Cálculo mental. Escola Pública de S. A. Rachinsky, por Nikolai Petrovich Bogdanov-Belsky, 1895
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Apresentamos trechos do capítulo 4 relativas a educação matemática da criança do livro A mente bem treinada: um guia para educação clássica em casa. Autoras: Jessie Wise e Susan Wise Bauer. Tradução: Alexei Gonçalves de Oliveira. Editora Liber, 2019.
Matemática [Pré-escola: do nascimento aos três anos de idade]
Comece o "letramento matemático" de seu filho já nos anos iniciais de sua vida. Enquanto você estiver lendo para seu filho de dois ou três anos, cercando-o de linguagem até que ele entenda que as palavras impressas têm uma carga de significado, você precisa agora expô-lo continuamente aos processos matemáticos e linguísticos. Só assim ele entenderá que os símbolos matemáticos também têm sua própria carga de significado.
Traga números para a vida diária tão frequentemente quanto possível. Comece pelas contagens: dedos das mãos e dos pés, olhos e orelhas; brinquedos e tesouros; pedrinhas e palitos. Brinque de esconde-esconde, contando até cinco e, depois, até dez, quinze ou vinte. Faça contagens de dois em dois, de cinco em cinco, e de dez em dez antes gritar, "estou indo!". Brinque de nave espacial em caixas de papelão e faça contagens regressivas para decolar. Leiam juntos livros sobre números. Uma vez que a criança esteja à vontade fazendo contagens, você pode começar a exercitar somas matemáticas simples - normalmente, durante os níveis K-4 e K-5 [*].
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Matemática [Os anos do jardim de infância: quatro e cinco anos de idade]
Agora que a criança já consegue contar, continue a ensinar Matemática diariamente fazendo adições e subtrações no contexto do dia a dia da família. Arrumar a mesa é um ótimo exercício de Matemática: peça a seu filho para descobrir quantos pratos, facas, garfos e colheres serão necessários. Adicione e subtraia na mercearia ("Veja só, querido. Estou pegando quatro tomates e, agora, peguei mais um tomate - agora tenho cinco tomates!"). Mantenha seus filhos por perto enquanto cozinha - as receitas culinárias estão repletas de frações e medidas. Quando for cortar um sanduíche ao meio ou em quartos, diga: "Veja só, cortei pela metade!" ou "Cortei o sanduíche em quartos".
Faça brincadeiras que usem números. "Uno" é um clássico, que ensina tanto os números quanto as combinações de cores. Jogos simples de cartas tais como "Bisca" , "Burro" ou "Oito Maluco" exigem que a criança lembre quais números são maiores e quais são menores.
Pratique a escrita de números usando lápis e papel, giz e quadro-negro, giz de cera e cartolina, dedinhos e areia. Números grandes são divertidos e fáceis de brincar - não insista com seu filho em idade pré-escolar que escreva seus números perfeitamente alinhados em papel pautado.
Faça muitas adições e subtrações usando objetos (feijões, botões, lápis e pastilhas de chocolate). Brinque com manuseáveis de Matemática: escalas Cuisenaire [20], ursinhos contadores [21] ou círculos fracionados. Pratique a contagem até cem - de dois em dois, de cinco em cinco, de dez em dez. Ensine a contar dinheiro, a dizer as horas e dar nome a figuras geométricas - círculos, quadrados, triângulos, retângulos.
A biblioteca pública mais próxima de você deve ter uma seleção bem variada e colorida de livros de Matemática para o nível do jardim de infância, com problemas fáceis desenvolvidos a partir de figuras de objetos. Pegue um livro toda semana e leia-o junto com seu filho. Se você seguir estas sugestões, seu filho está pronto para a Matemática da primeira grade. Os filhos de Susan não tiveram dificuldade de adotar diretamente um currículo de Matemática da primeira grade sem completar primeiro um programa formal de Matemática em nível de jardim de infância. Tal como em Leitura, entretanto, as crianças pequenas podem gostar de ter um programa de Matemática para trabalhar ao mesmo tempo que seus irmãos mais velhos. Muitos programas de Matemática para jardim de infância são divertidos e repletos de objetos para manipular. Novamente, pense num programa de Matemática para o jardim de infância como uma brincadeira, não como um objetivo acadêmico. Caso a criança fique cansada após cinco ou dez minutos, não a obrigue a terminar a lição.
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Matemática: Guias
Embora você não precise d e um currículo formal d e Matemática para a Pré-escola e o Jardim de Infância, os guias a seguir podem ajudá-lo a seguir um padrão para desenvolvimento do "letramento" matemático.
Kumon. Are You Ready for Kindergarten? Math Skills. Teaneck, NJ: Kumon Publishing, 2010. $6.95. Habilidades pré-Jardim de Infância em contagem e reconhecimento de formas, com atividades simples no caderno ( desenhar linhas, circular formas).
Snow, Kate. Preschool Math at Home: Simple Activities to Build the Best Possible Foundation for Your Child. Charles City, VA: Well-Trained Mind Press, 2016. $19.99 . Jogos divertidos e atividades simples que desenvolvem a consciência matemática, junto com explicações claras para os pais sobre os conceitos subjacentes a cada jogo. Não é necessário escrever.
Williams, Robert A., Debra Cunningham, and Joy Lubawy. Preschool Math. Beltsville, MD: Gryphon House, 2005. $19.95. Escrito para professores do nível pré-escolar, mas acessível a todos os pais, este guia oferece princípios para o ensino prático de Matemática e sugere numerosas atividades que podem ser feitas com objetos domésticos comuns. Não é tão "abra e faça" como os guias Snow e Kumon, mas excelente para criar uma conscientização matemática ainda maior.
Matemática: Manuseáveis
Cuisenaire Rods lntroductory Set. Faça seu pedido à Hand2Mind. $9.25. Um conjunto individual de setenta e quatro escalas Cuisenaire acompanhado de um breve guia para seu uso.
Fraction Circles. Faça seu pedido à Didax Educational Resources. $6.95. Nove círculos plásticos divididos em metades, quartos, oitavos, etc.
Geosolids. Order from Hand2Mind. $13. Conjunto de dezenove sólidos geométricos em madeira, de cubos a elipsoides.
Jumbo Sorting & Counting Bears ( "Ursinhos contadores"). Faça seu pedido à Lakeshore Learning Materials. $29.99. Vinte e sete ursos em três tamanhos e três cores diferentes, junto com uma jarra para armazenamento.
Kumon Flash Cards: Write and Wipe ! (" Escreva e apague"). Teaneck, NJ: Kumon Publishing. $9.95. Cada conjunto contém trinta e dois cartões de memória em material duro e laminado, e uma caneta de hidrocor apagável. Os estudantes aprendem os números e formas com exercícios de traço e "ligue os pontos".
Easy Telling Time
Numbers 1-30
Shapes
Wooden Pattern Blocks ("Blocos para padrões de madeira"). Order from Didax Educational Resources. $22.95. Um dos conjuntos de manuseáveis mais úteis para a pré-escola; cada conjunto de 250 peças de madeira com 1 cm de espessura contém 25 hexágonos amarelos, 25 quadrados laranjas, 50 triângulos verdes, 50 trapezoides vermelhos, 50 paralelogramos azuis e 50 losangos salmão. Empilhe-os, conte-os, faça figuras com eles, refestele-se neles!
Matemática: Livros de Histórias
Procure estes livros de histórias matemáticas nas livrarias ou na biblioteca de sua cidade e faça deles parte de sua rotina de leituras. Uma vez que comece a procurar, encontrará muitos outros títulos mais.
Allen, Nancy Kelly. Once Upon a Dime: A Math Adventure. Watertown, MA: Charlesbridge, 1999.
Anno, Mitsumasa. Anno 's Math Games. New York: Putnam & Grosset, 1997.
____. Anno 's Mysterious Multiplying Jar. New York: Penguin, 2008.
Axelrod, Amy. Pigs Will Be Pigs: Fun with Math & Money. New York: Aladdin, 1997.
Burns, Marilyn. Greedy Triangle. New York: Scholastic, 2008 .
____. Spaghetti and Meatballs for Ali: A Mathematical Story. New York: Scholastic, 2008.
Jonas, Ann . Splash! New York: Mulberry Books, 1 9 97.
Miranda, Anne. Monster Math. New York: Harcourt, 2002.
Mogard, Sue. Gobble Up Math: Fun Activities to Complete and Eat for Kids in Grades K-3. Huntington Beach, CA: Learning Works, 1994.
Murphy, Stuart J. Divide and Ride. New York: HarperCollins, 1997.
Myllar, Rolf. How Big Is a Foot? New York: Yearling, 1991.
Neuschwander, Cindy. Sir Cumference and the First Round Table: A Math Adventure. Watertown, MA: Charlesbridge, 2002. Também procure pelas outras seis aventuras de Sir Cumference.
Pinczes, Elinor J. One Hundred Hungry Ants. Boston: Houghton Mifflin, 1999.
Schwartz, David M. How Much Is a Million? New York: Harper Collins, 2004.
Scieska, Jon, and Lane Smith. Math Curse. New York: Viking Children's Books, 2007.
Tang, Greg. Math for Ali Seasons: Mind-Stretching Math Riddles. New York: Scholastic, 2005.
Wright, Alexandra. Alice in Pastaland: A Math Adventure. Water town, MA: Charlesbridge, 1997.
Notas:
[*] Nota do tradutor: Neste contexto, "K" se refere a "kindergarten" , isto é, ao " jardim de infância ". No sistema educacional americano, as siglas "K-4" e "K-5" designam, portanto, o jardim de infância para crianças de 4 e de 5 anos, respectivamente.
[20] Nota do tradutor: As "escalas Cuisenaire " são materiais auxiliares ao ensino de Matemática que ajudam as crianças em nível elementar a aprender conceitos matemáticos de forma prática. Criadas pelo professor primário belga Georges Cuisenaire (1891-1975), foram popularizadas na década de 1950 por Caleb Gattegno.
[21] Nota do tradutor: No original, "counting bears" - um conjunto de ursinhos de plástico coloridos que são popularmente usados nos Estados Unidos para ensino da Matemática de nível elementar.
Apresentamos o capítulo 2, Aprendizado em tempos de guerra, do livro O peso da glória, de C. S. Lewis; traduzido por Estevan Kirschner, pela Editora Thomas Nelson Brasil, 2017. O “Aprendizado em tempos de guerra” também foi apresentado, a partir de um convite do cônego Milford, no culto vespertino em St. Mary the Virgin em 22 de outubro de 1939.
Aprendizado em tempos de guerra
A universidade é uma sociedade em busca de aprendizado. Como estudantes, espera-se de vocês que se preparem para ser, ou ao menos comecem a ser, aquilo que na Idade Média denominava-se um erudito, que se tornem filósofos, cientistas, acadêmicos, críticos ou historiadores. À primeira vista, isso parece algo estranho de se fazer durante uma grande guerra. Qual é a utilidade de se iniciar uma tarefa cujas chances de concluir são mínimas? Ou, ainda que nós mesmos não sejamos interrompidos pela morte ou pelo serviço militar, por que razão deveríamos — de fato, como poderíamos — continuar tendo um interesse nessas tarefas plácidas quando a vida de nossos amigos e as liberdades da Europa estão em risco? Não seria o mesmo que tocar harpa enquanto Roma arde em chamas?
Parece-me que essas questões não podem ser respondidas enquanto não as colocarmos juntas a outras perguntas que todo cristão deveria fazer a si mesmo em épocas de paz. Falei, agora há pouco, de tocar harpa enquanto Roma arde em chamas. Porém, para o cristão, a verdadeira tragédia de Nero não deveria ser que ele tocava harpa durante o incêndio da cidade, mas que ele tocava harpa à beira do Inferno. Peço perdão pelo uso da expressão. Sei que atualmente muitos cristãos, mais sábios e melhores do que eu, não apreciam a menção de Céu e de Inferno, nem mesmo no púlpito. Entretanto, essa fonte é o Nosso Senhor Jesus. Alguns podem dizer que a fonte é Paulo, mas isso não é verdade. Essas doutrinas contundentes são dominicais. Não se pode realmente removê-las do ensinamento de Cristo ou de sua Igreja. Se não crermos nelas, nossa presença na Igreja não passa de uma grande farsa. Se crermos, precisamos por vezes vencer nosso pudor espiritual e mencioná-las.
No momento em que fizermos isso, poderemos ver que cada cristão que chega à universidade precisa ter sempre uma questão em relação à qual outras questões levantadas em função da guerra perdem relativa importância. Precisará se perguntar como pode ser correto, ou mesmo psicologicamente possível, para criaturas que estejam a cada momento avançando, seja em direção ao Céu ou ao Inferno, gastar uma fração do pouco tempo a elas permitido viver neste mundo em atividades triviais tais como literatura ou arte, matemática ou biologia. Se a cultura humana puder resistir a esse questionamento, poderá resistir a qualquer coisa. Admitir que se possa manter o interesse no aprendizado sob a sombra dessas questões eternas, mas não sob a sombra de uma guerra na Europa, seria o mesmo que admitir que nossos ouvidos estão fechados à voz da razão e muito abertos à voz dos nossos sentimentos ou emoções coletivas.
