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Aprendizado em tempos de guerra, por C. S. Lewis

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Tempo de leitura: 31 minutos. 

Apresentamos o capítulo 2, Aprendizado em tempos de guerra, do livro O peso da glória, de C. S. Lewis; traduzido por Estevan Kirschner, pela Editora Thomas Nelson Brasil, 2017. O “Aprendizado em tempos de guerra” também foi apresentado, a partir de um convite do cônego Milford, no culto vespertino em St. Mary the Virgin em 22 de outubro de 1939.

Aprendizado em tempos de guerra

A universidade é uma sociedade em busca de aprendizado. Como estudantes, espera-se de vocês que se preparem para ser, ou ao menos comecem a ser, aquilo que na Idade Média denominava-se um erudito, que se tornem filósofos, cientistas, acadêmicos, críticos ou historiadores. À primeira vista, isso parece algo estranho de se fazer durante uma grande guerra. Qual é a utilidade de se iniciar uma tarefa cujas chances de concluir são mínimas? Ou, ainda que nós mesmos não sejamos interrompidos pela morte ou pelo serviço militar, por que razão deveríamos — de fato, como poderíamos — continuar tendo um interesse nessas tarefas plácidas quando a vida de nossos amigos e as liberdades da Europa estão em risco? Não seria o mesmo que tocar harpa enquanto Roma arde em chamas?

Parece-me que essas questões não podem ser respondidas enquanto não as colocarmos juntas a outras perguntas que todo cristão deveria fazer a si mesmo em épocas de paz. Falei, agora há pouco, de tocar harpa enquanto Roma arde em chamas. Porém, para o cristão, a verdadeira tragédia de Nero não deveria ser que ele tocava harpa durante o incêndio da cidade, mas que ele tocava harpa à beira do Inferno. Peço perdão pelo uso da expressão. Sei que atualmente muitos cristãos, mais sábios e melhores do que eu, não apreciam a menção de Céu e de Inferno, nem mesmo no púlpito. Entretanto, essa fonte é o Nosso Senhor Jesus. Alguns podem dizer que a fonte é Paulo, mas isso não é verdade. Essas doutrinas contundentes são dominicais. Não se pode realmente removê-las do ensinamento de Cristo ou de sua Igreja. Se não crermos nelas, nossa presença na Igreja não passa de uma grande farsa. Se crermos, precisamos por vezes vencer nosso pudor espiritual e mencioná-las.

No momento em que fizermos isso, poderemos ver que cada cristão que chega à universidade precisa ter sempre uma questão em relação à qual outras questões levantadas em função da guerra perdem relativa importância. Precisará se perguntar como pode ser correto, ou mesmo psicologicamente possível, para criaturas que estejam a cada momento avançando, seja em direção ao Céu ou ao Inferno, gastar uma fração do pouco tempo a elas permitido viver neste mundo em atividades triviais tais como literatura ou arte, matemática ou biologia. Se a cultura humana puder resistir a esse questionamento, poderá resistir a qualquer coisa. Admitir que se possa manter o interesse no aprendizado sob a sombra dessas questões eternas, mas não sob a sombra de uma guerra na Europa, seria o mesmo que admitir que nossos ouvidos estão fechados à voz da razão e muito abertos à voz dos nossos sentimentos ou emoções coletivas.

