Processing math: 100%

Postagem em destaque

COMECE POR AQUI: Conheça o Blog Summa Mathematicae

Primeiramente quero agradecer bastante todo o apoio e todos que acessaram ao Summa Mathematicae . Já são mais de 100 textos divulgados por a...

Mais vistadas

Mostrando postagens com marcador Matemática moderna. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Matemática moderna. Mostrar todas as postagens

A Matemática é para sempre

Captura de tela do filme A Árvore da Vida (2011), dirigido
por Terrence Malick, Diretor de Fotografia: Emmanuel Lubezki.

RECEBA NOSSAS ATUALIZAÇÕES

DIGITE SEU EMAIL:

Verifique sua inscrição no email recebido.


Tempo de leitura: 11 minutos.

Apresentamos a transcrição traduzida do vídeo [LINK]: Las matematicas son para siempre, palestra feita por Eduardo Sáenz de Cabezón. Crédito do texto: Tradutor: Claudia Sander e Revisor: Leonardo Silva.

Esta palestra foi dada em um evento local do TEDx, produzido independentemente pelas Conferências TED. Como usar a matemática para expressar seu amor por alguém? Eduardo Sáenz de Cabezón dá-nos uma resposta muito inesperada.

Eduardo Sáenz de Cabezón combina ciência com humor e histórias. Ele é formado em Teologia e doutor em Matemática e já deu diversas palestras informativas sobre sua área em universidades e escolas de ensino médio. Ele é um contador de histórias para crianças, jovens e adultos. Ele nasceu em Logroño, Espanha, em 1972. Formou-se na Pontifícia Universidade de Comillas em 1996 e também obteve seu bacharelado e doutorado em matemática pela Universidade de La Rioja.

Ele é professor de Ciência da Computação, Sistemas de Informação, Matemática Discreta e Álgebra na Universidade de La Rioja desde 2010. Ele também é tutor de projetos de graduação e mestrado nos programas de Ciência da Computação e Matemática. Ele publicou artigos de pesquisa e é autor do espetáculo matemático "El baúl de Pitágoras", exibido em teatros e bares de diversas cidades espanholas desde 2012. Ele venceu o concurso de monólogos científicos FameLab, na Espanha, em 2013. É um dos fundadores do grupo de monólogos científicos "The Big Van Theory", que se apresentou mais de 200 vezes na Espanha entre 2013 e 2014.

Sobre o TEDx, x = evento organizado de forma independente. No espírito de ideias que valem a pena disseminar, o TEDx é um programa de eventos locais e auto-organizados que reúne pessoas para compartilhar uma experiência semelhante à do TED. Em um evento TEDx, o vídeo das TEDTalks e os palestrantes ao vivo se combinam para estimular discussões profundas e a conexão em um pequeno grupo. Esses eventos locais e auto-organizados são denominados TEDx, onde x = evento TED organizado de forma independente. A Conferência TED fornece orientações gerais para o programa TEDx, mas os eventos TEDx individuais são auto-organizados.* (*Sujeito a certas regras e regulamentos)

***

Eduardo Saenz de Cabezon: Imagine que você está em um bar ou em uma boate. Você começa a conversar com uma garota e logo surge esta pergunta: "Com o que você trabalha?" Como você acha seu trabalho interessante, responde: "Sou matemático". Nessa hora, 33,51% das garotas simulam uma ligação urgente e se vão. Outros 64,69% das garotas tentam, desesperadamente, mudar de assunto e se vão. Há algo como 0,8% que são sua prima, sua namorada e sua mãe, que sabem que você trabalha em algo incomum, mas não se lembram em quê, e há 1% que continua a conversa. Quando a conversa segue, inevitavelmente, aparece uma destas duas frases: A) "Eu era péssima em matemática, mas não era minha culpa. O professor é que era péssimo." B) "Mas pra que serve matemática?" Vou tratar do Caso B.

Quando alguém pergunta para que serve a matemática, ele não quer saber quais são as aplicações das ciências matemáticas. Ele está perguntando: "Por que tive que estudar esta droga que nunca mais usei na vida?" É isso que está perguntando realmente. Por isto, quando os matemáticos são questionados para que serve a matemática, costumamos nos dividir em grupos: cerca de 54,51% dos matemáticos vão tomar uma posição de ataque, e 44,77% deles ficarão na defensiva.

Há uma exceção de 0,8%, na qual eu me incluo. Quem são os que atacam? São aqueles matemáticos que irão te dizer: "Esta pergunta não faz sentido, porque a matemática tem um significado próprio. É um bela estrutura que se constrói com a sua lógica própria, e que não precisa que estejam sempre buscando todas as aplicações possíveis. Para que serve a poesia? Para que serve o amor? Para que serve a própria vida? Que tipo de pergunta é esta?"

[GH] Hardy, por exemplo, era um expoente deste tipo de ataque. E os que ficam na defensiva vão dizer: "Mesmo que você não perceba, amigo, a matemática está por trás de tudo". Estes caras sempre vão citar pontes e computadores. "Se você não sabe matemática, sua ponte vai desabar." Realmente, os computadores são matemática pura. E esses caras também vão dizer que por trás da segurança da informação e dos cartões de créditos estão os números primos.

Estas são as respostas que o seu professor vai lhe dar se você perguntar. Ele é do time dos defensivos. Tudo bem, mas quem está certo então? Os que dizem que a matemática não precisa ter um propósito, ou os que afirmam que a matemática está por trás de tudo? Na verdade, ambos estão certos. Mas lembra que eu disse que pertenço aos 0,8% que alegam outra coisa? Então vá em frente e me pergunte para que serve a matemática.

Plateia: "Pra que serve a matemática?"

Eduardo Saenz de Cabezon: Certo, 76,34% perguntaram para que serve, 23,41% não falaram nada e 0,8% que não sei o que está fazendo. Bem, queridos 76,34%... É verdade que a matemática não precisa servir a um propósito. Realmente ela é uma estrutura bela, lógica, provavelmente um dos maiores esforços coletivos já realizados na história da humanidade.

Mas também é verdade que lá, onde cientistas e técnicos estão à procura de teorias matemáticas e modelos que os permitam avançar, está a estrutura da matemática que permeia tudo. É verdade que devemos nos aprofundar para ver o que está por trás da ciência.

A ciência funciona através da intuição, da criatividade. E a matemática controla a intuição e comanda a criatividade. Quase todo mundo que nunca ouviu isto antes se surpreende ao saber que, se pegar uma folha de papel de 0,1 milímetro de espessura, das que usamos normalmente, e se ela for grande o suficiente para ser dobrada 50 vezes, a espessura final ocuparia a distância da Terra até o Sol. A sua intuição diz que isso é impossível. Faça os cálculos e verá que ela está certa. A matemática serve para isso. É verdade que a ciência, todos os tipos de ciência, só faz sentido porque nos ajuda a entender melhor o belo mundo em que vivemos. E ao fazer isso, ela nos ajuda a escapar das armadilhas deste mundo doloroso em que vivemos.

Há ciências que nos ajudam nessa direção claramente. As ciências oncológicas, por exemplo. E há outras que olhamos de longe, com inveja às vezes, mas sabendo que somos o seu suporte. Todas as ciências básicas são a base daquelas, incluindo a matemática.

Tudo o que faz a ciência ser ciência é o rigor da matemática. E esse rigor existe porque seus resultados são eternos. Você já disse ou ouviu dizer, em algum momento, que um diamante é eterno, não é? Isso depende da sua definição de eterno. Um teorema, isso sim, é eterno. O teorema de Pitágoras continua verdadeiro, eu garanto, apesar de Pitágoras estar morto. Mesmo se o mundo desabasse, o teorema de Pitágoras ainda seria verdadeiro. Onde quer que um par de catetos e uma boa hipotenusa se reúnam, o teorema de Pitágoras estará lá, funcionando como um louco.

Bem, nós, matemáticos, nos dedicamos a fazer teoremas, verdades eternas. Mas nem sempre é fácil saber o que é uma verdade eterna, um teorema, e o que é uma simples hipótese. Você precisa de uma demonstração. Por exemplo: imagine que eu tenho aqui um campo grande, enorme, infinito. Eu quero cobri-lo com peças iguais sem deixar espaços. Eu poderia usar quadrados, não é? Eu poderia usar triângulos; círculos não, eles deixam lacunas. Qual é o melhor formato para usar? Um que cubra a mesma superfície, mas com uma borda menor.