Esse é, de fato, o caso com a maioria de nós, e certamente comigo. Por essa razão, considero importante tentar observar a calamidade presente sob uma perspectiva verdadeira. A guerra não cria nenhuma situação absolutamente nova; ela simplesmente agrava a situação humana permanente de tal maneira que não podemos mais ignorá-la. A vida humana sempre viveu à beira do precipício. A cultura humana sempre teve de existir sob a sombra de algo infinitamente mais importante do que ela mesma. Se os seres humanos tivessem de adiar a pesquisa pelo conhecimento e pela beleza até estarem seguros, a pesquisa jamais teria começado. É um equívoco comparar a guerra com a “vida normal”. A vida nunca foi normal. Até mesmos os períodos que julgamos ser os mais tranquilos, como o século XIX, foram, sob um olhar mais acurado, cheios de crises, situações alarmantes, dificuldades e emergências. Razões plausíveis nunca faltaram para se adiarem todas as atividades meramente culturais, até algum perigo iminente ser afastado ou alguma injustiça clamorosa ser retificada, mas há muito tempo a humanidade decidiu negligenciar essas razões plausíveis. Queriam conhecimento e beleza agora e não esperariam pelo momento adequado que nunca chega. A Atenas de Péricles nos legou não apenas o Pártenon, mas também, significativamente, a Oração Fúnebre. Os insetos escolheram um procedimento diferente: eles buscam primeiramente a prosperidade e a segurança da colmeia e presumivelmente têm sua recompensa. Os seres humanos são diferentes; propõem teoremas matemáticos em cidades sitiadas, conduzem argumentos metafísicos em celas de condenados, fazem piadas no patíbulo, discutem o último e novo poema enquanto avançam contra as muralhas de Quebec e penteiam o cabelo no desfiladeiro das Termópilas. Isso não é petulância; é a nossa natureza.
No entanto, uma vez que somos criaturas decaídas, o fato de que essa é a nossa natureza não iria, por si só, provar que isso é racional ou correto. Devemos perguntar se existe realmente algum lugar legítimo para as atividades do erudito num mundo como este. Ou seja, temos de sempre responder a esta pergunta: “Como você pode ser tão fútil e egoísta em pensar sobre qualquer outra coisa que não seja a salvação das almas humanas?” E necessitamos, no momento, responder à questão adicional: “Como você pode ser tão fútil e egoísta em pensar sobre qualquer outra coisa que não seja a guerra?” É verdade que parte de nossa resposta será a mesma para ambas as perguntas. Uma das perguntas implica que nossa vida pode, e deve, tornar-se exclusiva e explicitamente religiosa; a outra, que pode, e deve, tornar-se exclusivamente nacionalista. Acredito que toda a nossa vida pode e, de fato, deve, tornar-se religiosa num sentido a ser explicado mais tarde, mas se isso quer dizer que todas as nossas atividades devem ser do tipo que podem ser reconhecidas como “sagradas”, em oposição a “seculares”, então eu daria uma resposta simples para ambos os meus inquiridores imaginários. Eu diria: “Mesmo que devesse ou não acontecer, aquilo que você está sugerindo não vai acontecer”. Antes de me tornar cristão, eu não tinha entendido completamente que a vida de alguém depois da conversão iria inevitavelmente consistir em fazer a maior parte das mesmas coisas que fazia antes, assim se espera, com um novo espírito, mas sendo ainda as mesmas coisas. Além disso, antes de partir como soldado para a Primeira Guerra Mundial, eu certamente esperava que minha vida nas trincheiras fosse, em algum sentido misterioso, somente voltada para a guerra. Na realidade, percebi que, quanto mais próximo se chegasse à frente de batalha, menos se falava e se pensava a respeito da causa dos aliados e do progresso da campanha. Fico feliz que Tolstói registra o mesmo no maior livro já escrito sobre a guerra, e, a seu próprio modo, a Ilíada também. Nem a conversão nem o alistamento no exército obliterarão a nossa vida humana. Soldados e cristãos são ainda seres humanos; as ideias do não-religioso sobre a vida religiosa, e a do cidadão civil sobre o serviço militar, são delirantes. Em qualquer um dos casos, se você tentar suspender toda a sua atividade intelectual e estética, o único sucesso que você terá é a substituição de uma vida cultural ruim por uma melhor. De fato, você não irá ler nada, tanto na Igreja quanto na linha de frente; se você não lê bons livros, lerá livros ruins. Se você não pensar racionalmente, pensará de forma irracional. Se rejeitar a satisfação estética, cairá em satisfação sensual.
Existe, portanto, essa analogia entre as reivindicações de nossa religião e as reivindicações da guerra: nenhuma das duas, para a maioria de nós, simplesmente cancelará ou removerá de cena a vida meramente humana que estávamos vivendo antes de entrarmos nelas, mas as duas operarão dessa maneira por razões diferentes. A guerra fracassará em absorver toda nossa atenção por ser um objeto finito e, por isso, intrinsecamente incapaz de suportar toda a atenção de uma alma humana. Para evitar mal-entendidos, devo fazer algumas considerações. Acredito que a nossa causa é, no que diz respeito a causas humanas, muito justa e, portanto, eu acredito que seja nosso dever participar desta guerra. Todo dever é um dever religioso e nossa obrigação de cumprir cada dever é, assim, absoluta. Dessa forma, talvez tenhamos o dever de resgatar um homem que esteja se afogando e, quem sabe, se vivermos numa área litorânea perigosa, de aprender primeiros socorros a fim de estarmos prontos para ajudar, quando necessário, qualquer pessoa que esteja se afogando. É possível que seja nosso dever perder a vida para salvar a vida de outra pessoa, mas qualquer pessoa que se dedica a ser um salva-vidas no sentido de dar a isso sua total atenção — de modo que não pensa nem fala sobre mais nada e exige a cessação de todas as outras atividades humanas até que todos aprendam a nadar — é um monomaníaco. O resgate de pessoas em situação de afogamento é, então, um dever pelo qual vale a pena morrer, mas não viver. Parece-me que todos os deveres políticos (entre os quais incluo o serviço militar) são desse tipo. Um homem poderá ter de morrer por seu país, mas nenhuma pessoa deve, em nenhum sentido exclusivo, viver por seu país. Aquele que se entrega sem reservas às reivindicações temporais de uma nação, ou de um partido, ou de uma classe, estará entregando a César aquilo que, acima de tudo, pertence da forma mais enfática possível a Deus; estará entregando a sua própria pessoa.
Entretanto, é por outra razão que a religião não pode ocupar o todo da vida no sentido de excluir todas as atividades naturais, pois é claro que, em certo sentido, deve ocupar a vida como um todo. Não há dúvida sobre uma acomodação entre as reivindicações de Deus e as reivindicações da cultura, da política, ou de qualquer outra coisa. A exigência de Deus é infinita e inexorável. Você pode recusá-la ou começar a tentar cumpri-la. Não existe caminho intermediário. Apesar disso, está claro que o cristianismo não exclui nenhuma das atividades humanas normais. O apóstolo Paulo diz às pessoas que vivam normalmente cumprindo suas tarefas. Ele até mesmo presume que cristãos compareçam a jantares e, o mais surpreendente, jantares patrocinados por pagãos. Nosso Senhor comparece a uma celebração de casamento e providencia vinho a partir de um milagre. Sob a proteção de sua Igreja, e na maioria dos séculos cristãos, o aprendizado e as artes floresceram. A solução para esse paradoxo, claro, é bem conhecida. “Assim, quer vocês comam, bebam ou façam qualquer outra coisa, façam tudo para a glória de Deus.”
Todas as nossas atividades naturais serão aceitas, se forem oferecidas a Deus, mesmo a mais humilde delas; e todas elas, mesmo as mais nobres, serão pecaminosas se não forem dedicadas a Deus. Não é que o cristianismo simplesmente substitui nossa vida natural por uma nova vida; é antes uma nova organização que cultiva esses materiais naturais para seus próprios fins sobrenaturais. Não há dúvida de que, em dada situação, ele exige a entrega de algumas, ou de todas, as nossas aspirações meramente humanas; é melhor ser salvo com um só olho do que, tendo os dois, ser lançado no Geena. Contudo, ele faz isso, em certo sentido, per accidens [por acidente] — porque naquelas circunstâncias especiais deixou de ser possível realizar esta ou aquela atividade para a glória de Deus. Não há discordância essencial alguma entre vida espiritual e as atividades humanas em si. Assim, a onipresença da obediência a Deus na vida cristã é, de certo modo, comparável à onipresença de Deus na dimensão espacial. Deus não preenche o espaço como um corpo o faz, no sentido de que diferentes partes dele estariam em diferentes partes do espaço, excluindo outros objetos. Ainda assim, ele está em toda parte — completamente presente em cada ponto do espaço — segundo bons teólogos.
Estamos agora em condições de responder à perspectiva de que a cultura humana é uma futilidade inexcusável da parte de criaturas incumbidas dessas terríveis responsabilidades, como nós. Rejeito imediatamente a noção que predomina na mente de algumas pessoas modernas de que atividades culturais são por si só espirituais e meritórias — como se eruditos e poetas fossem intrinsecamente mais agradáveis a Deus do que catadores de lixo e engraxates. Creio que foi Matthew Arnold quem primeiro usou o termo inglês spiritual no sentido do alemão geistlich, inaugurando assim esse erro perigosíssimo e muito anticristão. Devemos nos livrar completamente dessa mentalidade. A obra de Beethoven e o trabalho de uma faxineira se tornam ambas espirituais precisamente na mesma condição, de serem oferecidas a Deus, de serem realizadas de maneira humilde “como para o Senhor”. Isso não significa, é claro, que seja mera questão de sorte para cada um, se irá varrer salas ou compor sinfonias. Uma toupeira precisa cavar para a glória de Deus e um galo deve cantar. Somos membros de um corpo, mas membros diferentes, cada um com a sua vocação. A educação de uma pessoa, seus talentos, suas circunstâncias, são geralmente um indicador aceitável de sua vocação. Se nossos pais nos mandaram para Oxford, se nosso país nos permite permanecer aqui, essa é uma evidência prima facie de que a vida que, em todo caso, é a melhor que podemos viver para a glória de Deus no presente, é a vida acadêmica. Ao dizer que podemos viver para a glória de Deus, não quero dizer, é claro, que devamos fazer com que qualquer das nossas tentativas de pesquisa intelectual deva redundar em conclusões edificantes. Isso seria o mesmo que, como diz Bacon, oferecer ao autor da verdade o sacrifício impuro de uma mentira. Refiro-me à busca pelo conhecimento e pela beleza num sentido que seja pela própria busca em si, mas num sentido que não exclua que seja também para Deus. Existe um apetite para essas coisas na mente humana, e Deus não faz nenhum apetite em vão. Podemos, dessa forma, buscar o conhecimento como tal, e a beleza como tal, com a confiança inabalável de que ao fazer isso estaremos progredindo em nossa própria visão de Deus, ou indiretamente ajudando outros a fazer o mesmo. A humildade, não menos que o apetite para essas coisas, nos encoraja a concentrar simplesmente no conhecimento ou na beleza, não nos preocupando em demasia com sua relevância final para a visão de Deus. Essa relevância pode não ser destinada a nós, mas a quem é melhor do que nós — para as pessoas que vêm depois e encontram o significado espiritual daquilo que desenterramos em obediência cega e humilde à nossa vocação. Esse é o argumento teleológico de que a existência do impulso e da capacidade prova que eles devem ter uma função apropriada no esquema de Deus — o argumento com o qual Tomás de Aquino demonstra que a sexualidade existiria mesmo sem a Queda. A robustez do argumento, no que diz respeito à cultura, é comprovada pela experiência. A vida intelectual não é o único caminho para Deus, nem mesmo o mais seguro, mas descobrimos ser um caminho, e poderá ser o caminho destinado a nós. É verdade que isso será assim somente enquanto mantivermos o impulso puro e desinteressado. Essa é a grande dificuldade. Como diz o autor de Theologia Germanica, podemos nos tornar amantes do conhecimento — nosso conhecimento — mais do que da coisa conhecida; ter prazer não no exercício de nossos talentos, mas no fato de que são nossos, ou mesmo na reputação que eles nos trazem. Cada sucesso na vida do estudioso aumenta esse perigo. Se isso se tornar irresistível, ele deverá desistir de seu trabalho acadêmico. O momento de arrancar o olho direito terá chegado.
Essa é a natureza essencial da vida acadêmica do modo como a vejo, mas ela possui valores indiretos que são especialmente importantes na atualidade. Se o mundo todo fosse cristão, não importaria se o mundo todo não fosse educado. No entanto, do modo como as coisas são, uma vida cultural existirá fora da Igreja, independentemente se ela existe ou não dentro dela. Ser ignorante e simples agora — não sendo capaz de enfrentar os inimigos em seu próprio campo — seria derrubar nossas armas e trair nossos irmãos não educados, que não têm, sob Deus, nenhuma defesa contra os ataques intelectuais dos pagãos a não ser nós. É necessário que haja boa filosofia, se não por outra razão, porque a filosofia ruim precisa de uma resposta. O bom intelecto deve trabalhar não apenas contra o bom intelecto do outro lado, mas contra os confusos misticismos pagãos que negam o intelecto completamente. Acima de tudo, talvez, precisamos de um conhecimento íntimo do passado, não porque o passado tenha alguma magia em torno de si, mas porque não podemos estudar o futuro. Ainda assim, necessitamos de algo para contrapor o presente, para nos lembrar de que as pressuposições básicas têm sido muito diferentes em diferentes períodos e que muito daquilo que parece absoluto para os que não são educados é meramente modismo temporário. O homem que já viveu em muitos lugares tem menos possibilidades de ser enganado pelos erros de seu local de origem. O erudito vive em contextos diferentes e, portanto, tem a percepção mais aguçada a respeito da enxurrada de tolices que jorram da imprensa e dos microfones de seu próprio tempo.
