitude.

De maneira particular encorajo os artistas a dar voz, rosto e coração, a dar forma, cor e som à poesia de Dante, ao longo da via da beleza que ele percorreu magistralmente; e assim comunicar as verdades mais profundas e, com as linguagens próprias da arte, difundir mensagens de paz, liberdade, fraternidade.

Neste momento histórico particular, marcado por muitas sombras, por situações que degradam a humanidade, por falta de confiança e de perspectivas para o futuro, a figura de Dante, profeta de esperança e testemunha do desejo humano de felicidade, pode ainda dar-nos palavras e exemplos que estimulam o nosso caminho. Pode ajudar-nos a avançar, com serenidade e coragem, na peregrinação da vida e da fé que todos somos chamados a realizar até o nosso coração encontrar a verdadeira paz e a verdadeira alegria, até chegarmos à meta última de toda a humanidade, «o amor que move o sol e as mais estrelas» (Par. XXXIII, 145).

Vaticano, na solenidade da Anunciação do Senhor, 25 de março do ano de 2021, nono do meu pontificado.

Francisco

Notas:

[*] Usou-se a tradução portuguesa da obra bilingue de VASCO GRAÇA MOURA, A Divina Comédia de Dante Alighieri, Bertrand Editora – Venda Nova, 52000.

[1] Carta enc. In praeclara summorum (30 de abril de 1921): AAS 13 (1921), 209-217

[2] Cf. ibidemo. c. 210

[3] Epistola Nobis, ad Catholicam (28 de outubro de 1914): AAS 6 (1914), 540.

[4] Discurso ao Sacro Colégio e à Prelatura Romana (23 de dezembro de 1965): AAS 58 (1966), 80

[5] Cf. AAS 58 (1966), 22-37.

[6] Discurso aos participantes no Encontro promovido pelo Pontifício Conselho «Cor Unum» (23 de janeiro de 2006): Insegnamenti 2006, II/1, 92-93.

[7] Ibidemo. c., 93.

[8] Cf. Carta enc. Lumen fidei (29 de junho de 2013), 4: AAS 105 (2013), 557.

[9] Mensagem ao Presidente do Pontifício Conselho para a Cultura (4 de maio de 2015): AAS 107 (2015), 551-552.

[10] Ibidemo. c., 552.

[11] L’Osservatore Romano (10 de outubro de 2020), 7.

[12] Cf. Confissões, I, 1, 1: PL 32, 661.

***

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Educação Clássica e S. Vicente Ferrer

Detalhe de São Vicente Ferrer em Virgem apocalíptica e São Vicente
Ferrer com dois doadores
, por Pedro García de Benabarre -
Museu Nacional de Arte da Catalunha, Barcelona (Espanha).


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Tempo de leitura: 63 minutos. 

A sapientia christiana e a analogia das artes liberais em um Sermão de São Vicente Ferrer (1350-1419), por Gustavo Cambraia Franco e Ricardo da Costa In: CORTIJO OCAÑA, Antonio; MARTINES, Vicent (orgs.). Mirabilia/Medtrans 04 (2016/2). New Approaches in the Research on the Crown of Aragon, p. 01-26. Disponível no LINK.

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Resumo: O presente artigo contém uma exposição e análise do tema das Artes Liberais em um sermão de São Vicente Ferrer, renomado pregador dominicano valenciano da passagem entre os séculos XIV e XV. Pretende-se demonstrar que as Artes Liberais são abordadas pelo sermonista dentro do escopo teórico tradicional da classificação das ciências no período medieval, como ramos de conhecimento destinados ao serviço da ciência maior, a Teologia, a valer-se da máxima escolástica philosophia ancilla theologiae. A exposição do autor segue os princípios didáticos medievais do pensamento analógico, da hermenêutica figurativa e da exegese alegórica da Bíblia, mediante os quais enreda os significados e propriedades de cada ciência ou Arte Liberal, quais sejam, a Gramática, a Lógica e a Retórica, ciências do Trivium, e a Música, a Aritmética, a Geometria e a Astrologia, ciências do Quadrivium, em uma teia de relações metafóricas e analógicas que visam, ao fim, conferir um sentido e utilidade espiritual, religiosa e moral à cada uma delas e subordiná-las ao domínio régio da sapientia christiana.

Abstract: This article contains an exposition and an analysis on the theme of the Liberal Arts in a sermon of Saint Vincent Ferrer, renowned Dominican Valencian preacher during the passage between the fourteenth and fifteenth centuries. We intend to show that the Liberal Arts are addressed by the sermonist within the traditional theoretical scope of classification of sciences in the medieval period, as branches of knowledge for the service of the higher science, Theology, to avail the scholastic dictum philosophia ancilla theologiae. In his exposition, the author follows the medieval didactic principles of analogical thinking, the figurative hermeneutics and the allegorical exegesis of the Bible, by which he ensnares the meanings and properties of each science or Liberal Art, namely Grammar, Logic and Rhetoric, the Trivium sciences, and Music, Arithmetic, Geometry and Astrology, Quadrivium sciences, in a web of metaphorical and analogical relations aimed, at the end, to confer spiritual, religious and moral meaning and utility to each of them, as well as subordinate them to the royal domain of the sapientia christiana.

Palavras-chave: São Vicente Ferrer – Artes Liberais – Pensamento Analógico – Sermão Medieval – Ciência Medieval.

Keywords: Saint Vincent Ferrer – Liberal Arts – Analogical Thinking – Medieval Sermon – Medieval Science.

I. Introdução

Vicente Ferrer (1350-1419), renomado pregador dominicano de Valência, na Catalunha medieval, consagra um de seus sermões integralmente a tratar das Artes Liberais, a partir de uma estruturação quase matemática (e poética) de seus conteúdos. As sete disciplinas profanas e básicas do currículo escolar medieval são comparadas pelo pregador à Prudentia cristã, não sem motivo a primeira das quatro virtudes morais clássicas, relacionadas, no sermão, à ciência e sabedoria de Cristo [1].

Para compreender seus postulados sobre a matéria devemos inseri-los no quadro geral da perspectiva medieval acerca da noção de scientia e das ciências como um todo, bem como das transformações que o conceito de Artes Liberais experimentou durante a Idade Média, sobretudo a partir do século XIII, em um momento no qual o quadro geral das disciplinas tradicionais e as noções filosóficas acerca da ciência e do saber passavam por um câmbio radical.

II. As sete Artes Liberais no contexto da ciência medieval

Desde Santo Agostinho (354-430) [2], a tradição intelectual ocidental cristã concedeu um lugar privilegiado às chamadas Artes Liberais e aos saberes profanos no sistema de educação cristã e em seu programa de estudos, como etapas propedêuticas ao estudo da Sagrada Escritura. A organização dos estudos nas escolas medievais obedecia ao padrão que havia sido estabelecido por Santo Agostinho.

Até o século XII, o currículo de ciências profanas se limitava ao estudo das sete Artes Liberais como etapa preparatória ao conhecimento e exegese da Bíblia, ou seja, a leitura e interpretação crítica da divina pagina [3]. Apenas no século XIII é que as antigas escolas de artes liberais se transformaram em faculdades de artes liberais (facultas artium), uma seção das universidades na qual se ensinava as sete artes e na qual os estudantes recebiam uma formação literária e científica ordenada aos estudos superiores da Filosofia, da Teologia, do Direito e da Medicina.

As Artes Liberais não constituíam, com efeito, as únicas ciências profanas a fazer parte do amplo cabedal de disciplinas científicas na Idade Média. Santo Agostinho já havia numerado uma grande quantidade de matérias que formalmente deveriam fazer parte da formação intelectual cristã e que eram úteis no aprofundamento dos estudos bíblicos: línguas, ciências naturais, Aritmética, Música, História, Geografia, Botânica, Geologia, Astronomia, as Artes Mecânicas, Dialética, Retórica, Matemática, doutrinas filosóficas relativas à moral e a religião.

Boécio (c. 480-525) [4], que conhecia profundamente a estrutura completa da filosofia aristotélica, escreveu importantes tratados relativos à Dialética e ao Quadrivium e, a partir dele, a importância das Artes Liberais se acentuou no Ocidente. Escritores como Cassiodoro (485-580) [5], autor de De artibus ac disciplinis liberalium litteratum, Isidoro de Sevilha (556-636) [6] e suas Etimologias e João Escoto Eriúgena (815-877) [7], em seu Divisione naturae inseriram as sete artes no quadro geral da sabedoria filosófica que, em suma, era propriamente a sabedoria cristã que havia absorvido da cultura pagã seus recursos de investigação racional, postos agora à serviço da contemplação divina e da Palavra de Deus [8].