Pappus de Alexandria, no ano 300, disse que o melhor era usar hexágonos, assim como as abelhas. Mas ele não provou. O cara disse: "Hexágonos, ótimo! Vamos com hexágonos!" Ele não provou, permaneceu uma hipótese. Disse: "Hexágonos!" E o mundo, como você sabe, se dividiu entre Pappistas e anti-Pappistas. Até que, 1.700 anos depois, em 1999, Thomas Hales provou que Pappus e as abelhas estavam certos: o melhor é usar hexágonos. E isso se tornou um teorema, o "teorema da colmeia", que será verdadeiro para todo o sempre. Mais que qualquer diamante que você tenha.

Mas o que acontece se formos para a terceira dimensão? Se eu quiser preencher o espaço com peças iguais, sem deixar espaços, eu posso usar cubos, certo? Esferas não, elas deixam lacunas. Qual é o melhor formato para usar? Lord Kelvin, dos famosos "graus Kelvin" e tudo mais, disse que o melhor era usar um octaedro truncado. Que, como todo mundo sabe. É esta coisa aqui.


Qual é? Quem não tem um octaedro truncado em casa? Mesmo de plástico. "Querida, traga o octaedro truncado, temos visitas!" Todo mundo tem. Mas Kelvin não provou. Permaneceu uma hipótese, a "conjectura de Kelvin". E o mundo, como você sabe, se dividiu entre Kelvinistas e anti-Kelvinistas. Até que cento e poucos anos depois. Cento e poucos anos depois, alguém descobriu uma estrutura melhor. Weaire e Phelan. Weaire e Phelan descobriram esta coisinha aqui. Esta estrutura, à qual deram o criativo nome de: "estrutura de Weaire-Phelan".


Parece uma coisa rara, mas não é tão rara. Também está presente na natureza. É bem curioso que esta estrutura, devido a suas propriedades geométricas, foi usada para construir o Centro Aquático para os Jogos Olímpicos de Pequim. Lá, Michael Phelps ganhou oito medalhas de ouro e se tornou o melhor nadador de todos os tempos. Bom, de todos os tempos até que apareça alguém melhor, não é?

Assim como a estrutura de Weaire-Phelan é a melhor até que apareça outra melhor. Mas cuidado! Pois esta tem uma chance real, mesmo que passem cento e poucos anos, ou mesmo 1.700 anos, de alguém provar que ela é o melhor formato possível. Então ela se tornará um teorema, uma verdade para todo o sempre. Mais que qualquer diamante. Então, se você quiser dizer para alguém que o amará por toda a vida, dê-lhe um diamante. Mas se você quiser dizer que o amará para todo o sempre, dê-lhe um teorema! Mas espere um pouco! Você terá que provar que o seu amor não é apenas uma hipótese. Obrigado.

***

Leia mais em A Matemática leva a Deus: Euclides, Hilbert e o futuro da Matemática

Leia mais em Algumas filosofias da Matemática



Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae

Nossa página no Instagram @summamathematicae e YouTube.


 

Os três componentes da Matemática


RECEBA NOSSAS ATUALIZAÇÕES

DIGITE SEU EMAIL:

Verifique sua inscrição no email recebido.

Tempo de leitura: 16 minutos.

Texto retirado da Revista do Professor de Matemática 41, 1999.

CONCEITUAÇÃO, MANIPULAÇÃO E APLICAÇÕES - Os três componentes do ensino da Matemática

Elon Lages Lima, IMPA-RJ

Introdução

Quando se pensa em ensinar Matemática, dois aspectos que se complementam precisam ser considerados separadamente. Poderíamos chamá-los o global e o local, o genérico e o específico, o macro e o micro, a estratégia e a tática, o planejamento e a execução, a estrutura do curso e a didática das aulas.

De didática não trataremos aqui. Em vez disso, diremos como o ensino da Matemática deve ser organizado, levando em conta a natureza peculiar dessa matéria, os alunos aos quais ela se destina e os motivos de sua inclusão no currículo.

A fim de familiarizar gradativamente os alunos com o método matemático, dotá-los de habilidades para lidar desembaraçadamente com os mecanismos do cálculo e dar-lhes condições para mais tarde saberem utilizar seus conhecimentos em situações da vida real, o ensino da Matemática deve abranger três componentes fundamentais, que chamaremos de Conceituação, Manipulação e Aplicações.

Da dosagem adequada de cada um desses três componentes depende o equilíbrio do processo de aprendizagem, o interesse dos alunos e a capacidade que terão para empregar, futuramente, não apenas as técnicas aprendidas nas aulas, mas sobretudo o discernimento, a clareza das idéias, o hábito de pensar e agir ordenadamente, virtudes que são desenvolvidas quando o ensino respeita o balanceamento dos três componentes básicos. Eles devem ser pensados como um tripé de sustentação: os três são suficientes para assegurar a harmonia do curso e cada um deles é necessário para o seu bom êxito.

Conceituação

A conceituação compreende a formulação correta e objetiva das definições matemáticas, o enunciado preciso das proposições, a prática do raciocínio dedutivo, a nítida conscientização de que conclusões sempre são provenientes de hipóteses que se admitem, a distinção entre uma afirmação e sua recíproca, o estabelecimento de conexões entre conceitos diversos, bem como a interpretação e a reformulação de idéias e fatos sob diferentes formas e termos. É importante ter em mente e destacar que a conceituação é indispensável para o bom resultado das aplicações.

Manipulação

A manipulação, de caráter principalmente (mas não exclusivamente) algébrico, está para o ensino e o aprendizado da Matemática, assim como a prática dos exercícios e escalas musicais está para a música (ou mesmo como o repetido treinamento dos chamados “fundamentos” está para certos esportes, como o tênis e o voleibol). A habilidade e a destreza no manuseio de equações, fórmulas e construções geométricas elementares, o desenvolvimento de atitudes mentais automáticas, verdadeiros reflexos condicionados, permitem ao usuário da Matemática concentrar sua atenção consciente nos pontos realmente cruciais, poupando-o da perda de tempo e energia com detalhes secundários.

Aplicações

As aplicações são empregos das noções e teorias da Matemática para obter resultados, conclusões e previsões em situações que vão desde problemas triviais do dia-a-dia a questões mais sutis que surgem noutras áreas, quer científicas, quer tecnológicas, quer mesmo sociais. As aplicações constituem a principal razão pela qual o ensino da Matemática é tão difundido e necessário, desde os primórdios da civilização até os dias de hoje e certamente cada vez mais no futuro. Como as entendemos, as aplicações do conhecimento matemático incluem a resolução de problemas, essa arte intrigante que, por meio de desafios, desenvolve a criatividade, nutre a auto-estima, estimula a imaginação e recompensa o esforço de aprender.

Matemática Moderna (excesso de conceituação)

Durante o período da chamada Matemática Moderna (décadas de 60 e 70), ocorreu no ensino uma forte predominância da conceituação em detrimento dos outros dois componentes. Quase não havia lugar para as manipulações e muito menos para as aplicações. Por um lado, a Matemática que então se estudava nas escolas era pouco mais do que um vago e inútil exercício de generalidades, incapaz de suprir as necessidades das demais disciplinas científicas e mesmo do uso prático no dia-a-dia. Por outro lado, como os professores e autores de livros didáticos não alcançavam a razão de ser e o emprego posterior das noções abstratas que tinham de expor, o ensino perdia muito em objetividade, insistindo em detalhes irrelevantes e deixando de destacar o essencial.

O conceito de função

Um exemplo flagrante da falta de objetividade (que persiste até hoje em quase todos os livros didáticos brasileiros) é a definição de função como um conjunto de pares ordenados. Função é um dos conceitos fundamentais da Matemática (o outro é conjunto). Os usuários da Matemática e os próprios matemáticos costumam pensar numa função de modo dinâmico, em contraste com essa concepção estática. Uma transformação geométrica é uma função. Mas não é provável que exista alguém que imagine uma rotação, por exemplo, como um conjunto de pares ordenados. Os próprios autores e professores que apresentam essa definição não a adotam depois, quando tratam de funções específicas como as logarítmicas, trigonométricas, etc. Quem pensa num polinômio como num subconjunto de \mathbb{R^2} ?

Para um matemático, ou um usuário da Matemática, uma função ƒ: X \rightarrow Y, cujo domínio é o conjunto X e cujo contra-domínio é o conjunto Y, é uma correspondência (isto é, uma regra, um critério, um algoritmo ou uma série de instruções) que estabelece, sem exceções nem ambigüidade, para cada elemento x em X, sua imagem ƒ(x) em Y. Um purista pode objetar que correspondência, regra, etc. são termos sem significado matemático. A mesma objeção, entretanto, cabe na definição de função como conjunto de pares ordenados, pois, para termos um conjunto, necessitamos de uma regra, um critério, uma série de instruções que nos digam se um dado elemento pertence ou não ao conjunto.

