Loading [MathJax]/extensions/tex2jax.js

Postagem em destaque

COMECE POR AQUI: Conheça o Blog Summa Mathematicae

Primeiramente quero agradecer bastante todo o apoio e todos que acessaram ao Summa Mathematicae . Já são mais de 100 textos divulgados por a...

Mais vistadas

Mostrando postagens com marcador Educação medieval. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Educação medieval. Mostrar todas as postagens

O professor e a docência em S. Tomás de Aquino

S. Tomás de Aquino, por Sandro Botticelli, 1481.

RECEBA NOSSAS ATUALIZAÇÕES

DIGITE SEU EMAIL:

Verifique sua inscrição no email recebido.


Tempo de leitura: 27 minutos.

Artigo publicado em Notandum 33, set-dez 2013 - CEMOrOC-Feusp / IJI-Universidade do Porto e disponível no LINK.


O professor e a docência em Tomás de Aquino, por Jean Lauand [1]

Resumo: Este estudo, notas de comunicação oral no “XIV Seminário Internacional Cemoroc: Filosofia e Educação - Religião e Cultura”, analisa os fundamentos da docência em Tomás de Aquino: a interação professor aluno, a Pedagogia da admiração e o papel do concreto no pensamento e no ensino.

Palavras Chave: Tomás de Aquino. Docência. Ensino. Aprendizagem.

Abstract: This paper, originally a communication to the “XIV Seminário Internacional Cemoroc: Filosofia e Educação - Religião e Cultura”, examines the foundations of teaching according to Thomas Aquinas: teacher-student interaction, Pedagogy of wonder and the sense of concrete in thinking and teaching.

Keywords: Thomas Aquinas. Teaching. Learning.


Tomás de Aquino e a vocação de professor

Os grandes pensadores têm seus estilos, seus modos de filosofar, suas fontes de inspiração. Se Agostinho é fundamentalmente um escritor; Tomás é, por vocação, um professor e é na docência que forma seu pensamento.

Numa famosa passagem, seu primeiro biógrafo, Guilherme de Tocco afirma que, em suas aulas, Tomás introduzia novas questões, de maneira nova, com novos argumentos, com um método novo etc. Mesmo descontando a novidade “de conteúdo” de seu ensino, certamente há novidade em seu modo de ensinar: não por acaso o próprio Prólogo da monumental Suma Teológica é dedicado a propor uma alternativa às aborrecidas aulas/livros tão comuns na época.

O doutor da verdade católica deve não apenas ensinar aos que estão mais adiantados, mas também instruir os principiantes, segundo o que diz o Apóstolo: “Como a criancinhas em Cristo, é leite o que vós dei a beber, e não alimento sólido”. Por esta razão nos propusemos nesta obra expor o que se refere à religião cristã do modo mais apropriado à formação dos iniciantes. Observamos que os noviços nesta doutrina encontram grande dificuldade nos escritos de diferentes autores, seja pelo acúmulo de questões, artigos e argumentos inúteis; seja porque aquilo que lhes é necessário saber não é exposto segundo a ordem da própria disciplina, mas segundo o que vai sendo pedido pela explicação dos livros ou pelas disputas ocasionais; seja ainda pela repetição freqüente dos mesmos temas, o que gera no espírito dos ouvintes cansaço e confusão. No empenho de evitar esses e outros incovenientes, confiando no auxílio divino, apresentar a doutrina sagrada sucinta e claramente, conforme a matéria o permitir. (São Paulo: Paulus, 2001)

O professor assume o ponto de vista do iniciante: voz média

Essa tomada de posição ao lado dos novatos, dos alunos, dos jovens, já nos diz algo sobre a vocação de professor (e vocação, como ensina Julián Marías, é aquilo que não se pode deixar de fazer). Para além dos estereótipos com que políticos em campanha a maltratam, é certeira, em seu insuspeitado núcleo profundo, a sentença de Guimarães Rosa “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”: aprender é uma recompensa para o professor que assume o ponto de vista do iniciante.

Para compreender esse aprender do professor é necessário, antes de mais nada, desfazermo-nos das interpretações simplórias que pretendem homogeneizar professor e aluno: ninguém ensina, todos aprendem etc. E ver o que acontece, de algum modo, com o ensinar naquela misteriosa dialética da voz média.

Estamos tão acostumados a pensar que o verbo só admite duas formas de voz - voz ativa e voz passiva - que nem podemos imaginar uma terceira forma. Ativa e passiva - assim pensamos à primeira vista - esgotam todas as possibilidades (o que poderia haver além de "Eu bebi a água" e "A água foi bebida por mim"?) e na lígua espanhola a expressão "por activa y por pasiva" significa "todas as possibilidades", "todas as formas", como quando se diz: "Ya lo hemos intentado por activa y por pasiva, sin llegar a conseguir una solución". E como o pensamento está em dependência de interação dialética com a linguagem, o fato de nossa língua (como, em geral, as línguas modernas) não admitirem uma terceira opção - a voz média, que não é ativa nem passiva - constitui um grave estreitamento em nossas possibilidades de percepção da realidade, precisamente porque a língua nos impõe o binômio ativa/passiva. A voz média é um rico recurso - encontrado por exemplo no grego - , que permite expressar (e perceber e pensar) situações de realidade que não se enquadram bem como puramente ativas nem como puramente passivas. Isto é, há ações que são protagonizadas por mim, mas que, na realidade, não o são em grau predominante: há tal influência do exterior e de outros fatores que não posso propriamente dizer que são plenamente minhas. O eu - como na clássica sentença de Ortega - estende-se à circunstância: Yo soy yo y mi circunstancia. O latim se vale de verbos chamados depoentes precisamente para essas ações minhas mas que não são predominantemente minhas; eu as protagonizo, mas não sou senhor delas, estou condicionado fortemente por fatores que transcendem o eu e sua vontade de ação. É o caso, por exemplo, do verbo nascor, nascer (nascer-nascido). O verbo nascer, a rigor, não é ativo nem passivo: eu nasço ou sou nascido? Sim, certamente sou eu que nasço, mas estou longe de exercer de modo totalmente ativo e independente esta ação ("Com licença, eu vou nascer..."); e por isto o inglês usa nascer na passiva: I was born... O mesmo acontece, por exemplo com o morrer: a ação é minha, mas não o é... Com a perda da voz média, o português perdeu não apenas um recurso de linguagem, mas sobretudo um poderoso recurso de pensamento, de captação / expressão de imensas regiões da realidade. De fato, é uma violência para com a realidade que empreguemos, por exemplo, o verbo "surtar" como ativo: "O Giba é assim, ele surta a toda hora". Como se o pobre Gilberto tivesse algum controle sobre o que o faz surtar... As canções de Paulinho da Viola trabalham muito com a voz média. O samba “Timoneiro” - do qual procede o verso: "Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar..." - é um maravilhoso exemplo dessas ações que o latim expressa por verbos depoentes. Não sou plenamente dono do meu navegar; quem me navega é o mar. “E o mar não tem cabelos que a gente possa agarrar...”.

Referir-se ao ensinar como “ação puramente ativa”, independente, seria tão incompleto como considerar o dançar “ação puramente ativa”. Como dizia o poeta: “o verdadeiro bailarino não baila é bailado”: não se dança assim sem mais; dança-se com [2], dança-se “to the music” etc. E quando o parceiro é um Fred Astaire até um cabide é capaz de dançar...

E a mesma dependência se dá no ato de ensinar: no qual o aluno se apropria de algo que, em princípio era só do mestre; e vice-versa.

Em edição anterior deste evento, na conferência “Por uma Pedagogia da Admiração” [3] procuramos mostrar que, numa filosofia como a de Pieper e Tomás, o abalo da admiração está na base do filosofar e de todo conhecimento profundo, e então é necessário, pela própria natureza das coisas, que o aluno seja guiado a descobrir esse caráter admirável da matéria de que se trata (evidentemente, com isto não estamos nos referindo ao fato banal de que o professor deve tornar a matéria amena e interessante). O sentido íntimo do aprender consiste no conhecimento do mundo real e de sua estrutura e, por isso, para que haja verdadeira aprendizagem é necessário que o aluno seja guiado pelo caminho da admiração, de percepção do mirandum, daquilo que é admirável, onde o mundo perde seu caráter evidente e quotidiano.

Assim, do professor se exige – também dele – a capacidade de admirar-se! A admiração não é apanágio do aluno, que reflete sobre aquele tema por vez primeira. Precisamente um dos momentos em que a filosofia do ensino de Pieper torna-se mais penetrante é quando trata da comunicação professor-aluno: nessa mútua relação, cada um se apropria do que, em princípio, era só do outro.

Assim, o professor deve ter o carisma de algo muito mais profundo do que o mero domínio de “técnicas didáticas”: deve ser capaz, tal como Tomás de posicionar-se com os principiantes.

“É justamente isto o que caracteriza o professor: que ele se esforça e consegue e sai-se bem na tarefa de não só falar e formular, mas pensar a partir da situação do primeiro encontro” [4].

No contato com os alunos, o mestre adquire a simplicidade e a capacidade de admirar a realidade sem no entanto perder a maturidade e a experiência do espírito formado, uma simplicitas de atitude que deve se transformar em simplicitas de comunicação.

Do mesmo modo, aprender (sempre que se trate do genuíno aprender) é crescer numa realidade em que o estudante não teria ingresso, mas que lhe é tornada acessível por sua união confiada com o mestre, “pela identificação amorosa com quem ensina” [5] (Pieper lembra que o amor leva ao mútuo voltar-se e à semelhança e por isso dá-se essa troca entre mestre e aluno).

O aluno recebe do mestre a segurança de quem já trilhou o árduo caminho do conhecimento e a confiança de que é possível atingir a meta; o professor recebe do aluno o olhar de admiração.

A escola como skholé

Esse seu professar de professor é tão arraigado que Tomás tem de defender a possibilidade de um religioso dedicar-se ao estudo e à docência e mostrar que a docência é uma das formas mais elevadas de vida espiritual, em total harmonia com a vida contemplativa: Maius est illuminare quam lucere! Iluminar é mais do que ter luz. Escola deriva de skholé, aquela atitude indicada por Aristóteles como condição do filosofar: a tradução por “lazer” não seria perfeita, pois a skholé é principalmente atitude: a alma em festa que se abre para o saber. Talvez as escolas que preservem hoje o sentido de skholé sejam as escolas de samba: os integrantes dedicam-se com amor à escola e não precisam ser coagidos por listas de presença, ameaças de reprovação etc.

Nesse quadro, Tomás propugna por aulas agradáveis e divertidas: bem humoradas [6]. Ao tratar do brincar na Summa, a afirmação central de Tomás encontra-se em II-II,168,3 ad 3 : Ludus est necessarius ad conversationem humanae vitae, o lúdico é necessário para a vida humana (e para uma vida humana). Daí decorrem importantes conseqüências para a educação, entre elas a de que o ensino não pode ser aborrecido e enfadonho: o fastidium é um grave obstáculo para a aprendizagem [7].