Antes do século XIII, nos ambientes do claustro monástico e das escolas catedralícias episcopais, as Artes Liberais e disciplinas profanas eram claramente concebidas como estudos meramente preparatórios ao estudo da scientia divina, considerada o cume da sabedoria. Entendia-se as Artes Liberais como diferentes divisões da Filosofia, essa considerada o conjunto e síntese completa do saber profano, em oposição à ciência sagrada. Os ramos básicos da Filosofia eram aqueles propostos e aprovados por Santo Agostinho e Orígenes (c. 185-253) [9], uma divisão tripartida em física, ética e metafísica/teologia.

A subordinação, portanto, das Artes Liberais às disciplinas superiores era de ordem pedagógica, pois deviam ser estudadas antes delas, de modo a preparar os espíritos e a inteligência para o ingresso intelectual em matérias mais difíceis.

No entanto, após a introdução no Ocidente das obras traduzidas de Aristóteles (384-322 a. C.) [10] e de sua adaptação ao currículo universitário medieval, um choque inevitável entre a cultura pagã renascente e a cultura da revelação cristã ocorreu novamente no meio acadêmico sob os olhares da autoridade eclesiástica.

Os medievais questionavam se, fato, era possível aderir a uma síntese de saber racional profano tal como fora concebido na Antiguidade grega, sem que por isso se arruinasse a unidade do saber e da inteligência cristã e o compromisso intelectual e espiritual com o primado do saber sagrado [11], o que espíritos e gênios mais equilibrados do medievo souberam pacientemente, e a seu tempo, resolver.

A assimilação das ciências e do saber profano foi possível, no plano teórico, mediante o trabalho de classificação e ordenamento hierárquico das ciências. Os medievais aspiravam e tinham uma necessidade de universalidade, de unidade e de ordem que se refletia não apenas na política e na organização social, mas também na ciência [12].

Inúmeros autores procederam em suas obras a determinados tipos de classificação das ciências e do saber, como é o caso, por exemplo, de Hugo de São Vítor (1096-1141) [13], de Roberto Grosseteste (1168-1253) [14], de Santo Tomás de Aquino (1225-1274) [15], São Boaventura (1221-1274) [16], Ramon Llull (1232-1316) [17], Duns Scot (1266-1308) [18] e Dante Alighieri (1265-1321) [19], que também se refere à classificação das ciências no início de seu tratado De Monarchia e no Convivio [20]. Todos eles buscaram, de alguma forma, ordenar os ramos do conhecimento e estabelecer sua finalidade e propósito.

Embora autores como Santo Tomás de Aquino tivessem estabelecido o grau  de independência metodológica própria da Filosofia, a classificação das ciências e dos saberes profanos obedecia a uma busca de harmonia orgânica e vital com a mentalidade geral da época, sobretudo no que diz respeito à sua ordenação e submissão à Teologia.

Havia uma clara distinção hierárquica feita entre a Filosofia (Humana scientia), que incluía as Artes Liberais, e a Teologia, a ciência sagrada (Divina scientia) ou a ciência da Revelação contida nos livros sagrados (Divina Scriptura), em uma ordem de apreciação na qual a “ciência humana” estava subordinada, como um meio instrumental, à “ciência divina”, considerada o fim de seu(s) objeto(s).

Aceitava-se a ideia de uma sapientia ou sabedoria humana e racional distinta da sapientia christiana, a qual, por sua vez, detinha o primado na ordem do saber. Nesse sentido, as Artes Liberais e todos os outros ramos da Filosofia não podiam se constituir em um saber integral e suficiente, mas eram unicamente etapas, meios e instrumentos destinados ao serviço da ordem teológica e da visão cristã do universo, da qual estavam impregnados os homens e a cultura do medievo [21].

Francesco de Stefano, Il Pesellino (1422-1457). As Sete Artes Liberais (c. 1450). Têmpera no painel. 41,6 x 147,3 cm. Birmingham Museum of Art, Alabama. As artes do Quadrivium (Aritmética, Geometria, Música e Astrologia) e as do Trivium (Lógica, Retórica e Gramática) aparecem neste painel decorado personificadas por figuras femininas, cada qual a segurar os objetos particulares de sua ciência, e sentadas sobre mestres e sábios da antiguidade e do medievo. No período medieval, as Artes Liberais formavam as disciplinas profanas de caráter propedêutico, que compunham a grade de estudos introdutórios às ciências superiores, Teologia e Filosofia, e eram a base do currículo escolar medieval, a enkuklios paidea ou círculo da educação, termo do qual se derivou o nome de enciclopédia. As Artes Liberais foram também teorizadas e estudadas, como parte do projeto medieval de hierarquização e classificação das ciências, por diversos autores e filósofos, como Boécio, Raimundo Lúlio e Dante Alighieri.


III. As Artes Liberais em um Sermão de São Vicente Ferrer

A visão de Vicente Ferrer acerca da Artes Liberais e da Filosofia como um todo abrange os mesmos princípios que inspiravam a organização dos estudos medievais, e reflete a intenção que subjaz a todos eles, qual seja, a de suprimir a ideia de autonomia e independência da Filosofia como síntese de saber e como sabedoria de vida autônoma, tal como erigida pelo paganismo.

São Vicente Ferrer ordena tal síntese ou sistema de saber racional em proveito do sistema teológico geral, isto é, da ciência divina, a fonte de conhecimentos especulativos e morais pertencente ao universo intelectual cristão.

Na visão rigidamente religiosa de São Vicente, a sabedoria secular não é suficiente para se alcançar a perfeição de vida e a salvação, se esta não for repleta das virtudes sobrenaturais e da sabedoria cristã. Nolite esse prudentes apud vosmet ipsos [22]. “Ninguém seja sábio aos seus próprios olhos” ou “que ninguém considere a si mesmo sábio” é a recomendação de São Paulo que o autor escolhe como a passagem-tema de seu sermão sobre as Artes Liberais.

A partir dela, argumenta o santo em favor da sabedoria cristã e enfatiza o caráter de insuficiência e mesmo os perigos que advém de uma valorização excessiva da “ciência dos filósofos” e dos saberes seculares profanos.

Ferrer primeiro prossegue a uma definição dos significados do conceito de prudentia, tal como aparece no texto bíblico para, então, esclarecer qual o significado da segunda expressão apud vosmet ipsos. Segundo o autor, três são as virtudes intelectuais, a ciência (scientia), a prudência (prudentia) e a sabedoria (sapientia). A ciência é o conhecimento que se tem das criaturas.

A prudência é a cognição intelectual dos atos humanos. A sabedoria é o conhecimento especulativo que se tem do divino, com sabor de devoção. Embora se possa falar de maneira comum da sabedoria, da prudência e da ciência como sendo a mesma virtude, de modo estrito elas se diferem, pois alguém pode ter uma delas e faltar com as outras.

Pode-se ter o conhecimento das criaturas, isto é, a ciência, mas não ter sabedoria, ou seja, a cognição e devoção ao divino. Ao contrário, pode-se conhecer a Deus e ter devoção espiritual, mas faltar com a prudência, virtude que regula os atos humanos em relação a Deus e ao próximo, e não governar a si próprio, enquanto ser racional, segundo a ordem estabelecida por Deus.

Desta forma, não basta ao homem simplesmente possuir tal ou tal virtude intelectual, mas possui-las todas e de forma ordenada, de modo que sejam efetivas. Assim como a mulher diligente é a coroa de seu marido [23], assim a sabedoria é a coroa da prudência virtuosa [24].

O termo ciência deve ser entendido de duas formas. Uma é a ciência que está em nós, a outra é a ciência que está acima de nós. A ciência que se encontra em nós mesmos, é aquela descoberta pelo intelecto e engenho humano, como é o caso das Sete Artes Liberais. Acima de nós está a ciência que não é descoberta por ação do intelecto humano, mas que foi revelada por Deus, como é o caso da ciência do Antigo e do Novo Testamento. “Não sejais sábios aos vossos próprios olhos”, como diz o tema, significa não se preocupar em ter muito ou pouco da ciência humana, mas desejar e buscar a ciência que se encontra acima do homem, a ciência sobrenatural revelada por Deus.