Portanto, a vida acadêmica é um dever para alguns e nesse momento parece-me que esse dever é de vocês. Estou muito consciente de que parece haver uma discrepância quase cômica entre os temas mais elevados que consideramos e a tarefa imediata na qual vocês podem estar ocupados, como as boas leis anglo-saxônicas ou fórmulas químicas. Mas existe um choque semelhante nos aguardando em cada vocação — um jovem pároco pode se envolver com questões do coro da igreja, e um jovem soldado com o fazer o inventário de potes de geleia. E é bom que seja assim. Isso acaba por limpar o terreno das pessoas que são falsas, turbulentas e mantêm aquelas que são humildes e fortes. Nesse tipo de dificuldade, não precisamos desperdiçar nossa simpatia, mas a dificuldade peculiar imposta pela guerra sobre vocês é outra questão, e sobre isso eu vou repetir o que tenho dito, de uma forma ou de outra, desde que comecei — não deixe que seus sentimentos e emoções os levem a pensar que seu dilema é mais incomum do que realmente é. Talvez seja útil mencionar os três exercícios mentais que poderão servir como defesas contra os três inimigos que a guerra levanta contra o erudito.
O primeiro inimigo é o entusiasmo — a tendência de pensar e sentir sobre a guerra quando tencionamos pensar em nosso trabalho. A melhor defesa é o reconhecimento de que nisso, como em tudo mais, a guerra realmente não levantou um novo inimigo, mas apenas agravou um inimigo velho. Existem sempre muitos rivais para o nosso trabalho. Estamos sempre nos apaixonando ou discutindo, procurando emprego ou com medo de perdê-lo, adoecendo e recuperando a saúde, acompanhando acontecimentos públicos. Se deixarmos isso para nós mesmos, estaremos sempre na expectativa de alguma distração ou outra para terminar antes mesmo de realmente sermos capazes de continuar no nosso trabalho. Nunca existirão condições favoráveis. Há momentos, é claro, em que a pressão do entusiasmo é tão grande que somente um domínio próprio sobre-humano pode resistir. Eles vêm tanto na guerra quanto na paz. Precisamos fazer nosso melhor.
O segundo inimigo é a frustração — o sentimento de que não teremos tempo de terminar. Se eu lhe disser que ninguém tem tempo para terminar, que a vida humana mais longa torna a pessoa, seja qual for o ramo do saber, uma iniciante, parecerei dizer algo bem acadêmico e teórico. Você ficaria surpreso se soubesse como é cedo quando alguém começa a sentir que a corda é curta, de tantas coisas, mesmo em meia-idade, em que temos de dizer “não tenho tempo para isso”, “agora é tarde” e “não é para mim”. A própria natureza, porém, o proíbe de compartilhar essa experiência. Uma atitude mais cristã, que pode ser obtida em qualquer idade, é deixar o futuro nas mãos de Deus, e deveríamos fazer isso mesmo, pois Deus vai certamente reter isso, quer o deixemos para ele ou não. Seja na paz ou na guerra, nunca dedique sua virtude ou sua felicidade ao futuro. O trabalho feliz é mais bem realizado pela pessoa que considera seus planos de longo prazo de uma forma leve e que trabalha de momento a momento “como para o Senhor”. É somente pelo nosso pão diário que somos encorajados a pedir. O presente é o único tempo em que algum dever pode ser cumprido ou alguma graça pode ser recebida.
O terceiro inimigo é o medo. A guerra nos ameaça com a morte e a dor. Ninguém — especialmente nenhum cristão que se lembra do Getsêmani — precisa tentar alcançar uma indiferença estoica quanto a essas coisas, mas podemos nos policiar contra as ilusões da imaginação. Podemos pensar sobre as ruas de Varsóvia e contrastar as mortes que lá aconteceram com uma abstração chamada Vida. Contudo, não existe uma questão de vida ou morte para qualquer um de nós, apenas uma questão desta morte ou daquela — de uma bala de metralhadora agora ou um câncer daqui a quarenta anos. O que a guerra realiza em função da morte? Ela certamente não a torna mais frequente; cem por cento de nós vão morrer e essa porcentagem não pode ser aumentada. Ela adianta certa quantidade de mortes, mas acho difícil supor que seja isso que tememos. Certamente, quando o momento chegar, não fará muita diferença quantos anos foram deixados para trás. Será que a guerra aumenta a nossa probabilidade de uma morte dolorosa? Duvido. O quanto me é possível imaginar, aquilo que denominamos morte natural é normalmente precedido por sofrimento, e um campo de batalha é um dos poucos lugares em que se tem uma razoável possibilidade de morrer sem dor alguma. Será que a guerra diminui nossas possibilidades de morrer em paz com Deus? Não posso acreditar nisso. Se o serviço militar ativo não for capaz de persuadir um homem a se preparar para a morte, que outra série imaginável de circunstâncias o faria? Por outro lado, a guerra faz uma coisa em relação à morte. Ela nos força a lembrar dela. A única razão por que o câncer aos sessenta anos ou a paralisia ao setenta e cinco não nos incomodam é que nos esquecemos deles. A guerra torna a morte real para nós e isso seria considerado como uma de suas bênçãos pela maioria dos grandes cristãos do passado. Eles achavam bom para nós estar sempre conscientes de nossa mortalidade. Estou inclinado a pensar que eles estavam certos. Toda a vida animal em nós, todos os esquemas de felicidade que estão centrados neste mundo, sempre estiveram fadados ao fracasso. Em tempos de normalidade, somente os mais sábios podiam reconhecer isso. Agora, até o mais estúpido de nós sabe. Vemos, de modo inequívoco, o tipo de universo em que estamos vivendo todo esse tempo e devemos acertar as contas com ele. Se tínhamos esperanças não-cristãs acerca da cultura humana, elas estarão agora destroçadas. Se pensávamos que estivemos construindo um Céu na Terra, se procurávamos por algo que iria mudar o mundo presente, de ser um lugar de peregrinação para uma cidade permanente que satisfaz a alma de uma pessoa, estamos desiludidos e não é sem tempo. Porém, se pensávamos que para algumas almas, em alguns tempos, a vida acadêmica oferecida humildemente a Deus era, em seu pequeno próprio modo, uma das abordagens indicadas para a realidade Divina e a beleza Divina que esperamos um dia desfrutar, podemos sim continuar a pensar desse modo.
Texto retirado do LINK, com original em latim disponível AQUI.
Constituição Apostólica Veterum Sapientia - sobre o uso do Latim por Papa João XXIII
1. A antiga sabedoria, contida nas obras literárias romanas e gregas, bem como os memoráveis ensinamentos dos antigos povos, devem ser entendidos como a aurora anunciadora do Evangelho, que o Filho de Deus, «juiz e mestre da graça e da ciência, luz e guia do gênero humano [1] anunciou nesta terra. De fato, os Padres e Doutores da Igreja reconheceram nestes antiqüíssimos e importantíssimos monumentos literários uma certa preparação dos ânimos para receber a celeste riqueza que Jesus Cristo «quando da plenitude dos tempos» [2], comunicou aos mortais; disto resulta claramente que, com o advento do Cristianismo, não se perdeu o quanto de verdade, de justo, de nobre e também de belo os séculos passados tinham produzido.
2. Por isso a Santa Igreja teve sempre em grande consideração os documentos daquela sabedoria e antes de tudo as línguas Latina e Grega, como vestimentas douradas da mesma sabedoria; aceitou ainda o uso de outras veneráveis línguas que floresceram nas regiões orientais, que muito contribuíram para o progresso do gênero humano e da civilização; as mesmas, usadas nas cerimônias religiosas ou na interpretação das Sagradas Escrituras, têm muito vigor ainda hoje em algumas regiões, como contínuas vozes de um uso antigo ainda vigoroso.
3. Na variedade destas línguas certamente se distingue aquela que, nascida no Lazio, depois auxiliou admiravelmente a difusão do Cristianismo nas regiões ocidentais. E ainda, não sem disposição da Divina Providência acontece que a língua, que por muitíssimos séculos havia unido tantos povos sob o Império Romano, tornou-se a própria língua da Sé Apostólica [3] e, guardada pela posteridade, uniu num mesmo vínculo, uns com outros, os povos cristãos da Europa.
De fato, pela sua própria natureza, a língua latina é capaz de promover, junto a qualquer povo, toda a forma de cultura; e como não suscita inveja e se apresenta imparcial para todos os povos, não é privilégio de ninguém, e, enfim, a todos aceita e reúne. Não se deve esquecer que a língua latina tem uma nobreza de estrutura e de gramática, permitindo a possibilidade de «um estilo conciso, rico, harmonioso, cheio de majestade e de dignidade» [4], que singularmente contribui à clareza e à seriedade.
4. Por estes motivos a Santa Sé cuidou carinhosamente da conservação e do desenvolvimento da língua latina e a considera digna de usar-la «como magnífica veste da doutrina celeste e das santíssimas leis» [5], no exercício do seu magistério, e quer que também seus ministros a usem. De fato, estes homens da Igreja, onde quer que se encontrem, usando a língua de Roma, podem mais rapidamente vir a saber o que se refere à Santa Sé e ter com ela e entre eles uma comunicação mais ágil.
«O conhecimento pleno e o uso dessa língua, tão ligada à vida da Igreja, não importa tanto à cultura e às letras quanto à Religião» [6], como o nosso predecessor de imortal memória Pio XI nos ensinou; ele, ocupando-se cientificamente do tema, indicou claramente os três dons dessa língua, de um modo admirável, conforme a natureza da Igreja: «De fato a Igreja, como mantém unidos no seu conjunto todos os povos e durará até a consumação dos séculos... exige, pela sua natureza, uma linguagem universal, imutável, não vulgar» [7].
5. E como é preciso, na verdade, que «cada Igreja se una à Igreja Romana» [8] e, do momento em que os Sumos Pontífices têm «autoridade episcopal, ordinária e imediata sobre todas as Igrejas e sobre cada Igreja em particular, sobre todos os pastores e sobre cada pastor e seus fiéis» [9] de qualquer rito, de qualquer nação, de qualquer língua que sejam, parece ser conseqüência natural que o meio de comunicação seja universal e o mesmo para todos, especialmente entre a Sé Apostólica e as Igrejas que seguem o mesmo rito latino. Assim, tanto os Pontífices Romanos, quando querem comunicar algum ensinamento aos povos católicos, como os Dicastérios da Cúria Romana, quando tratam de assuntos, quando emitem decretos dirigidos a todos os fiéis, usem sempre a língua latina, que é recebida por incontáveis pessoas, como voz da mãe comum.
6. E é necessário que a Igreja use uma língua não só universal, mas também imutável. Se, de fato, as verdades da Igreja Católica fossem confiadas a algumas ou a muitas línguas modernas que estão sujeitas a contínua mudança, e ainda, as quais nenhuma tem sobre as outras maior autoridade e prestígio, resultaria, sem dúvida alguma que, devido às suas variações, não seria manifestado a muitos com suficiente precisão e clareza o sentido de tais verdades, nem, de outro lado, poderíamos dispor de alguma língua comum e estável, com que confrontar o significado das outras. Pelo contrário, a língua latina, há tempo imune àquelas variações que o uso diário do povo costuma introduzir nas palavras, deve ser considerada estável e imóvel, visto que o significado de algumas novas palavras que o progresso, a interpretação e a defesa das verdades cristãs exigem, já foram há tempo definitivamente adquirido e precisado.
7. Finalmente, como a Igreja Católica, tendo sido fundada por Cristo Nosso Senhor, excede significativamente em dignidade a todas as sociedades humanas, é sumamente conveniente que ela use uma língua não popular, mas rica de majestade e de nobreza.
8. Além disso, a língua latina, que «com todo o direito podemos chamar católica» [10], pois é própria da Sé Apostólica, mãe e mestra de todas as Igrejas, e consagrada pelo uso perene, deve ser mantida como «tesouro de incomparável valor» [11] e como porta através da qual se abre a todos o acesso às mesmas verdades cristãs, transmitidas dos antigos tempos, para interpretar o testemunho da doutrina da Igreja [12] e, enfim, o mais idôneo vínculo, mediante o qual a época atual da Igreja se mantém unida aos tempos passados e ao futuro de modo admirável.
9. Na verdade, ninguém pode duvidar que a língua latina e a cultura humanística sejam providas daquela força intrínseca, e mais capacitada, a instruir e formar as tenras mentes dos jovens. Através dela, de fato, formam-se, amadurecem, se aperfeiçoam as melhores capacidades da alma; a finura da mente e a capacidade de juízo se aguçam; além disso, a inteligência da criança é mais convenientemente preparada para compreender e julgar no justo senso cada coisa; enfim, aprende-se a pensar e a falar com suma ordem.
10. Refletindo sobre todos estes méritos, compreende-se porque os Pontífices Romanos tão freqüente e sumamente louvaram não só a importância e a excelência da língua latina, mas também prescreveram seu estudo e sua prática aos ministros sagrados de todo o clero, sem omitir em denunciar os perigos derivantes do seu abandono.
Também Nós, impelidos por esses gravíssimos motivos, como os nossos Predecessores e Sínodos Provinciais [13], com a firme vontade queremos nos empenhar para que o estudo e o uso desta língua, restituída à sua dignidade, faça sempre maiores progressos. E como neste nosso tempo começou-se a contestar em muitos lugares o uso da língua Romana e muitíssimos pedem o parecer da Sé Apostólica sobre tal assunto, decidimos, com oportunas normas enunciadas neste documento, proceder de tal modo que o antigo e jamais interrupto costume da língua latina seja conservado e, se de alguma forma ele foi colocado em desuso, seja completamente restabelecido.