Também na Suma, no tratado sobre as paixões, Tomás analisa um interessante efeito da alegria e do prazer na atividade humana, o que ele chama metaforicamente de dilatação: que amplia a capacidade de aprender, tanto em sua dimensão intelectual, quanto na da vontade (o que designaríamos, hoje, por motivação):

A largura é uma dimensão da magnitude dos corpos e só metaforicamente aplica-se às disposições da alma. “Dilatação” indica uma extensão, uma ampliação de capacidade e se aplica à “deleitação” [Tomás joga com as palavras dilatatio-delectatio] com relação a dois aspectos. Um provém da capacidade de apreender que se volta para um bem que lhe convém e, por tal apreensão, o homem percebe que adquiriu uma certa perfeição que é grandeza espiritual: e por isso se diz que pela deleitação sua inteligência cresceu, houve uma dilatação. O segundo aspecto diz respeito à capacidade apetitiva que assente ao objeto desejado e repousa nele como que abrindo-se a ele para captá-lo mais intimamente. E, assim, dilata-se o afeto humano pela deleitação, como que entregando-se para acolher interiormente o que é agradável (I-II, 33, 1).

Já a tristeza e o fastio produzem um estreitamento, um bloqueio, ou, para usar a metáfora de Tomás, um peso que bloqueia o espírito (aggravatio animi) [8]. Daí que Tomás recomende a quem ensina, o uso didático de formulações divertidas: para descanso dos ouvintes e para que seja ouvido com gosto (libenter audiat - II-II,177,1): o que acontece quando “se fala, de tal modo que deleite os ouvintes” (dum aliquis sic loquitur quod auditores delectet - II-II,177,1).

E, tratando do relacionamento humano em geral, Tomás chega a afirmar que ninguém agüenta um dia sequer com uma pessoa aborrecida e desagradável [9]. Em outras palavras: chatice é pecado e aula aborrecida ofende a Deus.

O referencial antropológico de Tomás: “Anima forma corporis

Naturalmente, a pedagogia de Tomás assenta-se sobre sua concepção de homem.

Há, para a compreensão dessa antropologia, um parágrafo da Contra Gentiles extremamente sugestivo e que resume, como num espelho convexo, algumas das principais teses de que nos ocuparemos aqui. Discutindo “de que modo a alma espiritual pode ser forma do corpo” - precisamente um de nossos temas fundamentais -, Tomás afirma:

Sempre se verifica o fato de que o ínfimo de uma ordem de ser superior é limítrofe ao supremo da ordem inferior. Assim, certos ínfimos do gênero animal, mal superam a vida das plantas, como é o caso da ostra, que é imóvel, só tem tato e está fixa como as plantas. Daí que S. Dionísio diga que `a sabedoria divina enlaçou os fins dos superiores com os princípios dos inferiores'. No âmbito corporal há também algo, o corpo humano, harmonicamente disposto, que também se enlaça com o ínfimo do superior, a alma humana, que está no último grau das realidades espirituais. Tal enlace manifesta-se no próprio modo de conhecer da inteligência humana. Daí que a alma espiritual humana seja como que um certo horizonte e fronteira entre as realidades corpóreas e as incorpóreas: ela mesma é incorpórea e, no entanto, é forma de corpo (CG 2,68).

Destaquemos o ponto mais importante para nós: a afirmação de que a alma é forma do corpo ("anima forma corporis") é a afirmação de uma profunda unidade. Unidade entre o espiritual e o material, no ser humano; unidade entre o intelectual e o sensível, no conhecimento!

Em torno desse marco essencial, discutiremos, brevemente, a posição de Tomás em relação a alguns aspectos do conhecimento e do ensino.

Espírito e matéria: o objeto próprio da inteligência

A unidade da filosofia de Tomás, manifesta-se em diversos âmbitos: não só a constituição fundamental do ser humano dá-se por integração de espírito e matéria (é precisamente isto o que significa a sentença central "anima forma corporis"), mas também na ordem da operação - sobretudo no caso do conhecimento - ocorre a mesma harmônica unidade.

Não operamos diretamente pela alma, mas por meio de suas potências. Em um ato tão simples como, digamos, um homem ver a cor de uma árvore, intervém uma constelação de fatores: Fulano de Tal [10], que vê porque tem alma [11]; mas a alma não é princípio imediato da operação, ela age, no caso, por meio de sua potência visual, cujo ato incide sobre o objeto cor (obiectum formalis), que por sua vez radica no objeto árvore.

Ora, cada potência da alma é proporcionada a seu objeto: a potência auditiva não capta cores, a potência visual não atua sobre aromas.

O caso do conhecimento intelectual é mais complexo: o intelecto é reconhecido, por Tomás, como capaz de abertura, sem limites, para o real. Diz ele:

As naturezas intelectuais, porém, têm maior afinidade com o todo do que as outras naturezas; pois, uma substância intelectual qualquer é, de certo modo, todas as coisas, já que pode apreender a totalidade do real pelo seu intelecto; ao passo que qualquer outra substância participa apenas de um setor particular do ser" (CG 3, 112).

e

Diz-se que a alma é de certo modo todas as coisas porque é naturalmente apta para conhecer tudo. E, desse modo, é possível que num único ente esteja toda a perfeição do universo. Daí que esta seja, segundo os filósofos (pagãos), a plenitude de perfeição a que a alma pode aspirar: reproduzir em si a ordem do universo como um todo e suas causas" (Ver. 2,2).

Essa abertura para o todo é, aliás, precisamente, a concepção clássica de espírito, que é a característica dos entes dotados de intelecto: “A alma espiritual - diz Tomás na sua pesquisa sobre a verdade - está essencialmente disposta a ‘convenire cum omni ente’ (...) o ser espiritual ‘é capaz de apreender a totalidade do real’” [12].

O homem, capax universi, chamado a relacionar-se com o todo do real (convenire cum ommni ente) [13], realiza essa vocação do espírito a partir do sensível, da experiência, que incide sobre o fenômeno. Daí que naquela passagem básica (CG 2,68), citada no tópico anterior, Tomás tenha dito que o enlace espírito-matéria “manifesta-se no próprio modo de conhecer da inteligência humana”, uma inteligência espiritual integrada ao sensível.

Assim se compreende o extraordinário relevo que Tomás, em sua doutrina sobre o conhecimento, dá ao concreto, ao fenômeno, ao sensível: “É conatural ao homem atingir o conhecimento do inteligível pelo sensível. E é pelo signo que se atinge o conhecimento de alguma outra coisa” [14].

Como vimos, dizer que a inteligência é uma faculdade espiritual é dizer que seu campo de relacionamento é a totalidade do ser: todas as coisas visíveis e invisíveis são-lhe, em princípio, objeto. Contudo, a relação da inteligência humana com seus objetos não é uniforme. Dentre os diversos entes e diferentes modos de ser, alguns são mais direta e imediatamente acessíveis à inteligência.

É o que Tomás chama de objeto próprio de uma potência: aquela dimensão da realidade que se ajusta, por assim dizer, sob medida, à potência [15]. Não que a potência não possa incidir sobre outros objetos, mas o obiectum proprium é sempre a base de qualquer captação: se pela visão, captamos, por exemplo, número e movimento (digamos, sete pessoas correndo), é porque vemos a cor, objeto próprio da visão.

Próprio da inteligência humana - potência de uma forma ordenada à matéria - é atingir a essência a partir da sensação: seu objeto próprio são as essências das coisas sensíveis. “O intelecto humano, porém - diz Tomás, contrapondo a inteligência do homem à do anjo -, que está acoplado ao corpo, tem por objeto próprio: a essência, a natureza das coisas existentes corporalmente na matéria. E, mediante a natureza das coisas visíveis, ascende a algum conhecimento das invisíveis” [16].

Nessa afirmação, central, espelha-se, como dizíamos, a própria estrutura ontológica do homem.

O conhecimento a partir do sensível, base da Pedagogia do concreto.

Dessa afirmação decorre, imediatamente, que mesmo as realidades mais espirituais são alcançadas através do sensível. "Ora - prossegue Tomás -, tudo o que nesta vida conhecemos, é conhecido por comparação (per comparationem) com as coisas sensíveis naturais" [17].

Essa sentença, além do mais, sugere-nos que o sentido extensivo e metafórico está presente na linguagem de modo muito mais amplo e intenso do que, à primeira vista, poderíamos supor. E é neste enquadramento que se compreende a doutrina de Tomás como Pedagogia do concreto: todo o nosso conhecimento – mesmo o mais espiritual, mesmo o mais abstrato – dá-se per comparationem ad res sensibiles naturales [18].

Ao contrário dos anjos - diz Tomás (I,107,1, corpus e ad1) -, que “falam” diretamente entre si, o pensamento de um homem está oculto (clauditur mens hominis) para outros homens pela “espessura” do corpo (grossitiem corporis). E, assim, é necessário, para a manifestação do pensamento, a mediação do signo sensível. Esta é a razão pela qual a educação, a comunicação e o ensino dão-se por comparação com a realidade sensível (exemplo): “Daí que também quando queremos fazer alguém entender algo, propomos-lhe exempla” [19].

Na base de todo ensino, sempre está o retorno ao concreto. Na famosa questão sobre o ensino - I, 117, 1 -, Tomás afirma que um homem nada pode ensinar a outro homem, senão movendo, pelo seu ensino “o discípulo a que este, por sua própria inteligência, forme os conceitos intelectuais, cujos signos o mestre lhe propõe exteriormente” (I, 117, 1 ad 3).

Se o conhecimento que se obtém por busca própria dá-se pela aplicação de princípios universais a casos particulares – que recebe da memória ou da experiência, proporcionadas pelos sentidos [20] –, o mesmo ocorre com o ensino.

Portanto, o mestre pode contribuir para a aprendizagem do discípulo, propondo-lhe alguns auxílios para a inteligência, como: proposições menos universais (cum proponit ei aliquas propositiones minus universales), exemplos sensíveis (sensibilia exempla) ou comparações (similia) que conduzam o intelecto do educando ao conhecimento das verdades desconhecidas.

Para Tomás, o próprio Deus (que, pelo Seu conhecimento, criou o homem) assume essa pedagogia. Ao discutir a legitimidade do uso de metáforas e parábolas na Sagrada Escritura, Tomás afirma a conveniência do ensino por comparações (sub similitudine corporalium) [21], pois o ensino por comparações sensíveis é o mais adequado à natureza do homem, espírito intrinsecamente unido à matéria (conveniens est... spiritualia sub similitudine corporalium tradere). “É conatural ao homem atingir o inteligível pelo sensível, pois todo conhecimento tem, para nós, origem no sensível” [22].

E na parte mais nobre do artigo [23], o sed contra, Tomás lembra que Deus diz da revelação de Si mesmo: "Pelos profetas proponho símiles" [24].

Na filosofia da educação de Tomás, encontramos ainda outras importantes considerações sobre a Pedagogia do concreto, mas, neste evento, limitar-nos-emos às acima indicadas.

Recebido para publicação em 09-03-13; aceito em 21-04-13

Notas:

[1] Prof. Titular Sênior da Feusp. Prof. Titular dos Programas de Pós Graduação em Educação e em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. ejanlaua@usp.br.

[2] Nesse sentido, em um de seus shows de fim de ano, Roberto Carlos, meio sem jeito expressou essa verdade - tão evidente quanto esquecida - ao anunciar que ia interpretar a canção de Mc Leozinho: “Se ela dança, eu danço”: “Esse ano eu estava ouvindo rádio e um dia ouvi uma canção, um funk. E fiquei pensando: caramba, que letra maneira! Verdade! Um funk com uma letra que é uma poesia, uma coisa bonita, da maior simplicidade (...). Esse funk aí dá até que dava para eu cantar...” (www.youtube.com/watch?v=8ehUQ wRIV0I).

