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S. Agostinho e os Matemáticos

Santo Agostinho disputando com os hereges, por Vergós Family

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Tempo de leitura: 27 minutos.

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Santo Agostinho e os matemáticos: uma polêmica sobre os astros [1], por Joel Gracioso [2]

Resumo: Durante um período da sua vida, Agostinho envolveu-se com a ciência ou a arte de estudar a influência exercida pelos astros na vida do homem, da sociedade e da própria natureza: a assim denominada astrologia.

No presente artigo pretendemos analisar as razões e os pressupostos que levaram Santo Agostinho a ser um grande crítico dessas práticas.

Palavras-chave: Agostinho, astrologia, matemáticos, providência, destino.

ABSTRACT: During a certain period of his life, St. Augustine get involved with that science, or art, which study the influence of the stars over human life, society, and even nature: i.e., the so-called astrology.

In this paper, we seek to consider the reasons and motives which made the saint bishop of Hippo to become a severe critic of these practices.

KEY-WORDS: Augustine, Astrology, Mathematicians, Providence, Destiny.


Durante um período da sua vida [3], Agostinho envolveu-se com a ciência ou a arte de estudar a influência exercida pelos astros na vida do homem, da sociedade e da própria natureza: a assim denominada astrologia.

Na sua época, os astrólogos ou matemáticos eram vistos como sábios cuja sabedoria estava fundamentada em tratados científicos de origem grega [4]. Transmitiam, assim, com essa imagem de seriedade, certa confiança às pessoas. Eram denominados, também, “homens do horóscopo”, pois explicitavam as influências dos astros sobre o dia do nascimento das pessoas [5].

Segundo Hamman:

[...] é incontestável a influência do zodíaco sobre as antigas gerações. Um epitáfio cristão de uma criança precisa que ela nasceu na quarta hora da noite, no dia de Saturno, sendo, portanto do signo de Capricórnio, o que lhe pressagiava uma morte prematura. Havia calendários, também chamados “listas egípcias”, que eram ao mesmo tempo científicos e religiosos. O homem de negócio ou da terra consultava-os como se fossem um Evangelho, até mesmo para saber se podia se aproximar de sua mulher [6].

Para os astrólogos, a precisão dos ciclos naturais e a sua regularidade indicavam uma presença divina na esfera celeste, enquanto os deuses estavam encarnados em planetas, constelações e astros fixos. Esses, os astros, eram seres pessoais dotados de emoções e atitudes, amando-se ou odiando-se, unindo-se ou em conflito, acarretando conseqüências para a vida humana e todo o cosmos. O sol e a lua tinham uma função predominante, chamando a atenção principalmente pelos eclipses [7].

Em Confissões VII, 6, 8 Agostinho analisa a problemática da astrologia, expondo como resistia obstinadamente aos argumentos de Vindiciano e Nebrídio que procuravam apontar as incongruências dessa técnica de adivinhação. Tentavam mostrar que não há a arte de prever o futuro, mas apenas a obra do acaso, esclarecendo que os astrólogos acertam algumas previsões não devido a uma suposta técnica que conseguiria analisar a posição dos astros e sua influência e determinação sobre os atos humanos, mas apenas por coincidência, por não se calarem. Mas Agostinho ainda não se havia convencido desta tese.

Contudo, a partir de um encontro com um amigo, chamado Firmino [8], que tinha o costume de consultar os astros, o bispo de Hipona conhece um relato que o ajudará a superar as dúvidas sobre a incoerência ou não da astrologia.

Firmino expõe a Agostinho que seu pai e um amigo interessavam-se muito pela técnica dos astrólogos, procurando sempre conhecer mais sobre esse pensamento. A tal ponto chegava o interesse e a aceitação, que observavam o momento do nascimento dos animais domésticos e o relacionavam com a posição dos astros, com o intuito de recolher fatos e argumentos a favor desse pensamento.

Quando a mãe de Firmino ficou grávida dele, uma empregada daquele amigo de seu pai também engravidou. Ora, o pai e o amigo procuraram calcular e registrar tudo, os dias, as horas e tudo o mais, até a ocorrência dos partos, com o objetivo de comprovar a influência dos astros na vida dos homens. Dando a luz as duas ao mesmo tempo, e procurando serem exatos o máximo possível, não perceberam a menor diferença na posição dos astros nem a menor diferença no tempo sendo, portanto, obrigados a compor o mesmo horóscopo para os dois bebês.

Ora, sendo as duas crianças do mesmo horóscopo, deveriam possuir o mesmo futuro. Porém, não foi isso que aconteceu. Firmino, proveniente de família rica, continuou rico e famoso. E o outro, originário de família pobre e escravo, continuou tendo de servir seus patrões.

A partir dessa constatação, Agostinho afasta-se da astrologia, entendendo que, para o horóscopo de alguém ser eficiente, não basta levar em consideração apenas a posição dos astros na hora do nascimento, mas é preciso também relevar fatores familiares, sociais e educacionais, pois, caso contrário, não se acerta o prognóstico. Contudo, a inclusão desses novos elementos não se coaduna com o pensamento dos astrólogos. Logo, a arte de prever o futuro defendida por eles e a racionalidade do mundo apresentada pela sua doutrina, segundo Agostinho, não se sustentam, mas mostram apenas que quando acertam, o fazem por acaso e não por eficiência e coerência de sua técnica e pensamento.

Entretanto, segundo Agostinho, poderiam eles objetar que esse relato baseia-se em fatos imprecisos ou que Firmino teria sido levado ao erro pelo pai. Como inviabilizar tais objeções? O autor das Confissões recorre ao argumento dos gêmeos [9], pois esses ao nascerem, devido ao breve intervalo de tempo entre um e outro, não permitem que se observem alguns detalhes, como os segundos, que seriam importantes para a composição dos horóscopos e previsões. Sendo assim, fica faltando uma certa exatidão aos vaticínios.

Agostinho cita como exemplo o caso bíblico de Esaú e Jacó, que deveriam possuir os mesmos horóscopos, pois apresentavam os mesmos sinais astrais e, por conseguinte, deveriam ter o mesmo futuro. Todavia, não foi isso que ocorreu. Assim, segundo o hiponense, ou o astrólogo efetuava previsões falsas ou, no caso de estar prevendo corretamente, deveria ter prognosticado fins diferentes, apesar dos dados astrológicos serem iguais. Dessa maneira, mais uma vez, Agostinho conclui: é pelo acaso e não pela sua arte que, às vezes, os astrólogos acertam e dizem a verdade. De fato, não são os astros que regem a realidade, mas a providência de Deus, que é imperscrutável ao homem.

Entretanto, qual o lugar e importância, no interior do pensamento agostiniano, da crítica efetiva à astrologia? Se a técnica e o conhecimento dos astrólogos fascinavam tanto Agostinho na sua juventude, por que ele abandonou essa ciência ou arte e transformou-se num crítico feroz?

Na questão 45 do Livro sobre oitenta e três questões diversas (De diversis quaestionibus octoginta tribus), Agostinho inicia o texto apresentando a quem se referiam os antigos quando usavam o termo matemáticos: homens “que investigavam no movimento do céu e dos astros os números dos tempos” [10].

Por essa definição, notamos que os astrólogos eram estudiosos que valorizavam a ciência da terra e do céu, dos números e da temporalidade, procurando obter o conhecimento sobre o cosmos e o seu funcionamento a partir da análise do movimento celeste e da observação sensível. Essa atividade efetuada por eles, capacitava-os a conhecer os segredos da criação, a ordem presente no mundo, a beleza do cosmos e sua regularidade etc.

Ora, a primeira crítica direcionada aos matemáticos por Agostinho refere-se justamente ao conhecimento obtido por eles e sua utilidade. Conhecendo tão bem a criação, não quiseram reconhecer o criador como a felicidade almejada e, além disso, não tiveram humildade suficiente para reconhecer o verdadeiro caminho que é a palavra divina, o verbo de Deus, pelo qual tudo foi criado, pois, movidos pelo orgulho, buscavam no exterior e não no interior, no exame de si mesmo, a ciência necessária para obter a beatitude. Para o hiponense, mais vale uma alma que tem consciência de sua fraqueza e miséria do que aquela que investiga afoita o curso dos astros, pois o conhecimento de si lhe possibilitará a aquisição da humildade e, para, assim descobrir o verdadeiro caminho para o bem supremo [11].

Dessa maneira, o saber obtido por eles torna-se algo estéril e inútil, pois, segundo Agostinho, no processo de retorno a Deus, que vai do visível ao invisível, a alma começa contemplando a beleza das coisas visíveis, reconhece a sua própria superioridade em comparação com essas coisas, mas também admite, devido à sua mutabilidade, que há algo acima dela mesma, a verdade imutável, e fixando-se nela, torna-se feliz [12], porque encontra o criador e senhor de todas as coisas e o verdadeiro caminho da felicidade que é o seu Verbo.

Vemos, assim que, para o bispo de Hipona, o estudo e a análise da criação só são válidos na medida em que a contemplação da beleza das criaturas e o conhecimento delas nos admoestam, nos estimulam para o plano da interioridade e da humildade, pois é aí que o homem encontra o que ele tanto busca. O homem feliz é aquele que possui a Deus e não aquele que possui conhecimentos sobre os astros e o firmamento, mas não está unido ao seu criador.

Num segundo momento, Agostinho apresenta e analisa uma outra figura dos matemáticos, que é mais própria de seu tempo, homens que “querem fazer nossas ações dependerem dos corpos celestes, nos vender às estrelas e receber de nós o preço desta venda” [13].

De acordo com essa concepção, o pensamento e a técnica dos matemáticos parecem anular o livre-arbítrio humano, pois as atitudes e as escolhas do homem estariam submetidas aos astros. Agostinho salienta que o problema está precisamente na valorização excessiva das constelações, do firmamento. Primeiramente, porque os astrólogos, por meio do cálculo e da observação do movimento celeste, distinguem os diversos tipos de constelações, a estrutura do zodíaco (os graus, a divisão das horas em minutos etc.), porém, apesar de toda essa técnica, falham exatamente num ponto fundamental para eles: achar nos astros a mínima divisão do tempo [14], pois somente assim poderiam calcular com exatidão e enunciar a influência das constelações no momento da geração e, por conseguinte, em toda a vida da pessoa.

Através do exemplo dos gêmeos, que já analisamos anteriormente, o hiponense questiona a legitimidade da tese dos matemáticos e a maneira como eles entendem a ordem e a racionalidade do cosmos. Se foram concebidos sob a mesma constelação, qual a causa de tantas diferenças entre eles nas atitudes, inclinações e fatos da vida? Não possuem o mesmo horóscopo e não devem possuir as mesmas previsões e realizações? [15] Contudo, não é isso que se observa.

Para Agostinho, o caso dos gêmeos coloca em dúvida a eficácia da técnica dominada pelos astrólogos, pois exige deles justamente o que não podem oferecer, a divisão dos minutos. Logo, podem possuir uma técnica que possibilita calcular o curso do tempo e prever o retorno regular das constelações, mas não de adivinhar tudo o que acontece com alguém, nem de prever ou determinar as escolhas boas ou más que serão feitas [16].

Todavia, muitas vezes, como lembra Agostinho, as previsões feitas por intermédio dos astrólogos se realizam. Como entender tal fato? O problema é que as pessoas esquecem rapidamente as previsões não realizadas e aquelas que se concretizam, acertam não por causa de um cálculo exato e fatal, mas sim por puro acaso. Dito de outro modo, da mesma forma que um poema contém versos que falam do futuro e por acaso alguns se realizam, assim também uma predição pronuncia algo sobre o futuro de alguém e por acaso se realiza. Em outros termos, parece que para Agostinho, tanto num caso como no outro, descobriu-se antecipadamente os fatos, não graças a um cálculo preciso, mas sim por puro acaso [17].

Entretanto, descobrir algo por acaso seria uma prova de que a realidade, o cosmos, a vida humana é governada por ele? Para responder a essa questão, é necessário, anteriormente, explicitar o que é o acaso. Na Cidade de Deus, Agostinho define o acaso como o que não tem causa ou, se a tem, não procede de alguma ordem racional [18].

Nota-se que, para ele, o acaso nega e impossibilita a existência de uma racionalidade no mundo e na vida, estando mais relacionado ao fortuito e ao caos do que ao cosmos, isto é, com a desordem do que com a ordem.

Isso, assim nos parece, constitui um problema para o autor das Confissões, pois o que ele tanto almejava era exatamente conhecer essa racionalidade ou a lógica do mundo, não sendo sem razão sua atração pela astrologia. Se a abandonou, foi porque viu incongruências na racionalidade do mundo defendida por ela, que não conseguia, por exemplo, dar uma razão para a existência do mal no mundo, assim como o dualismo gnóstico.

Agostinho não concorda que o fim das coisas e a vida do próprio homem sejam uma pura obra do acaso, isto é, que a realidade seja regida por algo irracional ou desordenado, e, por isso, continua a procurar uma explicação racional mais satisfatória sobre o mundo, sua maneira de ser.

Mas então o que governa o mundo e todas as coisas? Segundo Agostinho, a providência divina, que não deixa nada escapar de suas leis, desde as pedras e animais até o homem e os anjos [19].

Ora, em que consiste a providência divina?

De acordo com A. Rascol, Agostinho não formulou uma definição da providência, mas a nomeava constantemente, oferecendo assim, elementos que nos ajudam a compreender o que ele entendia por esse termo. Podemos, dessa maneira, defini-la como “o atributo divino pelo qual a Trindade dirige a ação que exerce sobre toda a criação e que tem por fim a constituição definitiva da Cidade de Deus” [20].

Nessa noção encontramos, primeiramente, a idéia de que a providência é um predicado divino, e como em Deus seus predicados não são distintos de sua substância, pois o ser dele é simples, então a providência é Deus mesmo agindo no mundo e não algo distinto dele do qual ele participasse ou apenas fizesse uso.

Em segundo lugar, vemos que Deus não é apenas transcendente, mas também presente, pois relaciona-se com sua criação e a influencia em todos os sentidos, por exemplo, na hierarquia que há no mundo, nos acontecimentos pessoais e sociais etc., por meio de uma ação direcionada, isto é, ordenada, coordenadora, harmoniosa, e não caótica.

Em terceiro lugar, notamos que a ação de Deus é teleológica e não aleatória e casual, ou seja, possui uma finalidade que é a edificação da Cidade de Deus.

Por fim, percebemos que, para Agostinho, o mundo contém uma racionalidade, cuja origem está numa ação divina livre e direcionada, que é constante. Assim, quando contemplamos o cosmos, principalmente no seu aspecto global, vemos a sua beleza e harmonia; tudo está disposto com medida, forma e ordem, que organizam a estrutura do mundo e das coisas. Algo que não possui medida, forma e ordem, é um puro nada [21].

Entretanto, a providência também não anularia o livre-arbítrio da vontade no homem como o fatalismo dos astrólogos? Para responder a essa questão, voltemos um pouco sobre ao pensamento dos matemáticos e o problema do fatalismo.