Além do mais, a definição de função como uma correspondência é muito mais simples, mais intuitiva e mais acessível ao entendimento do que a outra, que usa uma série de conceitos preliminares, como produtos cartesianos, relação binária, etc. Por isso mesmo ela é utilizada, por todos, exceto os autores de livros didáticos brasileiros.

Manipulação de mais

A manipulação é, dos três, o componente mais difundida nos livros-texto adotados em nossas escolas. Conseqüentemente, abundam nas salas de aula, nas listas de exercícios e nos exames as operações com elaboradas frações numéricas ou algébricas, os cálculos de radicais, as equações com uma ou mais incógnitas, as identidades trigonométricas e vários outros tipos de questões que, embora necessárias para o adestramento dos alunos, não são motivadas, não provêm de problemas reais, não estão relacionadas com a vida atual, nem com as demais ciências e nem mesmo com outras áreas da Matemática.

A presença da manipulação é tão marcante em nosso ensino que, para o público em geral (e até mesmo para muitos professores e alunos), é como se a Matemática se resumisse a ela. Isso tem bastante a ver com o fato de que o manuseio eficiente de expressões numéricas e símbolos algébricos impõe a formação de hábitos mentais de atenção, ordem e exatidão, porém não exige criatividade, imaginação ou capacidade de raciocinar abstratamente.

Deve ficar bem claro que os exercícios de manipulação são imprescindíveis, mas precisam ser comedidos, simples, elegantes e, sempre que possível, úteis para emprego posterior.

O método peremptório

Intimamente ligada ao costume de privilegiar a manipulação formal no ensino da Matemática está a apresentação da Geometria segundo o que chamaremos de método peremptório. Este método consiste em declarar

verdadeiras certas afirmações, sem justificá-las. Um dos maiores méritos educativos da Matemática é o de ensinar aos jovens que toda conclusão se baseia em hipóteses, as quais precisam ser aceitas, admitidas para que a afirmação final seja válida. O processo de passar, mediante argumentos logicamente convincentes, das hipóteses para a conclusão chama-se demonstração e seu uso sistemático na apresentação de uma teoria constitui o método dedutivo. Esse é o método matemático por excelência e a Geometria Elementar tem sido, desde a remota antigüidade, o lugar onde melhor se pode começar a praticá-lo. Lamentavelmente a grande maioria dos estudantes brasileiros sai da escola, depois de onze anos de estudo, sem jamais ter visto uma demonstração. O método peremptório de ensinar Geometria enfatiza as relações métricas, ignora as construções com régua e compasso e reduz todos os problemas a manipulações numéricas.

O que se deve demonstrar

Evidentemente, as demonstrações pertencem ao componente Conceituação. Elas devem ser apresentadas por serem parte essencial da natureza da Matemática e por seu valor educativo. No nível escolar, demonstrar é uma forma de convencer com base na razão, em vez da autoridade. Por esse motivo, não se deve demonstrar o que é intuitivamente evidente, o que todos aceitam sem hesitação. (Exemplo: que uma reta tem no máximo dois pontos em comum com uma circunferência dada.) Se demonstrar é uma forma de convencer por meio da razão, para que perder tempo provando algo de que todos já estão convencidos? Também não se devem provar resultados que, embora não sejam de forma alguma óbvios, necessitam, para serem demonstrados, de argumentos e técnicas difíceis, fora do alcance dos alunos, como o Teorema Fundamental da Álgebra, segundo o qual todo polinômio de grau n possui n raízes complexas. Por outro lado, determinados fatos matemáticos importantes não são intuitivamente evidentes mas possuem demonstrações fáceis e elegantes. Sem dúvida, o exemplo mais conhecido é o Teorema de Pitágoras, do qual devem ser dadas pelo menos duas das inúmeras demonstrações conhecidas.

Aplicações adequadas

As aplicações constituem, para muitos alunos de nossas escolas, a parte mais atraente (ou menos cansativa) da Matemática que estudam. Se forem formuladas adequadamente, em termos realísticos, ligados a questões e fatos da vida atual, elas podem justificar o estudo, por vezes árido, de conceitos e manipulações, despertando o interesse da classe. Encontrar aplicações significativas para a matéria que está expondo é um desafio e deveria ser uma preocupação constante do professor. Elas devem fazer parte das aulas, ocorrer em muitos exercícios e ser objeto de trabalhos em grupo.

Cada novo capítulo do curso deveria começar com um problema cuja solução requeresse o uso da matéria que vai começar a ser ensinada. É muito importante que o enunciado do problema não contenha palavras que digam respeito ao assunto que vai ser estudado naquele capítulo. De resto, as aplicações mais interessantes, durante todo o curso, são os exemplos e exercícios cujo objeto principal não é o assunto que está sendo tratado. Por exemplo: problemas sobre logaritmos em que a palavra logaritmo não apareça no enunciado ou exercícios que se resolvam com trigonometria mas que não falem em seno, cosseno, etc. Para resolver problemas dessa natureza é preciso estar bem familiarizado com a conceituação dos objetos matemáticos (além, naturalmente, de saber fazer as contas pertinentes). Por isso é que dissemos no início que a conceituação é fundamental nas aplicações.

A falta de aplicações para os temas estudados em classe é o defeito mais gritante do ensino da Matemática em todas as séries escolares. Ele não poderá ser sanado sem que a conceituação seja bem reforçada. Para resolver um simples probleminha, o aluno da escola primária hesita se deve multiplicar, somar ou dividir os dois números que são dados. Para decidir, ele precisa saber conceituar adequadamente essas operações. Analogamente, o aluno do ensino médio, diante de um certo problema proposto, não sabe se deverá modelar a situação com uma função afim, quadrática ou exponencial. (Problemas da vida não aparecem acompanhados de fórmulas!) É preciso que ele conheça as propriedades dessas funções a fim de tomar sua decisão. E assim por diante.

O professor dedicado deve procurar organizar seu curso de modo a obter o equilíbrio entre os três componentes fundamentais. Assim procedendo, terá dado um largo passo na direção do êxito na sua missão de educar.

***


Leia mais em O ensino de Cálculo no Ensino Médio

Leia mais em Como estudar Matemática de Nível Superior



Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae

Nossa página no Instagram @summamathematicae e YouTube.




A Matemática leva a Deus: Euclides, Hilbert e o futuro da Matemática

Criação do Cosmos - Cristo criando
o cosmos Gênesis 1 No princípio


RECEBA NOSSAS ATUALIZAÇÕES

DIGITE SEU EMAIL:

Verifique sua inscrição no email recebido.


Tempo de leitura: 10 minutos. 

Texto original retirado da Nueva Revista nº 72, 2000, págs. 106-111 e disponível no LINK e publicado originalmente AQUI.

Título original: Las matemáticas llevan a Dios - Euclides, Hilbert... y el futuro de las Matemáticas, por Isidoro Rasines [*]

Tradução e grifos nossos.

Resumo

A experiência milenar dos matemáticos ensina que as relações abstratas que podemos descobrir não são criação da mente humana; e que a informação de que dispõe a Matemática em um momento determinado existiu antes e seguirá existindo sempre. Isidoro Rasines, com uma longa e fecunda tarefa como investigador da CSIC, sugere, entre outras coisas, que a Matemática atual remete à Mente divina. Este artigo foi publicado por NUEVA REVISTA.

*

A União Matemática Internacional (UMI) concordava, há uns dez anos, celebrar a chegada do século XXI ao estilo de David Hilbert no Congresso Internacional de Paris, em 1900, quando propôs una coleção de 23 problemas para resolver ao longo do século XX. Em 6 de maio de 1992, em sua declaração de Rio de Janeiro, a UMI proclamava no ano 2000 como Ano Matemático Mundial, e se propunha: 

1) determinar os grandes problemas que tem surgido na Matemática ao começar o século XXI; 

2) conseguir para a maioria dos países membros da UNESCO um nível nesta ciência que lhes permita ingressar na UMI;

3) melhorar mais ainda a imagem da Matemática. 

Comentarei as conquistas da comunidade científica em cada um destes isolados.

Apontando o primeiro destes objetivos, a UMI nomeou um comité com a função de definir os desafios do próximo século; e desde que começou o ano 2000, foi se sucedendo as reuniões científicas relacionadas com a questão, especialmente a celebrada durante o mês de agosto nos EUA sobre desafios matemáticos do século XXI. O segundo dos objetivos, que tem ajudado muitas sociedades matemáticas nacionais com atividades e projetos diversos, responde à convicção de que na Matemática reside uma das chaves principais do desenvolvimento.