[3] http://www.hottopos.com/isle10/23-34Jean.pdf

[4] Pieper, J. “Thomas von Aquin als Lehrer” in Weistum-Dichtung-Sakrament. München: Kösel, 1954, p. 147.

[5] Ibidem, p. 147.

[6] Veja-se, a este respeito, nosso “Deus Ludens - O Lúdico no Pensamento de Tomás de Aquino”, prova de erudição do concurso de Professor Titular na Feusp: www.hottopos.com/notand7/jeanludus.htm#_ftn1.

[7] Suma Teológica, prólogo.

[8] I-II, 37, 2, ad 2.

[9] I-II, 114, 2 ad 1.

[10] O sujeito último da operação de ver, que exerce este ato precisamente porque é um vivente, isto é dotado de alma.

[11] A alma não só é principium vitae (I,75,1 etc.) e - para retomar as duas clássicas definições do De Anima - ato primeiro do corpo natural organizado (“Anima est actus primus corporis physici organici habentis vitam in potentia” - II De Anima I 230), mas também princípio de operações, aquilo pelo que primeiramente sentimos e conhecemos intelectualmente (“Anima est primum quo et vivimus, et sentimus, et movemur, et intelligimus” - II De Anima 4 273).

[12] PIEPER, Josef Was heisst Philosophieren?, 8. Aufl., München, Kösel, 1980, p. 44.

[13] As citações de S. Tomás encontram-se respectivamente na Contra Gentiles III, 112 e De Veritate I, 1.

[14] III,60,4. Tomás usa signum para "palavra" e também no sentido de exemplos sensíveis, comparações com realidades concretas (e para muitos outros "sinais") etc. A atitude de Tomás de voltar-se para a realidade concreta, manifesta-se também no modo como considera a palavra uma realização especial do signo (signum), que, por sua vez, é "aquilo pelo que alguém chega a conhecer algo de outro" (III,60,4). O signo leva o sujeito a um conhecimento novo - a conhecer algo diferente do próprio signo. Naturalmente, há uma infinita variedade de signos: desde a fumaça, signo que indica o lugar e a intensidade do fogo, à bandeira branca da rendição. A palavra também é um signo: vox, quae non est significativa, verbum dici non potest (I,34,1), o som animado só é palavra se for significativo. Próprio da palavra é a significatio; não, porém, uma significação qualquer, mas aquela que pressupõe sempre um conceito; a palavra só se dá onde há conhecimento intelectual. Locutio est proprium opus rationis (I,91,3 ad 3); "falar -diz Tomás- é operação própria da inteligência". Ora, entre a realidade designada pela linguagem e o som da palavra proferida, há um terceiro elemento, essencial na linguagem, que é o conceptus, o conceito, a palavra interior (verbum interius), que se forma no espírito de quem fala e que se exterioriza pela linguagem, que constitui seu signo audível (o conceito, por sua vez, tem sua origem na realidade). Mas, se a palavra sonora é um signo convencional (a água pode chamar-se água, water, eau etc.), o conceito, pelo contrário, é um signo necessário da coisa designada: nossos conceitos se formam por adequação com a realidade (Esta nota resume idéias apresentadas no excelente capítulo de Josef Pieper "Was heisst Gott Spricht?" in Über die Schwierigkeit heute zu Glauben, München, Kösel, 1974).

[15] Ou, melhor dito, vice-versa...

[16] "Intellectus autem humani, qui est coniunctus corpori, proprium obiectum est quidditas sive natura in materia corporali existens; et per huiusmodi naturas visibilium rerum etiam in invisibilium rerum aliqualem cognitionem ascendit" (I,84,7).

[17] "Omnia autem quae in presenti statu intelligimus, cognoscuntur a nobis per comparationem ad res sensibiles naturales"(I,84,8).

[18] No ad tertium (da mesma I,84,8), Tomás enfrenta a objeção de que conhecemos realidades totalmente incorpóreas, sem imagens (como Deus ou a própria verdade): "Conhecemos as realidades incorpóreas, das que não possuímos imagens por comparação com os corpos sensíveis, dos que possuímos imagens". E conclui dizendo que só podemos conhecer a Deus por negação e por alguma comparação com a realidade corporal.

[19] "Et inde est etiam quod quando alium volumus facere aliquid intelligere, proponimus ei exempla" (I,84,7). Na época de S. Tomás, a palavra latina exempla (e suas correspondentes nas nascentes línguas nacionais: eisemple, enxiempla etc.) era usada para uma gama muito extensa, que abrange comparações, metáforas, parábolas, provérbios etc., como se pode comprovar até nos títulos das traduções que se apresentam em LAUAND, L. J. (org.) Oriente e Ocidente: Idade Média: Cultura Popular, S. Paulo, EDIX/ DLO-FFLCHUSP, 1995.

[20] Universalia principia applicat ad aliqua particularia, quorum memoriam et experimentum per sensum accipit. Tenha-se em conta que sentido, sensus, para Tomás não se refere somente aos sentidos externos, mas também aos internos, como a imaginação, a vis cogitativa etc.

[21] I, 1, 9.

[22] "Est autem naturale homini ut per sensibilia ad inteligibilia veniat: quia omnis nostra cognitio a sensu initium habet" (I,1,9).

[23] O citado I,1,9.

[24] "Et in manibus prophetarum assimilatus sum" (Os 12,10).

***

Leia mais em Dez mandamentos para professores

Leia mais em O professor católico e a Regra de São Bento



Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae

Nossa página no Instagram @summamathematicae e YouTube.


 

A Educação Infantil na Idade Média - por Ricardo da Costa

As quatro condições da sociedade: nobreza, por Jean Bourdichon, 1500

RECEBA NOSSAS ATUALIZAÇÕES

DIGITE SEU EMAIL:

Verifique sua inscrição no email recebido.


Tempo de leitura: 20 minutos.

A Educação Infantil na Idade Média, por Ricardo da Costa. Texto publicado na Revista VIDETUR 17. In: LAUAND, Luiz Jean (coord.). Porto: Editora Mandruvá, 2002, p. 13-20. (ISSN 1516-5450). Texto disponível no LINK.

No Brasil, a Idade Média ainda é citada por muitos néscios como um tempo de ignorância e barbárie, um tempo vazio, um tempo em que a Igreja escondeu os conhecimentos que naufragaram com o fim do Império Romano para dominar o “povo” [1]. Nesse movimento consciente e ideológico em direção às trevas, o clero teve como aliado principal a nobreza feudal. Juntos, nobreza e clero governaram com coturnos sinistros e malévolos todo o ocidente medieval, que permaneceu assim envolto em uma escuridão de mil anos, soterrado, amedrontado e preso a terra num trabalho servil humilhante [2].

Quem ainda acredita piamente nesse amontoado de tolices ficará agradavelmente surpreso, espero, com o tema desse trabalho, que não poderia ser mais propício. Minhas perguntas básicas serão: existiu educação na Idade Média? E ciência? E as crianças? É incrível, mas há quase quarenta anos atrás o próprio Jacques Le Goff perguntou: “teria havido crianças no Ocidente Medieval?” [3]. Seguindo a trilha deixada por Philippe Ariès [4], ele buscou a criança na arte e não a encontrou. É verdade. Apressadamente concluiu então que a criança foi um produto da cidade e da burguesia [5] e, portanto, o mundo rural não a conheceu. Pior: a conheceu sim, mas a desprezou, marginalizando-a [6].

Deixo claro então que minha perspectiva será bastante diferente. Responderei sim a todas àquelas perguntas, opondo-me a Jacques Le Goff e a Philippe Ariès [7]. Para provar isso, dividi minha narrativa em duas partes: primeiro, busquei a condição infantil registrada pela História na Alta Idade Média (séculos V-X) para, a seguir, tratar da estruturação das ciências que Ramon Llull (1232-1316) apresentou a seu filho Domingos quando, em um ato de puro amor paterno, escreveu um livro para ele, a Doutrina para crianças [8].

*

Falei há pouco de amor paterno. O amor é uma forma muito profunda e especial de afeto, difícil de ser descrito, difícil de ser registrado a não ser nas emoções daqueles que o compartilham. Por isso, a História registra sempre o que se veste, onde se vive, o que se come, mas dificilmente narra como se ama, especialmente a intensidade e a forma do amor [9]. Os tipos de textos consultados pelos historiadores - as Crônicas, por exemplo - estão mais atentos aos acontecimentos importantes, aos personagens e à política. Assim, ofereceram pouco espaço para o mundo infantil, deixando muitas perguntas que não puderam ser respondidas satisfatoriamente. Por exemplo: como pais e filhos exprimiam seus carinhos, suas incompreensões? De que forma as crianças apreenderam o mundo existente? Como reagiram à escola e aos estudos?

De qualquer maneira, o fato é que, historicamente, o papel da criança sempre foi definido pelas expectativas dos adultos [10], e esse anseio mudou bastante ao longo da história, embora a família elementar e o amor tenham existido em todas as épocas [11]. Vejamos então o caso medieval.

A primeira herança da Antigüidade não é nada boa: a vida da criança no mundo romano dependia totalmente do desejo do pai. O poder do pater familias era absoluto: um cidadão não tinha um filho, o tomava. Caso recusasse a criança - e o fato era bastante comum - ela era enjeitada. Essa prática era tão recorrente que o direito romano se preocupou com o destino delas [12]. E o que acontecia à maioria dos enjeitados? A morte [13].

A segunda herança que a Idade Média herda da Antigüidade, a cultura bárbara, foi-nos passada especialmente por Tácito. Ele nos conta que a tradição germânica em relação às crianças era um pouco melhor que a romana. Os germanos não praticavam o infanticídio, as próprias mães amamentavam seus filhos e as crianças eram educadas sem distinção de posição social [14]. O povo germânico era composto por um conjunto de lares, com dois poderes distintos: o matriarcal, exercido no seio da família, e o patriarcal, predominante na política e na organização social [15]. No entanto, o destino das crianças naqueles clãs, como na cultura romana, também dependia da vontade paterna (direito de adoção, de renegação, de compra e venda). A criança aceita ficava aos cuidados dos parentes paternos (agnatos) e o destino dos bastardos, órfãos e abandonados era entregue aos parentes maternos, especialmente a tios e avós maternos [16].

Dessas duas tradições culturais que se mesclaram e fizeram emergir a Idade Média, concluo que o status da criança naquelas sociedades antigas era praticamente nulo. Sua existência dependia do poder do pai: se fosse menina ou nascesse com algum problema físico, poderia ser rejeitada. Seu destino, caso sobrevivesse, era abastecer os prostíbulos de Roma e o sistema escravista [17]. Até o final da Antigüidade as crianças pobres eram abandonadas ou vendidas; as ricas enjeitadas - por causa de disputas de herança - eram entregues à própria sorte [18].

Nesse contexto histórico-cultural é que se compreende a força e o impacto do cristianismo, que rompeu com essas duas tradições [19]. O Cristo disse:

Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças, de modo algum entrareis no Reino dos Céus. Aquele, portanto, que se tornar pequenino como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus. (Mt 18, 1-4).