Segundo Agostinho, a fatalidade é, na opinião de alguns, aquilo que ocorre por necessidade de uma determinada ordem, prescindindo da vontade de Deus e dos homens [22]. Ora, se essa definição é verdadeira, a anulação da vontade e do seu livre-arbítrio (não só do homem, mas também a de Deus) é apenas conseqüência de um pensamento coerente, pois se há uma instância reguladora, direcionadora e necessária da realidade dentro da própria criação, totalmente independente, então não há como afirmá-la.

Apesar disso, algumas pessoas relacionam ou atribuem a ação providencial à fatalidade, pois entendem que essa nada mais é do que a própria vontade de Deus e seu poder [23]. De acordo com o bispo de Hipona, esse é um procedimento arriscado, pois os homens geralmente entendem por esse termo, em continuidade com o exposto anteriormente, a influência determinante dos astros sobre a geração e o nascimento das pessoas, devendo-se, portanto, efetuar-se uma mudança de vocabulário [24].

Isto posto, vemos que há três maneiras de se considerar a fatalidade. Em primeiro lugar, como aquilo que acontece inevitavelmente, devido a determinada ordem, independentemente da vontade divina ou humana; em segundo lugar, como algo que se confunde com a providência, devendo-se corrigir os termos utilizados; e em terceiro, semelhante ao primeiro, como a influência determinante que a posição das constelações exerce sobre a vida humana, mas com a diferença que, no primeiro caso, tudo ocorre não dependendo em nada da vontade divina ou humana, enquanto no terceiro os astros podem ou não depender da vontade de Deus.

Agostinho entende [25], como já vimos, que a segunda maneira de abordar a questão deve ser corrigida apenas nos seus termos, pois a providência constitui as coisas, mas não de uma maneira fatal e, por isso, detém-se mais em analisar as outras formas, principalmente a terceira.

Segundo ele, dentre os matemáticos, há aqueles que compreendem que os astros interferem nas atitudes e escolhas dos homens, no que acontece de bom e de mal etc., independente da vontade de Deus. Esses não devem nem ser ouvidos, pois a atitude deles leva simplesmente à supressão de qualquer tipo de culto a uma divindade distinta das constelações. Contudo, aqueles que estabelecem e reconhecem uma dependência da posição dos astros para com a vontade de Deus também são condenáveis, e por duas razões.

A primeira delas é o fato de entenderem que é na dimensão das constelações que se estabelecem os crimes que vão ocorrer necessariamente, isto é, a causa dos crimes estaria nos astros pois esses determinam tudo, logo, o homem não pode ser responsabilizado pelos seus crimes. Esse pensamento inviabiliza qualquer tipo de julgamento sobre os atos humanos que poderia ser feito por Deus pois, se os astros determinam tudo, como alguém pode ser recompensado ou punido por um bem ou um mal que não escolheu? [26] Além disso, a culpa cairia sobre Deus, pois ele é o criador dos astros e, por conseguinte, eles só poderiam receber esse poder dele.

A segundo razão está no fato de se dizer que as constelações não fazem sua vontade, mas cumprem aquilo que Deus determinou o que significa afirmar que Deus governa e estabelece tudo por meio dos astros, sendo esses apenas um meio de a vontade e a providência divina se manifestarem. A princípio, isso não parece ser um problema, mas há uma dificuldade, que se encontra na continuação da idéia de fatalidade e negação da vontade e do seu livre-arbítrio. Assim, segundo o bispo de Hipona, se não foi digno pensar e aceitar tal pensamento referente às constelações o será para Deus? [27] Ademais, as conseqüências são as mesmas.

Entretanto, a questão da fatalidade ainda não está encerrada, pois há uma quarta concepção que a relaciona não com os astros, mas com a sucessão de causas que remontam a Deus. Dessa maneira, ela é vista como a conexão e série de todas as causas que determinam o nosso fazer, dependendo da vontade e do poder de Deus [28].

Ora, de acordo com essa definição, quando observamos o mundo, encontramos, aí, uma ordem e um encadeamento de causas que remontam, em última instância, ao criador, o grande ordenador. Dessa maneira, pelo fato de tudo ter uma causa e as causas, num certo sentido, começarem em Deus, a fatalidade, no dizer de alguns, será a própria vontade de Deus, seu domínio universal, pois tudo ocorre conforme o estabelecido por sua vontade. Ora, isso significa colocar Deus como a causa de todo tipo de malefício presente no mundo.

Assim, finalizando essa exposição da análise agostiniana das diferentes concepções filosóficas e cosmológicas que se fundamentavam numa doutrina do fatalismo, percebe-se que o bispo de Hipona não identifica, em nenhuma delas, qualquer relação com a Providência. A Providência, como se disse acima, não nega a vontade e seu livre-arbítrio, mas dispõe tudo de forma ordenada, a fim de que o desígnio de Deus se realize.

Dessa maneira, podemos nos perguntar: será que a vontade humana existe mesmo estando sujeita a alguma necessidade?

A resposta de Agostinho seria sim [29], pois se entendermos por necessidade aquilo que não se encontra em nosso poder, mas que ocorre ainda assim, isso não anula a vontade nem nega a sua existência, porque, quando quero algo, é preciso que haja a vontade e, quando não quero também é preciso, pois, caso contrário, não quereria, ou seja, o próprio ato de não querer seria uma evidência da sua existência.

O que é preciso, conforme o autor das Confissões é distinguir entre a capacidade de querer (vontade) e a capacidade de realizar o que se quer (poder). Nem sempre a vontade “pode” e, assim, fica sujeita à dependência para com algo maior que ela, mas nem por isso deixa de ser o que é [30].

Pode-se concluir, portanto, que, para Agostinho, a Providência Divina não possui nenhuma relação com as concepções de fatalismo apresentadas. Ela nada mais é do que o próprio Deus agindo, para, por meio dessa ação, governar ordenadamente o cosmos, imprimindo uma racionalidade e uma dinâmica à realidade que não exclui a vontade humana nem a presença do mal no mundo. Diferentemente pensavam os matemáticos, que, conforme Agostinho, queriam, com suas práticas, apenas justificar o pecado [31], e inocentar o homem [32].


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGOSTINHO, A. A Cidade de Deus (contra os pagãos), Parte I. Trad. br. de Oscar Paes Leme. Petrópolis: Vozes, 1990.

______________. A Cidade de Deus (contra os pagãos), Parte II. Trad. br. de Oscar Paes Leme. Petrópolis: Vozes, 1990.

______________. A Trindade. Trad. Portuguesa de Arnaldo do Espírito Santo, Domingos Lucas Dias, João Beato, e Maria Cristina de Castro-Maia de Souza Pimentel. Coimbra: Paulinas, 2007.

______________. Comentário ao Salmos. Trad. br. Monjas beneditinas. São Paulo: Paulus, 1997.Vols. 1, 2 e 3.

______________. Confissões. Trad. Portuguesa de Arnaldo do Espírito Santo, Domingos Lucas Dias, João Beato, e Maria Cristina de Castro-Maia de Souza Pimentel. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004.

______________. De la natureza del bien contra los Maniqueos. In: Obras completas San Agustín. Traducción de Mateo Lanseros. Madrid: BAC, 1951, vol. 3.

_____________. Les Confessions. Trad. de E. Tréhorel e G. Bouissou. Bibliotèque Augustinienne, Paris: Desclée, 1992, vols. 13 e 14.

______________. Les quatre-vingt-trois questions diverses. Trad. de Péronne, Écalle, Vincent, Charpentier e Barreau. Paris: Librairie de Louis Vivès, 1873.

Bruning, B. De l’astrologie à la grâce. In Collectanea Augustiniana, Mélanges T.J. van Bavel. Leuven: Institut Historique Augustinien, Augustiniana 40-41, pp. 575-643.

Hamman, A. Santo Agostinho e seu tempo. São Paulo: Paulinas, 1989.

Rascol, A. La providence selon Saint Augustin. In: Dict. de Théologie Catolique. Paris: Letouzey et Ané, 1936, v. XIII 1, cols. 961- 984.


Notas:

[1] Texto publicado na Revista Omnia Lumina, v. 02, p. 41-54, 2011.

[2] Professor da Faculdade de São Bento de São Paulo.

[3] Cf. Confissões, IV , 3, 4.

[4] Cf. Hamman, A. Santo Agostinho e seu tempo, Paulinas, 1989, p. 148.

[5] Cf. Idem, Ibidem, pp. 148 - 149.

[6] Cf. Idem, Ibidem.

[7[ Cf. Bruning, B. De l’astrologie à la grace, pp. 582 e 583.

[8] Cf. Confissões. VII , 6, 8 e 9.

[9] Ibidem, VII , 6, 10.

[10] De diversis quaestionibus 83, q. 45, 1: qui temporum numeros motu coeli ac siderum pervestigarunt". Texto segundo a edição dos beneditinos da Congregação de S. Mauro, Paris, 1873. Tradução francesa de Péronne, Vincent ,Écalle, Charpentier e Barreau, Librarie de Louis Vivés, T. XXI, p. 22.

[11] Cf. Trindade IV, Prólogo.

[12] Cf De diversis quaestionibus 83 , q. 45, 2

[13] Ibidem, q. 45, 2 : "vendere stellis, volentes actus nostros corporibus coelestibus subdere, et nos ipsumque pretium, quo vendimur, a nobis accipere." p. 23.

[14] Ibidem. Conferir também Conf. VII, 6, 10.

[15] Cf. Ibidem.

[16] Cf. Bruning, ob. cit. p.596.

[17] Cf. De div. Quaest. 83, q. 45, 2.

[18] A Cidade de Deus, V, I. Tradução de Oscar Paes Leme, Vozes, 1990, p. 190

[19] Cf. Ibidem, V, XI.

[20] Rascol, A. La providence selon Saint Augustin. In: Dict. de Théol. Cathol., c. 962.

[21] Cf. De natura boni, III.

[22] Cf. Cid. de Deus V, I.

[23] Cf. Ibidem.

[24] Cf. Ibidem.

[25] Cf. Ibidem.

[26] Cf. Ibidem.

[27] Cf. Ibidem.

[28] Cf. Ibidem, V , 8.

[29] Cf. Ibidem, V, 10, 1.

[30] Cf. Ibidem.

[31] Cf. Comentários aos Salmos, 140, 9. Paulus, pp. 923- 925.

[32] Cf. Conf. IV, 3, 4.

***

Leia mais em Santo Agostinho e a Educação

Leia mais em O Cristianismo e a Educação Clássica - parte 1



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Matemática e Astronomia em Os Lusíadas


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Tempo de leitura: 55 minutos

Apresentamos aqui, trecho retirado do livro Os Lusíadas - vol. II Comentários de Francisco de Sales Lencastre. Editora Concreta, 2018. É importante ler primeiro a Introdução do vol I, onde é apresentado a astronomia clássica [leia aqui Introdução à Astronomia Clássica]. 

Uma observação: além do poema original, Lencastre adicionou, junto a cada estrofe, a versão do mesmo texto em prosa, dispondo-o em ordem sintática regular, para facilitar a compreensão do leitor iniciante e tornar explícitos os recursos da língua genialmente explorados por Camões. Mais do que o poema e sua versão em prosa, foram anexadas ainda diversas notas e longos comentários filológicos, históricos e literários.


A máquina do mundo

Contextualizando, no Canto X, temos Vênus conduzindo todos os marinheiros portugueses e seu capitão Vasco da Gama para a Ilha dos Amores. E lá eles terão um encontro com as ninfas e Vasco da Gama conquistará o amor de Tétis, a ninfa marinha. Após um banquete, Tétis conduzirá Vasco da Gama para contemplar a máquina do mundo, descrito abaixo no Canto X, estâncias de 75 a 90.


75 Despois que a corporal necessidade
Se satisfez do mantimento nobre,
E na harmônica e doce suavidade
Viram os altos feitos, que descobre
Tétis, de graça ornada e gravidade,
Pera que com mais alta glória dobre
As festas deste alegre e claro dia,
Pera o felice Gama assim dizia:

Prosa: Depois de satisfeita a corporal necessidade do [pelo] nobre mantimento (1); depois de terem todos ouvido os altos feitos (2) que a bela ninfa descobrira [vaticinara] na harmônica e doce suavidade da sua voz; Tétis, ornada de graça e gravidade – para dobrar [duplicar] com mais alta glória as festas deste alegre e claro [festivo] dia –, disse assim para o feliz Gama (3):

Notas: (1) “Depois de satisfeita”, etc; acabado o banquete, e saciado o estômago pelas suaves e divinas iguarias da ilha encantada. (2) As proezas que seriam praticadas no Oriente pelos portugueses. (3) “Tétis”, etc; tinha ela dito (IX, 86) que viera àquela ilha descobrir a Vasco da Gama altos segredos. Por intermédio da sereia (X, 10 e sgs.) foram descobertas (vaticinadas) as façanhas futuras dos portugueses na Índia; agora é ela própria que vai descobrir os segredos da esfera universal, “os segredos da unida esfera”, etc., como prometera (cit. est. 86).


76 “Faz-te mercê, barão, a sapiência
Suprema de, c’os olhos corporais,
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.
Segue-me firme e forte, com prudência,
Por este monte espesso, tu c’os mais.”
Assi lhe diz: e o guia por um mato
Árduo, difícil, duro a humano trato.

A sapiência suprema faz-te mercê, varão, de veres com os olhos corporais o que a ciência vã dos errados [ignorantes] e míseros mortais não pode compreender. Segue-me firme, forte e com prudência, por este monte espesso, tu e os mais.” Assim lhe diz, e guia-o por um mato árduo, difícil, duro [penoso] a humano trato (1).

(1) Revendo o manuscrito do canto x, e quando já estava impresso o primeiro volume do presente estudo, teve o anotador notícia dos preciosos artigos do Sr. Dr. Luciano Pereira da Silva, na Revista da Universidade, intitulados “A Astronomia dos Lusíadas”, e que encerram doutrina transcendente fora do alcance dos leitores desta edição destinada para indoutos. Todavia, desses artigos, que já constituem centenas de páginas, serão aqui transcritos (e de uma separata com que fomos favorecidos) alguns excertos, e com a devida vênia, quando acessíveis a esses leitores, pois só a quem já possua a “suprema ciência” da matemática pura, só ao astrônomo, será dado compreender completamente o profundo estudo do sábio professor da Universidade de Coimbra, na interpretação das estâncias que encerram a descrição da “grande máquina do mundo”.

“No canto X – diz o Sr. Dr. Luciano Pereira da Silva – faz Tétis aos argonautas portugueses uma lição de mecânica celeste, segundo a teoria da escola de Alexandria. 

“O princípio matemático que anima a astronomia grega, dando lugar a observações e cálculos de admirável persistência e sutileza, é a explicação dos movimentos periódicos dos astros, que já aos caldeus e egípcios se mostravam tão complicados nas suas observações da Lua e dos planetas, por uma sobreposição de movimentos circulares e uniformes.”