Em vez de abordar temas próprios de especialistas como o balanço das conquistas do século XX ou um esboço dos desafios do futuro, importa focar aqui uma das questões de interesse mais geral que os matemáticos resolveram ao longo do século XX: quais são os limites próprios da ciência que cultivam, que questões fundamentais mostram estes limites, e como afetam os mesmos limites às expectativas de futuro.

Em 1900, pensava-se que qualquer problema matemático tinha solução, e que esta sempre poderia ser encontrada; que os sistemas formais como a Geometria ou a Teoria de Números se apoiam solidamente em um base firme de axiomas inabaláveis e de definições precisas, que conectam por sua vez com os teoremas, mediante uma corrente muito sólida de argumentos lógicos. E se concluía que, em Matemática, toda verdade poderia ser provada, que seria possível demonstrar a verdade ou a falsidade de qualquer enunciado matemático.

Um pouco depois, em 1928, Hilbert e Ackerman mostravam o Entscheidungsproblem, o problema da decisão, ao se perguntar se encontraremos no futuro um método que permita decidir sobre qualquer problema matemático, quer dizer, resolvê-lo combinando axiomas e teoremas. Inicialmente, Hilbert compartilhava o otimismo habitual e respondia de modo positivo à questão, mas em 1931, Gödel provava que nunca teremos um programa capaz de resolver qualquer problema; que em um sistema formal como a Aritmética ou a Geometria, uma declaração pode ser formulada que não se pode provar, nem não provar, demonstrar ou nem recusar, sobre os quais, portanto, não cabe decidir; e que isto é algo inerente ao próprio sistema. Além disso, entre as questões sobre as quais não é possível decidir, está a consistência mesma dos axiomas, porque não é possível demostrar que os próprios axiomas não levam a uma catástrofe lógica... e até poderia acontecer que impliquem tanto a verdade como a falsidade do mesmo enunciado. O castelo de pedras de 1900 se converte, da noite para a manhã, em castelo de cartas.

Ao ler o trabalho de Godel, Hilbert ficou em grande desgosto. Como era excelente matemático, reconheceu prontamente que não havia nada que objetar à demostração do teorema da indecisibilidade, e acabou criticando vivamente a ideia de Kant sobre a Matemática como um conhecimento a priori. Na verdade, de acordo os pressupostos epistemológicos kantianos, o mundo que conheço resulta de meus modos de pensar; meu conhecimento não provem a partir da realidade, senão que é precisamente a realidade a que provem de meu conhecimento; e só posso conhecer, portanto, o que minha mente concebe a priori

Os pressupostos kantianos prevaleceriam se existisse um método universal de decisão. Com efeito, como as questões aritméticas devem estar contidas ou fundamentadas em alguma inteligência, no caso de que o homem fosse capaz de decidir, apenas calculando, se as séries de números naturais, antes mencionadas, são ou não são infinitas, se poderia dizer que toda a verdade aritmética está contida na mente humana. Mas a demostração do teorema de Gödel implica que o saber matemático é e sempre será intrinsecamente incompleto. Isto afeta a origem mesmo das verdades matemáticas: o acesso do homem a essas verdades é fundamentalmente incompleta; ou, dito de outro modo, as verdades matemáticas não tem sua origem na mente humana, não podem se considerar nem ainda, em princípio, contidas em nossas formas de pensar.

A Matemática chegou a demonstrar no século XX que, da mesma forma que o sistema solar não é obra do homem, a sabedoria matemática deve estar contida em um princípio inteligente diferente do homem. O conjunto dos números naturais e suas propriedades são parte de um universo real que tem existência própria. A experiência milenar dos matemáticos ensina que as relações abstratas que podemos descobrir não são criação da mente humana; e que a informação de que dispõe a Matemática em um momento determinado existiu antes e seguirá existindo sempre.

Surgem então questões como quem ou que princípio ativo apoia em último termo essa informação; em que mente está fundamentada toda a Matemática; senão, será que esta ciência resida na mente do que as pessoas entendem por Deus. Porque as pessoas, na verdade, chegam à ideia de Deus diante de um fenômeno, algo que acontece, mas que não conseguem entender nem explicar bem nem controlar. Como disse Feynman, Deus está sempre associado às coisas que não se entende. Agora sabemos, graças ao conhecimento científico, que sempre haverá algo — toda a Matemática — que não conheceremos nunca. Em outras palavras, concluímos cientificamente que sempre haverá coisas que não compreenderemos. É, portanto, razoável contar com Deus.

O Deus ao que chegamos assim é a inteligência onisciente, que possui imediatamente todo o conhecimento matemático possível; o ser que não necessita investigar para encontrar a relação entre um problema e sua solução; o ser infinitamente criativo cuja mente não há diferença entre pergunta e resposta. Dado o caráter incompleto de nosso saber, ou a verdade matemática é possuída totalmente de forma imediata, ou não se possuirá jamais. E se nunca a possuirmos completamente, sempre necessitaremos da mente de Deus.

A indecisibilidade sugere que o processo de pensar e o dialogo interno próprio da tentativa de resolver um problema matemático, é uma espécie de diálogo com a inteligência onisciente, uma tentativa de acessar o conhecimento que já existe nessa mente. Perguntar, por exemplo, se a série dos números perfeitos é infinita, equivale a tentar conectar-se com essa mente superior. E encontrar a resposta equivale a ter apreendido uma parte da verdade infinita contida na mente divina.

A limitação da Matemática descoberta no século que acaba é, ao mesmo tempo, promessa firme de fecundidade futura. Ainda que o avanço desta ciência ao longo do século XX tenha sido — também no âmbito aplicado — impressionante, ainda há muitas verdades matemáticas por conhecer. Para alcançá-las são necessários matemáticos com o talento, a diligência e o entusiasmo de Hilbert, as mesmas qualidades que refletem suas últimas palavras, quando agradecia em 1930 a nomeação como filho ilustre de sua cidade natal, Königsberg: Wir mussen wissen, wir werden wissen: devemos conhecer, conheceremos.

Nota:

[*] Isidoro Rasines é Investigador do Centro Superior de Investigações Científicas (CSIC).

***

N.d.T: A posição do autor do texto é uma corrente em Filosofia da Matemática chamada Conceptualismo Divino. Mais informações no LINK.


Leia mais em Matemática: Ciência da Quantidade

Leia mais em Matemática segundo a Filosofia Perene



Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae

Nossa página no Instagram @summamathematicae e YouTube.


Matemática e Cristianismo


RECEBA NOSSAS ATUALIZAÇÕES

DIGITE SEU EMAIL:

Verifique sua inscrição no email recebido.


Tempo de leitura: 7 minutos. 

Texto disponível no LINK.

Matemática, um exercício de fé? Texto de Ricardo Perna

Com mais de quatro mil anos de existência, a Matemática assume-se como uma das mais antigas ciências conhecidas da Humanidade. Afinal de contas, até os caçadores-recoletores dos primórdios da nossa História precisavam de contar quantas peças caçavam, para saberem o que traziam para casa e o que pretendiam depois trocar. Desde aí, o pensamento tem-se desenvolvido no sentido de compreender que grande parte do mundo se entende numa universalidade matemática. Esta ciência tão exata e entendível por todos, na sua formulação mais básica, atingiu, no entanto, nos últimos séculos, um desenvolvimento tal que a concepção de teorias matemáticas adquiriu contornos abstratos, impossíveis de provar em termos físicos. «Apesar de ser uma ciência muito objetiva, [a Matemática] chega a níveis de abstração muito elevados, onde não se consegue visualizar aquilo em que se está a trabalhar. Acreditamos que determinado tipo de aspetos são verdades indesmentíveis, os axiomas, e a partir daí construímos teorias que não são contraditórias», explica-nos Luís Ramos, matemático e professor de Probabilidade e Estatística na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa.

A razão para esta pequena conversa foi a edição, por parte da Paulus Editora, do livro Deus e o hipercubo, da autoria de Francesco Malaspina, um matemático que procura fazer «um exercício de analogias entre marcos importantes do Cristianismo e objetos matemáticos». «O que ele tenta demonstrar é que, tal como na Matemática há aspetos muito abstratos, que não se conseguem visualizar, ele faz o mesmo a aspectos do Cristianismo, que aceitamos sem os conseguirmos visualizar», explica-nos Luís Ramos.

O exercício feito para a Matemática pode ser extensível a outras áreas da ciência, para explicar que, tal como no Cristianismo, aquilo que não se vê não é necessariamente dispensável. Também nestas áreas do saber, até mais objetivas do que a Religião, as bases que sustentam a maioria das teorias mais avançadas são construídas com teorias que nunca poderão ser provadas. «Quando falamos de aspectos tão complexos como as variações topológicas, em que se trabalha em espaços abstratos, que não correspondem a coisas que a gente conheça em termos reais, e o autor faz essa comparação com a Santíssima Trindade, com a relação de Deus conosco, que nos ensina o Amor, a forma de chegar a Ele é através dos outros, e faz essa analogia com as funções de transição, que são funções que aparecem nas variações topológicas, o que ele nos mostra é que existe toda uma complexidade tanto na Matemática como nos mistérios de Deus. Nós acreditamos que as coisas são assim, mesmo sem as visualizarmos num contexto real», sustenta este matemático, que é também um crente.