A tradição cristã abriu, portanto, uma nova perspectiva à criança, uma mudança revolucionária [20]. No entanto, foi um processo bastante lento, um processo civilizacional levado a cabo pela Igreja. Primeiro, por força das circunstâncias. Por exemplo, dos séculos V ao VIII, na Normandia, o índice de mortalidade infantil era muito elevado, 45%, e a expectativa de vida bem pequena, 30 anos [21]. À primeira vista, esses dados arqueológicos poderiam sugerir ao historiador um sentimento de descaso para com a criança: a regularidade da morte poderia criar nos espíritos de então uma apatia, um medo de se apegar a algo tão frágil que poderia morrer à primeira doença [22].

Paradoxalmente, ao invés disso, a documentação nos mostra que havia um grande apego dos pais aos filhos, apesar da mortalidade infantil. Em sua História dos Francos, Gregório de Tours nos conta o sentimento de tristeza e a lamentação de Fredegunda (concubina e depois esposa do rei dos francos Chilperico), quando da morte de crianças:

Essa epidemia que começou no mês de agosto atacou em primeiro lugar a todos os jovens adolescentes e provocou sua morte. Nós perdemos algumas criancinhas encantadoras e que nos eram queridas, a quem nós havíamos aquecido em nosso peito, carregado em nossos braços ou nutrido por nossa própria mão, lhes administrando os alimentos com um cuidado delicado [...] O rei Chilperico também esteve gravemente doente. Quando entrou em convalescença, seu filho mais novo, que não era ainda renascido pela água e pelo Espírito Santo, caiu enfermo. Assim que melhorou um pouco, seu irmão mais velho, Clodoberto, foi atingido pela mesma doença, e sua mãe Fredegunda, vendo-o em perigo de morte e se arrependendo tardiamente, disse ao rei: “A misericórdia divina nos suporta há muito tempo, nós que fazemos o mal, porque sempre ela nos tem advertido através das febres e outras doenças, mas sem que nos corrijamos. Nós perdemos agora os nossos filhos, eis que as lágrimas dos pobres, as lamentações das viúvas e os suspiros dos órfãos os matam e não nos resta esperança de deixar os bens para ninguém. Nós entesouramos sem ter para quem deixar. Os tesouros ficarão privados de possuidor e carregados de rapina e maldições! Nossas adegas não abundam em vinho? Nossos celeiros não estão repletos de trigo? Nossos tesouros não estão abarrotados de ouro e de prata, de pedras preciosas, de colares e outras jóias imperiais? Nós perdemos o que tínhamos de mais belo! Agora, por favor, venha! Queimemos todos os livros de imposições iníquas e que nosso fisco se contente com o que era suficiente ao pai e rei Clotário.” (Gregório de Tours, Historiae, V, 34) (os grifos são meus) [23].

Pois bem. Fredegunda, uma das mulheres mais cruéis da História, apesar de filha de seu tempo bárbaro, chora a morte de seus filhos e afirma que perdeu o que tinha de mais belo [24]. Mesmo nessa aristocracia merovíngia rude e cruel – no pior sentido da palavra [25] – há espaço para amor materno.

Por sua vez, fora do mundo secular, um espaço social lentamente impôs uma nova perspectiva à educação infantil: o monacato [26]. Os monges criaram verdadeiros “jardins de infância” nos mosteiros [27], recebendo indistintamente todas as crianças entregues [28], vestindo-as, alimentando-as e educando-as, num sistema integral de formação educacional [29].

As comunidades monásticas célticas foram as que mais avançaram nesse novo modelo de educação, pois se opunham radicalmente às práticas pedagógicas vigentes das populações bárbaras, que defendiam o endurecimento do coração já na infância [30]. Pelo contrário, ao invés de brutalizar o coração das crianças para a guerra e a violência, os monges o abriam para o amor e a serenidade [31].

As crianças eram educadas por todos do mosteiro até a idade de quinze anos. A Regra de São Bento prescreve diligência na disciplina: que as crianças não apanhem sem motivo, pois  “não faças a outrem o que não queres que te façam.” [32] Toco aqui em um ponto importante e de grande discussão na História da Educação. O sistema medieval e monástico previa a aplicação de castigos. Na Bíblia há passagens sobre os castigos com vara que devem ser aplicados aos filhos [33]; na Regra de São Bento há várias passagens (punição com jejuns e varas [34], pancadas em crianças que não recitarem corretamente um salmo [35], e esse ponto foi muito destacado e criticado pela pedagogia moderna, que, no entanto, não levou em consideração as circunstâncias históricas da época [36]. Por exemplo, Manacorda interpreta os castigos do período antigo e medieval como puro sadismo pedagógico [37], linha de interpretação que permaneceu ao lado da imagem do monge medieval como uma pessoa frustrada e desiludida amorosamente e que, por esse motivo, buscava a solidão do mosteiro [38].

Naturalmente isso se deve a um anacronismo e preconceito que não condizem com a postura de um historiador sério. Basta buscar os textos de época que vemos a felicidade dos egressos dos mosteiros pelo fato de terem sido amparados, criados e educados. Darei apenas dois breves exemplos. Ao se recordar do mosteiro onde passou sua infância, São Cesário de Arles (c. 470-542) diz:

Essa ilha santa acolheu minha pequenez nos braços de seu afeto. Como uma mãe ilustre e sem igual e como uma ama-de-leite que dispensa a todos os bens, ela se esforçou para me educar e me alimentar [39].

Por sua vez, Walafried Strabo (806-849), então jovem monge, nos conta em seu Diário de um Estudante:

Eu era totalmente ignorante e fiquei muito maravilhado quando vi os grandes edifícios do convento (...) fiquei muito contente pelo grande número de companheiros de vida e de jogo, que me acolheram amigavelmente. Depois de alguns dias, senti-me mais à vontade (...) quando o escolástico Grimaldo me confiou a um mestre, com o qual devia aprender a ler. Eu não estava sozinho com ele, mas havia muitos outros meninos da minha idade, de origem ilustre ou modesta, que, porém, estavam mais adiantados que eu. A bondosa ajuda do mestre e o orgulho, juntos, levaram-me a enfrentar com zelo as minhas tarefas, tanto que após algumas semanas conseguia ler bastante corretamente (...) Depois recebi um livrinho em alemão, que me custou muito sacrifício para ler mas, em troca, deu-me uma grande alegria... [40]

Esses são apenas dois de muitos exemplos que contam a felicidade e a alegria que os medievais sentiram com o fato de terem tido a sorte de serem acolhidos em um mosteiro. Assim, devemos sempre confrontar em retrospecto as regras com a vida cotidiana, o sistema institucional com o que as pessoas pensavam dele, para então construirmos um juízo de valor mais adequado e menos sujeito a anacronismos.

Para completar o entendimento do sentido civilizacional dos mosteiros medievais, basta confrontarmos sua vida cotidiana - de educação e disciplina voltada para uma formação ética e moral das crianças - com o mundo exterior. Por exemplo, no período carolíngio (séculos VIII a X), apesar do avanço da implantação da família conjugal simples (modelo cristão) com uma média de 2 filhos por casal e um período de aleitamento de dois anos, a prática do infanticídio continuava comum, a idade média dos casamentos era muito baixa (entre 14 e 15 anos de idade), a poligamia e a violência sexual eram recorrentes, pelo menos na aristocracia [41] e ainda havia a questão da escravidão de crianças [42]. Confronte você, caro leitor, essa realidade com a vida de uma criança em um mosteiro.

Por sua vez, os bispos carolíngios do século IX tentaram regulamentar o casamento cristão, redigindo uma série de tratados (espelhos) [43]. Neles, o casamento era valorizado, a mulher reconhecida como pessoa com pleno direito familiar e em pé de igualdade com o marido e a violência sexual denunciada como crime grave e do âmbito da justiça pública [44]. Para o nosso tema, o que interessa é que as crianças também foram objeto de reflexão nesses espelhos: a maternidade foi considerada um valor (caritas) e o casal tinha a obrigação de aceitar e reconhecer os filhos [45].

Assim, a ação da ordem clerical foi dupla: de um lado, os bispos lutaram contra a prática do infanticídio, de outro, os monges revalorizaram a criança, que passou por um processo de educação direcionada, de cunho integral e totalmente igualitária – por exemplo, as escolas monacais carolíngias davam preferência a crianças filhas de escravos e servos ao invés de filhos de homens livres, a ponto de Carlos Magno ser obrigado a pedir que os monges recebessem também para educar crianças filhas de homens livres [46]. Estes séculos da Alta Idade Média foram cruciais para a implantação do modelo de casamento cristão conhecido por todo o mundo ocidental, para a valorização da mulher como parceira e igual do marido e para a idéia de criança como ser próprio e com necessidades pedagógicas específicas [47]. Por fim, a sociedade era pensada como o conjunto de pessoas casadas (ordo conjugatorum), e a criança tinha um papel fundamental nessa estrutura, pois era o fim último da união.

*

Mulher, criança, minorias revalorizadas na Idade Média em relação à Antigüidade. Para completar esse quadro compreensivo, quero responder à terceira pergunta feita no início: qual era o conceito de educação que alicerçava esse novo sistema pedagógico medieval? Essa é uma resposta relativamente mais simples. Para os homens da época, as palavras eram transparentes: havia um prazer muito grande em saborear o sentido etimológico delas. Os intelectuais de então diziam que o homem é um ser que esquece suas experiências. Ele consegue resgatá-las através da linguagem [48]. Assim, a expressão educação era entendida como estando associada à sua raiz etimológica latina: educe, “fazer sair”. Como o conhecimento já existia inato no indivíduo, restava responder à seguinte pergunta: de que modo o estudante era conduzido da ignorância ao saber? [49] Como o aluno aprendia? Essa era a questão básica dos educadores medievais. Preocupados com a forma da aquisição, os pedagogos de então tiveram uma importante consciência: cabia ao professor “acender uma centelha” no estudante e usar seu ofício para formar e não asfixiar o espírito de seus alunos [50]. Muito moderna a educação medieval! [51]


Notas:

[1] Este artigo é dedicado ao meu amigo e colega de trabalho, Prof. Josemar Machado Oliveira (UFES), que certa vez presenteou-me com um belo livro (GIMPEL, Jean. A Revolução Industrial da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977) e aproveitou o ensejo para dizer-me que não existiu ciência na Idade Média!

[2] Um excelente livro que apresenta estes mitos e os destrói completamente é HEERS, Jacques. A Idade Média, uma impostura. Porto: Edições Asa, 1994.

[3] LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1984, vol. II, p. 44.

[4] ARIÈS, Philippe. L’enfant et la vie familiale sous l’Ancien Régime, Paris, 1960.

[5] LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval, op. cit., p. 45.

[6] LE GOFF, Jacques. “Os marginalizados no ocidente medieval”. In: O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa: Edições 70, p. 169.

[7] Le Goff recupera o tema da criança como não-valor em sua biografia São Luís (Rio de Janeiro: Editora Record, 1999, p. 84), citando uma farta bibliografia como apoio à sua tese mas somente uma fonte: João de Salisbury (“Não há a necessidade de recomendar muito a criança aos pais, porque ninguém detesta sua carne” - Policraticus, ed. C. Webb, p. 289-290), justamente uma passagem de um texto medieval onde se afirma o amor dos pais em relação aos filhos como algo comum!