Em comentário à presente estância e à seguinte, lê-se, na “Astronomia dos Lusíadas”:

“Neste monte espesso, de mato árduo difícil a humano trato, por onde é preciso seguir firme e forte com prudência, está bem simbolizado todo esse longo trabalho de pacientes observações e laboriosos cálculos, todo esse dispêndio de engenho de tantos homens de superior capacidade em procura das leis que regem o movimento dos astros. E a teoria a que se chegou, dum subido valor, não só pelo trabalho que custou como pelos benefícios que dela se colhem, é o erguido cume, esmaltado de rubis e esmeraldas, chão divino, donde é permitido, através do modelo criado, abranger a complicada variedade dos fenômenos astronômicos, prevê-los em cálculos prévios nas preciosas tábuas bem conhecidas dos navegadores portugueses” (p. 53).


77 Não andam muito, que no erguido cume
Se acharam, onde um campo se esmaltava
De esmeraldas, rubis tais que presume
A vista que divino chão pisava.
Aqui um globo vem no ar, que o lume
Claríssimo por ele penetrava,
De modo que o seu centro está evidente,
Como a sua superfície, claramente.

Não tendo andado muito, Tétis e Vasco da Gama acharam-se no erguido cume, onde um campo [uma planície] se esmaltava [estava esmaltada] de esmeraldas (1) e rubis (2), tais que a vista presumia pisar (3) chão divino [olhar para chão divino]. Vem no ar [aparece no ar] um globo, pelo qual (4) penetrava claríssimo lume [luz], de modo que o seu centro, assim como a sua superfície, estavam claramente evidentes.

(1) Pedra preciosa de cor verde. (2) Pedra preciosa de cor vermelha. (3) “A vista presumia pisar”; metalepse: quem olhava para o chão presumia pisar, etc. (4) “Que… por ele” = pelo qual; cf. Fontes dos Lusíadas, pp. 380, 494 e 573.

Em “A Astronomia dos Lusíadas”, citada nas notas precedentes, lê-se (p. 54):

“Sabélico mostra-nos o imperador Carlos V passando os seus dias no mosteiro de S. Justo, longe dos negócios e bulício do mundo, encantado com o instrumento admirável onde o insigne matemático Leonelo incluíra uma representação completa das esferas celestes e dos astros com seus movimentos, juntando também o movimento perpétuo da oitava esfera. Nunca se ouvira falar duma máquina assim nos séculos passados.

“Este movimento perpétuo da oitava esfera é o movimento de trepidação, que lhe é próprio. Podia assim ver-se neste aparelho o curso ordenado das estrelas em torno dos ‘axes’ da oitava esfera, os pontos equinociais médios, pólos do movimento de trepidação, a que Camões se refere na est. 87

“Deste famoso aparelho de Leonelo devia Camões ter tido conhecimento. Teria ele visto algum modelo semelhante?”

Cf. na Introdução do Vol. I a “oitava esfera”, p. 23 e sgs. Disponível aqui: Introdução à Astronomia Clássica.


78 Qual a matéria seja não se enxerga,
Mas enxerga-se bem que está composto
De vários orbes, que a divina verga
Compôs, e um centro a todos só tem posto.
Volvendo, ora se abaixe, agora se erga,
Nunca s’ergue, ou se abaixa, e um mesmo rosto
Por toda a parte tem, e em toda a parte
Começa e acaba enfim, por divina arte:

Qual seja a matéria do globo (verso 5 da estância precedente) não se enxerga (1); mas enxerga-se bem que está composto de vários orbes, que a divina verga (2) compôs e que, a todos, pôs um centro só. Esse globo, volvendo, ora se abaixe ora se erga, nunca se ergue ou se abaixa e tem um mesmo rosto por toda a parte; e enfim, por divina arte, começa e acaba em toda a parte.

(1) Não se percebe. (2) “Verga divina”, o poder de Deus; “verga” = vara, símbolo da autoridade.

Na recitação do verso 5 não se faça pausa nas vírgulas:

Vol-ven- | do o-ra | se a-bai- | xe a-go- | ra se er- | ga

1       2       3        4      5       6       7       8       9      10

Comentário de “A Astronomia dos Lusíadas” aos primeiros quatro versos (p. 55): “Não se enxerga a matéria que compõe a parte celestial, porque a quinta essência [*] não pode ser apreendida pelos sentidos, vendo-se através dela a Terra no centro. Mas enxerga-se bem que está composta de vários orbes concêntricos à Terra; quer dizer, neste globo transparente podem distinguir-se os contornos aparentes das onze esferas e, portanto, uma série de círculos concêntricos (…) [que representam] as sete esferas planetárias, desde a Lua até a de Saturno, o Firmamento, o Céu Áqueo ou cristalino, o Primeiro Móbil e finalmente o Empíreo”.

[*] “Junto da região dos elementos, está logo a região celestial lúcida; e, pelo seu ser imutável, é livre de toda mudança. Tem contínuo movimento circular, e chamaram-lhe os filósofos Quinta Essência”, in: João de Sacrobosco, Tratado da Esfera, trad. Pedro Nunes, coment. Marcos Monteiro, Porto Alegre, Editora Concreta, 2018, pp. 45–7.

Sobre os versos 3 e 4: “Nestes versos os orbes são ‘todos’ concêntricos ao mundo” (Op. cit., p. 15).

Sobre os versos 5–8 (p. 40): “Na definição de Euclides, a que se chamava a definição ‘causal’, a esfera é uma superfície de revolução gerada pelo movimento duma circunferência em torno do diâmetro; cada ponto da curva generatriz descreve um círculo cujo plano é perpendicular ao eixo da revolução.

“No primeiro verso [o 5º da estância] está resumida a definição de Euclides. A palavra ‘volvendo’ indica que a esfera é uma superfície de revolução; não se refere ao movimento da esfera, porque a superfície externa do globo pertence ao undécimo céu, ao Empíreo imóvel. A esfera, ‘volvendo’, isto é, curvando-se em torno do eixo do mundo em círculos paralelos, ora se ergue, ora se abaixa em relação a um plano horizontal.

“No segundo verso [o 6º da estância] está resumida a definição de Teodósio. A esfera não se ergue nem se abaixa relativamente ao seu centro. E Tétis pode bem mostrar no globo a propriedade da eqüidistância, porque, sendo ele transparente, o seu centro, onde se vê a Terra, está evidente, como a sua superfície, claramente (p. 40).

“O mundo arquetípico é pois, em última análise, o próprio Deus. Que as propriedades da esfera refletem os atributos divinos, di-lo o poeta na expressão ‘por divina arte’, com que terminou a est. 78, e no verso ‘qual enfim o arquétipo que o criou’ da estância imediata.

“Mas a geometria esférica não desvenda afinal, de modo satisfatório, o divino mistério, pois que (p. 47): ‘(…) o que é Deus ninguém o entende/ Que a tanto o engenho humano não se estende.’

“Já vimos no capítulo anterior (p. 40 supra) que no primeiro verso [1º da 2ª quadra] se exprime que a esfera é uma superfície de revolução, podendo supor-se gerada pelo movimento duma semicircunferência em torno da linha dos pólos, subindo e descendo relativamente ao horizonte. No segundo verso [da 2ª quadra] está expressa a propriedade da eqüidistância ao centro, não subindo, nem descendo a superfície esférica em relação a este ponto; e ‘um mesmo rosto’ traduz a propriedade da esfera ser uma superfície de curvatura constante. Enfim, começando e acabando em qualquer ponto, não tem princípio nem fim determinado, unindo-se o princípio com o fim, por divina arte, isto é, segundo o divino exemplar. Esta semelhança com Deus é completada na estância seguinte (p. 56).”


79 Uniforme, perfeito, em si sustido,
Qual enfim o arquétipo que o criou.
Vendo o Gama este globo, comovido,
De espanto e de desejo ali ficou.
Diz-lhe a deusa: “O transunto reduzido
Em pequeno volume aqui te dou
Do mundo aos olhos teus, pera que vejas
Por onde vás e irás, e o que desejas,

O Gama – vendo este globo uniforme, perfeito, sustido em si, enfim qual o Arquétipo (1) que o criou – ficou ali comovido de espanto e de desejo (2). A deusa diz-lhe: “Dou-te aqui aos teus olhos – reduzido em pequeno volume – o transunto (3) do mundo; para que vejas por [para] onde vais (4) e irás, e o que desejas (5).

(1) Modelo superior, Deus. A esfera que se via ali, representando o Universo, tinha as perfeições do Criador. “Sustido em si”, suspenso na atmosfera – se diz do globo terrestre e dos corpos celestes. (2) “Ficou”, etc; tornou-se extático, enlevado, contemplando aquelas perfeições, e desejando saber como se explicariam. (3) Cópia. (4) “Por onde” = para onde (vaticínio de que iria para o Empíreo). (5) Subentende-se: “o que desejas saber”.

“É esta constante curvatura (da esfera) que o poeta exprime, quando diz que o globo ‘um mesmo rosto por toda a parte tem’ e quando lhe chama ‘uniforme’ na est. 79” (Op. cit., p. 41; veja-se a transcrição nas notas da estância precedente).


80 “Vês aqui a grande máquina do mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do saber alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende;
Que a tanto o engenho humano não se estende.

Aqui vês a grande máquina etérea (1) e elementar (2) do mundo, que foi fabricada assim do [pelo] alto e profundo Saber (3), que é [existe] sem princípio e sem meta limitada (4). Quem cerca em redor este globo rotundo e a sua tão limada [lisa] superfície é Deus (5); mas o que é Deus, ninguém o entende, que [pois] tanto não se estende [não chega] o engenho humano (6).

(1) Dos céus. (2) Dos elementos; segundo a astronomia antiga, consideravam-se elementos o ar e o fogo [além do ar e da água], e supunha-se que estes formavam as primeiras camadas celestes em volta da Terra; supondo-se também ser esta o centro do universo; cf. Introdução do Vol. I, pp. 26 e sgs. (3) “Alto e profundo Saber”, a Sabedoria divina, Deus. (4) “Meta limitada”, marco de limite, fim (sem princípio nem fim). (5) “Quem cerca”, etc; era doutrina corrente que o último céu era o Empíreo, superior à esfera em que estavam fixadas as estrelas – segundo o paganismo, era a morada dos deuses; no catolicismo, o lugar dos bem-aventurados, dos santos, o Céu. (6) “O que é Deus”, etc; afirma Faria e Sousa que os dois últimos versos contêm doutrina pregada por S. Paulo, S. Crisóstomo, e outros doutores da Igreja.

Observações de “A Astronomia dos Lusíadas” (pp. 39, 43 e 57) sobre a presente estância:

“A superfície deste rotundo globo, superfície tão ‘limada’, como se diz na est. 80, é uma superfície esférica. Leia-se a definição de esfera com que abre o capítulo I do Tratado da Esfera, de Pedro Nunes.

“No Tratado da Esfera lê-se, na parte do capítulo I, intitulada ‘Da redondeza do céu’ [Ed. Concreta, p. 51]: ‘[Para] Que o céu seja redondo há três razões: semelhança, proveito e necessidade. Pela semelhança se prova o céu ser redondo porque este mundo sensível é feito à semelhança do mundo arquetípico, no qual não há princípio nem fim. E por isso o mundo sensível tem figura redonda, na qual não há princípio nem fim.’

“A máquina do mundo, assim mostrada ao Gama, como transunto reduzido do universo, tal qual o concebia a ciência do tempo, divide-se em duas regiões: etérea e elemental.

“Na tradução de Pedro Nunes [do texto latino de Sacrobosco] lê-se [Ed. Concreta, pp. 43–7]: ‘A universal máquina do mundo se divide em duas partes: celestial e elemental. A parte elemental é sujeita a contínua alteração e divide-se em quatro: Terra, a qual está como centro do mundo, no meio assentada; segue-se logo a Água; e por derredor dela o Ar, e logo o Fogo que chega ao céu da Lua, segundo diz Aristóteles no livro dos meteoros, porque assim os assentou Deus glorioso e alto. E estes quatro são chamados elementos, os quais uns pelos outros se alteram, corrompem e tornam a gerar (…). Junto da região dos elementos, está logo a região celestial lúcida; e, pelo seu ser imutável, é livre de toda mudança. Tem contínuo movimento circular, e chamaram-lhe os filósofos Quinta Essência.’”

Cf. as transcrições de “A Astronomia dos Lusíadas” nas notas à est. 78.

81 “Este orbe, que primeiro vai cercando
Os outros mais pequenos, que em si tem,
Que está com luz tão clara radiando,
Que a vista cega, e a mente vil também,
Empíreo se nomeia, onde logrando
Puras almas estão daquele bem
Tamanho, que ele só se entende e alcança,
De quem não há no mundo semelhança.

Este primeiro orbe (1), que vai cercando os outros mais pequenos nele contidos, e que está radiando com tão clara luz, que cega a vista e também cega a mente vil (2), nomeia-se [chama-se] Empíreo, onde [no qual] as almas puras (3) estão logrando aquele bem tamanho, que só é entendido e alcançado de [por] quem não  [não tem] no mundo bem semelhante.

(1) “Primeiro orbe”, o orbe superior ao oitavo céu e ao primeiro “móbil”; cf. a gravura na Introdução ao vol. I, p. 23. (2) “Está radiando”, etc; a luz que dimana do Empíreo é radiante, mas a vista do corpo humano não tem faculdade para divisá-la, por isso é “cega”. À mente de criaturas vis também não será dado o poder de descortinar essa luz. (3) “As almas puras”, as almas dos entes humanos que foram virtuosos na terra; só essas é que hão-de ver o Empíreo, e nele gozar a bem-aventurança.


82 “Aqui só verdadeiros gloriosos
Divos estão: porque eu, Saturno e Jano,
Júpiter, Juno, fomos fabulosos,
Fingidos de mortal e cego engano.
Só pera fazer versos deleitosos
Servimos; e se mais o trato humano
Nos pode dar, é só que o nome nosso
Nestas estrelas pôs o engenho vosso;

Aqui (1) só estão os verdadeiros divos (2) gloriosos; porque eu, Saturno, Jano, Júpiter e Juno, somos divos fabulosos (3) – fingidos de [por] mortal e cego engano (4). Só servimos para fazer versos deleitosos (5); e, se mais nos pôde dar o trato humano (6), foi só ter o vosso engenho (7) posto o nosso nome nestas estrelas (8).

(1) “Aqui”, neste orbe, que representa o Empíreo. (2) “Verdadeiros divos”, os santos. “Divos” era o termo que entre os pagãos designava os deuses; aqui, tem a significação de “cristãos” que viveram segundo as leis divinas; IX, 90, nota última. (3) “Porque eu”, etc; porque nós, deuses mitológicos, somos uma invenção da fábula. (4) “Fingidos”, etc; foi a imaginação (fingimento) dos mortais (dos homens) que na cegueira do seu erro (engano) nos criou: alusão aos erros do paganismo. (5) “Só servimos”, etc; “a liberdade poética emprega os nossos nomes como ornato literário para se fazerem versos de aprazível leitura”. (6) “Trato humano”, “o tratamento de mais valor que nos dão os homens é o que resulta de ser aplicado o nosso nome às estrelas pelo engenho (invento) dos astrônomos”. (7) “Vosso engenho”; refere-se não propriamente a Vasco da Gama, a quem Tétis está dirigindo a sua fala, mas aos sábios da humanidade, aos astrônomos. (8) “Nestas estrelas”, nos astros que vedes representados nesta “máquina do mundo”.