O paralelismo da religião com uma ciência exata não significa que se procure uma explicação de uma pela outra, ao contrário do que sucede com outras áreas do conhecimento, que são explicáveis pela Matemática. «A Matemática e a Religião traçam caminhos idênticos, por trilhos muito complexos, mas paralelos, que não se contam. Ao contrário de outras matérias, onde tudo o que se faz tem tradução matemática, como a música ou a natureza, e há expressões matemáticas que modelam essas coisas, aqui não existem modelos para definir o que é indescritível, aqui apenas se procuram analogias interessantes, até porque, se Deus criou tudo, também criou a Matemática», refere Luís Ramos, com um sorriso.

Esta é uma lição válida principalmente para quem procura criar uma clivagem entre ciência e religião, uma clivagem que, aliás, nunca sucedeu ao longo da nossa história da parte de religião, já que foram homens de Deus alguns dos responsáveis pelas mais importantes descobertas científicas na História da Humanidade.

A dificuldade em conhecer tudo é outra das coisas que aproximam Religião e Matemática. «O conhecimento que temos das coisas é limitado. Na Matemática, apesar da evolução dos últimos séculos, é extremamente limitado. E na religião também, porque o conhecimento que temos de Deus é extremamente limitado. Nós acabamos por aderir, e acreditamos nisto como os matemáticos acreditam nos axiomas que estão na base de tudo», defende Luís Ramos. A própria existência de dogmas na Matemática, ali chamados de axiomas, mostra o quão paralelo tem sido o percurso das duas matérias, e o porquê deste matemático italiano, também ele crente, após a sua tese de doutoramento nas áreas matemáticas, resolve «falar do amor de Cristo através da Matemática e vice-versa», como o próprio diz na publicação agora editada pela Paulus Editora.

*

Sinopse do livro: Neste livro, o autor confronta de modo sério e competente dois temas complexos e aparentemente sem relação: matemática e Deus. Neste esforço consegue-se traçar um fascinante paralelismo entre matemática e fé. A matemática fala de entes abstratos, mas fortemente ligados à realidade. Ainda que Deus possa parecer abstrato, longe do mundo, está, pelo contrário, profundamente inserido no Homem através da Encarnação de Jesus Cristo. Como duas linhas paralelas não se encontram nunca senão no infinito, assim é belo pensar que a matemática e Deus terão um ponto comum na eternidade.

***

Leia mais em Matemática e Teologia



Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae

Nossa página no Instagram @summamathematicae e YouTube.




Apologia da Matemática, de GH Hardy


RECEBA NOSSAS ATUALIZAÇÕES

DIGITE SEU EMAIL:

Verifique sua inscrição no email recebido.

Tempo de leitura: 6 minutos. 

Texto retirado do livro Apologia da Matemática, de GH Hardy, publicado pela Editora Elementos, 2023.

PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA, por Sérgio Morselli

Se eu começasse esse prefácio lhe perguntando o que é a matemática, o que faz um matemático e o que caracteriza uma matemática bela, como você responderia a essas questões?

Talvez a inclinação geral seja afirmar que a matemática é uma ciência prática; que um matemático é um cientista frio e que a matemática bela é algo muito platônico. Godfrey Harold Hardy, um matemático que viveu entre 1887-1947, teria respostas muito distintas para oferecer.

Em Apologia da Matemática, tradução do original "A mathematician's apology", Hardy faz uma defesa da matemática de seu ponto de vista pessoal assim como Sócrates fez sua defesa em Apologia de Sócrates, livro de Platão.

Segundo Hardy, um matemático seria mais semelhante a um poeta ou a um pintor, sendo a criatividade uma de suas principais características e exigência para sua profissão. Os critérios para a beleza matemática são claros e óbvios - e não há permanência no mundo para uma matemática feia.

Para entender esse livro escrito há mais de 80 anos, contudo, é preciso antes entender um pouco de filosofia da matemática.

Podemos afirmar, de forma simplificada, que existem duas filosofias da matemática: a realista, que defende a existência de universais independentes de nós, quer sejam números, propriedades ou relações; e a nominalista, que defende que os universais são apenas nomes ou etiquetas para projeções da mente, e jamais são instanciadas ou exemplificados por coisas particulares. Ressalva apenas ao conceptualismo, posição filosófica que defende que os universais são somente entes da razão, isto é, existem apenas na mente.

A matemática clássica está relacionada à filosofia realista; a matemática progressista está relacionada à filosofia nominalista.

Hardy era um matemático platônico por excelência. Seus posicionamentos justificam-se por seu entendimento filosófico da matemática. Estando a filosofia realista em desuso nos tempos recentes, Hardy tem muito que nos ensinar.

Além de falar sobre o que faz um matemático e sobre beleza na matemática, Hardy nos dará um vislumbre dessa beleza conforme comenta alguns dos mais belos teoremas já descobertos: o Teorema da Irracionalidade da Raiz de Dois; o Teorema Fundamental da Aritmética; o Teorema de Euclides, entre outros.

Também Hardy justifica o porquê a matemática permanecerá para sempre, dizendo: "A matemática permanecerá para sempre, assim como os grandes clássicos da literatura, porque ela continua a causar emoção intensa e satisfação para geração após geração mesmo depois de milhares de anos".

Quer dizer que demonstrar um Teorema é uma experiência tão satisfatória quanto ler um clássico. Ler os Elementos de Euclides hoje e demonstrar os teoremas é tão prazeroso quanto era aos gregos há mais de dois mil anos atrás. Isso justifica, inclusive, o porquê a matemática grega permaneceu mais do que a literatura grega.

Há apenas mais alguns comentários a serem feitos an- tes de liberá-lo para sua leitura. São observações:

1) Hardy defende que a matemática aplicável é apenas a mais trivial, e que a matemática superior inclusive a sua especialidade, teoria dos números não possui aplicações práticas. "A julgar a vida dos matemáticos pela aplicabilidade de seu trabalho, todos desperdiçaram suas vidas", escreveu. Tendo falecido em 1947, Hardy não viveu para observar a grande utilidade prática de sua própria área de estudo. Hoje, se você compra pela internet com segurança, é porque seus dados bancários são criptografados - e isso devemos aos matemáticos puros.

2) Hardy defende que comentar matemática é um trabalho de segunda ordem, e que os matemáticos devem fazer matemática, e não comentar o que outros matemáticos fazem. Hoje, contudo, com as modificações do ensino de matemática no sistema educacional, estudar a história da matemática recente tornou-se um trabalho de primeira importância, a fim de compreendermos o rumo do ensino dessa disciplina, e garantirmos que os novos estudantes aprendam a matemática de forma correta.

3) C. P. Snow, o prefaciador original da obra, conviveu com Hardy e justificou as afirmações de Hardy sobre a matemática ser uma disciplina de jovens como sendo essa obra "um lamento apaixonado pelos poderes criativos que se foram [do próprio Hardy] e não mais voltarão", dada sua condição de saúde prejudicada quando da escrita do livro (o livro foi escrito em 1940, e em 1939 Hardy teve um ataque cardíaco).

Esse é um livro de leitura leve e descontraída; acessível a leigos, interessante para matemáticos, e ideal para todos aqueles que buscam cultura e desejam educar-se.

SERGIO MORSELLI

***


Leia mais em Aristotelismo e Filosofia da Matemática



Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae

Nossa página no Instagram @summamathematicae e YouTube.



O Xadrez e a Matemática

Templários disputando uma partida de Xadrez
— Iluminura do “Libro de los Juegos

Tempo de Leitura: 24 minutos

Texto retirado do livro O homem que calculava de Malba Tahan, Editora Record.

Contextualizando, no capítulo XV, Beremir, o homem que calculava, estava falando sobre quadrados mágicos e agora contará ao rei sobre a origem do jogo de xadrez.

***

A seguir, o brilhante calculista tomou do tabuleiro de xadrez e disse, voltando-se para o rei:

— Este velho tabuleiro, dividido em 64 casas pretas e brancas, é empregado, como sabeis, no interessante jogo que um hindu chamado Lahur Sessa, inventou, há muitos séculos, para recrear um rei da Índia. A descoberta do jogo de xadrez acha-se ligada a uma lenda que envolve cálculos, números, e notáveis ensinamentos.