Além disso, como é o nosso pensamento sobre tal tema, acreditamos tê-lo suficiente e claramente declarado quando dirigimos estas palavras a ilustres estudiosos do Latim: «Infelizmente há muitos que, seduzidos exageradamente pelo extraordinário progresso das ciências, têm a presunção de repelir ou de limitar o estudo do Latim e de outras disciplinas do gênero... Justamente movidos por esta necessidade, Nós julgamos que se deva tomar o caminho oposto. E como a alma se nutre e compenetra de tudo aquilo que mais honra a natureza e a dignidade do homem, com maior ardor se deve assimilar aquilo que enriquece e embeleza o espírito, para que os míseros mortais não sejam frios, áridos e privados de amor, como as máquinas que fabricam» [14].
11. Após ter examinado e considerado atentamente estas coisas, com a segura consciência do Nosso serviço, e no exercício da Nossa autoridade, definimos e ordenamos o quanto segue:
§ 1. Que os Bispos e os Superiores das Ordens religiosas se empenhem eficazmente para que nos seus Seminários e nas suas Escolas, nas quais os jovens são preparados para o sacerdócio, todos se voltem com empenho à vontade da Sé Apostólica e obedeçam com a maior diligência a estas Nossas prescrições.
§ 2. Os mesmos Bispos e Superiores Gerais das Ordens religiosas, movidos de paterna solicitude, deverão vigiar para que nenhum dos seus subordinados, ansioso de novidades, escreva contra o uso da língua latina no ensino das sagradas disciplinas e nos sagrados ritos da Liturgia e, com opiniões preconceituosas, se permita de diminuir a vontade da Sé Apostólica na matéria e de interpretá-la erroneamente.
§ 3. Como está estabelecido nas disposições quer do Código do Direto Canônico quer pelos Nossos Predecessores, os aspirantes ao Sacerdócio, antes de iniciar os estudos eclesiásticos verdadeiros e específicos, sejam instruídos na língua latina com sumo cuidado e com método racional, por mestres extremamente capazes, por um conveniente período de tempo, «também para que, atingindo disciplinas que exigem maior empenho... não aconteça que, ignorando a língua, não possam alcançar a completa compreensão das doutrinas e nem mesmo exercitar-se nas discussões escolásticas, por meio das quais a mente dos jovens se afinam na defesa da verdade» [15]. E queremos que esta norma seja estendida também àqueles que, chamados pela vontade divina a receber as sagradas ordens em idade avançada, se aplicaram pouco ou nada nos estudos humanísticos. Ninguém, na verdade, deve ser introduzido no estudo das disciplinas filosóficas ou teológicas se não tenha sido plena e perfeitamente instruído nesta língua e saiba bem usá-la.
§ 4. Se, ainda, em algum país, por ter adotado um programa de estudo próprio de escolas públicas do Estado, o estudo da língua latina tenha sofrido diminuições prejudiciais a um ensinamento sólido e eficiente, decretamos que, em tal caso, seja completamente restabelecida a ordem tradicional do ensino de tal língua para a formação dos sacerdotes: porque todos devem persuadir-se que, também neste campo, o método de instrução dos futuros sacerdotes deve ser escrupulosamente defendido, não só quanto ao número e gênero das matérias, mas também relativamente aos períodos de tempo necessários para ensiná-las. E se, por exigências circunstanciais de tempo e de lugar, se devem acrescentar, por necessidade, disciplinas comuns, nesse caso ou se prolongue o curso dos estudos ou se resuma a matéria, ou, enfim, se adie o estudo para um outro momento.
§ 5. As mais importantes disciplinas sagradas, como foi freqüentemente ordenado, devem ser ensinadas na língua latina, a qual, como o demonstra a experiência de muitos séculos, «é reconhecida como a mais apta para explicar a íntima e a profunda natureza das noções e das formas com absoluta clareza e lucidez» [16]; com mais razão ainda porque ela se enriqueceu com palavras apropriadas e precisas, para defender inequivocamente a integridade da fé católica, e não sujeita a dubiedades de qualquer vazia verbosidade. Por isso, aqueles que na Universidade ou nos Seminários ensinam tais disciplinas são obrigados a falar em Latim e usar textos escritos em Latim. Se alguns, por ignorar a língua latina, não podem obedecer estas prescrições da Santa Sé, devem ser gradativamente substituídos por docentes especificamente preparados para tal. Se, ainda, alunos e professores apresentem dificuldades, é preciso que estas sejam vencidas pela firmeza dos Bispos e dos Superiores religiosos e pela boa disposição dos docentes.
§ 6. Como a língua latina é língua viva da Igreja, que deve ser continuamente adequada às crescentes necessidades da linguagem e enriquecida com novos apropriados e convenientes vocábulos, segundo uma regra constante, universal e conforme o espírito da antiga língua latina – regra já seguida pelos Santos Padres e pelos melhores escritores «escolásticos» -- confiamos a responsabilidade à Sagrada Congregação dos Seminários e das Universidades de Estudos de fundar uma Academia de Estudos latinos. Tal Academia, na qual é preciso que seja constituído um Colégio de Professores especializadíssimos em Latim e Grego, convocados de diversas partes do mundo, será sobretudo destinada a, não diferentemente do que acontece nas Academias nacionais constituídas para o incremento das línguas nacionais dos respectivos países, prover ao mesmo tempo um ordenado desenvolvimento do estudo da língua latina e acrescentar, se preciso, o léxico com palavras adequadas à sua natureza e ao seu caráter, e que tenha, paralelamente, cursos sobre o Latim para cada época, mas principalmente da época Cristã. Nessas escolas, todos os estudantes serão também instruídos para uma consciência mais profunda do latim, ao seu uso, a um modo de escrever apropriado e elegante, ou a ensiná-lo nos Seminários e nos Colégios eclesiásticos, ou a redigir decretos ou sentenças, ou a melhorar a correspondência das Congregações da Santa Sé, nas Cúrias, nas Dioceses, nos escritórios das Ordens religiosas.
§ 7. Como a língua latina está estreitamente ligada à grega, e pelo conjunto da sua estrutura e importância dos seus textos transmitidos de geração em geração, é necessário que também nesta sejam instruídos os futuros ministros das artes das escolas inferiores e médias, como muitas vezes os Nossos Predecessores ordenaram, para que, quando se aplicarem às disciplinas superiores, em especial os cursos acadêmicos sobre as Sagradas Escrituras e a Sagrada Teologia, eles tenham as condições necessárias para se aproximar e interpretar exatamente não só as fontes gregas da filosofia «escolástica», mas também os textos originais das Sagradas Escrituras, da Liturgia e dos Padres gregos.
§ 8. Ordenamos ainda à mesma Sagrada Congregação de preparar um programa de estudos da língua latina, que todos devem observar com extremo cuidado, de modo que, todos que o seguirem adquiram o respectivo conhecimento e prática daquela língua. Se for necessário, as Comissões dos Ordinários poderão regular diversamente o programa, mas nunca alterar ou diminuir sua natureza e o seu fim. Entretanto, os Bispos não devem atuar conforme suas decisões sem a devida análise e aprovação da Sagrada Congregação.
12. Finalmente, em virtude da Nossa Autoridade Apostólica queremos e ordenamos que quanto estabelecemos, decretamos, ordenamos nesta Nossa Constituição seja definitivamente fixado e sancionado, não obstante quaisquer prescrições em contrário, embora digna de especial menção.
Dado em Roma, junto a S. Pedro, no dia 22 de fevereiro, Festa da Cátedra de S. Pedro Apóstolo, no ano de 1962, quarto do Nosso Pontificado.
João Papa XXIII.
Notas:
[1] TERTULL., Apol., 21: Migne, P. L., 1, 394.
[2] S. PAOLO, Epist. agli Efesini, 1, 10.
[3] Epist. S. Congr. Stud. Vehementer sane ad Ep. universos, 1-7-1908: Enchirid. Cler. n° 830. Cfr. anche Epist. Ap. Pio XI Unigenitus Dei Filius, 19-3-1924: A.A.S. 16 (1924), 141.
[11] Pio XII, Alloc. Magis quam, 23-11-1951: A.A.S. 43 (1951), 737.
[12] Leone XIII, Epist. Encicl. Depuis le Jour, 8-9-1899: Acta Leonis XIII 19 (1899), 166.
[13] Cfr. Collectio Lacensis, soprattutto vol. III, 1018 s. (Conc. Prov. Wesmonasteriense, a. 1859); vol. IV, 29 (Conc. Prov. Parisiense, a. 1849); vol. IV, 149, 153 (Conc. Prov. Rhemense, a. 1849); vol. IV, 359, 361 (Conc. Prov. Amenionense, a. 1849); vol. IV, 394, 396 (Conc. Prov. Burdigalense, a. 1850); vol. V, 61 (Conc. Prov. Strigoniense, a. 1858); vol. V, 664 (Conc. Prov. Colocense, a. 1863); vol. VI, 619 (Synod. Vicariatus Sutchenensis, a. 1803).
[14] Al Congresso Internazionale Ciceronianis Studiis provehendis, 7-9-1959: in Discorsi, Messaggi, Colloqui del S. Padre Giovanni XXIII, I, pp. 334-335; cfr. anche Alloc. ad cives diocesis Placentinæ Roman peregrinantes habita, 15-4-1959: su L'Osservatore Romano, 16-4-1959; Epist. Pater misericordiarum, 22-8-1961: A.A.S. 53 (1961); Alloc. in solemni auspicatione Insularum Philippinarum de Urbe Habita, 7-10-1961: su L'Osservatore Romano, 9-10 ottobre 1961; Epist. Iucunda laudatio, 8-12-1961: A.A.S. 53 (1961), 812.
[16] Epist. S. Congr. Stud. Vehementer sane ad Ep. universos, 1-7-1908: Enchirid. Cler. n° 821.
NOTA: como não encontramos em nenhum site oficial da Igreja Católica (desde o site do Vaticano, passando pelo site da CNBB, CELAN, etc.) a versão na língua portuguesa da importantíssima CONSTITUIÇÃO APOSTÓLICA VETERUM SAPIENTIA, promulgada pelo Papa João XXIII em fevereiro de 1962, tomamos a iniciativa de lhes apresentar a tradução que elaboramos a partir da versão italiana, publicada no site UNAVOX - http://www.unavox.it/doc05.htm.
Assim, solicitamos a todos que nos informem de eventual publicação oficial da Igreja naquela língua, para que possamos imediatamente substituir a nossa versão, acima, pela oficial.
Continuamos com apresentação da Introdução do livro Os Elementos de Euclides, traduzido por Irineu Bicudo, Editora Unesp, 2009.
A parte I pode ser encontrada AQUI e a parte III aqui (em breve).
A História
(...) é impossível para um historiador ressuscitar
integralmente o passado (...)
Jacque Le Goff
As Sereias: consta que elas cantavam, mas de uma maneira
que não satisfazia, que apenas dava a entender em
que direção se abriam as verdadeiras fontes e a verdadeira
felicidade do canto. Entretanto, pelos seus cantos imperfeitos,
que não passavam de um canto ainda por vir,
conduziam o navegante em direção àquele espaço onde o
cantar começava de fato. Elas não o enganavam,
levavam-no realmente ao objetivo.
Maurice Blanchot
Em geral, a natureza não propõe problemas fáceis, dado quase sempre o elevado número das variáveis neles envolvidas. Pela impossibilidade, consequência das dificuldades técnicas, de abrangê-las todas, o homem de ciência, ao abordar uma determinada questão, seleciona aquelas que julga mais significativas ao tratamento do caso considerado. Faz-se, assim, uma modelagem da realidade (o que quer que isso possa significar). Mas, então, a solução oferecida é sempre uma redução, apenas uma aproximação daquilo que a natureza sugerira. Há, pois, soluções mais ou menos compreensivas, dependendo da capacidade de cada cientista de lidar com um número conveniente das variáveis e da sua perspicácia (ou devemos chamá-la intuição) no escolhê-las importantes.
O mesmo se dá quando se procura escrever a história de um acontecimento, de uma cultura, de uma época. Apenas aproximações estão no domínio do historiador: boas ou más. Tudo o que ele pode almejar é que o seu relato seja “o canto da Sereia” que não engane, mas leve realmente ao objetivo. E isso, principalmente, ao dispormos de documentos para a consulta, na existência de fontes primárias. Falto delas, fica cheio de obstáculos o caminho para uma boa aproximação dos fatos ocorridos e dos feitos alcançados.
Tudo isso é avalizado pelo seguinte trecho de uma entrevista de um historiador brasileiro a um jornal de São Paulo [14]:
Julguei importante colocar a controvérsia historiográfica para ajudar o leitor a entender que não há possibilidade de reconstruir o passado como tal. A história é sempre uma construção, ainda que não seja arbitrária, pois procura a objetividade através do controle das fontes. Dependendo da maneira como tais fontes são interpretadas, surgem visões distintas, trazendo a marca da concepção do historiador e também do tempo.
Talvez, com uma boa dose de audácia, pudéssemos tomar por mote: “O Passado jaz morto e enterrado”.
Nesse caso, o que nos caberia fazer?