Esse é, de fato, o caso com a maioria de nós, e certamente comigo. Por essa razão, considero importante tentar observar a calamidade presente sob uma perspectiva verdadeira. A guerra não cria nenhuma situação absolutamente nova; ela simplesmente agrava a situação humana permanente de tal maneira que não podemos mais ignorá-la. A vida humana sempre viveu à beira do precipício. A cultura humana sempre teve de existir sob a sombra de algo infinitamente mais importante do que ela mesma. Se os seres humanos tivessem de adiar a pesquisa pelo conhecimento e pela beleza até estarem seguros, a pesquisa jamais teria começado. É um equívoco comparar a guerra com a “vida normal”. A vida nunca foi normal. Até mesmos os períodos que julgamos ser os mais tranquilos, como o século XIX, foram, sob um olhar mais acurado, cheios de crises, situações alarmantes, dificuldades e emergências. Razões plausíveis nunca faltaram para se adiarem todas as atividades meramente culturais, até algum perigo iminente ser afastado ou alguma injustiça clamorosa ser retificada, mas há muito tempo a humanidade decidiu negligenciar essas razões plausíveis. Queriam conhecimento e beleza agora e não esperariam pelo momento adequado que nunca chega. A Atenas de Péricles nos legou não apenas o Pártenon, mas também, significativamente, a Oração Fúnebre. Os insetos escolheram um procedimento diferente: eles buscam primeiramente a prosperidade e a segurança da colmeia e presumivelmente têm sua recompensa. Os seres humanos são diferentes; propõem teoremas matemáticos em cidades sitiadas, conduzem argumentos metafísicos em celas de condenados, fazem piadas no patíbulo, discutem o último e novo poema enquanto avançam contra as muralhas de Quebec e penteiam o cabelo no desfiladeiro das Termópilas. Isso não é petulância; é a nossa natureza.

No entanto, uma vez que somos criaturas decaídas, o fato de que essa é a nossa natureza não iria, por si só, provar que isso é racional ou correto. Devemos perguntar se existe realmente algum lugar legítimo para as atividades do erudito num mundo como este. Ou seja, temos de sempre responder a esta pergunta: “Como você pode ser tão fútil e egoísta em pensar sobre qualquer outra coisa que não seja a salvação das almas humanas?” E necessitamos, no momento, responder à questão adicional: “Como você pode ser tão fútil e egoísta em pensar sobre qualquer outra coisa que não seja a guerra?” É verdade que parte de nossa resposta será a mesma para ambas as perguntas. Uma das perguntas implica que nossa vida pode, e deve, tornar-se exclusiva e explicitamente religiosa; a outra, que pode, e deve, tornar-se exclusivamente nacionalista. Acredito que toda a nossa vida pode e, de fato, deve, tornar-se religiosa num sentido a ser explicado mais tarde, mas se isso quer dizer que todas as nossas atividades devem ser do tipo que podem ser reconhecidas como “sagradas”, em oposição a “seculares”, então eu daria uma resposta simples para ambos os meus inquiridores imaginários. Eu diria: “Mesmo que devesse ou não acontecer, aquilo que você está sugerindo não vai acontecer”. Antes de me tornar cristão, eu não tinha entendido completamente que a vida de alguém depois da conversão iria inevitavelmente consistir em fazer a maior parte das mesmas coisas que fazia antes, assim se espera, com um novo espírito, mas sendo ainda as mesmas coisas. Além disso, antes de partir como soldado para a Primeira Guerra Mundial, eu certamente esperava que minha vida nas trincheiras fosse, em algum sentido misterioso, somente voltada para a guerra. Na realidade, percebi que, quanto mais próximo se chegasse à frente de batalha, menos se falava e se pensava a respeito da causa dos aliados e do progresso da campanha. Fico feliz que Tolstói registra o mesmo no maior livro já escrito sobre a guerra, e, a seu próprio modo, a Ilíada também. Nem a conversão nem o alistamento no exército obliterarão a nossa vida humana. Soldados e cristãos são ainda seres humanos; as ideias do não-religioso sobre a vida religiosa, e a do cidadão civil sobre o serviço militar, são delirantes. Em qualquer um dos casos, se você tentar suspender toda a sua atividade intelectual e estética, o único sucesso que você terá é a substituição de uma vida cultural ruim por uma melhor. De fato, você não irá ler nada, tanto na Igreja quanto na linha de frente; se você não lê bons livros, lerá livros ruins. Se você não pensar racionalmente, pensará de forma irracional. Se rejeitar a satisfação estética, cairá em satisfação sensual.