A razão é que a ciência, a arte e o engenho criados pelo intelecto humano são pequenos e módicos, mas a ciência de Deus é alta, elevada e magnífica. O pregador apresenta uma similitude para ilustrar a natureza das duas ciências e suas diferenças e compara o mundo com um palácio celestial visitado pelos filósofos. Os sábios deste mundo tiveram acesso ao conhecimento de alguns de seus elementos, mas, no entanto, não tiveram acesso às câmaras ou aposentos mais elevados e próximos de Deus e sua infinita sabedoria, cujo acesso é restrito aos sábios cristãos.

Et hoc potest videre per quandam similitudinem, quam tangit August. De rustico seu pastore, intrante palatium et dicente: illa est camera regis, et illa reginae, et illa filiorum, et illa fenestrae, etc., sed ipse non intrat cameram regis, nec videt regem, nec scit quid faciat, sed hoc sciunt cubicularii, consiliarii et Barones, qui intrant cameram, etc. Ideo isti judicantur sapientes, et non pastor seu rusticus. Iste mundus est palatium Dei, quod ipse fabricavit et creavit. O Israel, quam magna est domus Dei, etc. Baruch 3.

Hoc palatium intraverunt Philosophi, Pythagoras, Anaxagoras, Plato, Aristot., etc., et nihil sciverunt, nisi quod in illa camera, scilicet in coelo sit prima intelligentia cum suis consiliaris, scilicet Angelis, disputabant de fenestris, scilicet lune, solis, stellis, de motibus orbium, de animabus, etc. Sed ipse non viderunt Regem Deum, sed secretarii Dei, scilicet Sancti Patriarchae, Prophetae, Apostoli et Doctores sancti, isti habuerunt scientiam ex divina revelatione, scientes, quomodo Deus regat et gubernet mundum. Patet diferentia inter antiquos Philosophos et SS. Apostolos, etc., quibus dixit sic: Jam non dicam vos servos, ut Philosophi fuerunt, quia servus nescit, quid faciat dominus eius. Vos autem dixi amicos, quia quacunque audivi a Patre meo, nota feci vobis. Joan. 15 [25].

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E isto se pode ver por uma similitude, de que trata Agostinho. Um pastor rústico entrou no palácio e disse: esta é a câmara do rei; esta a da rainha; esta a dos filhos, e estas são as janelas, etc., mas ele mesmo não entrou na câmara do rei, nem viu o rei, nem sabia o que ele estava fazendo. Mas isto sabiam os camareiros, os conselheiros e os Barões, pois eles entravam na câmara real. Por isso, estes são considerados sábios e não o pastor rústico. Este mundo é o palácio de Deus, que ele próprio fabricou e criou. Ó Israel, quão grande é a casa do Senhor, etc. Br 3, 24.

Neste palácio entraram os filósofos, Pitágoras, Anaxágoras, Platão, Aristóteles, etc., e nada conheceram senão o que estava naquele aposento, isto é, no céu no qual está a primeira inteligência com seus conselheiros, isto é, os Anjos, a disputar sobre as janelas, ou seja, a lua, o sol, as estrelas, o movimento do orbe, os animais, etc. Mas eles mesmos não viram a Deus Rei, mas somente os secretários de Deus o viram, isto é, os Santos Patriarcas, os Profetas, os Apóstolos e os Doutores santos, pois estes receberam a Ciência por divina revelação e sabem o modo com que Deus rege e governa o mundo. Eis a diferença entre os antigos filósofos e os Santos Apóstolos, etc., para os quais se disse: Já não vos chamo servos, como foram os filósofos, pois o servo não sabe o que faz o seu Senhor. Eu vos chamo amigos, pois vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai. Jo 15, 15.

A similitude tem o propósito de ilustrar o caráter de insuficiência da Filosofia face à plenitude de conhecimento cabível somente no âmbito da fé cristã e da amizade com Deus. Os filósofos antigos entreveram à luz da razão natural apenas alguns aspectos e porções do mundo criado. Eles entraram na primeira câmara do palácio de Deus e se entretiveram com a primeira inteligência celestial, com os “conselheiros” de Deus, os Anjos, por meio de disputas e argumentos sobre a natureza dos elementos do mundo, os astros, a lua, o sol, o movimento do orbe, sobre os animais, etc.

Mas eles, os filósofos, não visitaram a câmara do rei e não viram a Deus, um privilégio que coube apenas aos seus secretários, isto é, os Santos Patriarcas, os Profetas, os Apóstolos e Doutores da Igreja, os quais possuem a ciência da divina revelação e do modo como Deus rege e governa o mundo. Os antigos filósofos e a ciência filosófica são servos de Deus e de sua revelação, ao passo que os Apóstolos e Doutores cristãos são amigos de Cristo, que os deu a conhecer todos os mistérios que ouviu de Deus Pai.

Vicente Ferrer tem uma visão das Artes Liberais como uma ciência que, por ser um produto do engenho e intelecto humano, é limitada e deve, por isso, estar ordenada aos princípios mais elevados da virtude divina da Sabedoria, algo que se impõe pela própria estrutura cognitiva do intelecto humano, tal como concebido pelos escolásticos na divisão tripartida das virtudes intelectuais.

No entanto, o método analógico de raciocínio usado pelo pregador o leva a explicar, qualificar e comparar os elementos teóricos, técnicos e estruturais de cada arte liberal com doutrinas e exemplos morais extraídos da natureza da vida religiosa, da sua correspondência com o que é ensinado nos exemplos da Sagrada Escritura e que se remetem, por fim, à própria natureza de Cristo e à virtude da Sabedoria.

Em primeiro lugar, está a Gramática, chamada por Ferrer de “a primeira ciência dos filósofos”, a qual consiste no “falar com congruência ou concordância”. Três são suas características, a concordância entre o substantivo e o adjetivo, entre o nome e o verbo e entre relativos e antecedentes, as quais, na Gramática de Cristo, consistem em atribuir a Deus todas as coisas, guardar a boa fama do nome de si próprio e do próximo, manter sempre a honra e a reverência no falar e, por fim, ter sempre a verdade nos lábios, pois a oração verdadeira é aquela na qual não se encontra mentira ou falsidade nas palavras.

Prima scientia Philosophorum est Grammatica, quae docet loqui congrue, scilicet ut substantivum et adjectivum, nomem et verbum, relativum et antecedens conveniant. Ita in Grammatica Christi substantivum est Deus cuncta sustinens. Adjectiva autem quae in eo suppositantur, seu sustentantur, sunt omnia opera bona, sive mala poenalia, quae omnia a Deo sunt. [...] Nostra autem opera Deo sunt attribuenda, quia ipse facit omnia et sic substantiatur in Deo. Et ista est bona congruitas attribuire illa, quae fiunt et non creaturis quia incongruum esset. [...] Secundo debent convenire nomem et verbum in Grammatica Christi. Nomem est fama [...] verbo est sermo tuus.

Tunc nomem et verbum concordant quando tu non difamas nec mordes publicum peccatum nec secretum personae nominatae, sed cum reverentia et honore loquis vis de eis. [...] Tertio: relativum et antecedens est negotium de quo loquimini. Et conveniunt quando homo dicit veritatem de illo facto vel negocio, quia abe o, quod res est, vel non est, oratio vera vel falta dicitur. Omne mendacium est contra Grammaticam Christi, quia res extra non conveniunt [26].

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A primeira ciência dos filósofos é a Gramática, que ensina a falar de forma congruente, isto é, para que o substantivo e o adjetivo, o nome e o verbo, o relativo e o antecedente sejam convenientes. Na Gramática de Cristo o substantivo é Deus, que tudo sustenta. O adjetivo, por sua vez, que ele supõe e sustenta são todas as boas obras, ou as penas, pois todas pertencem a Deus. [...] Nossas obras devem ser atribuidas a Deus, pois Ele tudo fez e, assim encontram sua substância em Deus. E é boa congruência atribuir-lhe as coisas feitas, e não às criaturas, o que é uma incongruência. [...] Em segundo lugar, deve-se convir o nome e o verbo na Gramática de Cristo. O nome é a fama [...] o verbo é a sua palavra.

Dessa forma, o nome e o verbo concordam quando tu não difamas nem atacas em público o pecado ou segredo da pessoa nomeada, mas com reverência e honra falas dela. [...] Terceiro, relativo e antecedente são os negócios dos quais falas. E eles concordam quando o homem diz a verdade sobre aquele fato ou negócio, que coisa é, que coisa não é, de modo que se diz que a oração é verdadeira ou falsa. Toda mentira é contra a Gramática de Cristo, pois uma coisa que vai além da verdade não é conveniente.