Cada historiador da Matemática – fixemo-nos no que nos diz respeito – age a partir de pequenas evidências, como o legista tenta, a partir de algum osso, reconstituir o verdadeiro rosto do morto, que não mais se mostra na polida superfície dos espelhos. Assim escreve G. R. Dherbey no prefácio à tradução francesa de Os sofistas, do italiano Mario Untersteiner:
Objetar-se-nos-á, talvez, que o conhecimento, no que concerne ao corpus sofístico, é bem mais difícil: os textos são extremamente fragmentários e mesmo, exceção feita a Górgias, pobres e raros. Mas não nos achamos aqui, como para toda a literatura pré-socrática aliás, em caso semelhante àquele da paleontologia? Cuvier empenhava-se, a partir de simples vestígios de animais pré-históricos, em reconstruir o esqueleto inteiro: o dente carnívoro e o dente moedor não impõem a mesma forma de mandíbula que, por sua vez, implica uma morfologia geral seja de predador, seja de ruminante. Cada elemento anatômico dá, de modo rigoroso, o todo, e dever-se-ia fazer ao pensamento a bondade de crê-lo tão coerente quanto a carcaça animal.
Mas essa convicção na coerência que pudesse fazer divisar o “esqueleto inteiro” com base em um “elemento anatômico” não se deve esperar do historiador, pois em geral um “elemento” será comum a vários “esqueletos”. É o que é razoável concluir do que observa Paul Tannery em La géométrie grecque [15]:
Separemos da história da Matemática a parte propriamente bibliográfica, quero dizer, a constatação material dos fatos: tal frase encontra-se em tal página, seja de tal edição de tal obra, seja de tal manuscrito arrolado sob o número tal em tal biblioteca; separemos ainda o que pode, como no Aperçu historique [Resumo histórico] de Michel Chasles, formar um dos principais atrativos do livro, mas que pertence, de fato, à Ciência mesma, bem longe de constituir uma parte integrante da sua história; quero dizer, os desenvolvimentos dados a tal método, as relações estabelecidas entre eles e outros mais recentes, enfim as demonstrações de teoremas ou soluções de problemas, quer concebidas no espírito dos procedimentos de outrora quer somente sugeridas pelo seu estudo.
Feita essa separação, o que resta na realidade? Um tecido de conjecturas que estão, aliás, em todos os graus de probabilidade, desde aquela que tem quase o valor de certeza, até a que mal difere da dúvida, para não falar de hipóteses ainda menos favorecidas; e ainda esse tecido assemelha-se à mortalha de Penélope porque, se é verdade que se pode considerar como indo sempre aumentando a probabilidade média dos resultados obtidos pela crítica, não é, de modo algum, o mesmo para a probabilidade especial de cada asserção particular; essa probabilidade é sujeita a variações contínuas, e raramente existe ponto pelo qual a opinião hoje dominante ache-se garantida contra uma exclusão momentânea, ou definitiva, após ou na vinda à luz de algum fato novo ou da aparição de alguma nova hipótese.
Ainda, para só ficarmos entre os grandes da história da matemática, reproduzimos as palavras de Otto Neugebauer [16]:
Das abóbadas do Museu Metropolitano de Nova York pende uma magnífica tapeçaria que conta a fábula do Unicórnio. No final, vemos o miraculoso animal capturado, graciosamente resignado ao seu destino em um recinto limitado por uma pequena e bem feita cerca. Essa imagem pode servir como símile para o que tentamos aqui. Erigimos engenhosamente, a partir de pequenos pedaços de evidência, a cerca dentro da qual esperamos ter prendido o que pode parecer uma criatura possível, vivente. A realidade, no entanto, pode ser amplamente diferente do produto da nossa imaginação; talvez seja vão esperar algo mais do que uma imagem agradável à mente construtora quando tentamos restaurar o passado.
Como um erudito alemão, ao escrever a última frase acima, Neugebauer deveria ter em mente a mesma cena do Fausto a que se refere E. Cassirer, a respeito do mito:
No Fausto de Goethe, há uma cena em que vemos o Doutor Fausto na cozinha da bruxa, esperando que esta lhe dê a beberagem mágica que o devolverá à juventude. Diante de um espelho encantado, tem subitamente uma visão maravilhosa. Aparece no espelho a imagem de uma mulher de beleza sobrenatural. Fausto sente-se arrebatado e atraído; mas Mefistófeles, que está ao seu lado, zomba de tanto entusiasmo. Ele é quem sabe das coisas; sabe que o que Fausto viu no espelho não era a forma de uma mulher real: era tão só uma criatura da sua própria imaginação (grifo nosso).
São múltiplos os perigos quando pretendemos trilhar o passado. Há terrenos alagadiços, falsas pontes, tenebrosos abismos. Estará o pote de ouro no final do arco-íris? Há o cedermos aos antigos os nossos olhos e nossas ideias. Prevenia-nos Levy-Bruhl, guardadas as proporções:
Em vez de nos substituirmos em imaginação aos primitivos que estudamos, e de fazê-los pensar como nós pensaríamos se estivéssemos no seu lugar, o que só pode conduzir a hipóteses quando muito verossímeis e quase sempre falsas, esforcemo-nos, pelo contrário, por nos pôr em guarda contra os nossos próprios hábitos mentais e tratemos de descobrir os dos primitivos através da análise das suas representações coletivas e das ligações entre essas representações.
Completemos Levy-Bruhl com o que tão enfaticamente afirma Lucien Febvre:
A esses antepassados, emprestar candidamente conhecimentos de fato – e, portanto, materiais de ideias – que todos possuímos, mas que para os mais sábios dentre eles era impossível obter; imitar tantos bons missionários que, em tempos, regressavam maravilhados das “ilhas”, pois todos os selvagens que tinham encontrado acreditavam em Deus (mais um pequeno passo e tornar-se-iam autênticos cristãos); dotarmos os contemporâneos do papa Leão, com uma generosidade imensa, das concepções do universo e da vida que a nossa ciência para nós forjou e cujo teor é tal que nenhum dos seus elementos, ou quase, habitou alguma vez o espírito de um homem da Renascença – porém, contam-se pelos dedos os historiadores, e refiro-me aos de maior envergadura, que recuam perante tal deformação do passado, tal mutilação da pessoa humana na sua evolução.
Pronto! Estamos junto ao templo sagrado da Matemática, esse “jogo de jovens” (“Nenhum matemático deveria jamais se permitir esquecer que a Matemática, mais do que qualquer outra arte ou ciência, é um jogo de jovens” – G. H. Hardy), criado por um povo de juventude eterna; “aquele que, em Delfos, contempla a densa multidão dos jônios, imagina que eles jamais haverão de envelhecer”.
Mostramos armadilhas, apontamos enganosos caminhos que se oferecem, sedutores, aos que se atrevem a desvelar o passado. Seja, pois, tudo aceito cum grano salis.
As portas do templo neste momento se abrem. Convidamo-lo, caro leitor, entremos.
Euclides e a tradição sobre ele
Tudo já foi dito uma vez, mas, como
ninguém escuta, é preciso dizer de novo.
André Gide
Para testemunhos de como se constituiu e como se desenvolveu a geometria grega, ficamos estritamente dependentes de escassas notícias espalhadas em escritores antigos, muito do que foi extraído do trabalho desaparecido, já mencionado, História da Geometria, de Eudemo, um dos principais discípulos e colaboradores de Aristóteles.
Uma passagem dessa obra, conhecida como o Sumário de Eudemo ou o Catálogo dos geômetras, foi, no entanto, preservada por Proclus, que a retirou, bem provavelmente, dela própria. Traduzimos todo o passo, começando um pouco antes:
Por um lado, de fato, muitos dos mais velhos descreveram essas coisas, tendo-se proposto a fazer o elogio da matemática, e por isso apresentamos poucas das muitas nessas coisas, exibindo completamente o conhecimento e a utilidade da geometria. Por outro lado, depois dessas coisas, deve-se dizer da produção dela nesse período. Pois o divino Aristóteles dizendo: as mesmas opiniões frequentemente retornar aos homens segundo períodos determinados do todo, e não tomar as ciências uma organização durante o nosso tempo primeiramente ou o dos nossos conhecidos, mas também nem dizer em quantas outras circunvoluções, tanto tornadas quanto havendo de ser, aparecerem elas e também de novo desaparecerem.
Depois de que, dizemos, é preciso examinar as origens das artes e das ciências no período presente.
Visto que seja conhecido por muitos a geometria ter sido descoberta entre os egípcios primeiramente, tendo tomado a origem da ação de medir com cuidado as áreas.
Pois esta era necessária para aqueles pela ação de se elevar do Nilo, fazendo desaparecer os limites concernentes a cada um.
E nada é surpreendente começar a descoberta tanto dessa quanto das outras ciências pela necessidade, porque tudo o que é produzido na geração avança do imperfeito ao perfeito.
Possa, justamente, a mudança vir a acontecer, de fato, da sensação para o cálculo e desse para o pensamento.
Como, de fato, entre os fenícios, pelo comércio e as relações de negócio, o conhecimento dos números tomou o princípio exato, assim também entre os egípcios a geometria foi descoberta pela causa dita.
E Tales, primeiramente tendo ido ao Egito, transportou para a Grécia essa teoria e, por um lado, descobriu muitas coisas, e, por outro lado, mostrou os princípios de muitas para os depois dele, aplicando-se a umas de modo mais geral, a outras, de modo mais sensível.
E depois desse, Mamerco [?], o irmão do poeta Stesichorus, o qual é mencionado como tendo tido uma ligação de zelo em relação à geometria, e Hippias de Elis relatou-o como tendo adquirido uma reputação na geometria [17].
E depois desses, Pitágoras mudou a filosofia sobre ela em uma forma de educação livre, examinando do alto os princípios dela, explorando os teoremas tanto de um modo imaterial quanto intelectual, o qual então também descobriu a disciplina dos irracionais e a construção das figuras cósmicas. E depois desse, Anaxágoras de Clazomene ligou-se a muitas coisas das relativas à geometria, e Oinopedes de Quios, sendo por pouco mais jovem do que Anaxágoras, os quais também Platão mencionou nos Rivais como tendo adquirido uma reputação nas matemáticas.
Depois dos quais, Hipócrates de Quios, o que descobriu a quadratura da lúnula, e Teodoro de Cirene tornaram-se ilustres com relação à geometria.
Pois Hipócrates também compôs Elementos, o primeiro dos que são mencionados.
E Platão, tendo nascido depois desses, fez tomar muito grande progresso tanto as outras coisas matemáticas quanto a geometria, pelo zelo relativo a elas, o qual, é evidente, tanto de algum modo tendo tornado frequente as composições com os discursos matemáticos quanto despertado por toda parte a admiração relativa a elas dos que se ligam à filosofia.
E nesse tempo eram tanto Leodamas de Thasos quanto Árquitas de Taranto quanto Teeteto de Atenas, pelos quais os teoremas foram aumentados e avançaram para uma organização mais científica. E Neocleides, mais jovem do que Leodamas, e o discípulo desse, Léon, os quais resolveram muitas coisas em adição às dos antes deles, de modo a Léon compor também os Elementos de maneira mais cuidada tanto pela quantidade quanto pela utilidade das coisas demonstradas, e descobrir distinções, quando o problema procurado é possível e quando é impossível.
E Eudoxo de Cnido, por um lado, por pouco mais jovem que Léon, e, por outro lado, tendo-se tornado companheiro dos à volta de Platão, primeiro aumentou a quantidade dos chamados teoremas gerais, e às três proporções ajuntou outras três, e fez avançar em quantidade coisas tomadas a respeito da seção, com origem em Platão, servindo-se das análises sobre elas. E Amyclas de Heracleia, um dos discípulos de Platão e Menaechmus, que é discípulo de Eudoxo, tendo também frequentado Platão, e o seu irmão Deinostratus fizeram ainda mais perfeita a geometria toda. E Theudius de Magnésia pareceu ser o que excede tanto nas matemáticas quanto em relação à outra filosofia. Pois também arranjou convenientemente os Elementos e fez mais gerais muitas coisas das particulares. E, naturalmente, também Athenaeus de Cyzicus, tendo nascido durante os mesmos tempos, também se tornou ilustre, por um lado, nas outras matemáticas, e, por outro lado, principalmente na geometria. De fato, esses viveram com outros na Academia, fazendo as pesquisas em comum. E Hermotimus de Colofon fez avançar as coisas investigadas antes por Eudoxo e Teeteto, tanto descobriu mais muitas coisas dos Elementos quanto redigiu alguns dos Lugares. E Felipe de Mende, sendo discípulo de Platão e tendo sido exortado por ele para as matemáticas, tanto fazia as pesquisas segundo as indicações de Platão quanto produziu-as por si próprio quantas cria contribuir para a filosofia de Platão. Os que realmente expuseram as histórias promoveram as realizações dessa ciência até esse tempo [18].
Aí termina o Catálogo elaborado por Eudemo.
Além de fixar os nomes daqueles gregos que mais se distinguiram no esforço de dar à matemática aquela aparência de que seríamos herdeiros, o que mais chama a atenção é o fato de Euclides não ter sido o primeiro a coligir os Elementos. Mas, ao lado do que, como veremos, Proclus vai dar a seguir, há o ponto relevante de que apenas, dessas todas, só a obra de Euclides chegou até nós. Eis a marca do seu sucesso: ter dado conta e bem de praticamente tudo o que fizeram os seus predecessores. Ora, quando se tem em mente a dificuldade na confecção de cópias manuscritas, se um tratado trouxesse de forma bem posta e melhorada o que outros continham, passava-se, com vantagens, a copiar aquele em detrimento destes. Desse modo, o tempo fez com os trabalhos dos demais o que não conseguiu com os Elementos de Euclides: eliminou-os quase que totalmente da memória dos homens.