Note-se que Tétis, deusa mitológica, está falando a um católico, confessando ser falsa a sua divindade, e que tudo é ainda a liberdade poética da invenção fabulosa da Ilha dos Amores, deixando assim o poeta a perceber que os entes mitológicos que figuram no poema designam a Divina Providência.

Nas Fontes dos Lusíadas, p. 71, o Sr. Dr. J. M. Rodrigues justifica essas ficções poéticas como a apologia dos poetas clássicos, feita pelo célebre poeta italiano Boccaccio (1313–1375).

No verso 3, “fabulosos” parece dever interpretar-se no sentido evemerista; IX, 90 e notas (cf. Fontes dos Lusíadas, p. 277 e sgs.).


83 “E também porque a Santa Providência,
Que em Júpiter aqui se representa,
Por espíritos mil que têm prudência,
Governa o mundo todo que sustenta.
Ensina-lo a profética ciência
Em muitos dos exemplos que apresenta:
Os que são bons, guiando favorecem,
Os maus, em quanto podem, nos empecem.

E isto que fica dito é assim mesmo porque (1) a Santa Providência (2) – representada aqui (3) em Júpiter – é quem governa todo o mundo que sustenta, e governa-o por meio de mil espíritos que têm prudência (4). Assim o ensina a ciência profética (5), em muitos exemplos que apresenta: os espíritos que são bons, guiando-nos, favorecem-nos; os espíritos maus, empecem-nos [causam-nos dano] em tudo quanto podem.

(1) Esta conjunção é continuada do “porquê” da estância precedente, verso 2. (2) “Santa Providência”, o Deus verdadeiro. (3) “Aqui”, no Empíreo, representado na “máquina” para a qual Tétis está apontando. (4) “Espíritos que têm prudência”, seres incorpóreos, discretos, reservados, que não se dão a conhecer à humanidade (anjos bons e anjos maus). (5) “Ciência profética”, a Bíblia do Antigo Testamento.

A interpretação da presente estância é ainda assunto de diversas opiniões. Cf. Fontes dos Lusíadas, pp. 277–9.


84 “Quer logo aqui a pintura, que varia,
Agora deleitando, ora ensinando,
Dar-lhe nomes que a antiga poesia
A seus deuses já dera, fabulando:
Que os anjos de celeste companhia
‘Deuses’ o sacro verso está chamando;
Nem nega que esse nome preminente
Também aos maus se dá, mas falsamente.

A pintura – que varia (1), ora deleitando, ora ensinando – quis logo aqui (2) dar-lhes nomes que a antiga poesia, fabulando, dera já aos seus deuses; pois o verso sacro está chamando ‘deuses’ aos anjos da companhia celeste (3); e não nega que esse proeminente nome de anjos se dá também aos maus, mas falsamente (4).

(1) Apresenta-se sob vários aspectos: umas vezes a pintura inventa, para deleitar; outras vezes copia a natureza, ensina, a quem não viu uma paisagem de países longínquos, a conhecê-la por meio dum quadro. “Pintura”, é alusão às figuras inventadas pelos astrônomos para representarem as constelações celestes na esfera armilar, e alguns astros a que deram nomes dos deuses do paganismo: Marte, Vênus, Mercúrio, etc. (2) “Aqui” = nestes céus que estais vendo em imagem. (3) “O verso sacro”, etc; alude-se à expressão do Salmo 49, Deus Deorum, cuja tradução literal é “Deus dos deuses”, para significar “Deus dos anjos”. (4) “Nem nega” que a poesia sacra também continuou a chamar anjos, indevidamente, aos que o foram mas deixaram de sê-lo; por isso acrescenta-lhes o epíteto de “maus” (Luzbel, Lúcifer).


85 “Enfim que o Sumo Deus, que por segundas
Causas obra no mundo, tudo manda.
E tornando a contar-te das profundas
Obras da mão divina veneranda,
Debaixo deste círculo, onde as mundas
Almas divinas gozam, que não anda,
Outro corre tão leve e tão ligeiro,
Que não se enxerga: é o móbile primeiro.

Enfim o Sumo Deus – que no mundo obra por intermédio de segundas causas (1) – manda tudo. Mas (2) – torno [volto] a contar-te o que sei das profundas obras da veneranda mão divina (3): debaixo deste círculo (4), onde as mundas [puras] almas (5) divinas gozam a bem-aventurança – círculo que não anda [não se move] –, corre outro tão leve e tão ligeiro, que não se enxerga (6): é o primeiro móbil (7).

(1) “Sumo Deus”, etc; o Ente Supremo é a causa primária de tudo quanto acontece no mundo, é a causa das causas. (2) A conjunção liga a exposição da est. 81 – exposição interrompida nas três estâncias imediatas, em que Tétis fala de como foram dados às estrelas os nomes dos deuses, etc. (3) “Obras”, etc; Tétis continua a explicar o que é o universo, o conjunto das obras divinas. (4) “Este círculo”, o do Empíreo, que é imóvel, não anda. (5) “Mundas almas”, as almas puras, as almas dos santos, dos bem-aventurados. (6) O círculo imediato (nono céu) gira com tal velocidade, que não se vê, não parece que gira. (7)Primum mobile”, o primeiro motor, o que imprime movimento aos demais círculos, que estão dentro dele, e que representam outros tantos céus. Cf. Introdução do Vol. I, p. 25 e sgs.

No verso 1, “que” é pleonástico, expletivo.

Excertos de “A Astronomia dos Lusíadas”:

“A décima esfera é introduzida na est. 85; é o círculo que corre ligeiro logo por baixo do Empíreo imóvel. Este movimento do primeiro móbil leva com seu ímpeto todas as esferas interiores; é o movimento diurno. Isto exprime o poeta na primeira parte da admirável est. 86 (p. 26).

“Do primeiro móbil diz Sacrobosco [tradução de Pedro Nunes, Ed. Concreta, p. 47]: ‘mas o primeiro movimento move e leva com seu ímpeto todas as outras esferas e, em um dia, com sua noite, fazem ao redor da Terra uma revolução’ (p. 58).”


86 “Com este rapto e grande movimento
Vão todos os que dentro tem no seio.
Por obra deste, o Sol andando a tento,
O dia e noite faz, com curso alheio.
Debaixo deste leve anda outro lento,
Tão lento e sojugado a duro freio,
Que enquanto Febo, de luz nunca escasso,
Duzentos cursos faz, dá ele um passo.

Com este rapto [rápido] (1) e grande movimento do primeiro móbil vão [andam] todos os círculos que ele tem dentro do seu seio; por obra [pela ação] deste movimento, o Sol – andando a tento (2) – faz o dia e a noite com curso [com impulso e andamento] alheio (3). Debaixo deste leve [ligeiro] móbil, anda outro círculo lentamente (4), tão lentamente e tão subjugado [reprimido] por duro freio (5), que enquanto Febo [o Sol] – nunca escasso de luz (6) – faz duzentos cursos, ele [o outro círculo, debaixo do primeiro móbil o das estrelas] dá um passo (7).

(1) Adjetivo só usado em poesia. (2) “A tento”, acauteladamente, com precaução, com toda a regularidade. (3) “Com curso alheio”, com o andamento diurno do quarto céu, o Sol fazia o dia no Hemisfério Oriental enquanto era noite no Hemisfério Ocidental. Segundo a astronomia antiga, o Sol não se movia; quem se movia era o círculo em que ele estava. (4) “Outro círculo”, etc; o das estrelas fixas (cf. gravura na Introdução do Vol. I, p. 23); o adjetivo “lento”, no texto, exerce função de advérbio. (5) “Subjugado a duro freio”, movimento reprimido, por isso é lento. (6) “Nunca escasso de luz”, a luz do Sol nunca se apaga: quando não a vemos em um hemisfério, é porque está em outro hemisfério. (7) “Duzentos cursos”, referência ao tempo em que os astros percorrem as suas órbitas: enquanto o Sol percorre as constelações do Zodíaco duzentas vezes, as estrelas do céu dão um passo.

Lê-se em “A Astronomia dos Lusíadas” (pp. 56 e 59):

“Nos últimos quatro versos descreve o movimento dos auges e estrelas fixas, próprio da nona esfera. Como esta faz a sua revolução em 49.000 anos, anda em 200 anos 1 grau e 28 minutos aproximadamente, o que, sendo menos de grau e meio, o poeta arredonda num grau, e chama-lhe ‘um passo’. O cristalino ou céu áqueo dá um passo enquanto o céu deferente do Sol dá 200 voltas.

“Comunicando-se o movimento de cada esfera às ‘que dentro tem no seio’, há a distinguir, em cada céu, o movimento que lhe é próprio dos que lhe são alheios, provenientes das esferas superiores. Assim, o curso próprio do Sol é o seu movimento anual que tem no excêntrico, seu deferente na quarta esfera; e o seu movimento diurno é curso alheio, causado pelo primeiro móbil.

“Note-se sempre como Camões reúne à formosura dos versos o rigor científico das doutrinas do seu tempo.

“Faria e Sousa parece considerar ‘rapto’ como substantivo e diz que é termo próprio dos matemáticos (…). Parece-nos porém que o poeta emprega ‘rapto’ como adjetivo, exprimindo com as duas palavras, ‘movimento rapto’, a mesma idéia do substantivo ‘rapto’ (…)

“Aqui [na Cronografia, de André de Avelar, 1594] está o movimento diurno do Sol designado como ‘movimento rapto’, isto é, movimento de arraste, proveniente do primeiro móbil em oposição ao movimento próprio per obliquo na Eclíptica.

“O poeta diz analogamente que todas as esferas contidas no seio da décima esfera vão com este ‘rapto e grande movimento’, isto é, com o grande movimento de arraste em que são levados por esta esfera. Hoje o primeiro móbil é a Terra. É a rotação da Terra que produz o movimento diurno dos astros. É este ‘rapto e grande movimento’ em que somos levados no globo terrestre que nos dá a aparência do movimento diurno do firmamento. O verso do poeta ainda tem atualidade aplicado à Terra.

“Na segunda parte da est. 86 é descrita a nona esfera ou segundo móbil, também chamado Céu Áqueo ou Cristalino, designada na figura por Coelum aqueum. O Cristalino é a esfera propulsora do movimento dos ‘auges e estrelas fixas’, etc.”

Na gravura do volume I não está indicada esta esfera; cf. Introdução, p. 23 e est. 90. [Figura acima]


87 “Olha estoutro debaixo, que esmaltado
De corpos lisos anda e radiantes
Que também nele têm curso ordenado,
E nos seus axes correm cintilantes.
Bem vês como se veste, e faz ornado
C’o largo cinto d’ouro, que estrelantes
Animais doze traz afigurados,
Aposentos de Febo limitados.

Olha estoutro círculo – debaixo do nono (1) –, que anda esmaltado de lisos e radiantes corpos (2) que também têm nele ordenado (3) curso, e correm cintilantes nos seus axes (4). Bem vês como se veste, e se faz ornado com o largo cinto de ouro, que traz afigurados doze animais estrelantes (5): são os limitados aposentos de Febo (6).

(1) Referência ao círculo do Zodíaco – o oitavo céu, que se chamava o “firmamento” por se supor que ali demoravam as estrelas “fixas” (firmes). (2) “Esmaltado”, etc; o céu adornado de estrelas cintilantes. (3) “Que também”, etc; que as estrelas, assim como o círculo nono, tem também curso regrado, “uniforme”. (4) Eixos. (5) “Como se veste”, etc; repetição por outras palavras da idéia expressa no verso 5 (perífrase do Zodíaco), o céu adornado com as constelações dos signos, que os astrônomos figuram no papel com os nomes de animais: Touro, Áries, Peixes, etc. (6) “Limitados”, etc; alude-se às doze constelações zodiacais, que na sua zona circular parece que são percorridas pelo Sol (Febo) no espaço de um ano. Limitando-se o percurso do Sol a essas constelações – por isso (fig.) “limitados aposentos” –, não podia entrar noutros.

Lê-se em “A Astronomia dos Lusíadas” sobre a presente estância (pp. 27, 33, 61 e 88):

“Os corpos ‘lisos e radiantes’, que esmaltam o oitavo céu são as estrelas (…). Como as estrelas estão fixas neste céu, quando o poeta diz que ‘nele’ tem curso ordenado, significa apenas que elas são levadas no movimento regular próprio do firmamento; e que se trata do movimento próprio ao oitavo céu, indica-o na palavra ‘também’. As estrelas têm o movimento alheio que o primeiro móbil comunica a todos os orbes que ‘dentro tem no seio’; e têm mais o movimento alheio que o segundo móbil, por seu turno, comunica a todas as esferas interiores; mas não têm só estes dois movimentos, têm ‘também’ o curso ordenado, próprio do firmamento. A palavra ‘seus’ aplicada, no verso seguinte, aos eixos em volta dos quais as estrelas ‘correm cintilantes’, acentua que se não trata de curso alheio.

“Camões dizendo ‘axes’, no plural, refere-se aos extremos do eixo, como na est. 84 do canto VI: ‘Cair o céu dos eixos sobre a terra’. Os eixos do céu, que aqui significa toda a máquina celestial, são os extremos do eixo do mundo, pólos do movimento diurno. O céu ameaça desprender-se dos pólos Ártico e Antártico, e desabar sobre a terra.

“As estrelas são, através do século XVI, consideradas como núcleos de condensação da matéria de que os céus são compostos, brilhando com a luz recebida do Sol (…). Assim, na est. 87 do canto X (…) as estrelas são corpos ‘lisos’, como espelhos radiantes com a luz que recebem do Sol; brilham com ‘luz alheia’ (II, 60).

“Camões reflete a opinião corrente no seu tempo, não atribuindo luz própria às estrelas.

“O largo ‘cinto de ouro’, com que o firmamento se veste e faz ornado, é o Zodíaco, que o cinge com a profusa pregaria de ouro das constelações zodiacais. Os doze animais estrelantes ‘afigurados’ são as doze constelações do Zodíaco, cujas estrelas, pela sua disposição, ‘pintam e semelham’ a figura de animais. Os aposentos de Febo limitados são os doze signos, da extensão de 30 graus cada um, em que se divide o Zodíaco, e a que se deram os mesmos nomes das constelações, os quais o Sol vai sucessivamente percorrendo no seu movimento anual ao longo da Eclíptica, demorando-se em cada um deles um espaço de tempo de cerca de um mês.

“O Sol, percorrendo a Eclíptica, linha média do Zodíaco, ocupa sucessivamente cada um dos ‘signos’, que se chamavam também ‘casas’ do Sol. Por isso o poeta lhes chama ‘aposentos’ de Febo limitados. São ‘limitados’ à extensão de 30 graus cada um, perfazendo os doze os 360 graus da volta inteira do Zodíaco.”