[8] Utilizarei minha tradução feita a partir da edição de Gret Schib. RAMON LLULL. Doctrina pueril. Barcelona: Editorial Barcino, 1957.

[9] MARQUES, A H. de Oliveira. A Sociedade Medieval Portuguesa - aspectos de vida quotidiana. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1987, p. 105.

[10] BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: Editora Unesp, 2002, 71-72.

[11] Interessante afirmação do antropólogo Jack Goody. Citado em GUICHARD, Pierre. “A Europa Bárbara”. In: BURGUIÈRE, André, KLAPISCH-ZUBER, Christiane, SEGALEN, Martine e ZONABEND, Françoise (dir.). História da Família. Tempos Medievais: Ocidente, Oriente. Lisboa: Terramar, 1997, p. 18.

[12] ROUSSELL, Aline. “A política dos corpos: entre procriação e continência em Roma”. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle (dir.): História das Mulheres no Ocidente. A Antigüidade. Porto: Edições Afrontamento / São Paulo: Ebradil, s/d, p. 363.

[13] VEYNE, Paul. “O Império Romano”. In: ARIÈS, Philippe e DUBY, Georges (dir.). História da vida privada I. Do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 23-24.

[14] “Limitar o número de filhos ou matar algum dos recém-nascidos é crime; assim seus bons costumes podem mais que as boas leis em outras nações. De qualquer modo, eles crescem desnudos e sem asseio até chegarem a ter esses membros e corpos que admiramos. Os filhos são nutridos com o leite de suas mães, nunca de criadas ou amas-de-leite. Não há distinção entre o senhor e o escravo em nenhuma delicadeza de criança. Passam a vida entre os mesmos rebanhos e na mesma terra até que a idade e o valor distingam os nobres.”― TÁCITO. “Germania”. In: Obras Completas. Madrid: M. Aguilar, Editor, 1946, p. 1026.

[15] GUICHARD, Pierre. “A Europa Bárbara”, op. cit., p. 24.

[16] GUICHARD, Pierre. “A Europa Bárbara”, op. cit., p. 28.

[17] DE CASSAGNE, Irene (PUC - Buenos Aires - Argentina). Valorización y educación del Niño en la Edad Media, p. 20 (artigo consultado em www.uca.edu.ar)

[18] ROUSSELL, Aline. “A política dos corpos: entre procriação e continência em Roma”, op. cit., p. 364.

[19] Um dos melhores ensaios a respeito é de JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago, 2001, especialmente as páginas 11-148.

[20] DE CASSAGNE, Irene. Valorización y educación del Niño en la Edad Media, op. cit., p. 20.

[21] ROUCHE, Michel. “Alta Idade Média ocidental”. In: ARIÈS, Philippe e DUBY, Georges (dir.). História da vida privada I. Do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 442-443.

[22] Essa idéia - da indiferença como conseqüência do mau hábito - está muito bem expressa no conceito de banalização do mal criado por Hannah Arendt em sua obra Origens do Totalitarismo (São Paulo: Companhia das Letras, 1990).

[23] Tradução de Edmar Checon de Freitas (doutorando em História Medieval pela UFF) a partir da versão francesa de R. Latouche (GRÉGOIRE DE TOURS. Histoire des Francs. Paris: Les Belles-Lettres, 1999, p. 295-296)

[24] “Fredegunda foi concubina de Chilperico (neto de Clóvis). Ele casou-se com Galasvinta, filha do rei visigodo Atanagildo, e sua irmã, Brunilda, desposou Sigisberto, meio-irmão de Chilperico (Hist., IV, 27-28). Galasvinta acabou assassinada por ordem de Chilperico, ficando Fredegunda como sua primeira esposa (Hist., IV, 28); Gregório insinua uma influência de Fredegunda na morte da rival. Chilperico e Fredegunda figuram nas Historiae como um casal malévolo e sanguinário. A passagem sobre a morte de seus filhos tem de ser lida nesse contexto. Contudo, é importante destacar a forma escolhida pelo autor para sublinhar o castigo divino: a perda dos filhos e herdeiros. O tema da morte das crianças era caro a Gregório. Por sua vez, no capítulo V (22), é narrada a morte de Sansão, outro filho pequeno de Chilperico e Fredegunda. Nascido durante um cerco sofrido por Chilperico - em guerra com o irmão Sigisberto - ele foi rejeitado pela mãe (que temia sua morte). O pai salvou-o e Fredegunda acabou batizando a criança, que morreu antes dos 5 anos. Mais tarde nasceu um outro filho do casal, Teuderico, ocasião na qual o rei libertou prisioneiros e aliviou impostos (Hist., VI, 23, 27). Novamente a desinteria vitimou a criança, com cerca de 1 ano de vida (Hist., VI, 34). O único herdeiro de Chilperico, Clotário, nasceu já no fim de sua vida (Hist., VI, 41; ele foi assassinado em 584). Tornou-se ele rei sob o nome de Clotário II, tendo unificado o regnum Francorum. Chilperico teve outros filhos, de sua primeira mulher, Audovera. Teodeberto morreu no campo de batalha (Hist., IV, 50); Clóvis e Meroveu (Hist., V, 18) foram mortos a mando do pai, o primeiro sob a instigação de Fredegunda. Na ocasião, ela suspeitara de malefícios contra seus filhos, recentemente mortos, nos quais Clóvis estaria envolvido; ela também ordenou a tortura de algumas mulheres suspeitas (Hist., V, 39).” ― FREITAS, Edmar Checon de.

[25] LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1984, vol. I, p. 58-60.

[26] JOHNSON, Paul. História do Cristianismo, op. cit., especialmente as páginas 167-188.

[27] DE CASSAGNE, Irene. Valorización y educación del Niño en la Edad Media, op. cit., p. 21.

[28] “Sabe-se que as escolas dos mosteiros acolhiam tanto os nobres rebentos da aristocracia quanto os pobres filhos dos servos.” ― NUNES, Rui Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média. São Paulo: EDUSP, 1979, p. 113.

[29] Mesmo Manacorda, um crítico do período, afirma que “...devemos reconhecer que, na pedagogia cristã, ela (a maxima reverentia) é um elemento novo de consideração da idade infantil” ― MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação - da Antigüidade aos nossos dias. São Paulo: Cortez, 1989, p. 118.

[30] Por exemplo, em sua Guerra Gótica, o historiador bizantino Procópio de Cesaréia († 562) nos conta que “...nem Teodorico permitira aos godos enviar os filhos à escola de letras humanas, antes dizia a todos que, uma vez dominados pelo medo do chicote, nunca teriam ousado enfrentar com coragem o perigo da espada e da lança (...) Portanto, querida soberana - diziam a ela - manda para aquele lugar esses pedagogos e põe tu mesma ao lado de Atalarico alguns coetâneos: estes, crescendo junto com ele, o impelirão para a coragem e a valentia segundo o uso dos bárbaros (I, 2)” ― Citado em MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação - da Antigüidade aos nossos dias, op. cit., p. 135-136.

[31] ROUCHE, Michel. “Alta Idade Média ocidental”, op. cit., p. 446.

[32] Regra de São Bento (depois de 529 d.C.), cap. 70.

[33] “O que retém a vara aborrece a seu filho, mas o que ama, cedo o disciplina.” (Prov. 13:24); “Não retires da criança a disciplina, pois, se a fustigares com a vara não morrerás. Tu a fustigarás com a vara e livrarás a sua alma do inferno.” (Prov. 23.13-14)

[34] “Os meninos e adolescentes ou os que não podem compreender que espécie de pena é, na verdade, a excomunhão, quando cometem alguma falta, sejam afligidos com muitos jejuns ou castigados com ásperas varas, para que se curem.” ― Regra de São Bento, cap. 30

[35] “As crianças por tal falta recebam pancadas” ― Regra de São Bento, cap. 45.

[36] Mesmo nesse aspecto, o das surras, há de se relativizar: um dos maiores sucessos editoriais no Brasil, o livro Meu Bebê, Meu Tesouro, de DELAMARE, defendia que as crianças deveriam levar uma surra todos os dias!

[37] MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação - da Antigüidade aos nossos dias, op. cit., p. 119. Naturalmente Manacorda se refere ao sadismo por parte de quem aplicava o castigo, isto é, os monges. Falo isso porque, certa vez, ao ler parte desse texto em sala de aula na UFES, uma aluna ficou em dúvida se o sadismo era por parte de quem batia ou de quem apanhava!

[38] “Pode haver, com efeito, alguns casos particulares desses tipos. Mas os monges são pessoas que fizeram e fazem livremente a sua opção pela vida silenciosa e penitente, por amor a Deus que transborda na caridade para com o próximo.” ― NUNES, Rui Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média, op. cit., p. 91-92.

[39] San Cesáreo de Arles, Sermo ad monacho, CCXXXVI, 1-2, Morin, t. II, p. 894. Citado em DE CASSAGNE, Irene. Valorización y educación del Niño en la Edad Media, op. cit., p. 22.

[40] Citado em MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação - da Antigüidade aos nossos dias, op. cit., p. 135. Esse belo texto medieval também é analisado em NUNES, Rui Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média, op. cit., p. 157-159 (SÖHNGEN, C. J. De medii aevi puerorum institutione in occidente. Diss. Amsterdam 1900).

[41] TOUBERT, Pierre. “O período carolíngio (séculos VII a X)”. In: BURGUIÈRE, André, KLAPISCH-ZUBER, Christiane, SEGALEN, Martine e ZONABEND, Françoise (dir.). História da Família. Tempos Medievais: Ocidente, Oriente. Lisboa: Terramar, 1997, p. 69-84.

[42] “O comércio de escravos fora rigorosamente interdito em 779 e 781 (...) mas continuou, não obstante (...) Agobardo mostra-nos que este comércio vinha de longe (...) conta-nos que no começo do século IX chegara a Lião um homem, fugido de Córdova, onde tinha sido vendido como escravo por um judeu de Lião. E afirma a este propósito que lhe falaram de crianças roubadas ou compradas por judeus para serem vendidas.” ― PIRENNE, Henri. Maomé e Carlos Magno. Lisboa: Publicações Dom Quixote, s/d., p. 228.

[43] Christopher Brooke analisa a história do casamento (O casamento na Idade Média. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d) sem, contudo, tratar da ética conjugal dos espelhos carolíngios, preferindo fazer seu recorte nos séculos feudais (XI-XII).

[44] “O modelo conjugal que a elite religiosa procura então impor como regulador da violência social implica, além disso, um reconhecimento da mulher enquanto pessoa, enquanto consors de pleno direito na sociedade familiar (...) A perfeita igualdade entre os cônjuges é um dos temas mais constantes da literatura matrimonial, em plena concordância com a legislação que, desde meados do século VIII, não cessa de proclamar que a lei do matrimônio é uma só, tanto para o homem como para a mulher.” ― TOUBERT, Pierre. “O período carolíngio (séculos VII a X)”, op. cit., p. 87. Também é desnecessário dizer que a violência sexual da época era contra a mulher.

[45] “Esta temática deverá ser relacionada com a luta que nessa época se travava contra as práticas contraceptivas, o aborto provocado e o infanticídio. Comporta igualmente um dever de educação cristã que tem como resultado, em Teodulfo de Orleães, uma definição do officium paterno e materno.” ― TOUBERT, Pierre. “O período carolíngio (séculos VII a X)”, op. cit., p. 87.