Em continuação ao Catálogo, com sentido de completamento, Proclus prossegue, agora pelo seu arbítrio e risco.
E não muito mais jovem do que esses é Euclides, o que reuniu os Elementos, tendo também, por um lado, arranjado muitas das coisas de Eudoxo e tendo, por outro lado, aperfeiçoado muitas das coisas de Teeteto, e ainda tendo conduzido as coisas demonstradas frouxamente pelos predecessores a demonstrações irrefutáveis.
E esse homem floresceu no tempo do primeiro Ptolomeu; pois, também Arquimedes, tendo vindo depois do primeiro, menciona Euclides, e, por outro lado, também dizem que Ptolomeu demandou-lhe uma vez se existe algum caminho mais curto que os Elementos para a geometria e ele respondeu não existir atalho real na geometria [19].
Acontece com Euclides o mesmo que com outros grandes matemáticos da Grécia Antiga: restam-nos apenas macérrimas informações sobre a vida e a personalidade do homem. No caso presente, a maior parte do que temos provém do que está dado acima, no trecho “Não muito mais jovem do que esses (...) não há caminho real para a geometria”, isto é, na parte acrescentada por Proclus ao Sumário de Eudemo. O próprio autor do acréscimo parece não ter conhecimento direto do lugar de nascimento do geômetra ou das datas em que nasceu e em que morreu. Procede antes por inferência:
(1) Arquimedes viveu imediatamente após o primeiro Ptolomeu;
(2) Arquimedes menciona Euclides;
(3) Há uma história sobre algum Ptolomeu e Euclides;
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(I) Euclides viveu no tempo do primeiro Ptolomeu.
(4) Euclides medeia entre os primeiros discípulos de Platão e Arquimedes; (5) Platão morreu em 347/6 a.C.;
(6) Arquimedes viveu de 287 a 217 a.C.;
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(II) Euclides deve ter atingido o seu acúmen por volta de 300 a.C. (o que acorda bem com o fato de que o primeiro Ptolomeu reinara de 306 a 283 a.C.).
(7) Atenas era, à época, o mais importante centro de matemática existente;
(8) Os que escreveram Elementos antes de Euclides viveram e ensinaram em Atenas;
(9) O mesmo vale para os outros matemáticos de cujos trabalhos os Elementos de Euclides dependiam;
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(III) Euclides recebeu o seu treinamento matemático dos discípulos de Platão em Atenas.
Proclus, indo ainda mais longe, garante que Euclides era da escola platônica e que mantinha íntima relação com a filosofia dele [20] (“é platônico pela escolha e familiarizado com essa filosofia”) e que, por essa razão, teria se proposto por objetivo dos Elementos, como um todo, a construção das chamadas figuras platônicas [21] (“e donde precisamente propôs-se como objetivo do livro todo dos Elementos a construção das chamadas figuras platônicas”). Como os Elementos terminam, de fato, com a construção dos poliedros regulares, isto é, dos cinco sólidos ou figuras platônicas, sendo Proclus um neoplatônico, viu nisso a oportunidade para associar Euclides àquela escola. Aliás, parece-nos possível entender a expressão τέλος no papel de advérbio “no fim, em último lugar”, podendo-se verter parte da frase citada por “propôs-se no fim do livro todo dos Elementos a construção (...)”, o que é verdade. Abusaria, assim, Proclus de uma ambiguidade?
Que Euclides ensinara e fundara uma escola em Alexandria, aprendemos de uma observação de Pappus no Livro VII da sua A coleção matemática, ao comentar que Apolônio nos transmitiu oito livros sobre as cônicas, tendo completado os quatro livros das Cônicas de Euclides e a eles ajuntado outros quatro.
Pappus, 7.35:
E [Apolônio] pode ajuntar as coisas restantes ao “lugar”, tendo antes sido capaz de imaginar pelas coisas já escritas por Euclides sobre o “lugar”
e, tendo frequentado por muito tempo os discípulos de Euclides em Alexandria, por essa razão adquiriu esse hábito não ignorante de mente [22].
Há, por fim, um episódio relatado por Stobaeus nos seus Eclogarum physicarum et ethicaram Libri II [23]. Ei-lo:
(...) alguém que começara a estudar geometria com Euclides, tendo aprendido o primeira teorema, perguntou a Euclides: “Mas o que me será acrescido por aprender essas coisas?” E Euclides, tendo chamado o escravo: “Dê-lhe três óbolos, porque para ele é preciso lucrar com o que aprende” [24].
Apenas isso a tradição nos transmite sobre o nosso personagem.
Vale ponderar aqui que a tradição se interessa mais pela verossimilhança do que pela verdade, considerando aquela como uma metáfora desta. Desse modo, o diálogo entre Ptolomeu e Euclides que, diga-se de passagem, também é contado sobre a dupla rei-geômetra Alexandre e Menaechmus, pelo próprio Stobaeus na obra referida, metaforiza o fato de a geometria ter de ser aprendida sistematicamente, passo a passo, seguindo o trajeto exposto nos Elementos. A última história, por sua vez, representa, figuradamente, o que é frisado no Catálogo dos geômetras, que Pitágoras mudou a filosofia sobre a matemática “em uma forma de educação liberal”, ou seja, própria dos homens livres, que não se submetem senão a ganhos intelectuais. Da mesma maneira, quando a tradição nos dá como escrita sobre o pórtico da Academia a famosa frase “ninguém que ignore geometria entre” [25], não quer nos fazer crer estar ela realmente postada à entrada para, como a ígnea espada do arcanjo, que impedisse, aos não iniciados naquela ciência, o acesso a um tal Éden; antes condensa, metaforicamente, de modo admirável, tudo o que Platão dizia sobre a matemática: ser ela o vestíbulo, a via pela qual se chega à filosofia.
O que fica de tudo é o pouco conhecimento, e ainda assim incerto, que resta do homem que foi o nosso geômetra. É como se, daquela distante época, um aedo nos cantasse:
Diz o Tempo a Euclides:
Nas muitas dobras que tenho
No meu manto de negro tecido,
Escondo para sempre dos pósteros
A tua vida, as tuas dores,
As tuas alegrias fugazes,
O teu dia de cada dia.
Escondo-te o semblante, o sorriso,
A lágrima quente que escava
Profundos sulcos na face.
Escondo também os amores,
As tuas noites de insônia
E a dura luta diária
Rumo à verdade desnuda.
Escondo tudo o que foste
De todos os que virão.
Mas as muitas dobras que tenho
No meu manto de negro tecido,
Por mais que eu faça e refaça,
Não bastam para esconder
A obra que produziste.
Proclamo, pois, em alto som:
Os Elementos de Euclides
Sempiternos brilharão.
Outros trabalhos de Euclides
A importância extraordinária dos Elementos torna de somenos monta os demais trabalhos atribuídos ao geômetra, alguns dos quais chegaram até nós. São, na maior parte, pequenos planetas a orbitarem à volta daquela magna estrela. Conhecemo-los todos por menção de autores gregos.
Assim, na sequência do Sumário de Eudemo, Proclus faz-nos saber:
Também existem, de fato, muitas outras obras matemáticas desse homem, cheias de exatidão admirável e de visão científica.
Pois tais são tanto a Ótica quanto a Catóptrica, e tais também as a respeito dos Elementos de música, e ainda o livro sobre Divisões [26].
E, em continuação, elogiando os Elementos, faz referência a um outro trabalho:
E porque muitas coisas são vistas na aparência como sendo apoiadas na verdade e seguindo os princípios científicos, mas seguem o seu curso para o desvio dos princípios e enganam completamente os mais superficiais, ele também legou à posteridade métodos de percepção perspicaz dessas coisas, tendo os quais poderemos treinar os principiantes dessa teoria para a descoberta dos paralogismos, e a permanecer até o fim não enganados.
E assim então, essa obra, pela qual introduz-nos nessa preparação, ele intitulou Das falácias (...) [27]
Esse livro Das falácias perdeu-se, mas o seu intento é exposto claramente no excerto, e, como aparece num contexto que diz respeito aos Elementos, é lídimo supor não ultrapassar o domínio da geometria.
Vejamos os outros títulos citados pelo escoliasta.
Ótica e Catóptrica
Ambos foram editados por Heiberg no mesmo Volume VII (1895) da publicação pela Teubner Verlagsgesellschaft Euclidis opera omnia [28], de Heiberg–Menge. Aí a Ótica aparece na sua forma genuína e na recensão de Théon de Alexandria.
A Catóptrica, por sua vez, não é genuína e Heiberg tem para si que, no formato sobrevivente, possa ser de Théon. Possivelmente, Proclus teria se enganado ao pô-la na conta de Euclides, que não a produzira.
A Ótica é, de fato, um tratado de perspectiva. Parte da hipótese da existência de raios visuais retilíneos e busca determinar a parte que efetivamente vemos de um objeto distante dado.
A palavra catóptrica (que ousamos aportuguesar, com a acentuação regida pela analogia com ótica, variante de óptica) é um adjetivo grego derivado do substantivo neutro κατόπτρον “espelho”. Por isso, o título τὰ κατοπτρικά significaria “imagens refletidas”, ou melhor, Teoria da reflexão.
Elementos de música
Dois tratados são dados como de Euclides: Sectio canonis [29] “a teoria dos intervalos”, “Divisão da escala”, e εἰσαγωγή ἁρμονική “introdução à harmonia”, editados no Volume VIII das Euclidis opera omnia por Menge. O primeiro, baseado na teoria pitagórica da música, é matemático, concordando em geral, tanto na dicção quanto na forma das proposições, com o que está nos Elementos. O segundo é de Cleonides, um discípulo de Aristoxenes.
O livro das divisões (de figuras)
Essa obra, contrariando aparentemente a expectativa dos que conhecem apenas os Elementos, ocupa-se com a aplicação da geometria a problemas de cálculo, como os existentes na Babilônia. A diferença característica é o uso feito dos resultados dependentes de proposições daquele trabalho magno em lugar da abordagem numérica dos orientais.
Trata-se, em resumo, da divisão de figuras em outras que lhes sejam semelhantes ou dessemelhantes pela definição, isto é, do mesmo tipo ou de tipo diferente. Desse modo, um triângulo pode ser dividido em triângulos, ou seja, em figuras do mesmo tipo ou semelhantes pela definição, ou pode ser dividido em um triângulo e um quadrilátero, figuras dessemelhantes pela
definição.
É como nos diz Proclus (144.22-26)
... pois tanto o círculo é divisível em dessemelhantes pela definição quanto cada uma das retilíneas, e ele próprio, o autor dos Elementos, ocupou-se nas Divisões, dividindo as figuras dadas quer em semelhantes quer em dessemelhantes [30].
O texto grego dessa obra de Euclides perdeu-se, tendo sido redescoberto em árabe. Woepcke encontrou em um manuscrito em Paris um trabalho em árabe sobre a divisão de figuras. Traduziu-o e publicou-o em 1851 no Journal Asiatique. Esse tratado é expressamente atribuído a Euclides no manuscrito e acorda com o que Proclus diz sobre ele.
Além desses trabalhos cujo elenco é dado pelo comentarista, há mais, citados por outros autores.
Os Data
Os Data [31] foram incluídos por Pappus no Tesouro da análise.
Antes de tecer considerações sobre ele, queremos esclarecer alguns pontos relativos a Pappus.
Estamos todos cientes de que a Idade de Ouro da geometria grega findara com Apolônio de Perga. No entanto, a influência dos feitos do trio, Euclides, Arquimedes e Apolônio, não acabou com os seus dias. Tivemos uma sucessão de matemáticos, se não criativos, ao menos competentes, aptos a preservar a tradição. Geminus, por exemplo, escreveu uma obra de caráter quase enciclopédico sobre a classificação e o conteúdo da matemática, incluindo a história do desenvolvimento de cada assunto. Pappus (VIII, 3), falando sobre Arquimedes, abona a sua observação com um “como o declara também Geminus, o Matemático, no seu livro A ordenação da matemática” [32]. Apesar disso, o título do grande tratado de Geminus não está bem fixado, pois Eutocius de Áscalon, no seu comentário às Cônicas de Apolônio, menciona-o como A ciência matemática [33]. Já Proclus, no Comentário ao livro I dos elementos de Euclides, mune-nos de informações precisas sobre esse trabalho, sem jamais mencionar-lhe o título.
O começo da Era Cristã assiste a um acentuado decréscimo no interesse pelo estudo da geometria avançada. Assim Pappus, no século III, propõe-se a missão de reavivar a curiosidade sobre tal conhecimento.
A sua obra capital chegou-nos sob a designação de Coleção matemática. Em verdade, a maior parte dos manuscritos, sobretudo os mais antigos, vem apenas com a denominação A coleção [34], mas cópias menos antigas trazem um título mais completo no plural, As coleções matemáticas [35]. Consiste ela em uma ampla recolha de proposições extraídas de um número grande de obras de outros matemáticos, quase todas hoje infelizmente desaparecidas. Está longe, porém, de ser uma simples compilação, e excede de muito o quadro de apenas um comentário, uma vez que não se limita a expor proposições notáveis, devidas aos seus predecessores. Fá-las acompanhar de uma multidão de lemas, destinados a esclarecer as passagens mais complexas das suas demonstrações. Mas, há muito mais. Dá-nos frequentemente demonstrações alternativas. Estende-as a casos particulares ou análogos, aplica-os à solução de problemas novos ou à daqueles já resolvidos de outra maneira, e completa o todo com numerosas proposições novas, que indicam pesquisas bem avançadas nesse domínio e o calibre matemático do seu autor.