Existe, portanto, essa analogia entre as reivindicações de nossa religião e as reivindicações da guerra: nenhuma das duas, para a maioria de nós, simplesmente cancelará ou removerá de cena a vida meramente humana que estávamos vivendo antes de entrarmos nelas, mas as duas operarão dessa maneira por razões diferentes. A guerra fracassará em absorver toda nossa atenção por ser um objeto finito e, por isso, intrinsecamente incapaz de suportar toda a atenção de uma alma humana. Para evitar mal-entendidos, devo fazer algumas considerações. Acredito que a nossa causa é, no que diz respeito a causas humanas, muito justa e, portanto, eu acredito que seja nosso dever participar desta guerra. Todo dever é um dever religioso e nossa obrigação de cumprir cada dever é, assim, absoluta. Dessa forma, talvez tenhamos o dever de resgatar um homem que esteja se afogando e, quem sabe, se vivermos numa área litorânea perigosa, de aprender primeiros socorros a fim de estarmos prontos para ajudar, quando necessário, qualquer pessoa que esteja se afogando. É possível que seja nosso dever perder a vida para salvar a vida de outra pessoa, mas qualquer pessoa que se dedica a ser um salva-vidas no sentido de dar a isso sua total atenção — de modo que não pensa nem fala sobre mais nada e exige a cessação de todas as outras atividades humanas até que todos aprendam a nadar — é um monomaníaco. O resgate de pessoas em situação de afogamento é, então, um dever pelo qual vale a pena morrer, mas não viver. Parece-me que todos os deveres políticos (entre os quais incluo o serviço militar) são desse tipo. Um homem poderá ter de morrer por seu país, mas nenhuma pessoa deve, em nenhum sentido exclusivo, viver por seu país. Aquele que se entrega sem reservas às reivindicações temporais de uma nação, ou de um partido, ou de uma classe, estará entregando a César aquilo que, acima de tudo, pertence da forma mais enfática possível a Deus; estará entregando a sua própria pessoa.

Entretanto, é por outra razão que a religião não pode ocupar o todo da vida no sentido de excluir todas as atividades naturais, pois é claro que, em certo sentido, deve ocupar a vida como um todo. Não há dúvida sobre uma acomodação entre as reivindicações de Deus e as reivindicações da cultura, da política, ou de qualquer outra coisa. A exigência de Deus é infinita e inexorável. Você pode recusá-la ou começar a tentar cumpri-la. Não existe caminho intermediário. Apesar disso, está claro que o cristianismo não exclui nenhuma das atividades humanas normais. O apóstolo Paulo diz às pessoas que vivam normalmente cumprindo suas tarefas. Ele até mesmo presume que cristãos compareçam a jantares e, o mais surpreendente, jantares patrocinados por pagãos. Nosso Senhor comparece a uma celebração de casamento e providencia vinho a partir de um milagre. Sob a proteção de sua Igreja, e na maioria dos séculos cristãos, o aprendizado e as artes floresceram. A solução para esse paradoxo, claro, é bem conhecida. “Assim, quer vocês comam, bebam ou façam qualquer outra coisa, façam tudo para a glória de Deus.”

Todas as nossas atividades naturais serão aceitas, se forem oferecidas a Deus, mesmo a mais humilde delas; e todas elas, mesmo as mais nobres, serão pecaminosas se não forem dedicadas a Deus. Não é que o cristianismo simplesmente substitui nossa vida natural por uma nova vida; é antes uma nova organização que cultiva esses materiais naturais para seus próprios fins sobrenaturais. Não há dúvida de que, em dada situação, ele exige a entrega de algumas, ou de todas, as nossas aspirações meramente humanas; é melhor ser salvo com um só olho do que, tendo os dois, ser lançado no Geena. Contudo, ele faz isso, em certo sentido, per accidens [por acidente] — porque naquelas circunstâncias especiais deixou de ser possível realizar esta ou aquela atividade para a glória de Deus. Não há discordância essencial alguma entre vida espiritual e as atividades humanas em si. Assim, a onipresença da obediência a Deus na vida cristã é, de certo modo, comparável à onipresença de Deus na dimensão espacial. Deus não preenche o espaço como um corpo o faz, no sentido de que diferentes partes dele estariam em diferentes partes do espaço, excluindo outros objetos. Ainda assim, ele está em toda parte — completamente presente em cada ponto do espaço — segundo bons teólogos.