— Deve ser interessante ouvi-la! — atalhou o califa. — Quero conhecê-la!

— Escuto e obedeço — respondeu Beremiz.

E narrou a seguinte história:

Capítulo XVI 

Onde se conta a famosa lenda sobre a origem do jogo de xadrez. A lenda é narrada ao califa de Bagdá, Al-Motacém Bilah, Emir dos Crentes, por Beremiz Samir, o Homem que Calculava.

Difícil será descobrir, dada a incerteza dos documentos antigos, a época precisa em que viveu e reinou na Índia um príncipe chamado Iadava, senhor da província da Taligana. Seria, porém, injusto ocultar que o nome desse monarca vem sendo apontado por vários historiadores hindus como dos soberanos mais ricos e generosos de seu tempo.

A guerra, com o cortejo fatal de suas calamidades, muito amargou a existência do rei Iadava, transmutando-lhe o ócio e gozo da realeza nas mais inquietantes atribulações. Adstrito ao dever, que lhe impunha a coroa, de zelar pela tranquilidade de seus súditos, viu-se o nosso bom e generoso monarca forçado a empunhar a espada para repelir, à frente de pequeno exército, um ataque insólito e brutal do aventureiro Varangul, que se dizia príncipe de Caliã.

O choque violento das forças rivais juncou de mortos os campos de Dacsina e tingiu de sangue as águas sagradas do Rio Sandhu. O rei Iadava possuía — pelo que nos revela a crítica dos historiadores — invulgar talento para a arte militar; sereno em face da invasão iminente, elaborou um plano de batalha, e tão hábil e feliz foi em executá-lo, que logrou vencer e aniquilar por completo os pérfidos perturbadores da paz do seu reino.

O triunfo sobre os fanáticos de Varangul custou-lhe, infelizmente, pesados sacrifícios; muitos jovens quichatrias [1] pagaram com a vida a segurança de um trono para prestígio de uma dinastia; e entre os mortos, com o peito varado por uma flecha, lá ficou no campo de combate o príncipe Adjamir, filho do rei Iadava, que patrioticamente se sacrificou no mais aceso da refrega, para salvar a posição que deu aos seus a vitória final.

Terminada a cruenta campanha e assegurada a nova linha de suas fronteiras, regressou o rei ao suntuoso palácio de Andra, baixando, porém, formal proibição de que se realizassem as ruidosas manifestações com que os hindus soíam festejar os grandes feitos guerreiros. Encerrado em seus aposentos, só aparecia para atender aos ministros e sábios brâmanes quando algum grave problema nacional o chamava a decidir, como chefe de Estado, no interesse e para felicidade de seus súditos.

Com o andar dos dias, longe de se apagarem as lembranças da penosa campanha, mais se agravaram a angústia e a tristeza que, desde então, oprimiam o coração do rei. De que lhe poderiam servir, na verdade, os ricos palácios, os elefantes de guerra, os tesouros imensos, se já não mais vivia a seu lado aquele que fora sempre a razão de ser de sua existência? Que valor poderiam ter, aos olhos de um pai inconsolável, as riquezas materiais que não apagam nunca a saudade do filho estremecido?

As peripécias da batalha em que pereceu o príncipe Adjamir não lhe saíam do pensamento. O infeliz monarca passava longas horas traçando, sobre uma grande caixa de areia, as diversas manobras executadas pelas tropas durante o assalto. Com um sulco indicava a marcha da infantaria; ao lado, paralelo ao primeiro, outro traço mostrava o avanço dos elefantes de guerra; um pouco mais abaixo, representada por pequenos círculos dispostos em simetria, perfilava a destemida cavalaria chefiada por um velho radj [2] que se dizia sob a proteção de Techandra, a deusa da Lua. Ainda por meio de gráficos esboçava o rei a posição das colunas inimigas desvantajosamente colocadas, graças à sua estratégia, no campo em que se feriu a batalha decisiva.

Uma vez completado o quadro dos combatentes, com as minudências que pudera evocar, o rei tudo apagava, para recomeçar novamente, como se sentisse íntimo gozo em reviver os momentos passados na angústia e na ansiedade.

À hora matinal em que chegavam ao palácio os velhos brâmanes para a leitura dos Vedas [3], já o rei era visto a riscar na areia os planos de uma batalha que se reproduzia interminavelmente.

— Infeliz monarca! — murmuravam os sacerdotes penalizados. — Procede como um sudra [4] a quem Deus privou da luz da razão. Só Dhanoutara [5], poderosa e clemente, poderá salvá-lo!

E os brâmanes erguiam preces, queimavam raízes aromáticas, implorando à eterna zeladora dos enfermos que amparasse o soberano de Taligana.

Um dia, afinal, foi o rei informado de que um moço brâmane — pobre e modesto — solicitava uma audiência que vinha pleiteando havia já algum tempo. Como estivesse, no momento, com boa disposição de ânimo, mandou o rei que trouxessem o desconhecido à sua presença.

Conduzido à grande sala do trono, foi o brâmane interpelado, conforme as exigências da praxe, por um dos vizires do rei.

— Quem és, de onde vens e que desejas daquele que, pela vontade de Vichnu [6], é rei e senhor de Taligana?

— Meu nome — respondeu o jovem brâmane — é Lahur Sessa [7] e venho da aldeia de Namir, que trinta dias de marcha separam desta bela cidade. Ao recanto em que eu vivia chegou a notícia de que o nosso bondoso rei arrastava os dias em meio de profunda tristeza, amargurado pela ausência de um filho que a guerra viera roubar-lhe. Grande mal será para o país, pensei, se o nosso dedicado soberano se enclausurar, como um brâmane cego, dentro de sua própria dor. Deliberei, pois, inventar um jogo que pudesse distraí-lo e abrir em seu coração as portas de novas alegrias. É esse o desvalioso presente que desejo neste momento oferecer ao nosso rei Iadava.

Como todos os grandes príncipes citados nesta ou naquela página da História, tinha o soberano hindu o grave defeito de ser excessivamente curioso. Quando o informaram da prenda de que o moço brâmane era portador, não pôde conter o desejo de vê-la e apreciá-la sem mais demora.

O que Sessa trazia ao rei Iadava consistia num grande tabuleiro quadrado, dividido em sessenta e quatro quadradinhos, ou casas, iguais; sobre esse tabuleiro colocavam-se, não arbitrariamente, duas coleções de peças que se distinguiam, uma da outra, pelas cores branca e preta, repetindo, porém, simetricamente, os engenhosos formatos e subordinados a curiosas regras que lhes permitiam movimentar-se por vários modos.

Sessa explicou pacientemente ao rei, aos vizires e cortesãos que rodeavam o monarca em que consistia o jogo, ensinando-lhes as regras essenciais:

— Cada um dos partidos dispõe de oito peças pequeninas — os peões. Representam a infantaria, que ameaça avançar sobre o inimigo para desbaratá-lo. Secundando a ação dos peões vêm os elefantes de guerra [8], representados por peças maiores e mais poderosas; a cavalaria, indispensável no combate, aparece, igualmente, no jogo, simbolizada por duas peças que podem saltar, como dois corcéis, sobre as outras; e, para intensificar o ataque, incluem-se — para representar os guerreiros cheios de nobreza e prestígio — os dois vizires [9] do rei. Outra peça, dotada de amplos movimentos, mais eficiente e poderosa do que as demais, representará o espírito de nacionalidade do povo e será chamada a rainha. Completa a coleção uma peça que isolada pouco vale, mas se torna muito forte quando amparada pelas outras. É o rei.

O rei Iadava, interessado pelas regras do jogo, não se cansava de interrogar o inventor:

— E por que é a rainha mais forte e mais poderosa que o próprio rei?

— É mais poderosa — argumentou Sessa — porque a rainha representa, nesse jogo, o patriotismo do povo. A maior força do trono reside, principalmente, na exaltação de seus súditos. Como poderia o rei resistir ao ataque dos adversários, se não contasse com o espírito de abnegação e sacrifício daqueles que o cercam e zelam pela integridade da pátria?

Dentro de poucas horas o monarca, que aprendera com rapidez todas as regras do jogo, já conseguia derrotar os seus dignos vizires em partidas que se desenrolavam impecáveis sobre o tabuleiro.

Sessa, de quando em quando, intervinha respeitoso, para esclarecer uma dúvida ou sugerir novo plano de ataque ou de defesa.

Em dado momento, o rei fez notar, com grande surpresa, que a posição das peças, pelas combinações resultantes dos diversos lances, parecia reproduzir exatamente a batalha de Dacsina.

— Reparai — ponderou o inteligente brâmane — que para conseguirdes a vitória, indispensável se torna, de vossa parte, o sacrifício deste vizir!