A obra é composta por oito livros (capítulos, como os chamaríamos hodiernamente), sendo o sétimo sobremodo importante para a história da geometria, por ser a única fonte do que conhecemos sobre um conjunto de trabalhos perdidos relativos à geometria avançada, que os antigos chamavam “lugar resolvido/analisado” ou “Tesouro da análise” [36]. A denominação Tesouro da análise, corrente na língua inglesa, Treasure of Analysis, parece ter sido sugerida por James Gow que, em nota na página 211 da sua A Short History of Greek Mathematics [37], faz as seguintes e, a nosso ver, pertinentes considerações filológicas:
A palavra τόπος aqui não significa locus (“lugar”), mas tem o seu significado aristotélico de “store-house” (“depósito, ou figuradamente, tesouro”). Então, no começo do Livro VI de Pappus, τόπος ἀστρονομούμενος significa “o tesouro astronômico”... Τόπος ἀναλυόμενος significa “o tesouro da análise”, como na retórica de Aristóteles, τόποι ou κοινοὶ τόποι são coleções de “lugares comuns”, [isto é] observações e críticas a que os retóricos podem sempre recorrer. A tradução de τόπος ἀναλυόμενος como “locus resolutus”, “lieu résolu” ou “aufgelöster Ort” é portanto enganadora e levou, acredito, a alguma concepção errônea.
Pappus indica-lhe de pronto a natureza, afirmando:
O chamado Tesouro da análise, Hermodoro meu filho, é uma matéria especial preparada como auxílio, depois da produção dos elementos comuns, para os que querem aprender nas linhas a potência inventiva dos problemas que se lhes estendem à frente e que se constituiu útil para isso somente [38].
Prossegue, um pouco mais adiante:
E dos preditos livros do Tesouro da análise, a ordem é esta [39]: dos Data de Euclides, um livro... [40]; dos Porismata de Euclides, três [41]; ... dos Lugares em uma superfície de Euclides, dois... [42] Existem 32 livros [43].
Portanto, dentre outros, Pappus arrola três outros trabalhos de Euclides não mencionados por Proclus.
Retornemos, agora, aos Data, cujo texto sobreviveu e foi editado, juntamente com o comentário feito por Marinus de Neapolis, discípulo de Proclus, por Menge no Volume VI de Euclidis opera omnia.
Os Data são um conjunto de 95 proposições (Pappus fala em 90), precedido agora por uma introdução explanatória de Marinus. Este observa que Euclides deveria ter começado com uma definição geral de δεδομένον “dado” e depois passar aos vários casos que inclui, concluindo que, na sua opinião, a melhor definição seria “cognoscível e passível de obtenção” [44].
Eis algumas das definições de Euclides no início da obra:
1. Áreas e também linhas e ângulos são ditos dados em magnitude, iguais aos quais podemos obter [45].
4. Pontos e também linhas e ângulos são ditos ter sido dados em posição, aqueles que se mantêm sempre sobre o mesmo lugar [46].
6. E um círculo é dito ter sido dado em posição e em magnitude, aquele do qual, por um lado, o centro foi dado em posição, e, por outro lado, o raio, em magnitude [47].
As proposições que seguem as definições lidam com magnitudes, linhas, figuras retilíneas e círculos, nessa ordem.
A palavra “dado” é empregada em dois sentidos. Significa, primeiramente, “realmente dado”, e, em segundo lugar, “dado por implicação”, e as proposições são todas para esse efeito de que certa descrição parcial de uma magnitude ou de uma figura geométrica envolva uma descrição mais completa; assim aquela de um triângulo como equilátero envolve a sua descrição como equiângulo.
Pappus mostra com exemplos como os Data prestam serviço à Análise. Esta começa com uma construção suposta que satisfaça as condições propostas. Tais condições, sendo convertidas em elementos dados da figura, envolvem outros que são dados por implicação, e esses, por sua vez, envolvem outros, até que, passo a passo, cada um deles é legitimado, e chega-se a uma construção da qual se obtém uma síntese.
Os Data são, de fato, sugestões para as etapas mais usuais na Análise.
Os Porismata
Proclus (301.21-302.13) procura elucidar o que se deve entender tecnicamente por porismata [48]. Eis a explicação:
O porisma [substantivo neutro em grego] é uma das expressões geométricas. E isso significa duas coisas. Pois, denominam-se porismata tanto quantos teoremas são ajudados no seu estabelecimento pelas demonstrações de outros, como sendo golpes de sorte e ganhos dos que procuram, como quantas coisas, por um lado, são procuradas, e, por outro lado, têm necessidade de descoberta e não de produção só nem de simples teoria.
Pois porque, por um lado, é preciso considerar os na base dos isósceles iguais, esse conhecimento é, então, das coisas que são.
Por outro lado, dividir o ângulo em dois ou construir um triângulo ou subtrair ou acrescentar, todas essas coisas demandam uma ação de alguém, mas achar o centro do círculo dado ou achar a maior medida comum de duas magnitudes comensuráveis dadas ou quantas coisas que tais estão, de alguma maneira, entre problemas e teoremas.
Pois, nem são produções nessas coisas das procuradas, mas são descobertas, nem simples teorias.
Pois é preciso conduzir o procurado sob a vista e fazer o procurado diante dos olhos.
Portanto, tais coisas são também quantos porismata Euclides escreveu, tendo composto três livros de porismata [49].
Pappus também fala sobre os porismata nos seguintes termos:
E todas as espécies deles não são dos teoremas nem dos problemas, mas de algum modo no meio dessas, existindo forma, por poderem os enunciados deles assumir certa forma ou como dos teoremas ou como dos problemas, pelo que também aconteceu dos muitos geômetras, os que consideram apenas a forma do enunciado, uns tomarem-nos por ser, no gênero, teoremas, outros, problemas [50].
Com toda certeza, Proclus usava as palavras de Pappus. De qualquer modo, pela distinção feita, há os porismata que são meros corolários, isto é, consequências diretas das demonstrações de outros teoremas, e os há como proposições que, não sendo tecnicamente quer teoremas quer problemas, participam da natureza de uns e dos outros.
O tratado de Euclides jaz escondido nas dobras do negro manto do tempo, mas, porque Pappus o tratou de modo extensivo, acrescentando-lhe tantos lemas, alguns geômetras, e dentre eles o francês do século XIX, Michel Chasles (nos Les trois livres des porismes d’Euclide réstablis [51], Paris, Mallet-Bachelier, 1860), tentaram, com maior ou menor êxito, restaurá-lo.
O objetivo de um porisma não é aquele de um teorema, isto é, a descrição de uma nova propriedade, nem o de um problema, ou seja, efetivar uma construção ou alterar uma dada; é antes achar e trazer à vista uma coisa que coexiste necessariamente com certas coisas dadas, como a maior medida comum coexiste com duas magnitudes comensuráveis dadas, ou como o centro coexiste com um círculo dado.
Detenhamo-nos um pouco nas interessantes considerações feitas por Chasles no seu Aperçu historique des méthodes en géométrie [52], p.12-15:
Segundo o prefácio do Sétimo livro das coleções matemáticas de Pappus, parece que esse tratado dos porismata distinguia-se por um talento penetrante e profundo e era eminentemente útil para a resolução dos problemas mais complicados (collectio artifi ciosissima multarum rerum, quae spectant ad analysin diffi ciliorum et generalium problematum [“reunião engenhosíssima de muitas coisas que visam à análise dos problemas difíceis e gerais”]). Trinta e oito lemas, que esse sábio comentarista deixou-nos para a inteligência desses porismata, provam-nos que formavam um conjunto de propriedades da linha reta e do círculo, da natureza daquelas que nos fornece, na geometria recente, a teoria das transversais.
Pappus e Proclus são os únicos geômetras da Antiguidade que fizeram menção dos porismata; mas, já no tempo do primeiro, a significação dessa palavra estava alterada, e as definições que dela ele nos dá são obscuras. A de Proclus não é apropriada a esclarecer as primeiras. Também foi um grande problema entre os Modernos saber a nuança precisa que os Antigos haviam estabelecido entre os teoremas e os problemas por um lado, e esse terceiro gênero de proposições, chamadas porismata, que participava, ao que parece, de uns e dos outros; e saber particularmente o que eram os Porismata de Euclides.
Pappus, é verdade, transmitiu-nos os enunciados de trinta proposições pertencentes a esses porismata: mas esses enunciados são tão sucintos e tornaram-se tão defeituosos pelas lacunas e a ausência de figuras, que diziam a respeito deles que o célebre Halley, tão profundamente versado na geometria antiga, confessou não compreender nada deles, e que, até cerca da metade do último século, embora geômetras de grande mérito tenham feito dessa matéria o objeto das suas meditações, nenhum enunciado havia ainda sido restabelecido.
Foi R. Simson que teve a glória de descobrir a significação de vários desses enigmas, bem como a forma dos enunciados que era própria desse gênero de proposições. Eis o sentido da definição que o geômetra deu dos porismata:
O porisma é uma proposição na qual se anuncia poder determinar, e em que se determinam efetivamente, coisas que têm uma relação indicada com coisas fixas e conhecidas e com outras coisas variáveis ao infinito; estas estando ligadas entre si por uma ou várias relações conhecidas, que estabelecem a lei de variação, à qual estão submetidas.
Exemplo: sendo dados dois eixos fixos, se de cada ponto de uma reta baixam-se perpendiculares $p$ e $q$ sobre esses dois eixos, poder-se-á encontrar um comprimento de linha $a$ e uma razão $\alpha$ tais que se tenha entre essas duas perpendiculares a relação $(p-a)/q=\alpha$. (Ou, segundo o estilo antigo, a primeira perpendicular será maior, relativamente à segunda, por uma dada somente em razão.)
Aqui, as coisas fixas dadas são os dois eixos; as coisas variáveis são as perpendiculares $p, q$; a lei comum, à qual essas duas coisas variáveis estão sujeitas, é que o ponto variável, de onde essas perpendiculares são baixadas, pertence a uma reta dada; enfim, as coisas a encontrar são a linha $a$ e a razão $\alpha$, que estabelecerão, entre as coisas fixas e as coisas variáveis da questão, a relação prescrita.
Esse exemplo é suficiente para fazer compreender a natureza dos porismata, como a concebeu R. Simson, cuja opinião foi geralmente adotada desde então.
Todavia, devemos acrescentar que nem todos os geômetras reconheceram, na obra de Simson, a verdadeira previsão daquela de Euclides. Por nós, adotando o sentimento do ilustre professor de Glasgow, diremos porém que não encontramos no seu trabalho a previsão completa do grande enigma dos porismata. Essa questão, com efeito, era complexa, e as suas diferentes partes exigiam todas uma solução que se procura, em vão, no tratado de Simson.
Assim, dever-se-lhe-ia demandar:
1. Qual era a forma dos enunciados dos porismata;
2. Quais eram as proposições que entravam na obra de Euclides; notadamente aquelas cuja indicação, muito imperfeita, foi-nos deixada por Pappus;
3. Quais foram a intenção e o objetivo filosófico de Euclides, compondo essa obra em uma forma inusitada;
4. Sob que pontos de vista merecia a eminente distinção que lhe faz Pappus entre as outras obras da Antiguidade; porque só a forma do enunciado de um teorema não lhe constitui o mérito e a utilidade;
5. Quais são os métodos, ou as operações efetivas que mais se aproximam, sob uma outra forma, dos porismata de Euclides, e que os suprem na resolução de problemas; porque não se pode crer que uma doutrina tão bela e tão fecunda desaparecesse completamente da ciência dos geômetras;
5. E, enfim, haveria que dar uma interpretação satisfatória de diferentes passagens de Pappus sobre esses porismata; por exemplo, daquela em que diz que os modernos, não podendo tudo achar por eles próprios, ou, por assim dizer, “porismar” completamente, mudaram a significação da palavra; porque, se o porisma consistisse apenas na forma do seu enunciado, como parece resultar do tratado de R. Simson, seria sempre fácil “porismar” todas as proposições que fossem suscetíveis disso; e não se vê por que os modernos haveriam encontrado dificuldades que lhes tivessem feito mudar a significação da palavra.
E Chasles conclui o parágrafo relativo aos porismata afirmando que, pela importância do assunto, sobretudo pelas suas relações com as teorias que formam o domínio da geometria do seu tempo, dará continuidade ao parágrafo na Nota III, “Sur les porismes d’Euclide” [53], p.274-83, em que “tentaremos mesmo apresentar algumas ideias novas sobre essa grande questão dos porismata”.
O exposto, cremos, basta, quanto a tal obra de Euclides.
Lugares em uma superfície
Na Nota II que acresce sua obra citada, assim se exprime Chasles sobre os Lugares em uma superfície [54], cujos dois livros, segundo Pappus, também jazem submersos “em negro vaso de água do esquecimento”:
Montucla diz, na página 172 do primeiro volume da sua Histoire des mathématiques, que os Lieux à la surface de Euclides eram superfícies; e, na página 215 do mesmo volume, que eram linhas de dupla curvatura sobre superfícies curvas, como a hélice sobre um cilindro circular. É possível que os antigos designassem, em geral, por essa palavra, as superfícies e as curvas que aí eram traçadas. Mas, quais eram verdadeiramente os Lieux à la surface de Euclides?