[46] “Que ajuntem e reúnam ao redor de si não só filhos de condição servil, mas também filhos de homens livres.” ― Da Admonitio generalis, cap. 72. In: BETTENSON, H. Documentos da Igreja cristã. São Paulo: ASTE, 2001, p. 168.

[47] Todos esses avanços jurídicos em relação à mulher e à criança foram acompanhados, paradoxalmente, por um discurso clerical anti-feminino! Para esse tema, ver especialmente DUBY, Georges. Eva e os padres. Damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. De qualquer modo, é fato que a mulher moderna ocidental hoje desfruta de uma posição social melhor que no Oriente, especialmente nos países de cultura islâmica.

[48] “O gosto que os autores medievais tinham pela etimologia derivava de uma atitude com relação à linguagem bastante diferente da que geralmente temos hoje. Na Idade Média, ansiava-se por saborear a transparência de cada palavra; para nós, pelo contrário, a linguagem é opaca e costuma ser considerada como mera convenção (e nem reparamos, por exemplo, em que coleira, colar, colarinho, torcicolo e tiracolo se relacionam com colo, pescoço).” ― LAUAND, Luiz Jean. Cultura e Educação na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 106.

[49] Esse é um ponto no qual a pedagogia medieval difere enormemente da moderna, pois é quase senso comum hoje afirmar que as crianças são receptáculos vazios (tabula rasa) e o educador enche-as de conteúdo.

[50] PRICE, B. B. Introdução ao Pensamento Medieval. Lisboa: Edições Asa, 1996, p. 88.

[51] Este trabalho é a primeira parte da palestra intitulada "Reordenando o conhecimento: a educação na Idade Média e o conceito de ciência expresso na obra Doutrina para Crianças (c. 1274-1276) de Ramon Llull" proferida na II Jornada de Estudos Antigos e Medievais: Transformação social e Educação - 10 e 11 de Outubro de 2002 - Universidade Estadual de Maringá (UEM), evento coordenado pela Profª Drª Terezinha Oliveira.

***

Leia mais em A Pedagogia Medieval

Leia mais em Música e a Educação da criança



Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae

Nossa página no Instagram @summamathematicae e YouTube.


 



A sabedoria medieval na ponta dos dedos


Contar com os dedos de 1 a 20.000, de 'De numeris'.
Codex alcobacense, por Rabano Mauro (780-856)

RECEBA NOSSAS ATUALIZAÇÕES

DIGITE SEU EMAIL:

Verifique sua inscrição no email recebido.


Tempo de leitura: 9 minutos.

Texto retirado do LINK.

A sabedoria medieval na ponta dos dedos, por Luis Dufaur - Escritor, jornalista, conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs.

A queda do Império Romano deixou a Europa e boa parte do Oriente Próximo submersos no mais generalizado analfabetismo. Porque nesse Império, tão grande sob os pontos de vista cultural, jurídico e administrativo, tão elogiado hoje, a imensa maioria dos homens era de escravos. Apenas as classes altas que dirigiam a sociedade e os exércitos haviam recebido instrução, por vezes aprimorada. Mas essas categorias cultas pereceram ou desapareceram nas invasões dos bárbaros. Os bárbaros – talvez feitas algumas exceções – acrescentaram o próprio deles: a barbárie! Foi o trabalho santo, heroico e paciente da Igreja, notadamente suas escolas monacais, episcopais ou paroquiais que foram tirando Europa da noite da ignorância até transforma-la num farol de cultura universal.

São Beda é o fundador da historiografia inglesa, entre outros títulos

O trabalho educador demorou séculos considerando as devastações das sucessivas invasões bárbaras e dos muçulmanos cheios de ódio destrutor. Houve um período intermediário de séculos até os povos serem satisfatoriamente instruídos. Como faziam então, os primeiros medievais com suas contas sabendo pouco escrever ou ler? O mais incrível que o faziam com os dedos da mão, porém com uma habilidade e uma complexidade de nos fazer passar vergonha. A habilidade era tão surpreendente que foi objeto de uma reportagem especial do jornal portenho “La Nación”.

Nós também contamos com os dedos, mas não vamos além dos 10 das duas mãos. Os medievais conheciam combinações por onde com esses 10 podiam facilmente calcular até 9.999. Os mais habilidosos podiam fazer cálculos na casa do milhão pondo as mãos em diversas partes do corpo, algo muito útil para os que mexiam com dinheiro.

Em verdade, o método não era exclusivamente medieval e já existia na Antiguidade. O escritor romano do século V Marciano Capela descreveu “a dama da Aritmética”, como uma “mulher de extraordinária beleza, e a majestade de uma nobilíssima antiguidade”, em seu livro “De Nuptiis”, no qual personifico as sete artes liberais. E descreveu uma “dança” que a dama Aritmética executava com as mãos: a complexa e muito prezada arte de contar com os dedos. Tudo isso se teria perdido se não fosse os monges católicos.

A dama da Aritmética, xilografia do livro
Margarita Philosophica (A pérola filosófica),
de Gregor Reisch (1467 -1525)

“Esse sistema foi usado até os séculos XI e XIII na Idade Média em toda a Europa”, disse à BBC Mundo o historiador da ciência medieval Seb Falk, autor do livro “The Light Ages” ou “A idade da luz”.

O livro De temporum ratione ou “Como contar o tempo” de um monge do início do século VIII é o mais interessante. O religioso vivia em um dos cantos mais remotos do mundo conhecido, no mosteiro de Jarrow, no nordeste da Inglaterra. Mas suas obras iluminaram a civilização ocidental durante milênios, e sua fama de estudioso de renome internacional revoa até hoje: foi São Beda, o Venerável, Doutor da Igreja. O referido tratado marcou o compasso da Europa até a reforma gregoriana de 1582 ensinando a ciência do cálculo do tempo e a arte da construção do calendário.

Sinais sobre o corpo para os grandes números

“A base do calendário cristão é a Páscoa. Essa data tem que ser identificada meses ou anos antes para harmonizar o culto divino e desencadeou grandes debates do Atlântico a Alexandria”, explica o historiador da ciência. “Devia cair no domingo após a primeira lua cheia ou equinócio, e tinha que ser marcada com antecedência, já que toda a liturgia católica depende dela. “Era preciso combinar o ciclo solar e o ciclo lunar e os dias da semana.

“São Beda resolveu como fazê-lo usando os dedos das mãos! Assim chegava à data correta da Páscoa em questão de segundos. “Não foi à toa que seu manual enciclopédico foi impresso e copiado por centenas de anos”, escreveu o professor Seb Falk.

São Beda mostra que as mãos, esses aparelhos portáteis por excelência, servem como computadores modernos e ensinou como contar até 9999.

“Assim como, quando escrevemos, temos uma coluna para as unidades, outra para as dezenas, centenas e milhares, ele dedicava o dedo mínimo, o anel e os dedos médios da mão esquerda às unidades e o indicador e o polegar às dezenas; na mão direita, o polegar e o indicador indicavam as centenas e os outros três dedos, os milhares”. “Diferentes combinações desses dedos em posições diferentes permitiram representar todos esses números”, escreve Falk.

Seb Falk, 'The Light Ages'

São Beda forneceu dicas para aprender a contar: dizendo os números em voz alta enquanto mostra suas mãos e os alunos se acostumam a gestos às vezes difíceis de reproduzir, até memoriza-los. Pode se usar as mãos para adicionar, subtrair, multiplicar como um ábaco.

“Era uma linguagem de sinais usada pelos feirantes para se comunicar de maneira eficaz em meio ao ruído e à distância”, explica Falk. “Os monges utilizavam para se comunicar em mosteiros onde o silêncio é regra, e para memorizar textos filosóficos e fórmulas matemáticas”.

Nesse caso os números eram substituídos pelas letras – a letra “$a$” era representada pelo $1$; a “$b$” pelo $2$, etc. E também servia de código secreto em caso de perigo. Se alguém quiser alertar um amigo que está entre traidores mostra com os dedos $3, 1, 20, 19, 5$ e $1, 7, 5$; nessa ordem as letras significam caute age (aja com cautela). Esse código manual também foi valioso para o estudo de algo muito precioso na vida monástica: a música.

“A música foi estudada de uma maneira muito científica; para monges era uma ciência matemática. “Eles pensavam constantemente sobre a relação entre as diferentes harmonias, nas proporções aritméticas entre as diferentes notas da escala musical. “Para esses filósofos tudo havia sido criado por Deus com algum motivo, e a ‘harmonia das esferas’ e da ‘música universal’ não era uma metáfora”.

Os monges haviam recuperado os escritos do grego Pitágoras, pai das matemáticas, que postulava que o Universo era governado de acordo com magnitudes numéricas harmoniosas e que o movimento dos corpos celestes seguia proporções musicais.

São Beda no leito de morte dita a interpretação do último capítulo
do Apocalipse, James Doyle Penrose (1862 – 1932), 
Royal Academy, Burlington House, Piccadilly

Assim os dedos serviam para os mais complicados cálculos astronômicos. Mas também para erigir catedrais de altitudes vertiginosas e formas ousadas que perduram até hoje. Se o sistema dos dedos distorcesse um pouco esses prédios teriam desabado há tempo. “Os planetas tocavam um tipo de música criada pela velocidade em que giravam, que era como uma frequência: quanto maior a frequência, maior a nota. (Este conceito aliás foi assimilado por Aristóteles e comentado por Santo Tomás de Aquino). “Para lembrar as diferentes notas musicais e configurações de harmonia, eles usavam as mãos”, prossegue o historiador da ciência.

Naquela época, a memória era uma ferramenta indispensável, porque os materiais de escrita eram muito caros, os livros eram escassos e muito prezados. Talvez os mais preciosos sejam os do Venerável São Beda que nos transmitiu a dança digital científica que durante séculos serviu para a contagem da melodia cósmica e a construção da Cristandade.

***


Leia mais em A Pedagogia Medieval

Leia mais em Rábano Mauro e o Significado Místico dos Números



Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae

Nossa página no Instagram @summamathematicae e YouTube.


O Xadrez e a Matemática

Templários disputando uma partida de Xadrez
— Iluminura do “Libro de los Juegos

Tempo de Leitura: 24 minutos

Texto retirado do livro O homem que calculava de Malba Tahan, Editora Record.

Contextualizando, no capítulo XV, Beremir, o homem que calculava, estava falando sobre quadrados mágicos e agora contará ao rei sobre a origem do jogo de xadrez.

***

A seguir, o brilhante calculista tomou do tabuleiro de xadrez e disse, voltando-se para o rei:

— Este velho tabuleiro, dividido em 64 casas pretas e brancas, é empregado, como sabeis, no interessante jogo que um hindu chamado Lahur Sessa, inventou, há muitos séculos, para recrear um rei da Índia. A descoberta do jogo de xadrez acha-se ligada a uma lenda que envolve cálculos, números, e notáveis ensinamentos.

— Deve ser interessante ouvi-la! — atalhou o califa. — Quero conhecê-la!

— Escuto e obedeço — respondeu Beremiz.

E narrou a seguinte história:

Capítulo XVI 

Onde se conta a famosa lenda sobre a origem do jogo de xadrez. A lenda é narrada ao califa de Bagdá, Al-Motacém Bilah, Emir dos Crentes, por Beremiz Samir, o Homem que Calculava.