O cristão deve atribuir todas as coisas a Deus como ao substantivo de todas as coisas, menos a má vontade e o pecado. Se todos os entes derivam e são causados pelo Primeiro Ente, Deus, conforme estabelecido por Aristóteles na Metafísica, segue-se que todas as obras boas ou mesmo certos males relativos, destinados à punição do homem pelo pecado, são obras de Deus.

Assim como a beleza de uma carta não se atribui à pena, mas ao escritor, a beleza e harmonia da natureza devem ser atribuídas a Deus como uma boa Gramática, pois as criaturas, a natureza e as constelações são apenas instrumentos e não origem e causa de si mesmas.

Assim a chuva, a abundância, e mesmo a esterilidade, a fome e a mortalidade, as enfermidades, as dores e adversidades, tudo deve ser atribuído a Deus, como adjetivos que se relacionam ao substantivo na oração gramatical divina. A Gramática de Cristo encontra-se nas Escrituras, no exemplo da resposta de Jacó à Esaú: E levantando Esaú os olhos, viu as mulheres e os meninos, e perguntou: Quem são estes contigo? Respondeu-lhe Jacó: Os filhos que Deus bondosamente tem dado a teu servo [27]. Jacó foi exemplo da boa Gramática que estabelece a necessidade de tudo atribuir a Deus.

A “segunda ciência dos Filósofos”, a Lógica, é a ciência que ensina a definir, disputar e raciocinar por silogismos, induções e enthymemata, isto é, o conjunto clássico de silogismos retóricos que deve ser usado na prática oratória. A finalidade da Lógica definida por São Vicente Ferrer deixa mais preciso o escopo religioso do conhecimento adquirido pelas luzes da razão e sua natureza instrumental em relação à ordem das coisas divinas e de certas práticas religiosas.

Com efeito, a Lógica dos filósofos consiste em um espírito diletante que faz os homens se oporem a outros homens. A Lógica de Cristo, no entanto, é a ciência que ensina os cristãos a disputarem e argumentarem contra as insídias, tentações e arguições do Diabo.

Secunda scientia Philosophorum est Logica, quae docet definire, disputare et rationes facere per silogismos vel consequentias, vel enthymemata, vel inductiones. Hanc invenerunt Philosophi ad disputandum, scilicet, ut homo cum homine, sed non cum diabolo disputet. Sed Logica Christi docet modum disputandi contra Diabolum. Diabolus magnus sofista facit multa argumenta contra illud, quo debemus credere, vel contra illa quae debemus facere, vel contra e aquae debemus sperare [28].

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A segunda ciência dos filósofos é a Lógica, que ensina a definir, disputar e fazer raciocínios por silogismos ou consequências, ou enthymemata, ou induções. Ocorre que a descobriram os filósofos para disputarem, isto é, disputar homem contra homem e não contra o Diabo. Mas a Lógica de Cristo ensina o modo com o qual disputar contra o Diabo. O Diabo é um grande sofista e faz muitos argumentos contra aquilo que devemos crer ou contra aquilo que devemos fazer ou contra aquilo que devemos esperar.com o qual disputar contra o Diabo. O Diabo é um grande sofista e faz muitos argumentos contra aquilo que devemos crer ou contra aquilo que devemos fazer ou contra aquilo que devemos esperar.

O Diabo argumenta contra aquilo em que o cristão deve crer, isto é, contra os dogmas de fé como, por exemplo, a Santíssima Trindade, a Encarnação de Cristo, a transubstanciação da hóstia consagrada, a virgindade perpétua de Maria, entre outras matérias de fé em relação as quais a Lógica de Cristo impõe responder com São Paulo: Et autem, qui potens est Deus, omnia facere superabundanter quam petimus aut intelligimus.

O diabo argumenta, ainda, contra aquilo que se deve fazer, isto é, a penitência e contra aquilo que o homem deve esperar, isto é, ser elevado ao céu. A disputa implica responder contra a astúcia e os sofismas do inimigo com os ensinamentos de Cristo, das Escrituras e da doutrina da Igreja.

Vicente Ferrer cita a disputa de argumentos entre Eva e a serpente descrita no livro de Gênesis. Ante a replicação da serpente, que a incitou a comer do fruto proibido, Eva deveria responder fundada na vontade de Deus e naquilo que O agrada, porém responde de outra forma e confirma o argumento do Diabo. O autor mostra, assim, que a Sagrada Escritura contém exemplos não somente do bom, mas também do mau uso da Lógica.

A terceira ciência, a Retórica, ensina a fazer petições e súplicas a Deus de forma apropriada e prudente. Erram aqueles que, como o fariseu, gabam-se dos dons recebidos por Deus como se fossem virtudes próprias. A Retórica de Cristo consiste, segundo o santo, em reconhecer que a prática das boas obras não é fundada na bondade do homem, mas de Deus. De nada vale pedir a graça de jejuar, de dar esmolas, de visitar os hospitais para saciar a vaidade e o amor próprio. São Vicente dá um exemplo da boa retórica, ao dizer

Ideo Rethorica Christi docet proprie allegare dicens: Domine vos fecistis mihi tot gratias, in creatione ad imaginem et similitudinem vestram. Similiter in nativitate, quia inter Christianos nati sum. Quia baptizatus, etc. Ideo Domine compleatis et faciatis mihi hanc gratiam. Ecce ista bona Rethorica, alegando ex parte Dei et non tua [29].

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Por isso, a Retórica de Cristo ensina a alegar devidamente, dizendo: Senhor, vós me destes toda graça, e na criação me fez à sua imagem e semelhança. Do mesmo modo em meu nascimento, pois nasci entre cristãos. Por meu batismo, etc. Por isso, o Senhor cumpriu e fez em mim esta graça. Eis o que é a boa Retórica, alegar da parte de Deus e não da tua.

Na Retórica cristã, há uma dupla alegação ou petição a ser feita, uma da parte de Deus, ao alegar suas excelências ou da parte de si mesmo, ao agradecer os benefícios divinos recebidos. São Vicente distingue as quatro formas de oração, ou seja, a obsecração, que consiste no pedido feito através dos méritos do nascimento ou da Paixão de Cristo, a oração, que é a elevação da mente a Deus, a ação de graças, que consiste no agradecimento feito pelas graças recebidas e, por fim, a petição ou o ato de pedir algum benefício.

À ciência do discurso e da fala, Ferrer acrescenta um componente ético e uma forte tonalidade religiosa. Todas as formas de se dirigir a Deus, de maneira apropriada e prudente, são partes da boa retórica, da Retórica de Cristo, a qual não se resume, como no classicismo, na arte de embelezar o discurso, mas de fazê-lo de tal modo que seja justo e agradável a Deus.

Aos medievais, sobretudo entre os pregadores, era cara a noção de que a eloquência e a verdadeira Retórica deveriam estar ao serviço da Ética e das virtudes. Seus alicerces deveriam ser a Verdade, o Bem, a Justiça e a Prudência. O discurso deveria agradar a Deus antes que aos homens. A utilidade do discurso não residia no mero deleite pessoal, mas em sua capacidade de mover o homem para o que é justo e bom.

A tradição medieval manteve a validade e o cariz ético da retórica clássica, incorporando nela as virtudes cristãs ou teologais (Fé, Esperança e Caridade). A retórica era concebida como um instrumento à serviço da palavra de Deus, pois compreendia-se que a finalidade da eloquência é a verdade. Os oradores deveriam valorizar mais “a verdade da doutrina que a beleza das palavras” [30].

Na visão de Ferrer, a tônica religiosa e espiritual que impõe às regras do discurso e da fala, é ainda maior que em outros autores, que de uma forma geral, no entanto, tendiam a direcionar a função das Artes e instrumentalizá-las inevitavelmente à um fim espiritual e moral [31]. São Vicente não se deixa conduzir a uma efetiva explicação e teorização técnica e conceitual das ciências e das Artes Liberais, mas tão somente pretende, no sermão apresentado, inseri-las no quadro geral de sua perspectiva teológica e ética [32].

Assim, ele define a quarta ciência, a Música, como a concordância e harmonia do canto e apresenta uma série de analogias extraídas da interpretação alegórica da Bíblia. A harmonia das vozes muito agrada a Deus, diz o pregador. A Música de Cristo consiste na harmonia da penitência, a qual possui três vozes ou notas musicais: a terça, que é a dor do peito e a compunção, a quinta, que são os suspiros e gemidos e a oitava, que consiste em suplicar a misericórdia divina.