88 “Olha por outras partes a pintura
Que as estrelas fulgentes vão fazendo;
Olha a Carreta, atenta a Cinosura,
Andrômeda e seu pai, e o Drago horrendo;
Vê de Cassiopéia a fermosura,
E do Orionte o gesto metuendo;
Olha o Cisne morrendo que suspira,
A Lebre, os Cães, a Nau e a doce Lira.

Olha, por outras partes, a pintura (1) que estão fazendo as fulgentes estrelas; olha a Carreta (2), atenta [observa bem] a Cinosura (3), Andrômeda (4) e seu pai (5) Cefeu, e o Drago (6) horrendo. Vê a formosura de Cassiopéia (7), e o gesto metuendo de Orionte (8); olha o Cisne (9) que suspira morrendo; olha a Lebre, os Cães (10), a Nau (11) e a doce Lira (12).

(1) “Pintura”: o delineamento das diversas constelações, que os antigos astrônomos indicavam nos mapas ou cartas celestes, ligando as diversas estrelas por linhas imaginárias formando diferentes figuras. (2) “Carreta”: designação popular da Ursa Maior, constelação boreal próxima do Pólo Ártico. Também é denominada carro de Davi; V, 15, nota 4. (3) “Cinosura”, constelação boreal denominada Ursa Menor; na mitologia grega, nome duma ninfa que por Zeus foi transformada em estrela. (4) “Andrômeda”, constelação boreal; na mitologia grega, nome duma filha de “Cefeu” (rei lendário da Etiópia) e de “Cassiopéia” (rainha da Etiópia). Cefeu e Cassiopéia são também os nomes de duas constelações boreais. Na lenda mitológica, Cassiopéia, por ser muito formosa, disputava o prêmio da beleza às Nereidas. Júpiter, para estas se vingarem, inventou um monstro que assolava a Etiópia. Para o aplacar, consultou-se um oráculo, que respondeu ser necessário que Andrômeda fosse exposta aos furores do monstro. A princesa, ligada a um rochedo pelas Nereidas, ia ser devorada, quando acudiu Perseu montado sobre um cavalo alado e libertou a princesa, sendo ela então e os pais transformados em estrelas. (5) Veja-se a nota precedente. (6) “Drago”, dragão: constelação boreal entre a Ursa Menor e Cefeu. Na mitologia, monstro fabuloso que é representado geralmente com asas, garras de leão, e cauda de serpente. Imaginou-se um dragão a guardar os pomos de ouro no jardim das Hespérides; e outro, a servir de guarda ao tosão de ouro, raptado pelos argonautas. (7) Veja-se a nota 4. (8) Nome do caçador que Diana transformou em constelação, por lhe ter faltado ao respeito (não se confunda com Actéon); VI, 85. (9) “Cisne”, constelação boreal; na mitologia (Cygnus), filho do rei da Ligúria e amigo de Faetonte, por cuja morte chorou tanto que foi transformado em cisne e colocado no céu; IX, 43. (10) “Lebre”, constelação boreal; a lebre que Orion perseguia andando à caça; “Cães”, outra constelação, os cães de caça de Orion. (11) Constelação boreal: a nau Argo, que depois da viagem à Cólquida foi convertida nessa constelação. (12) Constelação boreal; na fábula, a lira de Orfeu (filho de Apolo), colocada no céu e convertida em estrela.


89 “Debaixo deste grande firmamento
Vês o céu de Saturno, deus antigo;
Júpiter logo faz o movimento,
E Marte abaixo, bélico inimigo;
O claro olho do céu no quarto assento,
E Vênus, que os amores traz consigo;
Mercúrio, de eloqüência soberana;
Com três rostos debaixo vai Diana.

Debaixo deste grande firmamento (1) vês o céu de Saturno (2), deus antigo; Júpiter (3) faz logo abaixo o seu movimento, e abaixo está Marte (4), bélico inimigo; o claro olho do céu (5) está no quarto assento; e no terceiro está Vênus (6), que traz consigo os amores; e vês, no segundo círculo, Mercúrio (7), de soberana eloqüência; debaixo vai Diana (8) com três rostos.

(1) Grande firmamento; oitavo céu. (2) Planeta (que tomou esse nome da fábula) no sétimo céu. (3) Planeta no sexto céu. (4) Planeta no quinto céu; “belo inimigo”, por ter o nome do deus da guerra. (5) “Claro”, etc; perífrase do Sol, no quarto céu. (6) O planeta no terceiro céu (identificado com a deusa dos amores), chamado também estrela vespertina (quando aparece ao anoitecer) e estrela d’alva (quando aparece ao amanhecer). (7) Pequeno planeta, o mais próximo do Sol, no segundo céu. O deus da fábula com esse nome era protetor da eloqüência (assim como também do comércio e dos ladrões). (8) A Lua, no primeiro céu. Três rostos, porque os poetas fingiram Diana de três formas: Lucina, deusa que presidia ao nascimento, no céu; Diana, deusa da caça, na terra; e Prosérpina, nos infernos. Os três rostos da Diana aqui são as três fases: a Lua cheia, e os quartos crescente e minguante; na Lua Nova não há rosto porque a Lua se “esconde”.

Estão aqui representados os “sete céus” (I, 21); cf. Introdução do Vol. I, p. 23.


90 “Em todos estes orbes diferente
Curso verás, nuns grave e noutros leve;
Ora fogem do centro longamente,
Ora da Terra estão caminho breve;
Bem como quis o Padre onipotente,
Que o fogo fez, e o ar, o vento e neve,
Os quais verás que jazem mais a dentro,
E tem, c’o mar, a terra por seu centro.

Em todos estes orbes (1) verás curso diferente; nuns, curso grave (2), e noutros, leve (3): ora fogem (4) do centro longamente, ora estão a caminho breve da Terra (5), como bem quis o onipotente Padre (6), que fez o fogo e o ar, o vento e a neve, os quais (7) verás que jazem mais a dentro, e tem o mar e a terra por seu centro.

(1) Círculos, representando os céus; veja a nota precedente. (2) Vagaroso. (3) Ligeiro. (4) Correm velozmente a grande distância (“longamente”). (5) Alguns orbes estão longe do centro (a Terra), outros estão a breve distância do mesmo centro; os que estão mais distantes (no seu curso aparente em volta da Terra) andam mais depressa. (6) Pai: Deus. (7) Refere-se o pronome a “fogo, ar”, etc., os elementos que, segundo a antiga astronomia, havia interpostos entre a Terra e o primeiro céu; veja-se a figura na Introdução do Vol. I, p. 23.

Os antigos astrônomos distinguiam céus, orbes e esferas para explicar a complicada teoria dos “epiciclos e excêntricos”; cf. Introdução do Vol. I, p. 27.

Acerca dos “círculos e movimento dos planetas”, diz o Sr. Dr. Luciano Pereira da Silva em “A Astronomia dos Lusíadas”, p. 66 (depois duma transcrição do Tratado da Esfera, já citado):

“Na descrição dos movimentos planetários, Camões refere-se apenas aos excêntricos, não pensando em descrever os tão diversos movimentos dos epiciclos (…). E que especialmente se consideram os céus excêntricos, torna-se claro na est. 90.

“Estes orbes [verso 1] são os excêntricos deferentes dos planetas, mais afastados do centro da Terra, no auge ou apogeu, e mais perto dele no perigeu. Tem curso mais grave o deferente de Saturno em 30 anos, e o de Júpiter em 12; o de Marte faz seu curso em 2 anos, e os do Sol, Vênus e Mercúrio em 1 ano; o curso mais leve é o da Lua em 27 dias e 8 horas.

“Pondo de parte os epiciclos, peças menores com tão variados movimentos, o poeta reduz as esferas planetárias à simplicidade da do Sol; e assim pode manter aquela linha de sobriedade com que vem sendo feita esta admirável descrição da máquina do mundo.”

***


Leia mais em Lista de Livros Clássicos, segundo o Instituto Hugo de São Vitor

Leia mais em Matemática e Poesia juntas



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Uma Enciclopédia Matemática esquecida na História

Página de um manuscrito representando as
alegorias da aritmética e da geometria (manuscrito)

Tempo de leitura: 1h 10 min

Abaixo segue trechos de um artigo de Sérgio Nobre Isidoro de Sevilla e História da Matemática presente em sua enciclopédia Etimologías publicado na Revista Brasileira de História da Matemática - Vol. 5 nº 9 (abril/2005 -setembro/2005 ) - pág. 37-58. (RBHM, Vol. 5, no 9, p. 37-58, 2005).


ISIDORO DE SEVILLA E A HISTÓRIA DA MATEMÁTICA PRESENTE EM SUA ENCICLOPÉDIA ETIMOLOGIAS (SÉC. 7) [*] por Sergio Nobre, Unesp – Rio Claro - Brasil


Palavras iniciais

A história da divulgação das descobertas científicas é um grande e importante capítulo do contexto historiográfico científico. Antes do surgimento das grandes revistas científicas, o cientista, de posse de resultados novos e originais, tinha uma certa dificuldade em divulgar suas descobertas. O cuidado para que resultados científicos originais não caíssem em mãos inadequadas chegava a ser de tal forma meticuloso que exigia muita criatividade por parte de seus autores. Leonardo da Vinci (1452-1519), por exemplo, escreveu a maioria de seus textos científicos de forma que pudessem ser lidos somente através de um espelho, e espelho naquela época era artigo raro. O envio de correspondências comunicando os resultados descobertos foi um importante meio de divulgação científica e foi muito usado. De posse de um novo resultado, o cientista enviava correspondências para diferentes colegas, como forma de que estes soubessem da nova descoberta. O envio simultâneo de correspondências para diferentes pessoas servia também para garantir que, individualmente, nenhuma delas pudesse alegar ser o detentor das idéias contidas na carta recebida. Em alguns casos, a mensagem contida nessas correspondências era feita através de códigos, que somente o remetente tinha a chave de como decifrar. Um exemplo clássico foram as correspondências enviadas por Isaac Newton a Leibniz, onde, através de anagramas, Newton comunicou a Leibniz suas descobertas relativas ao Cálculo Diferencial e Integral [1].

A partir de meados do século XVII, com o surgimento das academias científicas e de revistas científicas, a divulgação científica ganhou novas proporções. O cientista passou a ter as sessões das academias como fórum de divulgação de suas descobertas e as revistas científicas como instrumento de difusão destas. As principais revistas surgidas foram: Journal des Sçavans, Paris, 1665; Philosophical Transactions, Londres,1665; Giornale de Letterati, Roma, 1668; Acta Eruditorum Lipsiensis, Leipzig, 1682; Mémoires de l'Acádemie des Sciences, Paris, 1699; Miscellanea Berolinensia, Berlin, 1710; Commentarii Academiae Scientiarum Imperialis Petropolitanae, St. Petersburgo, 1728. Nelas foram publicados alguns dos mais importantes artigos científicos do período que compreende o final do século XVII e início do século XIX. No entanto, após o surgimento das revistas científicas, não foram somente elas que serviram de instrumento de divulgação de temas originais. A publicação de muitos resultados originais também se deu por intermédio de livros, e sobre isso existem alguns exemplos clássicos. Em alguns casos, o reconhecimento dos resultados apresentados deu-se de imediato, como é o exemplo de Isaac Newton que expôs muitos resultados originais em sua obra Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, publicada em 1687. O Marquês de L‟Hospital (1661-1704) também apresentou alguns resultados originais em sua obra de maior importância, Analyse des infiniment petits, publicado em 1696. A famosa Regra de L’Hospital, embora reconhecida posteriormente como não sendo de sua autoria, ganhou notoriedade a partir de seu aparecimento nesse livro.

O matemático português José Anastácio da Cunha (1744-1787), porém, não teve a mesma sorte que os colegas acadêmicos acima citados. Anastácio da Cunha também apresentou alguns resultados originais acerca da análise infinitesimal em seu livro Princípios Mathemáticos, publicado em Lisboa, em 1790, mas, por problemas relativos à pequena divulgação da obra nos meios acadêmicos europeus, eles não lhes trouxeram o merecido reconhecimento no período da publicação. Se da Cunha tivesse optado por divulgá-los em revistas científicas existentes na época, certamente a história de seu reconhecimento como importante matemático europeu teria sido outra [2].

Casos semelhantes ao de Anastácio da Cunha são comuns no desenvolvimento historiográfico da matemática e, de tempos em tempos, descobrem-se autores que produziram boa matemática e que, inclusive, obtiveram resultados originais, antecipando-se àqueles que foram aclamados pela comunidade científica como tendo sido os primeiros a obterem tais resultados [3].

Além de livros e textos referentes a temas específicos que foram escritos por personagens pertencentes ao mundo científico, e que, ou ainda são desconhecidos pela comunidade de historiadores, ou ainda não foram analisados com a necessária profundidade histórico-científica, há um universo que se abre no campo literário em geral. Muitas outras obras que, embora não tenham sido escritas originalmente obedecendo os parâmetros estritamente científicos, também apresentam importantes informações acerca do desenvolvimento da ciência. Sejam essas obras de ficção ou não, em alguns casos, elas abordam temas que dizem respeito ao conhecimento científico, evocando inclusive muitos assuntos científicos originais. No caso das obras literárias classificadas como não sendo de ficção, possivelmente o melhor exemplo que, no decorrer da história do desenvolvimento cultural, apresentou em seu conteúdo idéias científicas originais, são as enciclopédias universais. Embora elas não tenham sido escritas com esse objetivo, pesquisas históricas realizadas em algumas dessas obras detectaram a existência de temas que foram tratados de forma relativamente original para a época de sua publicação [4].

No que diz respeito à apresentação de assuntos históricos, a obra enciclopédica é elemento fundamental, pois nela contém episódios que foram relevantes na época de sua publicação, muitos dos quais foram perdendo seu lugar de destaque com o decorrer dos anos, o que qualifica essas obras como importantes instrumentos para a análise historiográfica tanto sob o ponto de vista geral, como sob o específico. Uma análise sobre os elementos históricos referentes à matemática presentes em obras enciclopédicas é o objeto de interesse de um amplo trabalho de investigação. Uma primeira etapa deste trabalho foi realizada em uma obra do início do século VII Etymologiarvm sive Originvm libri XX, de Isidoro de Sevilla.

Sob o ponto de vista geral, uma obra enciclopédica é a apresentação sistemática de todo o conhecimento acumulado até o período de sua publicação. Uma obra enciclopédica possui características específicas e diferenciadas de uma obra científica especializada. Destinada ao grande público, a enciclopédia tem como principal meta apresentar as informações de tal forma que possam ser compreendidas por um leitor comum, ou seja, pelo leitor não especialista no assunto em questão. Enfim, uma enciclopédia tem como objetivo central oferecer aos seus leitores informações globais sobre determinados temas através de uma linguagem simples e de fácil compreensão. O objetivo central deste trabalho é analisar a matemática presente na obra supra citada, e, em especial, como se dá a apresentação de informações históricas relativas a ela. Inicialmente foi escolhida uma enciclopédia do período que antecedeu a Idade Média Européia, e sobre ela este texto discorrerá.