E indicou precisamente a peça que o rei Iadava, no desenrolar da partida — por vários motivos —, grande empenho pusera em defender e conservar.

O judicioso Sessa demonstrava, desse modo, que o sacrifício de um príncipe é, por vezes, imposto como uma fatalidade, para que dele resultem a paz e a liberdade de um povo.

Ao ouvir tais palavras, o rei Iadava, sem ocultar o entusiasmo que lhe dominava o espírito, assim falou:

— Não creio que o engenho humano possa produzir maravilha comparável a este jogo interessante e instrutivo! Movendo essas tão simples peças, aprendi que um rei nada vale sem o auxílio e a dedicação constante de seus súditos. E que, às vezes, o sacrifício de um simples peão vale mais, para a vitória, do que a perda de uma poderosa peça.

E, dirigindo-se ao jovem brâmane, disse-lhe:

— Quero recompensar-te, meu amigo, por este maravilhoso presente, que de tanto me serviu para alívio de velhas angústias. Dize-me, pois, o que desejas, para que eu possa, mais uma vez, demonstrar o quanto sou grato àqueles que se mostram dignos de recompensa.

As palavras com que o rei traduziu o generoso oferecimento deixaram Sessa imperturbável. Sua fisionomia serena não traía a menor agitação, a mais insignificante mostra de alegria ou surpresa. Os vizires olhavam-no atônitos e entreolhavam-se pasmados diante da apatia de uma cobiça a que se dava o direito da mais livre expansão.

— Rei poderoso! — redargüiu o jovem com doçura e altivez. — Não desejo, pelo presente que hoje vos trouxe, outra recompensa além da satisfação de ter proporcionado ao senhor de Taligana um passatempo agradável que lhe vem aligeirar as horas dantes alongadas por acabrunhante melancolia. Já estou, portanto, sobejamente aquinhoado e outra qualquer paga seria excessiva.

Sorriu, desdenhosamente, o bom soberano ao ouvir aquela resposta que refletia um desinteresse tão raro entre os ambiciosos hindus. E, não crendo na sinceridade das palavras de Sessa, insistiu:

— Causa-me assombro tanto desdém e desamor aos bens materiais, ó jovem! A modéstia, quando excessiva, é como o vento que apaga o archote cegando o viandante nas trevas de uma noite interminável. Para que possa o homem vencer os múltiplos obstáculos que se lhe deparam na vida, precisa ter o espírito preso às raízes de uma ambição que o impulsione a um ideal qualquer. Exijo, portanto, que escolhas, sem mais demora, uma recompensa digna de tua valiosa oferta. Queres uma bolsa cheia de ouro? Desejas uma arca repleta de joias? Já pensaste em possuir um palácio? Almejas a administração de uma província? Aguardo a tua resposta, por isso que à minha promessa está ligada a minha palavra!

— Recusar o vosso oferecimento depois de vossas últimas palavras — acudiu Sessa — seria menos descortesia do que desobediência ao rei. Vou, pois, aceitar, pelo jogo que inventei, uma recompensa que corresponde à vossa generosidade; não desejo, contudo, nem ouro, nem terras ou palácios. Peço o meu pagamento em grãos de trigo.

— Grãos de trigo? — estranhou o rei, sem ocultar o espanto que lhe causava semelhante proposta. — Como poderei pagar-te com tão insignificante moeda?

— Nada mais simples — elucidou Sessa. — Dar-me-eis um grão de trigo pela primeira casa do tabuleiro; dois pela segunda, quatro pela terceira, oito pela quarta, e assim dobrando sucessivamente, até a sexagésima quarta e última casa do tabuleiro. Peço-vos, ó Rei, de acordo com a vossa magnânima oferta, que autorizeis o pagamento em grãos de trigo, e assim como indiquei!

Não só o rei como os vizires e venerandos brâmanes presentes riram-se, estrepitosamente, ao ouvir a estranha solicitação do jovem. A desambição que ditara aquele pedido era, na verdade, de causar assombro a quem menos apego tivesse aos lucros materiais da vida. O moço brâmane, que bem poderia obter do rei um palácio em uma província, contentava-se com grãos de trigo!

— Insensato! — clamou o rei. — Onde foste aprender tão grande desamor à fortuna? A recompensa que me pedes é ridícula. Bem sabes que há, num punhado de trigo, número incontável de grãos. Devemos compreender, portanto, que com duas ou três medidas de trigo eu te pagarei folgadamente, consoante o teu pedido, pelas sessenta e quatro casas do tabuleiro. É certo, pois, que pretendes uma recompensa que mal chegará para distrair, durante alguns dias, a fome do último pária [10] do meu reino. Enfim, visto que minha palavra foi dada, vou expedir ordens para que o pagamento se faça imediatamente, conforme teu desejo.

Mandou o rei chamar os algebristas mais hábeis da corte e ordenou-lhes calculassem a porção de trigo que Sessa pretendia.

Os sábios calculistas, ao cabo de algumas horas de acurados estudos, voltaram ao salão para submeter ao rei o resultado completo de seus cálculos.

Perguntou-lhes o rei, interrompendo a partida que então jogava:

— Com quantos grãos de trigo poderei, afinal, desobrigar-me da promessa que fiz ao jovem Sessa?

— Rei magnânimo! — declarou o mais sábio dos matemáticos. — Calculamos o número de grãos de trigo que constituirá o pagamento pedido por Sessa, e obtivemos um número [11] cuja grandeza é inconcebível para a imaginação humana. Avaliamos, em seguida, com o maior rigor, a quantas ceiras [12] corresponderia esse número total de grãos, e chegamos à seguinte conclusão: a porção de trigo que deve ser dada a Lahur Sessa equivale a uma montanha que, tendo por base a cidade de Taligana, seria cem vezes mais alta do que o Himalaia! A Índia inteira, semeados todos os seus campos, taladas todas as suas cidades, não produziria em dois mil séculos a quantidade de trigo que, pela vossa promessa, cabe, em pleno direito, ao jovem Sessa!

Como descrever aqui a surpresa e o assombro que essas palavras causaram ao rei Iadava e a seus dignos vizires? O soberano hindu via-se, pela primeira vez, diante da impossibilidade de cumprir a palavra dada.

Lahur Sessa — rezam as crônicas do tempo —, como bom súdito, não quis deixar aflito o seu soberano. Depois de declarar publicamente que abriria mão do pedido que fizera, dirigiu-se respeitosamente ao monarca e assim falou:

— Meditai, ó Rei, sobre a grande verdade que os brâmanes prudentes tantas vezes repetem: os homens mais avisados iludem-se, não só diante da aparência enganadora dos números, mas também com a falsa modéstia dos ambiciosos. Infeliz daquele que toma sobre os ombros o compromisso de uma dívida cuja grandeza não pode avaliar com a tábua de cálculo de sua própria argúcia. Mais avisado é o que muito pondera e pouco promete!

E, após ligeira pausa, acrescentou:

— Menos aprendemos com a ciência vã dos brâmanes do que com a experiência direta da vida e das suas lições de todo dia, a toda hora desdenhadas! O homem que mais vive mais sujeito está às inquietações morais, mesmo que não as queira. Achar-se-á ora triste, ora alegre; hoje fervoroso, amanhã tíbio; já ativo, já preguiçoso; a compostura alternará com a leviandade. Só o verdadeiro sábio, instruído nas regras espirituais, se eleva acima dessas vicissitudes, paira por sobre todas essas alternativas!

Essas inesperadas e tão sábias palavras calaram fundo no espírito do rei. Esquecido da montanha de trigo que, sem querer, prometera ao jovem brâmane, nomeou-o seu primeiro-vizir.

E Lahur Sessa, distraindo o rei com engenhosas partidas de xadrez e orientando-o com sábios e prudentes conselhos, prestou os mais assinalados benefícios ao povo e ao país, para maior segurança do trono e maior glória de sua pátria.

Encantado ficou o califa Al-Motacém quando Beremiz concluiu a história singular do jogo de xadrez. Chamou o chefe de seus escribas e determinou que a lenda de Sessa fosse escrita em folhas especiais de algodão e conservada em valioso cofre de prata.

E, a seguir, o generoso soberano deliberou se entregasse ao calculista um manto de honra e 100 cequins de ouro.

Bem disse o filósofo:

— Deus fala ao mundo pelas mãos dos generosos! [13]

A todos causou grande alegria o ato de magnanimidade do soberano de Bagdá. Os cortesãos que permaneciam no divã eram amigos do vizir Maluf e do poeta Iezid: era, pois, com simpatia que ouviam as palavras do calculista persa, por quem muito se interessavam.