Para responder a essa questão não nos resta outra indicação a não ser quatro lemas de Pappus relativos àquela obra; e como esses lemas tratam somente de seções cônicas, devemos pensar que Euclides considerava somente as superfícies que chamamos, hoje em dia, do segundo grau. E somos levados a crer que essas superfícies eram de revolução. Porque, por um lado, é certo que as superfícies de revolução do segundo grau tinham sido estudadas anteriormente a Arquimedes, pois após ter enunciado algumas propriedades das suas seções por um plano, ele diz, no final da proposição XII do seu livro Sobre esferoides e conoides, “as demonstrações de todas essas proposições são conhecidas”. Além disso, observamos que o último lema de Pappus é a propriedade principal do foco e da diretriz de uma cônica; e esse teorema parece-nos ter podido servir para demonstrar que o lugar de um ponto, cujas distâncias a um ponto fixo e a um plano devam estar entre elas em uma relação constante, é um esferoide ou um conoide, ou então para demonstrar que a seção desse lugar por um plano conduzido pelo ponto fixo é uma cônica tendo o seu foco nesse ponto, e cuja diretriz é a interseção do plano dessa curva pelo ponto fixo.
Desse modo, parece-nos provável que os Lieux à la surface de Euclides tratassem de superfícies do segundo grau, de revolução, e de seções feitas por um plano nessas superfícies, como o cone.
Já Gow [55] comenta que o próprio significado do título τόποι πρὸς ἐπιφανεία [56] ocasionou alguma controvérsia. Continuemos com ele:
O Prof. De Morgan diz francamente que não o entende e é evidente que Eutocius estava na mesma condição, pois fala, após descrever outros loci [“lugares”] muito bem, que os τόποι πρὸς ἐπιφανεία derivam o seu nome “da peculiaridade deles [57] e assim os deixa. O Prof. Chasles supõe que o livro contenha proposições sobre “superfícies do segundo grau, de revolução, e seções ali feitas por um plano”: e refere-se ao fato de que Arquimedes, no final da “Proposição XII” do seu Conoides e Esferoides, diz que certas proposições sobre seções de conoides φανεραί ἐστι (isto é, “são claras”, não “são bem conhecidas” como Chasles entende) e de que os quatro lemas que Pappus dá sobre esse livro de Euclides dizem respeito a seções cônicas. Heiberg, no entanto, por uma bem elaborada análise de todas as passagens nas quais τόποι de vários tipos são descritos, chega à conclusão de que τόποι πρὸς ἐπιφανεία significa simplesmente “loci que são superfícies”, e que o tratado de Euclides lida sobretudo com as superfícies curvas do cilindro e do cone. Que essas superfícies eram consideradas como loci antes do tempo de Euclides é evidente pela solução de Árquitas ao problema da duplicação do cubo.
Como se pode ver pelas passagens acima, e julgamos constituírem elas tudo o que se possa falar sobre esse trabalho de Euclides, estava aberta a temporada das conjecturas. E nada de mal nisso. É mesmo um ampliar de horizontes, um ganho em visão sobre os métodos dos antigos. Afinal, não há quem afiance ser a influente filosofia de Plotino o resultado da sua má compreensão das ideias de Platão? Ou, como quer o poeta, seja a metafísica uma consequência de se estar mal disposto (restando-nos, assim, como à “pequena suja”, tirar “o papel de prata, que é de folha de estanho”, cuidando para não deitar “tudo para o chão”, e comer chocolates)? [58]
As cônicas
Conforme com o já expresso, Pappus, tratando das Cônicas de Apolônio, atribuiu a Euclides um tratado sobre Seções cônicas [59] em quatro livros que teriam formado o fundamento dos quatro primeiros livros da obra de Apolônio. Infelizmente, talvez até pelo magnífico trabalho deste, o daquele não conseguiu vencer o destino das obras suplantadas por outras na Antiguidade e não sobreviveu.
Aristeu, o velho (cerca de 320 a.C.), escreveu um Elementos de seções cônicas, em cinco livros que, segundo Pappus, Euclides tinha em alta conta. Desse modo, não pode haver dúvidas quanto a essa obra de Aristeu ter precedido a de Euclides.
Arquimedes refere-se frequentemente a proposições sobre cônicas como bem conhecidas e não necessitando de demonstrações, adicionando em três casos que elas estavam provadas nos “elementos de cônicas”. Porém, não menciona Euclides, como se a mera denominação de “Elementos” bastasse por subentende-lhe o nome.
É razoável supor, como resultado do testemunho de Pappus, que, se Aristeu desenvolvera a teoria de modo original, Euclides teria posto em forma tudo o que fora adquirido à sua época, com mãos de grande sistematizador, e que as suas Cônicas eram uma obra de referência e assim permanecera até o aparecimento da de Apolônio.
No endereçamento a Eudemo, que conhecera em Pérgamo, do Livro I do seu tratado, Apolônio frisa que, dos oito livros que o constituem, os quatro primeiros são devotados a uma introdução elementar e passa a descrever-lhes o conteúdo. Sobre o terceiro deles assevera:
E o terceiro também [contém] muitos e extraordinários teoremas, úteis tanto para a síntese dos lugares sólidos quanto para as determinações, dos quais os mais numerosos e os mais belos são novos [60], e tendo-os observado, fomos capazes de ver não sendo sintetizado por Euclides o lugar nas três e quatro linhas [61], mas uma partezinha ao acaso dele e isso não de modo feliz [62]. Pois não era possível sem as coisas achadas por nós ter sido completada a síntese [63].
Está aí, pois, mencionado um ponto em que o geômetra de Pérgamo
melhora o trabalho em questão de Euclides. Este teria tratado apenas analiticamente “o lugar nas três e quatro linhas” [64]. O referido lugar é definido por Pappus (VII, 36) nos seguintes termos:
Se forem dadas três linhas em posição e de um ponto linhas retas forem traçadas para encontrar as três dadas em ângulos dados, e a razão do retângulo sob duas das linhas assim traçadas para o quadrado da terceira for dada, o ponto jazerá em um lugar sólido dado em posição, isto é, em uma das três cônicas. Se quatro linhas forem dadas em posição e quatro linhas retas forem traçadas como antes, e a razão dos retângulos sob dois pares for dada, similarmente o ponto jazerá sobre uma cônica.
É bom lembrar, de passagem, que a cônica como um locus ad quattuor lineas foi usado por Newton nos seus Principia.
É possível, com base nos primeiros livros das Cônicas de Apolônio e nas referências feitas por Arquimedes, propor, com bom grau de acerto, uma lista de proposições que figurariam no trabalho de Euclides. É o que faz Thomas L. Heath em A History of Greek Mathematics [65], II, 121-126.
Para concluir, é preciso lembrar que os nomes elipse, hipérbole e parábola são devidos não a Euclides ou a Aristeu, mas a Apolônio. Aparecem, respectivamente, nos complexos enunciados das proposições I.13, I.12 e III.45 das Cônicas. Ilustremos tal complexidade com o enunciado da proposição I.13 em que se define elipse:
Caso um cone seja cortado por um plano pelo eixo [66], e seja cortado também por um outro plano que encontra cada lado do triângulo pelo eixo [67], ao passo que nem conduzido paralelo à base do cone nem contrariamente [68], e o plano, no qual está a base do cone e o plano que corta se encontrem segundo uma reta que é em ângulos retos ou com a base do triângulo pelo eixo ou com a mesma sobre uma reta [69], a que seja conduzida paralela à seção comum dos planos da seção do cone até o diâmetro da seção [70], será, elevada ao quadrado, uma área posta junto a alguma reta [71], em relação à qual o diâmetro da seção tem uma razão que o quadrado sobre a conduzida, do vértice do cone paralela ao diâmetro da seção até a base do triângulo, para o contido pelas interceptadas por elas sobre as retas do triângulo [72], tendo como largura a que é interceptada por ela a partir do diâmetro em relação ao vértice da seção [73], deficiente por uma figura semelhante e também semelhantemente posta ao contido tanto pelo diâmetro quanto pelo parâmetro [74], e seja chamada tal seção uma elipse [75].
Como bem observa Paul Ver Eecke, naquela que foi a primeira tradução francesa do texto grego de Apolônio (p.28, nota 4):
Esse enunciado, que é tão complicado quanto aquele da proposição anterior [em que se define hipérbole], reduz-se a dizer que, na seção cônica considerada, o quadrado da ordenada equivale a uma área retangular que, aplicada segundo o parâmetro, isto é, tendo o parâmetro como comprimento, e tendo a abscissa como largura, é diminuída de uma área, semelhante àquela que tem como comprimento o parâmetro e como largura o diâmetro. Por consequência, se designarmos por $y$ a ordenada, por $x$ a abscissa, por $a$ o diâmetro, e por $p$ o parâmetro, o enunciado da proposição traduzir-se-á pela relação
$$y^2 = px - (p/a) x^2,$$
que é a equação cartesiana da elipse referida a eixos oblíquos, dos quais um é o diâmetro, o outro, a tangente na sua extremidade.
Presta, ainda, esse tradutor, na nota 5, páginas 28-9, o seguinte esclarecimento a respeito do termo elipse [76]:
Criando a nova denominação ἔλλειψις, que conservamos na palavra “elipse”, Apolônio abandonava a perífrase “seção de cone reto acutângulo” dos seus predecessores, aí compreendido Arquimedes, que consideravam a curva em questão como obtida unicamente pela seção plana, perpendicular a uma geratriz, do cone reto acutângulo. A origem da denominação recebeu, aliás, explicações diferentes. Eutocius, no seu comentário (ver ed. Heiberg, v.II, p.174), adota primeiramente para o verbo radical ἔλλειψις o sentido de “ser deficiente”, e observa que a soma do ângulo do cone de origem e do ângulo formado pelo eixo da curva com a geratriz do cone é menor do que dois ângulos retos. Adotando em seguida para o mesmo verbo o sentido de “ser defeituoso por algum lugar”, observa que a curva em questão não é senão um “círculo imperfeito”. Por outro lado, Heath (Appolonius of Perga, Cambridge, 1896, p.12), impelido pelas duas explicações de Eutocius, faz o nome elipse derivar da propriedade da curva, como é enunciada na proposição de Apolônio, isto é, do fato de que o quadrado da ordenada equivale a certa área à qual faz falta certa outra área.
Encontra-se no grande dicionário grego-inglês de Leddell–Scott para a Oxford, no verbete ἔλλειψις: ... 2ª seção cônica elipse (assim chamada porque o quadrado sobre a ordenada é igual a um retângulo com altura igual à abscissa e aplicado ao parâmetro, mas deficiente em relação a ele).
Os fenômenos
Obra que o famélico olvido não conseguiu devorar, chegou até nós e foi publicada por Menge no Volume VIII, p.2-156, de Euclidis opera omnia, edição já várias vezes aludida.
Os phaenomena (Φαινόμενα, “aparências do céu”) são um texto com 18 proposições e um prefácio e a sua autenticidade foi abonada por Pappus (VI, p.594-632), que dá alguns lemas, ou proposições explanatórias a respeito.
Φαινόμενα é a forma do nominativo neutro plural do particípio presente passivo do verbo φαίνω. O significado desse verbo nas formas transitivas é “mostrar, trazer à luz, fazer conhecer”, e nas formas intransitivas, que aqui nos interessa, “tornar-se visível, vir à luz, mostrar-se, aparecer” (aliás, o nosso termo “fantasma”, isto é, “aparição”, deriva desse verbo); daí, τὰ Φαινόμενα (os fenômenos/phaenomena) significar, literalmente, “as coisas que são vistas; as aparências”, tendo na astronomia o sentido particular de “as aparências do céu; os fenômenos celestes”.
O prefácio de Euclides é uma afirmação das considerações que mostram o universo como uma esfera e é seguido por algumas definições de termos técnicos. Entre esses, o uso de ὁρίζων, particípio presente ativo do verbo ὁρίζω (“limitar”), como substantivo, significando “círculo que limita; horizonte”, e a expressão µεσημβρίνος κύκλος, “círculo meridiano”, que ocorrem aí pela primeira vez.
O trabalho é uma coleção de demonstrações geométricas de proposições estabelecidas pela observação sobre fenômenos celestes – o aparecimento e o pôr-se de estrelas – e baseia-se na obra Περὶ κινουμένης σφαίρας “Sobre esferas em movimento” de Autolycus, referida várias vezes pelo alexandrino, porém sem nomeá-lo. Por exemplo, a proposição I de Autolycus é citada na quinta de Euclides, a segunda, nas quarta e sexta, e a décima, na segunda.
Euclides também aproveita um trabalho sobre geometria esférica (Sphaerica) de autor desconhecido. Assim, no prefácio, faz alusão ao fato de que, se sobre uma esfera dois círculos se bissectem, são ambos grandes círculos, e, na demonstração, supõe frequentemente que o leitor conheça outros teoremas do tipo. Quando o trabalho de Euclides é comparado com a obra posterior, Spherica, de Theodosius, vê-se terem ambos recorrido ao mesmo original ancestral que, conjectura-se, teria sido escrito por Eudoxo.
No estilo de Aristóteles, sobre “os outros trabalhos de Euclides” τοσαῦτα εἰρήσθω “fique dito esse tanto”
[Continua]
Notas:
[14] BORIS, Fausto. Folha de S. Paulo.
[15] [A geometria grega].
[16] NEUGEBAUER, O. The Exact Sciences in Antiquity. Nova York: Dover Publications, Inc.,1969.