A escolha da enciclopédia de Isidoro de Sevilla para a realização deste estudo deve-se ao fato de que ela é uma das mais importantes obras enciclopédicas produzidas no período de transição entre as Idades Antiga e Média. Alguns anos antes da publicação da enciclopédia de Isidoro, Cassiodorus (490-585) foi responsável pela compilação da obra Institutiones divinarum et sæcularium litterarum, também uma enciclopédia que, em parte, serviu de referência para Isidoro. Por que então a opção pela obra de Isidoro? As frases de Bernard Ribémont colaboram para uma melhor explicação acerca dessa opção:

The medieval encyclopaedic tradition was founded under Isidore's pen. Indeed, even if Isidore, knowing the second book of the Instituitiones, took from it his speech on the liberal arts, his own procedure is quite different from that of Cassiodorus. Cassiodorus proposed a reading program to his monks, gathering sacred letters and secular ones –giving first place to the former- and built an educational course for the micro-society of monks, who needed to find their way in a library in search of the books they needed to improve their knowledge of the sacra pagina.. Isidore handled the problem differently, because he embedded it in a wider and a far more systematic perspective. Here there is no question of a catalogue raisonné, but rather each rubric is justified by two elements: in the first place, the book of Etymologiae, as indicated in the title, is entirely based on a system that could be summarised in the Isidorian maxim: etymologia est ortigo [5].

No sentido de completar as frases de Ribémont, há de ser destacada a importância dada atualmente à pessoa do Santo Isidoro de Sevilla, que tem o dia 4 de abril dedicado a ele. Isidoro é tido como o santo padroeiro dos internautas. Uma pessoa do passado a quem foram atribuídas qualidades futurísticas [6], sobre quem a frase do grande poeta alemão Friedrich Schiller (1759-1805) encontra um sentido: Die Welt wird alt und wird wieder jung, ou seja, o mundo torna-se velho e torna-se novamente jovem. Para a realização deste estudo foi utilizada a edição crítica da obra de Isidoro publicada no idioma original em 1911, em Oxford [7] e as principais obras de referência foram os textos de Ernest Brehaut An encyclopedist of the dark ages – Isidore of Seville, publicado em primeira edição no ano de 1912, Die Artes liberales im frühen Mittelalter (5. – 9. Jh.), de Brigitte Englisch [8].


Isidoro de Sevilla – vida e obra

Os dados relativos à infância e adolescência de Isidoro de Sevilla são escassos [9]. Presume-se que ele tenha nascido no ano de 560, provavelmente na região de Cartagena, no sul da Espanha. Com o falecimento de seus pais, quando ainda era muito jovem, Isidoro ficou aos cuidados de seu irmão mais velho, o Bispo Leandro de Sevilla (?-601?), que o encaminhou para a vida religiosa. Isidoro tornou-se Bispo de Sevilla aproximadamente entre 599 e 601, sucedendo a seu irmão. Seu falecimento dá-se no dia 04 de abril de 636, na cidade de Sevilla. Isidoro de Sevilla foi canonizado no ano de 1598, tornando-se Santo Isidoro de Sevilla. O dia de seu falecimento é referenciado pela Igreja Católica como “Dia de Santo Isidoro”. Em 1722 ele foi referenciado Mestre da Doutrina Religiosa pelo Papa Inocêncio XIII [10].

Embora considerado como apenas um disseminador do conhecimento, pois, segundo alguns historiadores contemporâneos, não realizou novas observações, não fez novas interpretações e nenhuma descoberta [11], Isidoro de Sevilla figura como um dos mais importantes personagens na história do período de transição entre a Antigüidade e a Idade Média Européia. Suas obras obtiveram grande difusão ainda no início do século VII, tornando-se conhecidas tanto por povos de origem latina quanto por outros povos como os irlandeses, os ingleses e os alemães. A obra de Isidoro é considerada como a mais lida durante todo o período da Idade Média Européia [12]. Devido às ricas informações contidas nessas obras, tanto sobre o período no qual foram escritas como também sobre períodos anteriores, é inquestionável sua relevância para a História da Humanidade. Esse fato pode ser confirmado a partir de inúmeras referências feitas aos escritos de Isidoro de Sevilla e, mais recentemente, a partir da quantidade de trabalhos histórico-científicos produzidos sobre sua produção literária, como se pode confirmar nas palavras de Ernest Brehaut: The influence which he exerted upon the following centuries was very great. His organisation of the field of secular science, although it amounted to no more than the laying out of a corpse, was that chiefly accepted throughout the early medieval period. The innumerable references to him by later writers, the many remaining manuscripts, and the successive editions of his works after the invention of printing, indicate the great role he played [13].

Sem deixar de lado assuntos religiosos, quando escreveu sobre as sagradas escrituras, as leis canônicas, teologia e liturgia, Isidoro também se dedicou à escrita de temas ligados à história da Espanha e história geral, à educação e à ciência, com ênfase nas Artes Liberais. Além de sua consagrada enciclopédia Etymologiarvm sive Originvm libri XX, os trabalhos mais importantes de Isidoro são: Differentiae, de Natura Rerum, Liber Numerorum, Alegoriae, Sentenciae e Ordine Creatorarum [14].

A obra Differentiae é composta de dois livros. O primeiro, organizado em ordem alfabética, trata das diferenças entre palavras e o segundo das diferenças entre coisas. O texto de Natura Rerum [15] é um livro científico onde Isidoro apresenta sua visão física do universo dissertando, sobre temas que são abordados no livro do Gênesis, como: o fenômeno da criação da luz; o dia e a noite e as seqüências das semanas e meses que compunham o calendário; o céu e os fenômenos meteorológicos como o trovão, o arco-íris, o vento; mares e oceanos, entre outros. O texto Liber Numerorum, embora pelo título dê a entender que seja um livro matemático, na verdade trata de assuntos ligados ao misticismo sobre os números. Alegoriae é um texto com breves comentários sobre as principais alegorias presentes no Velho e no Novo Testamento. O tratado sobre a doutrina cristã e sobre a moral, o Sententiae, composto de três livros, é um dos mais importantes escritos de Isidoro de Sevilla. No texto de Ordine Creaturarum, Isidoro, diferentemente do que havia feito no Natura Rerum, apresenta a criação do universo tanto do ponto de vista material como espiritual. Certamente todos os seus escritos serviram de suporte para que Isidoro pudesse organizar a sua obra principal, a enciclopédia Etimologias, sobre a qual apresentaremos maiores detalhes.


Etymologiarvm sive Originvm libri XX

Organizada em 20 livros, a obra Etimologias, ou Origens, de Isidoro de Sevilla figura como uma das mais importantes obras enciclopédicas da cultura ocidental. Um destaque acerca dessa importância está na quantidade de reedições que a obra tem [16]. Ainda sobre isso, escreve Ernest Brehaut: His many writings, and especially his great encyclopaedia, the Etymologies, are among the most important sources for the history of intellectual culture in the early middle ages, since in them are gathered together and summed up all such dead remnants of secular learning as had not been absolutely rejected by the superstition of his own and earlier ages [17].

Etimologias é uma obra que apresenta o conhecimento de forma geral com tendências a estabelecer um padrão educacional para a época. Através de uma ampla abordagem sobre o conhecimento humano da época, além dos assuntos eclesiais, Isidoro de Sevilla apresenta em sua obra uma quantidade significativa de temas que iriam fazer parte do Trivium e do Quadrivium [18] adotados pelas instituições educacionais nos séculos seguintes. Os títulos dos 20 livros são:

1. De Grammatica et Partibus eius;

2. De Rethorica et Dialetica;

3. De Mathematica, cuius partes sunt Arithmetica, Musica, Geometrica et Astronomica;

4. De Medicina;

5. De Legibus vel Instrumentis Iudicum ac de Temporibus;

6. De Ordine Scripturarum, de Cyclis et Canonibus, de Festivitatibus et Officiis;

7. De Deo et Angelis, de Nominibus Praesagis, de Nominibus Sanctorum Patrum, de Martyribus, Clericis, Monachis, et ceteris Nominibus;

8. De Ecclesia et Synagoga, de Religione et Fide, de Haeresibus, de Philosophis, Poetis, Sibyllis, Magis, Paganis ac Dis Gentium;

9. De Linguis Gentium, de Regum, Militum Civiumque Vocabulis vel Affinatatibus;

10. [De] Qua<e>dam Nomina per Alphabetum Distincta;

11. De Homine et Partibus eius, de Aetatibus Hominum, de Portentis et Transformatis;

12. De Quadrupedibus, Reptilibus, Piscibus ac Volat<il>ibus;

13. De Elementis, id est de Caelo et Aere, de Aquis, de Mare, [de] Fluminibus ac Diluviis;

14. De Terra et Paradiso et [de] Provinciis totius Orbis, de Insulis, Montibus ceterisque Locorum Vocabulis ac de Inferioribus Terrae;

15. De Civitatibus, de Aedificiis Vrbanis et Rusticis, de Agris, de Finibus et Mensuris Agrorum, de Itineribus;

16. De Glebis ex Terra vel Aquis, de omni genere Gemmarum et Lapidum pretiosorum et vilium, de Ebore quoque inter Marmora notato, de Vitro, de Metallis omnibus, de Ponderibus et Mensuris;

17. De Culturis Agrorum, de Frugibus universi generis, de Vitibus et Arboribus omnis generis, de Herbis et Holeribus universis;

18. De Bellis et Triumphis ac Instrumentis Bellicis, de Foro, de Spectaculis, Alea et Pila;

19. De Navibus, Funibus et Retibus, de Fabris Ferrariis et Fabricis Parientum et cunctis Instrumentis Aedificiorum, de Lanificiis quoque, Ornamentis et Vestibus universis;

20. De Mensis et Escis et Potibus et Vasculis corum, de Vasis Vinariis, Aquariis et Oleariis, Cocorum, Pistorum, et Luminariorum, de Lectis, Sellis et Vehiculis, Rusticis et Hortorum, sive de Instrumentis Equorum.

Especificamente, os livros apresentam os seguintes temas:

Artes Liberais

livros 1 a 3

Medicina e anatomia humana

livros 4 e 11

Direito

livro 5

Assuntos religiosos

livros 6 a 8

Idiomas e pessoas em diferentes impérios

livro 9

Dicionário etimológico (ordem alfabética)

livro 10

Zoologia

livro 12

Geografia, cosmologia e divisões do tempo

livros 13, 14 e 5

Elementos da construção civil, materiais, pesos e medidas

livros 15 e 16

Agricultura

livro 17

Elementos bélicos

livro 18

Navegações, edificações, ornamentações

livro 19

Alimentos, ferramentas, móveis

livro 20

Em grandes blocos, os assuntos presentes na Etimologias são:

  • Educacionais e científicos: englobando as artes liberais, medicina, zoologia, geografia, cosmologia, meteorologia, etc.;
  • Religiosos e jurídicos;
  • Técnicos: com temas sobre edificações, agricultura, navegações, elementos de guerra, etc.

Em uma análise preliminar sobre os três blocos de assuntos presentes na enciclopédia de Isidoro percebe-se a abrangência e o caráter universal da obra em relação ao período no qual foi escrita. De modo geral, os temas justificam-se a partir do pensamento intelectual da época. Os temas religiosos e jurídicos são justificados pelas atividades religiosas do autor e a estreita ligação entre igreja e estado. Os temas técnicos adquirem uma conotação toda especial para o período de conquistas romanas e a construção, também no sentido físico, do grande Império Romano. Os temas educacionais e científicos apresentados na obra Etimologias são característicos do pensamento enciclopédico do período em questão e dizem respeito também ao envolvimento de Isidoro com assuntos ligados à educação de jovens nos mosteiros. Dentre os assuntos científicos apresentados na enciclopédia, a Matemática ocupa um destaque especial no livro 3, de Mathematica, cuius partes sunt Arithmetica, Musica, Geometrica et Astronomica, onde são abordados os grandes temas matemáticos da época, consagrados como os elementos fundamentais no currículo acadêmico da Idade Média Européia, ou seja, o Quadrivium. A esse capítulo dedicaremos maior atenção.


Livro 3: de Mathematica, cuius partes sunt Arithmetica, Musica, Geometrica et Astronomica (sobre a Matemática, cujas partes são Aritmética, Música, Geometria e Astronomia).

Na história européia, o período que compreende os séculos VI e VII, vivido por Isidoro de Sevilla, é conhecido historicamente como um período obscuro devido às poucas informações que se tem sobre ele. Isso também diz respeito ao pouco que se sabe sobre o desenvolvimento da matemática. Anicius Boethius (c.480-524) é reconhecidamente o matemático mais importante dessa época e sua obra representa o período no qual se fortaleciam as traduções de textos de matemática do grego para o latim. Um outro personagem importante para esse período foi o senador romano Flavius Magnus Aurélius Cassiodorus (490-585), discípulo de Boethius. Apesar de ele não ter se dedicado às matemáticas, é responsável por importantes obras de divulgação, dentre elas Institutiones divinarum et sæcularium litterarum, em dois volumes, o segundo volume dedicado às Artes Liberais, onde a matemática está incluída. Como seguidor das orientações de Cassiodorus, e indiretamente das de Boethius, Isidoro de Sevilla figura também como uma personalidade importante para a matemática nessa chamada época das trevas. Dentre as poucas informações que se tem sobre a matemática no território europeu dessa época, as obras de Boethius, Cassiodorus e de Isidoro destacam-se como as de maior importância. O texto sobre a matemática que Isidoro apresenta na Etimologias, por obedecer a características próprias a um texto enciclopédico, é classificado como um texto educacional. E foi certamente este o objetivo do autor, ou seja, apresentar assuntos referentes à matemática de forma simples e de fácil compreensão. A caracterização de texto educacional evidencia-se através da forma como Isidoro classifica as quatro partes da matemática. Aritmética, geometria, música e astronomia são classificadas não como domínios do conhecimento matemático, mas sim como disciplinas, seguindo, portanto, o propósito do autor em oferecer um texto didático sobre a matemática que pudesse ser utilizado por estudantes de sua época.


O conteúdo matemático na obra Etimologias

Iniciamos este capítulo afirmando que não é o propósito deste trabalho realizar uma análise detalhada sobre como é apresentada a matemática na obra Etimologias de Isidoro de Sevilla. Para os interessados em tal análise, indicamos as obras citadas no início do texto. O objetivo central é apenas dar uma visão geral de como Isidoro apresentou a matemática, abrindo então um caminho para o tema central deste trabalho, que é a análise sobre os temas historiográficos relativos à ciência e à matemática presentes na obra.