Sume citharam, quae est poenitentia, cithara enim est lignum aridum et vacum, alias non faceret sonum. Ita persona poenitens est arida per abstinentia et vacua, quia sine praesumptione de Dei misericordia, neque stulte confidet. Cithara poenitentia habet octo chordas, facientis acutum sonum. Prima est paccatorum cognitio et emendanti propositum, et sic de aliis. Circui civitatem [...] quae circuire debet per vicos et plateas, scilicet ad Deum et ad Sanctos recurrendo [33].

Primo coram palatio Trinitatis dicendo: Domine opus vestrum sum, ideo Domine parcatis mihi. Ecce una cantilena. Deinde coram Virgine Maria, dicendo illud: nec abhore peccatores, sine quibus nunquam fores tanto digna filio. Deinde ad plateas Patriarcharum et Prophetarum, etc. Bene cane, frequenta canticum. Ista musica placet Deo, ideo dicit: Qua habitas in hortis, amici auscultant, fac me audire vocem tuam. Cant. 8. Horti dicuntur Ecclesiae. Amici, sancti qui auscultant quemadmodum de nocte homo auscultat cantus.

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Tome a cítara, que é a penitência, a cítara tem a madeira árida e vazia, pois de outra forma não emitiria som. Da mesma forma, a pessoa penitente é árida pela abstinência e vazia, pois é sem presunção da misericórdia de Deus, nem estultamente confiante. A Cítara da penitência tem oito cordas, que fazem som agudo. A primeira é a cognição do pecado e o propósito de emendar-se, e assim com as outras. Rodeie a cidade [...] pois deves circular pelas vias e ruas, isto é, a Deus e aos Santos recorrendo.

Primeiro diante do palácio da Trindade, dizendo: Senhor, sou obra sua, por isso o Senhor me poupa. Eis uma cantilena. Depois, diante da Virgem Maria, dizendo a ela: não abomines os pecadores, sem os quais não seria a digna Mãe de teu filho. Depois às ruas dos Patriarcas e Profetas, etc. Faça belas melodias, cante muitos cânticos. Esta música agrada a Deus, por isso foi dito: Ó vós que habitais os jardins, os amigos estão atentos para ouvir tua voz; faze-me, pois, também ouvi-la [34]. O jardim significa a Igreja. Os amigos são aqueles que escutam como de noite o homem escuta um cântico.

A passagem citada decorre da interpretação alegórica da passagem do profeta Isaías e procura estabelecer um vínculo bíblico entre a música e a penitência: Sume tibi citharam, circui civitate meretrix oblivioni tradita. Bene cane, frequenta canticum, ut memoria sit tui [35]. A meretriz esquecida é uma figura da alma pecadora desposada por Cristo no batismo e que deve a Ele retornar, a percorrer a cidade de Deus, cantar cânticos e fazer belas melodias de penitência, para que sua memória não seja esquecida.

O instrumento musical citado pelo profeta, a cítara, é uma figura da penitência e das cantilenas de arrependimento feitas pelos filhos de Deus nos diversos coros do palácio da Cidade de Deus, conforme esboça São Vicente Ferrer na bela analogia citada.

No caso da Aritmética, a ciência da numeração, São Vicente Ferrer procede a uma minuciosa e detalhada exposição da doutrina penitencial, por meio da analogia entre a arte da numeração com a prática sacramental da confissão. A Aritmética de Cristo consiste na numeração e divisão dos gêneros e espécies de pecados cometidos contra Deus e seus preceitos e contra as obras de misericórdia, por vício nos sentidos corporais. Na confissão, não basta enumerar ao confessor os pecados mortais, mas também os veniais, pois, caso contrário, esta seria uma aritmética do Diabo [36].

Existem três tipos de confissão: a primeira é chamada confissão especial ou confissão sacramental, que é aquela na qual o pecador enumera seus pecados ao sacerdote; a segunda é chamada confissão geral, a qual se faz no introito da Missa ou aquela confissão de culpa que fazem os religiosos na reunião do capítulo da Ordem; e a terceira é a confissão generalíssima, pela qual se diz a Deus “sou pecador”.

São Vicente Ferrer utiliza o exemplo dos vícios capitais para ensinar que não basta, na confissão oral, dizer o nome genérico do pecado, como por exemplo, a soberba, mas é necessário descer até suas espécies, qual seja, se o pecado da soberba e desprezo foi contra o pai ou a mãe, contra um Prelado ou Senhor, contra um maior ou menor em dignidade e honra, ou um igual, ou ainda, se foi contra um santo ou contra Deus.

A avareza também é uma designação genérica que comporta muitas espécies de pecado, como a simonia, a usura, a rapina ou o furto ou, ainda, se foi cometida comprando, vendendo, caluniando ou julgando.

Da mesma forma com a luxúria, é necessário enumerar na confissão se foi um ato de fornicação, ou adultério, rapto, incesto ou sacrilégio ou um pecado contra a natureza. Não se deve dizer o nome do indivíduo, isto é, nominar as pessoas, mas dizer a espécie de cada pecado mortal.

São Vicente cita o exemplum ilustrativo de um italiano que dizia ter somente três pecados parvíssimos: a usura, a luxúria e não crer em Deus. Ele enumera mal os pecados, diferente do rei de Judá, Manassés que, de acordo com a Aritmética de Cristo, bem enumera seus pecados dizendo: peccavi super numerum arena maris et multiplicata iniquitates meae [37].

A Geometria, a sexta na ordem das Artes Liberais e a terceira do Quadrivium, é a ciência dos filósofos que trata das medidas e proporções. De acordo com São Vicente, a Geometria de Cristo ensina a medir, de forma correta e prudente, a própria vida, os bens temporais e o serviço que se deve prestar a Deus. Se bem medir-se a vida humana nesta terra, ver-se-á que ela é insignificante e transitória, quase um nada, pois o que é passado nada é e o que seria o futuro, não existe.

A vida humana consiste em um ponto, pois do tempo o homem não tem senão o presente. Assim bem conhecia a medida desta vida Tiago Apóstolo, que afirmou: Quae enim est vita vestra? Vapor ad modicum parens et deinceps exterminabitur [38].

Por ser a vida tão módica, devemos ter os méritos da humildade. Em segundo lugar, diz São Vicente Ferrer, devemos medir os bens temporais, as honrarias, os ofícios, as dignidades e prelações. Se bem medidos, nenhum desses bens parece bom, pois o mérito não reside no fato de ser um rei ou um papa, mas em prestar contas a Deus das almas e fazer o bem a todos sob pena de danação eterna.

O rei deve prestar conta do bem de todos os seus súditos e o papa das almas de seu rebanho. Possuir muitas riquezas é um grande bem, o qual, no entanto, é frequentemente mal medido, conforme ilustrado por uma outra similitude apresentada por São Vicente Ferrer, que faz alusão à tolice de se acumular riquezas em proveito próprio.

Item videtur vobis, quod habere multas divitias sit Magnum bonum, sed male mensuratis, quia asinus potest esse auro oneratus, quod nec potest ipsum secum portare, ita quilibet dives oneratus est bonis divitiarum ipsius mundi, qui est Dominus divitiarum. Si vultus scire, quis divitiarum est Dominus, vos, an mundus? [...] Ideo onerate vos virtutibus et meritis, quae sequuntur hominem. Item videtur vobis, quod perfectae et purae, consolationes, vel etiam transitoriae et momentaneae voluptates carnis sint magnae delectationes, sed debemus mensurare servitium Dei [39].

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Vede vós, que ter muitas riquezas é um grande bem, mas mal mensurado, pois como o asno pode ser onerado pelo peso do ouro, mas não pode ele mesmo possui-lo, assim é qualquer rico que esteja onerado com os bens e riquezas desse mundo, que são riquezas de Deus. Se queres saber, quem é o senhor da riqueza, vós ou o mundo? Por isso, onerai-vos de virtudes e méritos, que seguem o homem. Também vede vós, quão perfeitas e puras são suas consolações, e quão transitórios e momentâneos são os deleites e prazeres da carne, mas, por isso, devemos mensurar o serviço de Deus.