Difícil será descobrir, dada a incerteza dos documentos antigos, a época precisa em que viveu e reinou na Índia um príncipe chamado Iadava, senhor da província da Taligana. Seria, porém, injusto ocultar que o nome desse monarca vem sendo apontado por vários historiadores hindus como dos soberanos mais ricos e generosos de seu tempo.

A guerra, com o cortejo fatal de suas calamidades, muito amargou a existência do rei Iadava, transmutando-lhe o ócio e gozo da realeza nas mais inquietantes atribulações. Adstrito ao dever, que lhe impunha a coroa, de zelar pela tranquilidade de seus súditos, viu-se o nosso bom e generoso monarca forçado a empunhar a espada para repelir, à frente de pequeno exército, um ataque insólito e brutal do aventureiro Varangul, que se dizia príncipe de Caliã.

O choque violento das forças rivais juncou de mortos os campos de Dacsina e tingiu de sangue as águas sagradas do Rio Sandhu. O rei Iadava possuía — pelo que nos revela a crítica dos historiadores — invulgar talento para a arte militar; sereno em face da invasão iminente, elaborou um plano de batalha, e tão hábil e feliz foi em executá-lo, que logrou vencer e aniquilar por completo os pérfidos perturbadores da paz do seu reino.

O triunfo sobre os fanáticos de Varangul custou-lhe, infelizmente, pesados sacrifícios; muitos jovens quichatrias [1] pagaram com a vida a segurança de um trono para prestígio de uma dinastia; e entre os mortos, com o peito varado por uma flecha, lá ficou no campo de combate o príncipe Adjamir, filho do rei Iadava, que patrioticamente se sacrificou no mais aceso da refrega, para salvar a posição que deu aos seus a vitória final.

Terminada a cruenta campanha e assegurada a nova linha de suas fronteiras, regressou o rei ao suntuoso palácio de Andra, baixando, porém, formal proibição de que se realizassem as ruidosas manifestações com que os hindus soíam festejar os grandes feitos guerreiros. Encerrado em seus aposentos, só aparecia para atender aos ministros e sábios brâmanes quando algum grave problema nacional o chamava a decidir, como chefe de Estado, no interesse e para felicidade de seus súditos.

Com o andar dos dias, longe de se apagarem as lembranças da penosa campanha, mais se agravaram a angústia e a tristeza que, desde então, oprimiam o coração do rei. De que lhe poderiam servir, na verdade, os ricos palácios, os elefantes de guerra, os tesouros imensos, se já não mais vivia a seu lado aquele que fora sempre a razão de ser de sua existência? Que valor poderiam ter, aos olhos de um pai inconsolável, as riquezas materiais que não apagam nunca a saudade do filho estremecido?

As peripécias da batalha em que pereceu o príncipe Adjamir não lhe saíam do pensamento. O infeliz monarca passava longas horas traçando, sobre uma grande caixa de areia, as diversas manobras executadas pelas tropas durante o assalto. Com um sulco indicava a marcha da infantaria; ao lado, paralelo ao primeiro, outro traço mostrava o avanço dos elefantes de guerra; um pouco mais abaixo, representada por pequenos círculos dispostos em simetria, perfilava a destemida cavalaria chefiada por um velho radj [2] que se dizia sob a proteção de Techandra, a deusa da Lua. Ainda por meio de gráficos esboçava o rei a posição das colunas inimigas desvantajosamente colocadas, graças à sua estratégia, no campo em que se feriu a batalha decisiva.

Uma vez completado o quadro dos combatentes, com as minudências que pudera evocar, o rei tudo apagava, para recomeçar novamente, como se sentisse íntimo gozo em reviver os momentos passados na angústia e na ansiedade.

À hora matinal em que chegavam ao palácio os velhos brâmanes para a leitura dos Vedas [3], já o rei era visto a riscar na areia os planos de uma batalha que se reproduzia interminavelmente.

— Infeliz monarca! — murmuravam os sacerdotes penalizados. — Procede como um sudra [4] a quem Deus privou da luz da razão. Só Dhanoutara [5], poderosa e clemente, poderá salvá-lo!

E os brâmanes erguiam preces, queimavam raízes aromáticas, implorando à eterna zeladora dos enfermos que amparasse o soberano de Taligana.

Um dia, afinal, foi o rei informado de que um moço brâmane — pobre e modesto — solicitava uma audiência que vinha pleiteando havia já algum tempo. Como estivesse, no momento, com boa disposição de ânimo, mandou o rei que trouxessem o desconhecido à sua presença.

Conduzido à grande sala do trono, foi o brâmane interpelado, conforme as exigências da praxe, por um dos vizires do rei.

— Quem és, de onde vens e que desejas daquele que, pela vontade de Vichnu [6], é rei e senhor de Taligana?

— Meu nome — respondeu o jovem brâmane — é Lahur Sessa [7] e venho da aldeia de Namir, que trinta dias de marcha separam desta bela cidade. Ao recanto em que eu vivia chegou a notícia de que o nosso bondoso rei arrastava os dias em meio de profunda tristeza, amargurado pela ausência de um filho que a guerra viera roubar-lhe. Grande mal será para o país, pensei, se o nosso dedicado soberano se enclausurar, como um brâmane cego, dentro de sua própria dor. Deliberei, pois, inventar um jogo que pudesse distraí-lo e abrir em seu coração as portas de novas alegrias. É esse o desvalioso presente que desejo neste momento oferecer ao nosso rei Iadava.

Como todos os grandes príncipes citados nesta ou naquela página da História, tinha o soberano hindu o grave defeito de ser excessivamente curioso. Quando o informaram da prenda de que o moço brâmane era portador, não pôde conter o desejo de vê-la e apreciá-la sem mais demora.

O que Sessa trazia ao rei Iadava consistia num grande tabuleiro quadrado, dividido em sessenta e quatro quadradinhos, ou casas, iguais; sobre esse tabuleiro colocavam-se, não arbitrariamente, duas coleções de peças que se distinguiam, uma da outra, pelas cores branca e preta, repetindo, porém, simetricamente, os engenhosos formatos e subordinados a curiosas regras que lhes permitiam movimentar-se por vários modos.

Sessa explicou pacientemente ao rei, aos vizires e cortesãos que rodeavam o monarca em que consistia o jogo, ensinando-lhes as regras essenciais:

— Cada um dos partidos dispõe de oito peças pequeninas — os peões. Representam a infantaria, que ameaça avançar sobre o inimigo para desbaratá-lo. Secundando a ação dos peões vêm os elefantes de guerra [8], representados por peças maiores e mais poderosas; a cavalaria, indispensável no combate, aparece, igualmente, no jogo, simbolizada por duas peças que podem saltar, como dois corcéis, sobre as outras; e, para intensificar o ataque, incluem-se — para representar os guerreiros cheios de nobreza e prestígio — os dois vizires [9] do rei. Outra peça, dotada de amplos movimentos, mais eficiente e poderosa do que as demais, representará o espírito de nacionalidade do povo e será chamada a rainha. Completa a coleção uma peça que isolada pouco vale, mas se torna muito forte quando amparada pelas outras. É o rei.

O rei Iadava, interessado pelas regras do jogo, não se cansava de interrogar o inventor:

— E por que é a rainha mais forte e mais poderosa que o próprio rei?

— É mais poderosa — argumentou Sessa — porque a rainha representa, nesse jogo, o patriotismo do povo. A maior força do trono reside, principalmente, na exaltação de seus súditos. Como poderia o rei resistir ao ataque dos adversários, se não contasse com o espírito de abnegação e sacrifício daqueles que o cercam e zelam pela integridade da pátria?

Dentro de poucas horas o monarca, que aprendera com rapidez todas as regras do jogo, já conseguia derrotar os seus dignos vizires em partidas que se desenrolavam impecáveis sobre o tabuleiro.

Sessa, de quando em quando, intervinha respeitoso, para esclarecer uma dúvida ou sugerir novo plano de ataque ou de defesa.

Em dado momento, o rei fez notar, com grande surpresa, que a posição das peças, pelas combinações resultantes dos diversos lances, parecia reproduzir exatamente a batalha de Dacsina.

— Reparai — ponderou o inteligente brâmane — que para conseguirdes a vitória, indispensável se torna, de vossa parte, o sacrifício deste vizir!

E indicou precisamente a peça que o rei Iadava, no desenrolar da partida — por vários motivos —, grande empenho pusera em defender e conservar.

O judicioso Sessa demonstrava, desse modo, que o sacrifício de um príncipe é, por vezes, imposto como uma fatalidade, para que dele resultem a paz e a liberdade de um povo.

Ao ouvir tais palavras, o rei Iadava, sem ocultar o entusiasmo que lhe dominava o espírito, assim falou:

— Não creio que o engenho humano possa produzir maravilha comparável a este jogo interessante e instrutivo! Movendo essas tão simples peças, aprendi que um rei nada vale sem o auxílio e a dedicação constante de seus súditos. E que, às vezes, o sacrifício de um simples peão vale mais, para a vitória, do que a perda de uma poderosa peça.

E, dirigindo-se ao jovem brâmane, disse-lhe:

— Quero recompensar-te, meu amigo, por este maravilhoso presente, que de tanto me serviu para alívio de velhas angústias. Dize-me, pois, o que desejas, para que eu possa, mais uma vez, demonstrar o quanto sou grato àqueles que se mostram dignos de recompensa.

As palavras com que o rei traduziu o generoso oferecimento deixaram Sessa imperturbável. Sua fisionomia serena não traía a menor agitação, a mais insignificante mostra de alegria ou surpresa. Os vizires olhavam-no atônitos e entreolhavam-se pasmados diante da apatia de uma cobiça a que se dava o direito da mais livre expansão.

— Rei poderoso! — redargüiu o jovem com doçura e altivez. — Não desejo, pelo presente que hoje vos trouxe, outra recompensa além da satisfação de ter proporcionado ao senhor de Taligana um passatempo agradável que lhe vem aligeirar as horas dantes alongadas por acabrunhante melancolia. Já estou, portanto, sobejamente aquinhoado e outra qualquer paga seria excessiva.

Sorriu, desdenhosamente, o bom soberano ao ouvir aquela resposta que refletia um desinteresse tão raro entre os ambiciosos hindus. E, não crendo na sinceridade das palavras de Sessa, insistiu:

— Causa-me assombro tanto desdém e desamor aos bens materiais, ó jovem! A modéstia, quando excessiva, é como o vento que apaga o archote cegando o viandante nas trevas de uma noite interminável. Para que possa o homem vencer os múltiplos obstáculos que se lhe deparam na vida, precisa ter o espírito preso às raízes de uma ambição que o impulsione a um ideal qualquer. Exijo, portanto, que escolhas, sem mais demora, uma recompensa digna de tua valiosa oferta. Queres uma bolsa cheia de ouro? Desejas uma arca repleta de joias? Já pensaste em possuir um palácio? Almejas a administração de uma província? Aguardo a tua resposta, por isso que à minha promessa está ligada a minha palavra!

— Recusar o vosso oferecimento depois de vossas últimas palavras — acudiu Sessa — seria menos descortesia do que desobediência ao rei. Vou, pois, aceitar, pelo jogo que inventei, uma recompensa que corresponde à vossa generosidade; não desejo, contudo, nem ouro, nem terras ou palácios. Peço o meu pagamento em grãos de trigo.