Sobre a aritmética

Isidoro inicia o texto dizendo que a aritmética é a ciência dos números e que na literatura secular os escritores assumem que eles (os números) são os primeiros elementos na ciência matemática que não dependem de outras ciências para sua existência. Após essa introdução, são apresentados pequenos verbetes (itens) explicativos sobre os números, suas qualidades e as operações entre eles. Os verbetes são:

 quid sit numerus (o que é número): é um verbete introdutório onde é dada uma explicação inicial sobre o que é número, numerus autem est multitudo ex unitatibus constituta (número é multitude constituída de unidades), e em seguida algumas explicações sobre a origem dos termos, nas quais são comparados os termos em grego com o seu significado em latim. Ao realizar as explicações sobre as relações entre os termos em grego e em latim, percebe-se que Isidoro se fundamenta na cultura matemática grega para desenvolver seus escritos;

quid praestent numeri (a que servem os números): neste verbete Isidoro evoca o poder religioso para justificar a importância dos números na vida das pessoas. Para tanto é citada uma frase contida no Livro da Sabedoria das Sagradas Escrituras - "Omnia in mensura et numero et pondere fecisti" (tudo dispuseste com medida, número e peso) (Sap. 11,21);

de prima divisione parium et imparium (sobre a primeira divisão em pares e ímpares): a divisão dos números em pares e ímpares e suas características é explicada neste verbete. Dentre algumas classificações dadas por Isidoro, como “números simples, compostos, medíocres, etc”, aparece a classificação de número primo embora a expressão “número primo” não seja usada – Simplices sunt, qui nullam aliam partem habent nisi solam unitaten, ut ternarius solam tertiam, et quinarius solam quintam, et septanarius solam septimam. His enim una pars sola est (simples são os que não têm nenhuma outra parte senão a unidade, como o ternário só a terça, o quinário só a quinta, o septenário só a sétima. Pois nesses há apenas uma só parte);

de secunda divisione totius numeri (sobre a segunda divisão de todos os números): aqui são dadas explicações sobre os múltiplos e submúltiplos dos números, igualdade e desigualdade entre números, e, através da comparação entre números, são apresentados números fracionários. O exemplo dado para isto é que na comparação entre os números 3 e 2, o 3 contém o 2 uma vez mais o número 1, que é a metade do 2;

de tertia divisione totius numeri (sobre a terceira divisão de todos os números): neste item Isidoro escreve que os números são divididos em abstratos e concretos e estes (os concretos) podem ser compreendidos como a representação de medidas lineares, medidas de superfície e medidas de volumes. Os números abstratos são aqueles que são entendidos como unidades abstratas e os números concretos representam magnitude. Nesse verbete Isidoro evidencia a utilização prática dos números quando eles representam uma unidade de medida, mas é importante ressaltar que a noção abstrata de número não é abandonada;

de differentia Arithmeticae, Geometriae et Musicae (sobre a diferença entre aritmética, geometria e música): neste pequeno verbete, Isidoro explica, a partir de exemplos numéricos, que há diferenças nas operações com números efetuadas no campo da aritmética, ou no campo da geometria, ou então no campo musical;

quot numeri infinit existunt (que números infinitos existem): através de explicações sobre o processo da soma e da multiplicação entre os números é dada a certeza da existência de números infinitamente grandes.


Sobre a geometria

O capítulo sobre geometria é apresentado por Isidoro de forma bem sucinta; de forma geral, são explicadas apenas algumas nomenclaturas. Os verbetes com a apresentação dos elementos geométricos são:

de quadripartita divisione geometriae (sobre os quatro desdobramentos da geometria): que a geometria se desdobra em figuras planas, grandezas numéricas, grandezas racionais e figuras sólidas. Na explicação sobre o que são grandezas racionais, Isidoro menciona a existência de grandezas irracionais - Magnitudines rationales sunt, quorum mensuram scire possumus, inrationales vero, quorum mensurae quantitas cognita non habetur (grandezas racionais são aquelas das quais podemos ter uma medida, e as irracionais aquelas das quais não há medida em quantidade conhecida);

de figuris geometriae (sobre as figuras geométricas): através do auxílio do desenho, são apresentadas algumas figuras geométricas como círculo e semicírculo, quadrilátero, esfera, cubo, cone, pirâmide, entre outras. Neste item também aparecem as definições de ponto, reta e plano (superfície) que seguem as orientações expostas por Euclides (c.365-300) em seus Elementos – Prima autem figura huius artis punctus est, cuius pars nulla est. Secunda linea, prater latitudinem longitudo. Recta linea est, quae ex aequo in suis punctis iacet. Superficies vero, quod longitudines et latitudines solas habet. Superficei vero fines lineae sunt, quorum formae ideo in superioribus decem figuris positae non sunt, quia intereas inveniuntur (A primeira figura desta arte é o ponto, que não tem parte. A segunda é a linha, que tem longura, mas não largura. Linha reta é a que jaz por igual em seus pontos. A superfície tem apenas largura e longura. Os limites da superfície são as linhas, cujas formas por isso não foram postas nas dez figuras acima (anteriores), porque se encontram entre elas);

de numeris geometriae (sobre os números geométricos): neste item são dados alguns exemplos numéricos com o objetivo de se explicar a existência da média geométrica.


Sobre a música

Por meio de um tratamento educacional, onde a música é apresentada como a mais velha das subdivisões da matemática, Isidoro inicia este capítulo explicando o que é música – Musica est peritia modulationes sono cantuque consistens (Música é uma perícia que consiste em realizar modulações com som e canto) e as origens do termo música – et dicta Musica per derivationem a Musis (é dita Música por derivação de Musas). A seguir, tece pequenos comentários sobre a importância da música, suas subdivisões e como os tempos musicais se ordenam de forma numérica. A apresentação de alguns dos verbetes é dada da seguinte forma:

quid possit musica (sobre o poder da música): neste verbete é destacado que o conhecimento musical é primordial para que se dê o conhecimento universal;

de tribus partibus musicae (sobre as três partes da música): as três partes da música são: harmônica, rítmica e métrica;

de triformi musicae divisione (sobre as três formas de divisão da música): nestes e nos próximos verbetes, Isidoro tece explicações sobre a divisão harmônica, a divisão orgânica e sobre a divisão rítmica da música;

de numeros musicis (sobre os números da música): neste verbete são explicadas as relações entre os números e os tempos musicais.


Sobre a astronomia

O capítulo sobre a astronomia é o maior dos quatro apresentados como subdivisões da matemática. São 47 verbetes (itens) sendo que o último (sobre os nomes das estrelas) ocupa a terça parte do capítulo. Alguns dos verbetes são:

de differentia astronomiae et astrologiae (sobre a diferença entre astronomia e astrologia): neste item Isidoro evidencia que há diferenças entre astronomia e astrologia. Enquanto a astronomia explica os movimentos ocorridos no céu, as posições e os movimentos dos corpos celestes, assim como suas origens e nomenclaturas, a astrologia é em parte natural e em parte superstição. A parte supersticiosa da astrologia é aquela que faz profecias através das estrelas. Este é um tema que certamente abalava as estruturas religiosas da época, no entanto Isidoro não omite em sua obra a existência de áreas do conhecimento que se ocupam de temas que se contrapõem aos dogmas religiosos;

de astronomiae ratione (sobre a razão da astronomia): o objetivo da astronomia é definir o que é o universo, o que é posição e movimento dos planetas, o que são os cursos do sol, da lua e das estrelas, etc;

de forma mundi (sobre a forma do universo): forma mundi ita demonstratur. Nam quemadmodum erigitur mundus in septentrionalem plagam, ita declinatur in australem. Caput autem eius et quasi facies orientalis regio est, ultima pars septentrionatis est (sobre a forma do universo: a forma do universo assim se demonstra. Da mesma forma como o universo se ergue na região setentrional, assim declina na austral. Sua parte superior e como que sua face é a região oriental, e sua parte inferior a setentrional.);

de sphaerae caelestis situ (sobre a localização da esfera celeste): seguindo o modelo ptolomaico, o que é natural para a época, Isidoro afirma que o universo é uma esfera e seu centro é a Terra;

de magnitudine solis (sobre a magnitude do sol): Magnitudo solis fortior terrae est, unde et eodem momento, quum oritur, et orienti simul et occidenti aequaliter apparet. Quod tamquam cubitalis nobis videtur, considerare oportet quantum sol distat a terris, quae longitudo facit ut parvus videatur a nobis (O sol é maior do que a terra, pois no mesmo momento em que nasce, apresenta-se igualmente ao oriente e ao ocidente. Porque parece ter a altura de um côvado, é preciso considerar o quanto o sol dista da terra, e a distância faz com que pareça pequeno para nós);

de cursu solis (sobre o curso do sol): Neste item é afirmado que o Sol tem um movimento sobre si próprio e que não acompanha o movimento do universo - Solem per se ipsum moveri, non cum mundo verti (o sol se move por si só, e não junto com o universo). Também é ressaltado que o Sol não possui um curso fixo, o que se percebe através das mudanças de local no nascente e poente;

de itinere solis (sobre o itinerário do sol): Sol oriens per meridiem iter habet. Qui postquam ad occasum venerit et Oceano se tinxerit, per incognitas sub terra vias vadit et rursus ad orientem (O sol, depois que nasce faz, seu caminho pelo meridião. Depois que tiver se posto e se banhado no Oceano, vai por sob a terra, por caminhos desconhecidos, de volta ao oriente). [...];

de lumine lunae (sobre a luz da Lua): neste verbete Isidoro evidencia que há discussões entre os filósofos sobre se a Lua possui ou não luz própria. Enquanto alguns afirmam que a Lua possui luz própria, que uma de suas partes é brilhante e a outra escura e que seu movimento resulta nas diferentes fases, outros, ao contrário, afirmam que ela é iluminada pelos raios do Sol, e que, portanto, por esse motivo, ocorre o eclipse. Cabe ressaltar aqui a postura de Isidoro em divulgar pensamentos divergentes sobre determinados assuntos, no entanto fica claro que ele adota a segunda interpretação quando ele disserta em outro verbete sobre a luz das estrelas;

de vicinitate lunae ad terras (sobre a proximidade da Lua com a Terra): a Lua está mais próxima da Terra do que o Sol e, portanto, tem uma órbita menor e por isto termina seu curso mais rapidamente. Neste verbete também é acrescentado que os antigos entendem que a mudança dos meses depende da Lua enquanto a mudança dos anos depende do Sol;

de lumine stellarum (sobre a luz das estrelas): neste verbete, em poucas palavras, Isidoro assume que as estrelas não têm luz própria e que, da mesma forma que a Lua, são iluminadas pelo Sol;

de nominibus stellarum (sobre os nomes das estrelas): este é o maior verbete do capítulo, ocupando aproximadamente a terça parte dele. Nele são apresentados os nomes dos astros conhecidos no céu, como os planetas, estrelas, constelações, etc. Há também uma pequena explicação sobre os cometas.


Notas sobre a história da matemática no Livro 3

Ao iniciar os capítulos referentes à aritmética, geometria, música e astronomia, Isidoro de Sevilla faz a apresentação dos temas a partir de informações sobre suas histórias e sobre alguns personagens que tenham contribuído para o desenvolvimento deles. Com exceção da aritmética, parte em que Isidoro escreve sobre seus autores, de auctoribus eius, nos outros três casos ele usa o termo “inventores” para qualificar aqueles que foram os primeiros a atuarem nos referidos assuntos (por exemplo, de inventoribus geometriae: sobre os inventores da geometria). A discussão sobre se os elementos matemáticos são descobertas ou invenções faz parte das questões filosófico-acadêmicas da época atual. Não há indícios na obra de Isidoro de que ele estivesse atento a este tema, tanto porque ele não menciona a palavra descoberta em seu texto. Nesse sentido fica aqui registrado como um pensador europeu do início do século VII qualificava aqueles que foram pioneiros no desenvolvimento de um determinado assunto teórico.

As referências históricas presentes na obra Etimologias aparecem através de pequenas informações, em forma de verbetes (itens), onde são evidenciados a origem dos assuntos ou quem foram os primeiros a se ocupar deles. Para que se possa ter idéia de como estão apresentados tais verbetes, transcrevemos aqui os textos na versão original em latim, acompanhados das respectivas análises históricas:


Livro 3 – de Mathematica

Capítulo – de Arithmetica

DE AVCTORIBVS EIVS. Numeri disciplinam apud Graecos primum Pythagoram autumant cosncripsisse, ac deinde a Nicomacho diffusius esse dispositam; quam apud Latinos primus Apuleius, deinde Boetius transtulerunt.

Isidoro menciona que Pitágoras foi o primeiro grego a escrever sobre a ciência dos números e que posteriormente foi completado por Nicomachus. As informações históricas contidas nesse verbete são importantes contribuições para aqueles que posteriormente viriam a escrever sobre a história das origens das teorias numéricas. Isidoro ressalta a figura do personagem de nome Pitágoras (c.580-500), ligado à Ciência dos Números. Embora Isidoro não mencione a existência de documentos que comprovem a existência de Pitágoras, pois certamente ele também se apóia em outros autores que o citam [19], esse é mais um documento histórico que confirma a ligação de Pitágoras com a matemática e especificamente com temas relacionados à teoria de números. Outra informação histórica importante que aparece nesse pequeno verbete é a existência de um outro grego que continuou os estudos iniciados por Pitágoras ou por membros da Escola Pitagórica. Isidoro cita Nicomachus de Gerasa (~100 A.D.), pitagórico que, além de escritos matemáticos, produziu muitos textos sobre teoria musical [20]. A respeito da obra matemática de Nicomachus, Isidoro não menciona o título - certamente deve ser o seu texto mais conhecido, Introdução à aritmética [21] - mas explicita que ela obteve duas traduções para o latim. Com relação às traduções para o latim, Isidoro menciona que a obra de Nicomachus foi primeiramente traduzida por Apuleius e em seguida por Boethius. São duas informações importantes para a compreensão do desenvolvimento histórico relativo às traduções de textos gregos para o latim. Primeiramente é citado Apuleius de Madaura (c.125-171), um sofista platônico provavelmente do século II da Era Cristã, de quem muito pouco se sabe, muito menos sobre suas atividades relacionadas à matemática [22]. Cabe ressaltar, que dentre as poucas informações que se têm atualmente sobre Apuleius, algumas são originárias das menções feitas a ele por Cassiodorus e Isidoro [23]. Caso fosse encontrada, certamente essa tradução da obra de Nicomachus feita por Apuleius teria sua dose de contribuição para a compreensão do pensamento romano-europeu no início da era cristã. Como dissemos, o segundo autor citado por Isidoro como tradutor da obra de Nicomachus foi o erudito italiano Anicius Boethius (c.480-524), que em vida atuou nas áreas de lógica, matemática, música, teologia e filosofia. A informação dada por Isidoro de que Boethius traduziu a obra de Nicomachus não é uma simples especulação. Historiadores clássicos como Montucla (1725-1799) e Moritz Cantor reafirmam o que Isidoro escreve. Historiadores contemporâneos que se dedicaram à comparação entre as obras, como o Prof. Dr. Menso Folkerts, do Institut der Geschichte der Naturwissenschaften da Universidade de Munique, por exemplo, também confirmam que os textos matemáticos de Boethius são traduções de textos gregos [24]. Isso nos leva a reafirmar a importância das informações históricas contidas na obra de Isidoro.