O homem tolo é como um asno que carrega ouro nas costas, mas não é o dono da riqueza. Os bens temporais são dádivas que pertencem a Deus e que a Ele devem ser remetidas. A Geometria de Cristo ensina ao homem a não se onerar de riquezas vãs e mundanas, bem como dos falsos, transitórios e momentâneos deleites da carne, mas a medir o serviço de Deus e acumular-se de virtudes e méritos, pela prática de obras puras e perfeitas. A medida justa é aquela de quem se humilha: Quanto magnus est, humilia te in omnibus et coram Deo invenies gratiam [40].

Vicente Ferrer conclui sua exposição sobre as Artes Liberais com a sétima das artes e última do Quadrivium. O pregador define a Astrologia como a ciência dos motores celestes, da ordenação dos planetas e da influência que eles exercem sobre a terra e os homens. Os astros, com o sol e a lua e suas caraterísticas naturais são considerados por São Vicente Ferrer como figuras analógicas da Santíssima Trindade, da Igreja e da Virgem Maria.

De acordo com a Astrologia que se aprende na escola de Cristo, assim como não há senão um só sol no céu, o qual possui três atributos, a substância, a radiação e o calor, também não há no céu empíreo senão um só Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. O sol circula pelo mundo desde o princípio do ano até o seu final, num círculo formado pelos doze signos, e ilumina, aquece e faz frutificar a terra.

Assim, também, o Sol de Justiça, Cristo, circula na terra e entre os homens pela fé nos doze artigos do Credo, dos quais alguns tratam de sua divindade e outros de sua humanidade. Ferrer alegoriza a figura da lua e de seus estágios, primeiro, ao compará-los com as idades da Igreja cristã, e depois, com os estágios de vida da Virgem Maria.

Item luna totam claritatem recipit a sole, ita Ecclesia totam claritatem habet a Deo. Nota septem conditiones lunae, quae reperiuntur in Ecclesia. Primo fuit nova tempore Christi et Apostolorum. Secundo fuit crescens tempore martyrum. Tertio fuit plena tempore Doctorum. Quarta fuit minuta tempore confessorum. Quinto fuit girata. Nam totus mundus est giratus et versus ad vanitatem. Sexto eclypsabitur cito, scilicet tempore Antichristi. Septimo in die judicii erit perfecta in aeternum. [...]

Et sicut in sole sunt tria, substantia, radius et calor, ita in Christo substantia corporis et radius divinitatis et calor dilectionis. Luna est Virgo Maria, quae fuit nova in nativitate, crescens in templi habitatione, plena in filii Dei conceptione, minuta secum portans Dominum in Aegypti fugatione, et girata in passione Christi, eclypsata in corporis defunctione et tandem perfecta in corporis et animae glorificatione [41].

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Da mesma forma que a lua recebe toda a sua claridade do sol, assim a Igreja recebe sua claridade de Deus. Observe as sete condições da lua, que se encontram na Igreja. A primeira foi o tempo novo de Cristo e dos Apóstolos. A segunda foi o tempo crescente dos mártires. A terceira foi o tempo pleno dos Doutores. A quarta foi o tempo minguante dos Confessores. A quinta foi o retorno. Pois todo o mundo retornou verso à vaidade. A sexto é o rápido eclipse, isto é, o tempo do Anticristo. A sétima condição no dia do juízo, quando será perfeita e eterna. [...]

E assim como no sol encontram-se três atributos, isto é, substância, radiação e calor, assim em Cristo há a substância de seu corpo, a radiação de sua divindade e o calor de seu amor. A lua é a Virgem Maria, que foi nova em seu nascimento, crescente na habitação do templo, cheia na concepção do Filho de Deus, minguante ao carregar o Senhor na fuga do Egito, virada na Paixão de Cristo, eclipsada na morte do corpo e, então, perfeita na glorificação do corpo e da alma.

A conclusão da exposição não poderia ser mais significativa dessa relação especular. O bom astrólogo é aquele que contempla os planetas e considera-os análogos aos Anjos, os quais exercem influência constante no mundo e nos custodiam na terra. Mesmo no estudo das ciências naturais, humanas e filosóficas, a razão do cristão deve estar sempre embebida do espirito de contemplação, segundo a palavra de São Paulo: nostra conversatio in coelis est [42].

Deve o homem evitar estimar em demasia a prudência e a sabedoria do mundo e da carne, mas buscar e desejar a contemplação claríssima das coisas celestes, pela virtude da Sabedoria divina, infinita e incriada que Deus concederá ao seus na sua glória [43].

Para São Vicente, há nos astros e na composição da esfera celeste um conjunto de significados alegóricos e simbólicos que estão estampados imageticamente em sua natureza e em seus atributos. O pensamento analógico mais uma irriga a visão religiosa e providencial que se tem da ciência. Há uma Astrologia científica, assim como há uma Astrologia cristã.

Os elementos da esfera natural são sacramentalizados e sacralizados, e transpostos pelo santo em uma linguagem simbólica e figural. O speculum naturae mais uma vez é entrelaçado com a doutrina religiosa e com a visão cristã do universo, em um sistema analógico de referências construído através do jogo especular entre o âmbito da fé e da razão, entre a Teologia e a Filosofia, e entre o mundo das realidades e entidades sobrenaturais e naturais.

Em sua abordagem das ciências profanas, Ferrer age como o construtor de um dique que tem por propósito separar e distinguir o âmbito da cultura filosófica do âmbito da ciência divina. No embate entre a cultura secular e a do paganismo renascente em face da ordem e da tradição intelectual e religiosa cristã medieval, a visão sacralizada do mundo e do conhecimento é amplamente favorecida pelo pregador.

O autor não admite a tendência de se insuflar os métodos tradicionais de exegese e a consciência estritamente religiosa do conhecimento e da sabedoria, fundada nas fontes da Sagrada Escritura, em favor da valorização excessiva e imprudente da Filosofia e da sapientia pagã que, aos seus olhos, consistiria sempre numa ocasião de perigo e perda do sentido de fé, ocasião diante da qual nenhum homem possui imunidade.

Nesse sentido, a missão de Vicente Ferrer, como legatus a latere Christo, o impelia a agir na sociedade como reformador dos costumes e, consequentemente, da própria cultura. O pregador estava ciente de que era um porta-voz do céu, um catequista e moralizador que devia necessariamente direcionar e vincular seu discurso ao seu objetivo maior e final, qual seja, a de formar o povo e o clero em uma vida cristã modelar e efetiva.

Baseava-se em uma visão de mundo particular e essencialmente religiosa, e afastava-se o tanto quanto lhe era capaz do paganismo renascentista que já despertava, em seu tempo, inúmeras inquietações e profundas mudanças na cultura medieval.

Se os humanistas viam e desfrutavam da cultura clássica com um espírito de prazer e deleite e julgavam, como cristãos, que eram maduros e conscientes o suficiente para não deixá-la suplantar-lhes a fé, Vicente Ferrer, pelo contrário, enxergava a cultura pagã de uma forma geral e seu reflorescimento como uma perigosa e mortal investida do demônio contra a ordem cristã e contra as ovelhas do rebanho de Cristo [44].

Por esse motivo, embora o pregador se aproxime e trate frequentemente da “ciência dos filósofos”, valendo-se de muitos de seus postulados e ensinamentos, o faz apenas de maneira instrumental. Serve-se da Filosofia e medita a natureza das Artes Liberais dentro do escopo do verdadeiro sentido de sua existência, como servas da ciência sagrada.

O cristão, salienta, deveria se ocupar mais das Sagradas Escrituras, da obra dos Padres cristãos antigos e do magistério da Igreja e menos com os artifícios da Lógica, da Retórica e das demais ciências profanas, cujo uso e significado devem ser vertidos em proveito do evangelho e da autêntica vida cristã.

Conclusão

Na concepção ferreriana, a scientia divina é a única verdadeiramente necessária, ao passo que a humana scientia serve apenas para o consolo e conforto da inteligência. Não sem razão, vemos abundar no sermão analisado, por um lado, matérias e disciplinas que tratam da prática da religião, como a temática dos sacramentos, da penitência, das virtudes e dos vícios, da oração, das ordens e dos estados eclesiásticos e civis, da teologia trinitária, cristológica e mariana, bem como das relações do homem para com Deus e o próximo baseadas em uma concepção feudal e sacralizada.

Por outro lado, todas essas matérias são expostas tendo como recipiente intelectual o bojo da mentalidade simbólica medieval, profundamente imersa na visão alegórica, metafórica, figural e analógica da realidade, na qual a doutrina se faz compreensível por meio do exemplum, da similitude, do jogo especular entre o mundo físico, natural e o mundo sobrenatural e, sobretudo, pelo uso abundante do metaforismo e da exegese alegórica da Bíblia, considerada a fonte principal e inesgotável da ciência e do saber.