Beremiz, depois de agradecer ao soberano os presentes com que acabava de ser distinguido, retirou-se do divã. O califa ia iniciar o estudo e julgamento de diversos casos, ouvir os honrados cádis [14] e proferir suas sábias sentenças.

Deixamos o palácio real ao cair da noite. Ia começar o mês de Chá-band [15].


NOTAS:

[1] Militares, uma das quatro castas em que se divide o povo hindu. As demais são formadas pelos brâmanes (sacerdotes), vairkas (operários) e sudras (escravos).

[2] Chefe militar.

[3] Livro sagrado dos hindus.

[4] Escravo.

[5] Deusa.

[6] Segundo membro da trindade bramânica.

[7] Nome do inventor do jogo de xadrez. Significa “natural de Lahur”.

[8] Os elefantes foram mais tarde substituídos pelas torres.

[9] Os vizires são as peças chamadas bispos. A rainha não tinha, a princípio, movimentos tão amplos.

[10] Indivíduo pertencente a uma das castas mais ínfimas da costa de Coromandel. Corresponde, na escala social, à casta dos poleás. Na Europa emprega-se o termo no sentido de “homem expulso de sua casta ou classe” (B. A. B.)

[11] Para se obter esse total de grãos de trigo, devemos elevar o número 2 ao expoente 64, e do resultado tirar uma unidade. Trata-se de um número verdadeiramente astronômico, de vinte algarismos, que é famoso em Matemática:

18.446.744.073.709.551.615

Chamamos especialmente a atenção dos matemáticos para a nota do Apêndice, intitulada O Problema do Jogo de Xadrez.

[12] Ceira ou cer — Unidade de capacidade e peso usada na Índia. Seu valor variava de uma localidade para outra.

[13] Esse pensamento é de Gibran Khalil Gibran.

[14] Cádis — Juízes. Denominação dada aos magistrados.

[15] Chá-band — Um dos meses do calendário árabe.


APÊNDICE

O Problema do Jogo de Xadrez


Aquele que deseja estudar ou exercer a Magia deve cultivar a Matemática [1] Matila Ghyka


É esse, sem dúvida, um dos problemas mais famosos nos largos domínios da Matemática Recreativa. O número total de grãos de trigo, de acordo com a promessa do rei Iadava, será expresso pela soma dos sessenta e quatro primeiros termos da progressão geométrica:

:: 1 : 2 : 4 : 8 : 16 : 32 : 64

A soma dos 64 primeiros termos dessa progressão é obtida por meio de uma fórmula muito simples, estudada em Matemática Elementar [2].

Aplicada a fórmula obtemos para o valor da soma S:

S = 2^{64} - 1

Para obter o resultado final devemos elevar o número 2 à sexagésima quarta potência, isto é, multiplicar 2\times 2\times 2\times ... tendo esse produto sessenta e quatro fatores iguais a 2. Depois do trabalhoso cálculo chegamos ao seguinte resultado:

S = 18.446.744.073.709.551.616 - 1

Resta, agora, efetuar essa subtração. Da tal potência de dois tirar 1. E obtemos o resultado final:

S = 18.446.744.073.709.551.615

Esse número gigantesco, de vinte algarismos, exprime o total de grãos de trigo que impensadamente o lendário rei Iadava prometeu, em má hora, ao não menos lendário Lahur Sessa, inventor do jogo de xadrez.

Feito o cálculo aproximado para o volume astronômico dessa massa de trigo, afirmam os calculistas que a Terra inteira, sendo semeada de norte a sul, com uma colheita, por ano, só poderia produzir a quantidade de trigo que exprimia a dívida do rei, no fim de 450 séculos! [3]

O matemático francês Etienne Ducret incluiu em seu livro, bordando-os com alguns comentários, os cálculos feitos pelo famoso matemático inglês John Wallis, para exprimir o volume da colossal massa de trigo que o rei da Índia prometeu ao astucioso inventor do jogo de xadrez. De acordo com Wallis, o trigo poderia encher um cubo que tivesse 9.400 metros de aresta. Essa respeitável massa de trigo deveria custar (naquele tempo) ao monarca indiano um total de libras que seria expresso pelo número:

855.056.260.444.220

É preciso atentar para essa quantia astronômica. Mais de 855 trilhões de libras [4].

Se fôssemos, por simples passatempo, contar os grãos de trigo do monte S à razão de 5 por segundo, trabalhando dia e noite sem parar, gastaríamos, nessa contagem, 1.170 milhões de séculos! Vamos repetir: mil cento e setenta milhões de séculos! [5]

De acordo com a narrativa de Beremiz, o Homem que Calculava, o imaginoso Lahur Sessa, o inventor, declarou publicamente que abria mão da promessa do rei, livrando, assim, o monarca indiano do gravíssimo compromisso. Para pagar pequena parte da dívida, o soberano teria que entregar ao novo credor o seu tesouro, as suas alfaias, as suas terras e seus escravos. Ficaria reduzido à mais absoluta miséria. Em situação social, ficaria abaixo de um sudra [6].


NOTAS

[1] Esse pensamento famoso poderá ser lido no livro de Matila Ghyka, Philosophie et Mystique des Nombres, Col. Payot, Paris, 1952, pág. 87.

[2] Cf. Thiré e Mello e Souza, Matemática, 4.ª série.

[3] Cf. Robert Tocquet, Les Calculateurs Prodiges et leurs Secrets, Ed. Pierre Amiot, Paris, 1959, pág. 164.

[4] Cf. Etienne Tucret, Récréations Mathématiques, Paris, s.d., pág. 87. Convém ler, também: Ighersi, Matemática Dillettevola e Curiosa, Milão, 1912, pág. 80.

[5] Cf. Tocquet, ob. cit.

[6] Veja a análise completa desse problema no livro Problemas Famosos e Curiosos da Matemática.


***




Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram @summamathematicae e YouTube.



Como estudar Matemática de Nível Superior


Tempo de leitura: 3 minutos.

Abaixo segue o resumo do vídeo Como ler livros difíceis (e não desistir) do Canal Corre de PhD disponível no LINK. [Conselhos para alunos do Bacharelado Matemática/Física ou Pesquisa Científica].

Conselho principal: NÃO EXISTE FÓRMULA MILAGROSA: Você tem que sentar, estudar e repetir isso várias vezes e por várias horas, se possível.

1. Não queira fazer algum grandioso! Não trace grande objetivos para seus estudos!

QUERER estudar um capítulo inteiro de um livro [de Matemática] e/ou QUERER resolver todos os exercícios desse capítulo em uma tarde ou de uma vez só, não vai dar certo. Seu cérebro precisa absorver as informações de maneira mais suave.

Orientação: Em um papel, escreva tudo que você já sabe sobre o assunto que você estar a estudar (escrever definições, proposições, demonstrações, etc.). No momento em que surgir "buracos" no seu conhecimento, busque o livro. O objetivo é deixar o estudo começar de maneira natural.

2. Não "tente entender" o que o autor do livro escreveu!

Em um capítulo, há geralmente as definições, exemplos, depois algumas proposições e teoremas demonstrados. Se você leu tudo isso e não entendeu nada, foi porque você "tentou entender" o que autor escreveu, ou seja, foi feita uma leitura de maneira passiva. 

Orientação: Leia de maneira ativa. Construa a teoria para você mesmo.

Leia a definição do livro e suas propriedades. Feche o livro. No papel, tente desenvolver tal definição, testando as propriedades, verificando os detalhes e criando seus próprios exemplos. Familiarize-se com a definição. Após isso, volte ao livro, siga adiante lendo os próximos tópicos e repita o mesmo processo:

  • Nas definições, crie seus próximos exemplos. 
  • Ao chegar nas proposições e lemas, demonstre-os ou pelo menos tente.
  • A princípio, faça um esboço da lógica da demonstração. Só depois siga com a demonstração mais técnica.
  • Para os teoremas, cheque-os, ou seja, retire alguma hipótese para enfraquecer o teorema, achando seus contraexemplos.

3. Não pare, se um exemplo/exercício não fez sentido.

Se não conseguir fazer um exercício, siga em frente para conseguir confiança e maturidade matemática. Futuramente você pode revisitar tal exercício para resolvê-lo.

DICA EXTRA: Ao bater o cansaço nos temas mais complexos, estude algo mais fácil/simples para recuperar mais confiança ou revisar conteúdos anteriores.

***

Leia mais em Para aprender bem Matemática

Leia mais em Livros para aprender bem Matemática

Leia mais em A dura tarefa de escrever livros de Matemática

Leia mais em Como ler livros de Matemática

Leia mais em Matemática e Vida Intelectual



Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram @summamathematicae.



Total de visualizações de página

30,522