— Grãos de trigo? — estranhou o rei, sem ocultar o espanto que lhe causava semelhante proposta. — Como poderei pagar-te com tão insignificante moeda?

— Nada mais simples — elucidou Sessa. — Dar-me-eis um grão de trigo pela primeira casa do tabuleiro; dois pela segunda, quatro pela terceira, oito pela quarta, e assim dobrando sucessivamente, até a sexagésima quarta e última casa do tabuleiro. Peço-vos, ó Rei, de acordo com a vossa magnânima oferta, que autorizeis o pagamento em grãos de trigo, e assim como indiquei!

Não só o rei como os vizires e venerandos brâmanes presentes riram-se, estrepitosamente, ao ouvir a estranha solicitação do jovem. A desambição que ditara aquele pedido era, na verdade, de causar assombro a quem menos apego tivesse aos lucros materiais da vida. O moço brâmane, que bem poderia obter do rei um palácio em uma província, contentava-se com grãos de trigo!

— Insensato! — clamou o rei. — Onde foste aprender tão grande desamor à fortuna? A recompensa que me pedes é ridícula. Bem sabes que há, num punhado de trigo, número incontável de grãos. Devemos compreender, portanto, que com duas ou três medidas de trigo eu te pagarei folgadamente, consoante o teu pedido, pelas sessenta e quatro casas do tabuleiro. É certo, pois, que pretendes uma recompensa que mal chegará para distrair, durante alguns dias, a fome do último pária [10] do meu reino. Enfim, visto que minha palavra foi dada, vou expedir ordens para que o pagamento se faça imediatamente, conforme teu desejo.

Mandou o rei chamar os algebristas mais hábeis da corte e ordenou-lhes calculassem a porção de trigo que Sessa pretendia.

Os sábios calculistas, ao cabo de algumas horas de acurados estudos, voltaram ao salão para submeter ao rei o resultado completo de seus cálculos.

Perguntou-lhes o rei, interrompendo a partida que então jogava:

— Com quantos grãos de trigo poderei, afinal, desobrigar-me da promessa que fiz ao jovem Sessa?

— Rei magnânimo! — declarou o mais sábio dos matemáticos. — Calculamos o número de grãos de trigo que constituirá o pagamento pedido por Sessa, e obtivemos um número [11] cuja grandeza é inconcebível para a imaginação humana. Avaliamos, em seguida, com o maior rigor, a quantas ceiras [12] corresponderia esse número total de grãos, e chegamos à seguinte conclusão: a porção de trigo que deve ser dada a Lahur Sessa equivale a uma montanha que, tendo por base a cidade de Taligana, seria cem vezes mais alta do que o Himalaia! A Índia inteira, semeados todos os seus campos, taladas todas as suas cidades, não produziria em dois mil séculos a quantidade de trigo que, pela vossa promessa, cabe, em pleno direito, ao jovem Sessa!

Como descrever aqui a surpresa e o assombro que essas palavras causaram ao rei Iadava e a seus dignos vizires? O soberano hindu via-se, pela primeira vez, diante da impossibilidade de cumprir a palavra dada.

Lahur Sessa — rezam as crônicas do tempo —, como bom súdito, não quis deixar aflito o seu soberano. Depois de declarar publicamente que abriria mão do pedido que fizera, dirigiu-se respeitosamente ao monarca e assim falou:

— Meditai, ó Rei, sobre a grande verdade que os brâmanes prudentes tantas vezes repetem: os homens mais avisados iludem-se, não só diante da aparência enganadora dos números, mas também com a falsa modéstia dos ambiciosos. Infeliz daquele que toma sobre os ombros o compromisso de uma dívida cuja grandeza não pode avaliar com a tábua de cálculo de sua própria argúcia. Mais avisado é o que muito pondera e pouco promete!

E, após ligeira pausa, acrescentou:

— Menos aprendemos com a ciência vã dos brâmanes do que com a experiência direta da vida e das suas lições de todo dia, a toda hora desdenhadas! O homem que mais vive mais sujeito está às inquietações morais, mesmo que não as queira. Achar-se-á ora triste, ora alegre; hoje fervoroso, amanhã tíbio; já ativo, já preguiçoso; a compostura alternará com a leviandade. Só o verdadeiro sábio, instruído nas regras espirituais, se eleva acima dessas vicissitudes, paira por sobre todas essas alternativas!

Essas inesperadas e tão sábias palavras calaram fundo no espírito do rei. Esquecido da montanha de trigo que, sem querer, prometera ao jovem brâmane, nomeou-o seu primeiro-vizir.

E Lahur Sessa, distraindo o rei com engenhosas partidas de xadrez e orientando-o com sábios e prudentes conselhos, prestou os mais assinalados benefícios ao povo e ao país, para maior segurança do trono e maior glória de sua pátria.

Encantado ficou o califa Al-Motacém quando Beremiz concluiu a história singular do jogo de xadrez. Chamou o chefe de seus escribas e determinou que a lenda de Sessa fosse escrita em folhas especiais de algodão e conservada em valioso cofre de prata.

E, a seguir, o generoso soberano deliberou se entregasse ao calculista um manto de honra e 100 cequins de ouro.

Bem disse o filósofo:

— Deus fala ao mundo pelas mãos dos generosos! [13]

A todos causou grande alegria o ato de magnanimidade do soberano de Bagdá. Os cortesãos que permaneciam no divã eram amigos do vizir Maluf e do poeta Iezid: era, pois, com simpatia que ouviam as palavras do calculista persa, por quem muito se interessavam.

Beremiz, depois de agradecer ao soberano os presentes com que acabava de ser distinguido, retirou-se do divã. O califa ia iniciar o estudo e julgamento de diversos casos, ouvir os honrados cádis [14] e proferir suas sábias sentenças.

Deixamos o palácio real ao cair da noite. Ia começar o mês de Chá-band [15].


NOTAS:

[1] Militares, uma das quatro castas em que se divide o povo hindu. As demais são formadas pelos brâmanes (sacerdotes), vairkas (operários) e sudras (escravos).

[2] Chefe militar.

[3] Livro sagrado dos hindus.

[4] Escravo.

[5] Deusa.

[6] Segundo membro da trindade bramânica.

[7] Nome do inventor do jogo de xadrez. Significa “natural de Lahur”.

[8] Os elefantes foram mais tarde substituídos pelas torres.

[9] Os vizires são as peças chamadas bispos. A rainha não tinha, a princípio, movimentos tão amplos.

[10] Indivíduo pertencente a uma das castas mais ínfimas da costa de Coromandel. Corresponde, na escala social, à casta dos poleás. Na Europa emprega-se o termo no sentido de “homem expulso de sua casta ou classe” (B. A. B.)

[11] Para se obter esse total de grãos de trigo, devemos elevar o número $2$ ao expoente $64$, e do resultado tirar uma unidade. Trata-se de um número verdadeiramente astronômico, de vinte algarismos, que é famoso em Matemática:

$$18.446.744.073.709.551.615$$

Chamamos especialmente a atenção dos matemáticos para a nota do Apêndice, intitulada O Problema do Jogo de Xadrez.

[12] Ceira ou cer — Unidade de capacidade e peso usada na Índia. Seu valor variava de uma localidade para outra.

[13] Esse pensamento é de Gibran Khalil Gibran.

[14] Cádis — Juízes. Denominação dada aos magistrados.

[15] Chá-band — Um dos meses do calendário árabe.


APÊNDICE

O Problema do Jogo de Xadrez


Aquele que deseja estudar ou exercer a Magia deve cultivar a Matemática [1] Matila Ghyka


É esse, sem dúvida, um dos problemas mais famosos nos largos domínios da Matemática Recreativa. O número total de grãos de trigo, de acordo com a promessa do rei Iadava, será expresso pela soma dos sessenta e quatro primeiros termos da progressão geométrica:

$$:: 1 : 2 : 4 : 8 : 16 : 32 : 64$$

A soma dos 64 primeiros termos dessa progressão é obtida por meio de uma fórmula muito simples, estudada em Matemática Elementar [2].

Aplicada a fórmula obtemos para o valor da soma S:

$$S = 2^{64} - 1$$

Para obter o resultado final devemos elevar o número $2$ à sexagésima quarta potência, isto é, multiplicar $2\times 2\times 2\times ...$ tendo esse produto sessenta e quatro fatores iguais a $2$. Depois do trabalhoso cálculo chegamos ao seguinte resultado:

$S = 18.446.744.073.709.551.616 - 1$

Resta, agora, efetuar essa subtração. Da tal potência de dois tirar $1$. E obtemos o resultado final:

$$S = 18.446.744.073.709.551.615$$

Esse número gigantesco, de vinte algarismos, exprime o total de grãos de trigo que impensadamente o lendário rei Iadava prometeu, em má hora, ao não menos lendário Lahur Sessa, inventor do jogo de xadrez.

Feito o cálculo aproximado para o volume astronômico dessa massa de trigo, afirmam os calculistas que a Terra inteira, sendo semeada de norte a sul, com uma colheita, por ano, só poderia produzir a quantidade de trigo que exprimia a dívida do rei, no fim de 450 séculos! [3]

O matemático francês Etienne Ducret incluiu em seu livro, bordando-os com alguns comentários, os cálculos feitos pelo famoso matemático inglês John Wallis, para exprimir o volume da colossal massa de trigo que o rei da Índia prometeu ao astucioso inventor do jogo de xadrez. De acordo com Wallis, o trigo poderia encher um cubo que tivesse 9.400 metros de aresta. Essa respeitável massa de trigo deveria custar (naquele tempo) ao monarca indiano um total de libras que seria expresso pelo número:

$$855.056.260.444.220$$

É preciso atentar para essa quantia astronômica. Mais de 855 trilhões de libras [4].

Se fôssemos, por simples passatempo, contar os grãos de trigo do monte $S$ à razão de $5$ por segundo, trabalhando dia e noite sem parar, gastaríamos, nessa contagem, 1.170 milhões de séculos! Vamos repetir: mil cento e setenta milhões de séculos! [5]

De acordo com a narrativa de Beremiz, o Homem que Calculava, o imaginoso Lahur Sessa, o inventor, declarou publicamente que abria mão da promessa do rei, livrando, assim, o monarca indiano do gravíssimo compromisso. Para pagar pequena parte da dívida, o soberano teria que entregar ao novo credor o seu tesouro, as suas alfaias, as suas terras e seus escravos. Ficaria reduzido à mais absoluta miséria. Em situação social, ficaria abaixo de um sudra [6].


NOTAS

[1] Esse pensamento famoso poderá ser lido no livro de Matila Ghyka, Philosophie et Mystique des Nombres, Col. Payot, Paris, 1952, pág. 87.

[2] Cf. Thiré e Mello e Souza, Matemática, 4.ª série.

[3] Cf. Robert Tocquet, Les Calculateurs Prodiges et leurs Secrets, Ed. Pierre Amiot, Paris, 1959, pág. 164.

[4] Cf. Etienne Tucret, Récréations Mathématiques, Paris, s.d., pág. 87. Convém ler, também: Ighersi, Matemática Dillettevola e Curiosa, Milão, 1912, pág. 80.

[5] Cf. Tocquet, ob. cit.

[6] Veja a análise completa desse problema no livro Problemas Famosos e Curiosos da Matemática.


***




Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram @summamathematicae e YouTube.



Total de visualizações de página