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Notas

[1] Daqui o sugestivo nome do sermão, De Christiana prudentia, quae certo modo septe artes liberales complectitur. Cf. SANCTI VICENTII FERRERII. “Dominica III Post Epiphaniam. Sermo III”. In: Opera Seu Sermones de Tempore. Tomus primus. Augsburg: Strötter, 1729, p. 114. Trata-se de um sermão modelo, de uma peça oratória repetida a ser usada em diversas ocasiões, provavelmente durante a campanha castelhana de sua pregação, e que se encontram, além da versão latina, também em catalão e castelhano, como atesta Ysern i Lagarda em sua análise de um outro sermão semelhante, no qual o autor versa, do mesmo modo, sobre as Artes Liberais. Cf. YSERN I LAGARDA, Josep-Antoni. “Sobre el Sermo unius confessoris et septem arcium spiritualium de Sant Vicent Ferrer”. In: Revista de Lengua y Literatura Catalana, Gallega y Vasca 6 (1999), p.117.

[2] Agostinho de Hipona, ou Santo Agostinho, foi um dos mais importantes teólogos e filósofos dos primeiros anos do Cristianismo, cujas obras foram muito influentes no desenvolvimento do cristianismo e da filosofia ocidental. Foi Bispo de Hipona, uma cidade na província romana da África. Escreveu na era patrística, e é amplamente considerado como o mais importante dos Padres da Igreja no Ocidente. Cf. GILSON, Etiénne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 2006. Entre suas principais obras, está a Cidade de Deus (Civitate Dei) e um tratado de Exegese Bíblica (De Doctrina Christiana) muito difundido na Idade Média. Cf. SANTO AGOSTINHO. A Doutrina Cristã. Manual de exegese e formação cristã. São Paulo: Paulus, 2002. O Cristianismo levou a cabo um processo de revisão do espírito pagão antigo e de seu programa educacional. A obra De Doctrina Christiana, de Santo Agostinho, marcou o ponto culminante nesse processo de revisão, no qual se deu o encontro decisivo entre a Revelação cristã com a visão de mundo outrora elaborada pelo paganismo e influenciou sobremaneira o plano de organização de estudos nas escolas cristãs. A obra, usada por padres e bispos para a catequese, é composta de uma introdução à leitura e exegese das Sagradas Escrituras e contém a concepção agostiniana acerca do saber cristão que veio substituir a Filosofia e sabedoria pagã. A sabedoria cristã é concebida como uma síntese de saberes que se centram e atingem seu cume na ciência dos livros sagrados, na Bíblia. Agostinho demonstra que todas as ciências profanas devem ser utilizadas pelo cristão na exegese da Bíblia, em um programa de estudos que ia além dos limites das Sete Artes Liberais. Cf. VAN STEENBERGHEN, Fernand. “L'organisation des études au moyen âge et ses répercussions sur le mouvement philosophique”. In: Revue Philosophique de Louvain. Troisième série, tome 52, n°36, 1954, p. 577.

[3] Cf. DUBY, Georges. O Tempo das Catedrais. A arte e a sociedade (980-1420). Lisboa: Estampa, 1993, pp. 118-119.

[4] Filósofo, estadista, musicólogo e teólogo romano que se notabilizou pela sua tradução e comentário do Isagoge de Porfírio, obra que se transformou em um dos textos mais influentes da Filosofia medieval europeia. Traduziu, comentou e resumiu, entre obras dos clássicos gregos, vários tratados sobre Matemática, Lógica e Teologia. Enquanto aguardava sob prisão a execução, escreveu De Consolatione Philosophiae (A Consolação da Filosofia), obra que versa, entre outros temas, sobre o conceito de eternidade e na qual tenta demonstrar que a procura da sabedoria e do amor de Deus é a verdadeira fonte da felicidade humana. Ver BOÉCIO. A Consolação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998; e COSTA, Ricardo da; ZIERER, Adriana. “Boécio e Ramon Llull: a Roda da Fortuna, princípio e fim dos homens”. In: Revista Convenit Internacional  (Editora Mandruvá), 5 (2000).

[5] Político, historiador, musicólogo e filósofo latino, fundador do mosteiro de Vivarium, no sul da Itália. Ver LEJAY, Paul. “Cassiosorus”. In: The Catholic Encyclopedia, vol 13 (1913).

[6] Isidoro de Sevilha (em latim: Isidorus Hispalensis; nascido provavelmente em Cartagena) foi um eclesiástico católico erudito polímata hispanogodo. Foi Arcebispo de Sevilha durante mais de três décadas (599-636) e canonizado pela Igreja Católica, por isso conhecido habitualmente como Santo Isidoro de Sevilla. Foi um escritor prolífico e um infatigável compilador. Compôs numerosos trabalhos históricos e litúrgicos, tratados de Astronomia e Geografia, diálogos, enciclopédias, biografias de pessoas ilustres, textos teológicos e eclesiásticos, ensaios e comentários sobre o Antigo e Novo Testamento, e um dicionário de sinônimos. Sua obra mais importante são as Etimologias, uma extensa compilação na qual sistematiza e condensa todo o conhecimento da época. Ver SAN ISIDORO DE SEVILLA. Etimologías. Madrid: BAC, 2004; para uma biografia mais detalhada, ver ROS, C. “Isidoro de Sevilla”. In: LEONARDI, C.; RICCARDI, A.; ZARRI, G. (dir.). Diccionario de los Santos. Volumen 1. Madrid: San Pablo, 1998, pp. 1119-1124.

[7] Filósofo, teólogo e tradutor irlandês, expoente máximo do renascimento carolíngio no século IX, Eriúgena concentrou seus estudos nas relações entre a filosofia grega e os princípios do Cristianismo. Na corte, ensinou Gramática e Dialética, e traduziu diversas obras teológicas e filosóficas dos Padres da Igreja. Ver FREMANTLE, Anne (ed.). “John Scotus Erigena”. In: The Age of Belief. The Medieval Philosophers. Boston: Houghton Mifflin Company, 1955, pp. 72-87.

[8] VAN STEENBERGHEN, Fernand. “L'organisation des études au moyen âge et ses répercussions sur le mouvement philosophique”, op. cit., p. 579.

[9] Teólogo, filósofo neoplatônico grego, nascido em Alexandria, é um dos Padres gregos. Escreveu uma série de obras exegéticas e comentários à Bíblia.

[10] Filósofo grego, aluno de Platão e professor de Alexandre, o Grande (356-323 a. C.). Seus escritos abrangem diversos assuntos, como a Física, a Metafísica, a Poesia, o Drama, a Música, a Lógica, a Retórica, a Política, a Ética, a Biologia e a Zoologia. Juntamente com Platão e Sócrates (professor de Platão), Aristóteles é visto como um dos fundadores da filosofia ocidental. Para uma edição de suas obras completas, Cf. ARISTÓTELES. Obras Completas. 20 vols. Madrid: Gredos, 1987; o estudo de António Pedro Mesquita (Aristóteles. Obras Completas. Introdução Geral. Lisboa: Impensa Nacional-Casa da Moeda, 2005); bem como a obra de Giovanni Reale (Introduzione a Aristotele. Roma-Bari: Editori Laterza, 1977).

[11] VAN STEENBERGHEN, Fernand. “L'organisation des études au moyen âge et ses répercussions sur le mouvement philosophique”, op. cit., p. 581.

[12] DE WULF, Maurice. Philosophy and Civilization in the Middle Ages. Princeton: Princeton University Press, 1922, p. 151.

[13] Filósofo, teólogo, cardeal, monge e autor místico da Idade Média. Seu tratado intitulado Didascalicon serviu como referência tanto aos estudantes como aos professores das recém-abertas escolas catedralícias da Europa medieval. O tratado divide e classifica, sistematicamente, as formas de conhecimento. Neste trabalho, ele também desenvolve a chave para entender as Escrituras distinguindo entre o significado literal (historia) e o profundo significado para além da letra (alegoria). Cf. HUGONIS DE S. VICTORE. “De Scripturis et Scriptoribus Sacris”. In: J. –P. MIGNE. Patrologiae cursus completus: series latina. Paris: Migne, 1861-1864, v. 175, c. 09-28; HUGO DE SÃO VÍTOR. Didascálicon. Da Arte de Ler. VI, 2. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 235; COSTA, Ricardo da. “A Ciência no Pensamento Especulativo Medieval”. In: Sinais 5, vol. 1, setembro/2009, p. 135 ss.