Livro 3 – de Mathematica

Capítulo – de Geometria

DE INVENTIORIBVS GEOMETRIAE. Geometriae disciplina primum ab Aegyptiis reperta dicitur, quod, inundante Nilo et possessionibus limo obductis, initium terrae dividendae per lineas et mensuras nomen arti dedit. Quae deinde longius acumine sapientium profecta et maris et caeli et aeris spatia metiuntur. Nam provocati studio sic coeperunt post terrae dimensionem et caeli spatia quaerere: quanto intervallo luna a terris, a luna sol ipse distaret, et usque ad verticem caeli quanta se mensura distenderet, sicque intervalla ipsa caeli orbisque ambitum per numerum stadiorum ratione probabili distinxerunt. Sed quia ex terrae dimensione haec disciplina coepit, ex initio sui et nomen servavit.

Isidoro escreve que a geometria foi inventada pelos egípcios quando, com o recuo das águas após as inundações do rio Nilo, a terra fértil era dividida para as plantações. Essa divisão de terras através de medidas de comprimento e medidas de área deu origem ao termo “geometria”. Como complemento ele diz que posteriormente as medições foram ampliadas para verificar as dimensões dos mares e as dimensões no céu. Segundo Isidoro, os pensamentos sobre medições astronômicas, como a distância entre a terra e a lua, a terra e o sol, entre outras, também contribuíram para o início dessa disciplina. A passagem histórica sobre o início da geometria a partir das divisões das terras férteis às margens do rio Nilo no Egito tornou-se clássica e é citada em textos históricos até os dias de hoje. Conforme visto anteriormente, Isidoro não oferece muitas informações sobre a geometria, e são apresentadas pouquíssimas informações históricas, o que chega a causar curiosidade em se saber sobre os motivos que o levaram a não oferecer aos leitores maiores e mais detalhadas informações sobre o assunto que se manteve no auge do pensamento filosófico-matemático na Grécia antiga.


Livro 3 – de Mathematica

Capítulo – de Musica

DE INVENTIORIBVS EIVS. Moyses dicit repertorem musicae artis fuisse Tubal, qui fuit de stirpe Cain ante diluvium. Graeci vero Pythagoram dicunt huius artis invenisse primordia ex malleorum sonitu et cordarum extensione percussa. Alii Linum Thebaeum et Zetum et Amphion in musica arte primos claruisse ferunt...

Sobre a história da música, Isidoro inicia o texto com o que provém do texto bíblico no qual Moisés diz que o inventor da arte musical foi Tubal, um membro da família de Caim que viveu antes do dilúvio. Na continuidade, Isidoro escreve que os gregos afirmam que Pitágoras foi o primeiro a descobrir a arte do som através de batidas em cordas esticadas e que outros afirmam que Linus de Thebes, Zethus e Amphion foram os primeiros a ganharem fama nas artes musicais. Como se pode perceber, Isidoro oferece informações sobre os descobridores da música, baseando-se em histórias do antigo testamento e da mitologia grega. No entanto ele acrescenta que Pitágoras, além da ciência dos números, também esteve ligado às teorias musicais.


Livro 3 – de Mathematica

Capítulo – de Astronomia

DE INVENTORIBVS EIVS. Astronomiam primi Aegyptii invenerunt. Astrologiam vero et nativitatis observantiam Chaldaei primi docuerunt. Abraham autem instituisse Aegyptios Astrologiam Iosephus auctor adseverat. Graeci autem dicunt hanc artem ab Atlante prius excogitatam, ideoque dictus est sustinuisse caelum.

DE INSTITVTORIBVS EIVS. In utraque autem lingua diversorum quidem sunt de astronomia scripta volumina, inter quos tamen Ptolemaeus rex Alexandriae apud Graecos praecipuus habetur: hic etiam et canones instituit, quibus cursus astrorum inveniatur.

Como informação histórica acerca da astronomia, Isidoro de Sevilla escreve neste capítulo que os egípcios foram os primeiros a inventar a astronomia e os caldeus os primeiros a realizar observações astrológicas acerca do nascimento das pessoas. Diz ainda que Josephus afirma que Abraão ensinou a astrologia aos egípcios. Para os gregos, continua Isidoro, a astronomia foi inicialmente elaborada por Atlas e por isso é dito que ele levantou o mundo. Nessa pequena introdução é apresentada uma importante informação histórica sobre o fato de que os egípcios desenvolveram atividades relativas à astronomia. As diversas expedições arqueológicas realizadas no Egito em épocas recentes confirmam tal informação.

Outro tema apresentado por Isidoro diz respeito às pessoas que ensinaram astronomia e, neste item, ele escreve sobre a existência de várias obras, também escritas em outro idioma (certamente, além do latim, o grego) e por diferentes autores. Entre eles, segundo as informações de Isidoro, Ptolomeu de Alexandria (85-165) é considerado o principal dentre os gregos e foi quem ensinou as formas de como se pode descobrir a trajetória das estrelas. Destaca-se aqui a precisa informação sobre a importância de Ptolomeu para o desenvolvimento de estudos relativos à astronomia; e o próprio tamanho do capítulo nos mostra o quanto essa área do conhecimento científico despertava interesse.

Em uma visão geral sobre os assuntos históricos referentes a temas matemáticos presentes na obra Etimologias, nota-se que a quantidade de informações é pequena. No entanto, pode-se dizer que, em se tratando de um texto cuja finalidade é divulgar o conhecimento matemático como um todo, Isidoro de Sevilla oferece aos seus leitores uma grande oportunidade para que eles possam ter um mínimo de conhecimento sobre as origens dos assuntos apresentados. Fica, portanto, marcada a contribuição de Isidoro de Sevilla para a historiografia da matemática. A partir do que acabamos de apresentar, pode-se confirmar, em primeira instância, a tese de que através de pequenas informações históricas presentes em verbetes científicos de obras enciclopédicas começam-se os primeiros ensaios para a escrita da história da matemática.


Comentários finais

Os textos enciclopédicos, cuja história se inicia já no quarto século antes de Cristo, revelam elementos importantes para a análise histórica referente à época em que foram produzidos. Em alguns casos, informações relativas a determinados assuntos históricos não são encontradas em outros textos senão nos enciclopédicos. Um importante exemplo sobre o assunto é o brilhante trabalho realizado por Brigitte Englisch, citado no início deste texto. A autora utiliza-se de obras enciclopédicas do período de transição entre a Antigüidade e a Idade Média Européia para realizar uma análise histórica sobre como se deu o início daquilo que foi o currículo acadêmico adotado nas universidades medievais européias, ou seja, as Artes Liberais.

Nesse sentido, esse amplo projeto de pesquisa histórica, que visa à análise de componentes matemáticos presentes em obras enciclopédicas, priorizando a apresentação de elementos históricos, poderá vir a ser também uma grande contribuição para aqueles que se preocupam com assuntos relativos à história da matemática, à história da educação matemática, à história de disciplinas (no caso, da disciplina História da Matemática), entre outros temas que porventura sejam pertinentes a esses temas.


Bibliografia principal

Isidori Hispalensis Episcopi (séc. 7). Etymologiarum sive Originum Libri XX. Strasburg: Mentelin. Edição de 1470 em microfichas na biblioteca do Max-Planck-Institut für Wissenschaftsgeschichte – Berlin.

Isidori Hispalensis Episcopi (séc. 7). Etymologiarum sive Originum Libri XX, recognovit brevique adnotatione critica instruxit W.M. Lindsay, Oxford, Oxford University Press. Edição publicada em 1911, 2 vol.


Obras de referência

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Sergio Nobre. 
Professor Adjunto do Departamento de
Matemática - Instituto de Geociências e
Ciências Exatas-Unesp-Rio Claro

E-mail: sernobre@rc.unesp.br


Resumo

Neste texto é apresentada uma visão geral sobre a matemática presente na obra Etymologiarvm sive Originvm libri XX, uma enciclopédia escrita pelo Santo Isidoro de Sevilla no início do século 7 da era Cristã. Isidoro dedicou o livro 3 de sua obra à matemática, onde são apresentados os assuntos relativos à aritmética, geometria, música e astronomia. A apresentação da história da matemática presente nesta enciclopédia é o objeto central deste trabalho.

Palavras-chave: Enciclopédias, Matemática e Enciclopédia, Isidoro de Sevilla, Historiografia da Matemática, Século 7

Abstract

This text presents an overview of the mathematics in the Etymologiarvm sive Originvm libri XX, an encyclopedic work written by Saint Isidore of Seville at the beginning of the 7th century. In the 3rd book of his work, Isidore wrote about arithmetic, geometry, music and astronomy. The contribution of Isidore to the historiography of mathematics is the main topic of this work.

Keywords: Encyclopaedia, Mathematics and Encyclopaedia, Isidore of Sevilla, Historiography of Mathematics, 7th Century


Notas:

[*] Este texto é parte integrante da dissertação Elementos Historiográficos da Matemática presentes em Enciclopédias Universais, defendida em março de 2001, como requisito para obtenção do título de Livre-Docência em História da Matemática.

[1] Alguns historiadores afirmam que seria mais fácil para Leibniz descobrir novos conceitos relativos ao Cálculo Diferencial e Integral do que decifrar os anagramas enviados por Newton.

[2] Maiores detalhes sobre esse tema veja-se em Youshkevitch, A. P. 1973, Youshkevitch, A. P. 1978, Queiró, João Filipe. 1972 e Cunha, José Anastácio. 1790 (1987).

[3] José Anastácio da Cunha antecipou-se em pelo menos 30 anos a Cauchy ao apresentar seus resultados relativos aos critérios de convergência de séries infinitas, porém a comunidade científica batizou esses resultados como Critérios de Cauchy, pois os de Anastácio da Cunha não eram conhecidos pela comunidade científica européia. Veja-se em Youshkevitch, A. P. 1973, Youshkevitch, A. P. 1978, Queiró, João Filipe. 1972 e Cunha, José Anastácio. 1790 (1987), definição I do livro VIIII.

[4] Existem alguns estudos históricos realizados junto às grandes enciclopédias universais, principalmente às mais famosas como a inglesa e a francesa, em que foram constatados tais resultados. Veja-se em Hughes, Arthur. 1951-53 e Yeo, Richard. 1991. Estudos recentes sobre esse tema também foram realizados por este autor junto à Grosses Vollständiges Universal Lexicon, publicada na primeira metade do século XVIII, na Alemanha. Em relação à modernidade na apresentação de temas matemáticos, esta enciclopédia ultrapassou as expectativas para uma obra de cunho literário. Em alguns tópicos referentes à grande descoberta matemática de então, o cálculo diferencial e integral, a Universal Lexicon apresenta conceitos bem originais. Os conceitos de grandeza infinitamente pequena e de fronteira, por exemplo, são apresentados na enciclopédia de forma que antecipa em pelo menos 70 anos os resultados alcançados inicialmente por Bernard Bolzano (1781-1848) e posteriormente por Augustin-Louis Cauchy (1789-1857). Veja-se em Nobre, Sergio. 1994.

[5] Artigo de Bernard Ribémont “On the definition of an encyclopaedic genre in the middle ages” em Binkley, Peter. ed. 1997, 49.

[6] Sobre as qualidades futurísticas dos Santos, há uma discussão sobre qual Santo poderia tornar-se Patrono da Rede Mundial de Computadores - Internet (veja-se, por exemplo em http://www.santiebeati.it/patrono.html - extraído em 02.01.2004). No entanto, alguns setores da comunidade católica já se decidiram por Isidoro de Sevilla como o Patrono dos Estudandes, dos Técnicos de Informática, dos Usuários de Computadores, dos Usuários da Internet, entre outras ocupações ligadas à área da informática -veja em http://www.catholicforum.com/saints/sainti04.htm e http://www.catholic.org/saints/patron.php?letter=C (ambas páginas extraídas em 02.01.2004).

[7] Gostaria de agradecer a Frederico J. A. Lopes pela importante ajuda na tradução do latim para o português de alguns trechos da obra.

[8] Brehaut, Ernest. 1912 e Englisch, Brigitte. 1994. Enquanto o texto de Brehaut é específico sobre a obra de Isidoro, o texto de Englisch é um verdadeiro tratado comparativo acerca das Artes Liberais entre diversas obras do início da Idade Média.

[9] Podem-se encontrar importantes informações no sentido de reconstruir historicamente alguns períodos de sua vida em Brehaut, Ernest. 1912, 15-34, Urbel, Justo P. de. 1945 e Diesner, Hans J. 1978.

[10] Melhores informações sobre sua canonização são encontradas em Lexikon für Theologie und Kirche (1930-1938), 4, 626.

[11] Veja-se em Gillispie, Charles C. ed. 1970-80, 7, 27.

[12] Veja-se em Englisch, Brigitte. 1994.

[13] Brehaut, Ernest. 1912, 17.

[14] Sua obra completa foi publicada em 7 volumes em Roma, entre os anos de 1797 e 1803.

[15] Existe uma edição crítica sobre a obra de Natura Rerum publicada por G. Becker em 1857, em Berlin.

[16] Etimologias figura entre os primeiros livros que foram impressos depois da invenção da imprensa, na segunda metade do século XV. Em 1472 foi editada em Augsburg, em 1477 em Basel, em 1482 em Veneza, em 1489 novamente em Basel, 1493 novamente em Veneza e nos anos de 1499 e 1500 ganhou mais duas edições na cidade de Paris.

[17] Brehaut, Ernest. 1912, 16.

[18] Segundo Lorenzo Minio-Paluelo, responsável pelo verbete biográfico sobre Boethius no Dictionary of Scientific Biography (vol. 2, pg. 228-236), editado por Charles Gillispie, o termo quadrivium fora provavelmente usado pela primeira vez por Boethius quando, na introdução de seu livro Aritmética, ele comenta que iria fazer um texto referente a cada uma das quatro disciplinas da Matemática, ou seja, Aritmética, Geometria, Música e Astronomia.

[19] Há de se ressaltar que a maior parte das fontes que tratam da vida de Pitágoras começaram a surgir somente a partir dos séculos 3 e 4 da era cristã. (veja-se em Cantor, Moritz. 1880-1908, 1, 147)

[20] Sua principal obra nessa área foi um Manual de Harmônica.

[21] Neste texto Nicomachus faz inicialmente uma apresentação sobre a importância filosófica da matemática e em seguida desenvolve assuntos ligados aos números, com definições, classificações, relações entre os números, etc. A obra, composta de 2 volumes, foi publicada em 1866, em Leipzig, em Latim, e em 1926, em Nova York foi traduzida para o inglês.

[22] Sobre suas atividades científicas existe um pequeno verbete em Lexikon des Mittealters. 1980-98, 1, 818-19 e em Gericke, Helmuth. 1994, 46. Em livros clássicos atuais sobre a história da matemática não foram encontradas referências a ele.

[23] Moritz Cantor, em sua monumental obra Vorlesungen über Geschichte der Mathematik, fez várias menções a Apuleius, porém em todos os casos é citada a referência de Cassiodorus ou Isidoro. Cantor, Moritz. 1880-1908.

[24] Veja-se em Montucla, Jean E. 1799-1802, Cantor, Moritz. 1880-1908 e Folkerts, Menso. 1970.

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