[14] Roberto Grosseteste foi uma figura central do importante movimento intelectual da primeira metade do século XIII na Inglaterra. Foi apelidado de Grosseteste (cabeça grande) pela sua enorme capacidade intelectual. Escreveu sobre Astronomia, Geometria e, especialmente, Óptica. Primeiro estudioso europeu a dominar as línguas grega e hebraica. Sua influência foi bastante significativa numa época em que o novo conhecimento da ciência e da filosofia gregas produziam efeitos profundos na filosofia cristã. Ver BOEHNER, P; GILSON, E. História da Filosofia Cristã. Petrópolis, Vozes, 1970, pp. 363- 376; e LOPEZ CUÉTARA, José Miguel. El aristotelismo en el pensamiento de Robert Grosseteste. DF, México: Verdad y Vida, 2005.

[15] Tomás de Aquino foi um frade da Ordem dos Pregadores (dominicanos) italiano, cujas obras tiveram enorme influência na Teologia e Filosofia, principalmente na tradição conhecida como Escolástica, e que, por isso, é conhecido como Doctor Angelicus, Doctor Communis e Doctor Universalis. Tomás abraçou diversas ideias de Aristóteles – a quem ele se referia como "o Filósofo" – e tentou sintetizar a filosofia aristotélica com os princípios do Cristianismo. As obras mais conhecidas de Tomás são a Suma Teológica (Summa Theologiae) e a Suma contra os Gentios (Summa contra Gentiles). Seus comentários sobre as Escrituras e sobre Aristóteles também são parte importante de seu corpus literário. Além disso, Tomás se distingue por seus hinos eucarísticos, que ainda hoje fazem parte da liturgia da Igreja. Sobre sua vida e obra, Cf. ALARCÓN, E.; FAITANIN, P. (eds.). Atualidade do tomismo. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2008; e PIEPER, Josef. Introducción a Tomás de Aquino. Rialp: Centenario, 1948.

[16] Um dos mais importantes teólogos e filósofos escolásticos medievais, nascido na Itália no século XIII. Sétimo Ministro-Geral da Ordem dos Frades Menores, foi também cardeal-bispo de Albano. Ver BOUGEROL, J. G. Introduzione a S. Bonaventura. Vicenza: LIEF, 1988.

[17] Raimundo Lúlio foi o mais importante escritor, filósofo, poeta, missionário e teólogo da língua catalã. Foi um prolífico autor também em árabe e latim, bem como em langue d'oc. Ao longo de sua obra, Ramon Llull formulou uma extensa classificação das ciências e das Artes Mecânicas e Liberais e conferiu a elas um sentido pedagógico e educacional, mas também instrumental, ou seja, pretende abarcar todos os conhecimentos humanos e ramificações do saber sem abandonar as aquisições da sabedoria cristã, que ao longo dos séculos conceberam a busca do saber como uma amorosa e desinteressada busca da felicidade e da contemplação de Deus, seu cume. Ver COSTA, Ricardo da. “Las definiciones de las siete artes liberales y mecánicas en la obra de Ramon Llull”. In: Anales del Seminario de Historia de la Filosofia. Vol. 23 (2006), pp. 131-164.

[18] Membro da Ordem Franciscana, filósofo e teólogo da tradição escolástica, chamado o Doutor Sutil, foi mentor de outro grande nome da filosofia medieval: Guilherme de Ockham (1285-1347). Para Scotus, as verdades da fé não poderiam ser compreendidas pela razão. A filosofia, assim, deveria deixar de ser uma serva da teologia e adquirir autonomia. Ver FERRATER MORA, José. “Duns Scoto”. In: Diccionario de Filosofia. Buenos Aires: Sudamericana, 1965, pp. 488-490.

[19] Dante Alighieri foi um escritor, poeta e político italiano. É considerado o primeiro e maior poeta da língua italiana, definido como il sommo poeta.

[20] A filosofia de Dante sobre as Artes Liberais foi analisada por COSTA, Ricardo da. “‘Entendo por ‘céu’ a ciência e por ‘céus’ as ciências’: As Sete Artes Liberais no Convívio (c. 1304-1307) de Dante Alighieri”. In: Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF. Anpof, 2015, p. 353.

[21] VAN STEENBERGHEN, Fernand. “L'organisation des études au moyen âge et ses répercussions sur le mouvement philosophique”, op. cit., p. 592.

[22] Rm 12, 16.

[23] “Mulier diligens corona est viro” (Pv 12, 4).

[24] SANCTI VICENTII FERRERII. “Dominica III. Post Epiphaniam. Sermo III”. In: Opera Seu Sermones de Tempore. Tomus primus, op. cit., pp. 113-114.

[25] Ibidem, p. 114.

[26] Ibidem, p. 115.

[27] Gn 33, 5.

[28] SANCTI VICENTII FERRERII. “Dominica III. Post Epiphaniam. Sermo III”. In: Opera Seu Sermones de Tempore. Tomus primus, op. cit., p. 115.

[29] Ibidem, p. 116.

[30] SAN AGUSTÌN. “De la doctrina christiana, Libro IV, 28, 61”. In: MARTÌN, O. S. A., Fr. Balbino (ed.). Obras de San Agustín. Tomo XV. Madrid: BAC, 1957, p. 343; e COSTA, Ricardo da. “A Educação na Idade Média: a Retórica Nova (1301) de Ramon Llull”. In: LAUAND, Luiz Jean (coord.). Revista NOTANDUM, n. 16, Ano XI, 2008, pp. 29-38. Editora Mandruvá - Univ. do Porto.

[31] Ramon Llull, por exemplo, valorizava o aspecto ornamental e os atributos de beleza da linguagem, mas entendia que a Retórica e a beleza do discurso deviam servir à conversão das almas, para o que era sempre proveitoso o uso abundante de variados recursos, como vocábulos e expressões belas, analogias belas, ornamento adequado, conjunções e disjunções apropriadas, provérbios, exempla e moralidades. Cf. COSTA, Ricardo da. “La Retórica Nueva (1301) de Ramón Llull: la Belleza a servicio de la conversión”. In: eHumanista/IVITRA 8 (2015), p. 31.

[32] Cf. COSTA, Ricardo da; FRANCO, Gustavo Cambraia. “São Vicente Ferrer (1350-1419) e a eficácia filosófico-retórica do sermão: Arte e Filosofia”. In: SANTOS, Bento Silva (org.). Mirabilia 20 (2015/1). Arte, Crítica e Mística – Art, Criticism and Mystique. Barcelona: Institut d’Estudis Medievals, UAB, Jan-Jun 2015, p. 100 ss.

[33] SANCTI VICENTII FERRERII. “Dominica III. Post Epiphaniam. Sermo III”. In: Opera Seu Sermones de Tempore. Tomus primus, op. cit., pp. 116-117.

[34] Ct 8, 13.

[35] Is, 23.

[36] Ibidem, p. 117.

[37] Esta oração, chamada de Oração de Manassés, é de origem apócrifa e encontra-se nas bíblias gregas e eslavas. Ela foi colocada, tardiamente e em separado, como apêndice do Livro das Crônicas na Bíblia Vulgata, que era o texto utilizado por nosso autor. Idem.

[38] Iacobi 3, 14.

[39] SANCTI VICENTII FERRERII. “Dominica III. Post Epiphaniam. Sermo III”. In: Opera Seu Sermones de Tempore. Tomus primus, op. cit., p. 117.

[40] Eccles. 3, 20.

[41] SANCTI VICENTII FERRERII. “Dominica III. Post Epiphaniam. Sermo III”. In: Opera Seu Sermones de Tempore. Tomus primus, op. cit., p. 118.

[42] Phil. 3, 20.

[43] SANCTI VICENTII FERRERII. “Dominica III. Post Epiphaniam. Sermo III”. In: Opera Seu Sermones de Tempore. Tomus primus, op. cit., p. 118.

[44] Um esboço geral da oposição de São Vicente Ferrer à cultura clássica pagã encontra-se em ENRIC RUBIO, Josep. “Intelectuales y eclesiásticos en la Valencia tardomedieval”. In: JOSEP ESCARTÍ, Vicent (coord.). Escribir y persistir. Estudios sobre la literatura en catalán de la Edad Media a la Renaixença. Volumen I. Buenos Aires; Los Angeles: Argus-a, 2013, p. 3 ss.

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