Estamos agora em condições de responder à perspectiva de que a cultura humana é uma futilidade inexcusável da parte de criaturas incumbidas dessas terríveis responsabilidades, como nós. Rejeito imediatamente a noção que predomina na mente de algumas pessoas modernas de que atividades culturais são por si só espirituais e meritórias — como se eruditos e poetas fossem intrinsecamente mais agradáveis a Deus do que catadores de lixo e engraxates. Creio que foi Matthew Arnold quem primeiro usou o termo inglês spiritual no sentido do alemão geistlich, inaugurando assim esse erro perigosíssimo e muito anticristão. Devemos nos livrar completamente dessa mentalidade. A obra de Beethoven e o trabalho de uma faxineira se tornam ambas espirituais precisamente na mesma condição, de serem oferecidas a Deus, de serem realizadas de maneira humilde “como para o Senhor”. Isso não significa, é claro, que seja mera questão de sorte para cada um, se irá varrer salas ou compor sinfonias. Uma toupeira precisa cavar para a glória de Deus e um galo deve cantar. Somos membros de um corpo, mas membros diferentes, cada um com a sua vocação. A educação de uma pessoa, seus talentos, suas circunstâncias, são geralmente um indicador aceitável de sua vocação. Se nossos pais nos mandaram para Oxford, se nosso país nos permite permanecer aqui, essa é uma evidência prima facie de que a vida que, em todo caso, é a melhor que podemos viver para a glória de Deus no presente, é a vida acadêmica. Ao dizer que podemos viver para a glória de Deus, não quero dizer, é claro, que devamos fazer com que qualquer das nossas tentativas de pesquisa intelectual deva redundar em conclusões edificantes. Isso seria o mesmo que, como diz Bacon, oferecer ao autor da verdade o sacrifício impuro de uma mentira. Refiro-me à busca pelo conhecimento e pela beleza num sentido que seja pela própria busca em si, mas num sentido que não exclua que seja também para Deus. Existe um apetite para essas coisas na mente humana, e Deus não faz nenhum apetite em vão. Podemos, dessa forma, buscar o conhecimento como tal, e a beleza como tal, com a confiança inabalável de que ao fazer isso estaremos progredindo em nossa própria visão de Deus, ou indiretamente ajudando outros a fazer o mesmo. A humildade, não menos que o apetite para essas coisas, nos encoraja a concentrar simplesmente no conhecimento ou na beleza, não nos preocupando em demasia com sua relevância final para a visão de Deus. Essa relevância pode não ser destinada a nós, mas a quem é melhor do que nós — para as pessoas que vêm depois e encontram o significado espiritual daquilo que desenterramos em obediência cega e humilde à nossa vocação. Esse é o argumento teleológico de que a existência do impulso e da capacidade prova que eles devem ter uma função apropriada no esquema de Deus — o argumento com o qual Tomás de Aquino demonstra que a sexualidade existiria mesmo sem a Queda. A robustez do argumento, no que diz respeito à cultura, é comprovada pela experiência. A vida intelectual não é o único caminho para Deus, nem mesmo o mais seguro, mas descobrimos ser um caminho, e poderá ser o caminho destinado a nós. É verdade que isso será assim somente enquanto mantivermos o impulso puro e desinteressado. Essa é a grande dificuldade. Como diz o autor de Theologia Germanica, podemos nos tornar amantes do conhecimento — nosso conhecimento — mais do que da coisa conhecida; ter prazer não no exercício de nossos talentos, mas no fato de que são nossos, ou mesmo na reputação que eles nos trazem. Cada sucesso na vida do estudioso aumenta esse perigo. Se isso se tornar irresistível, ele deverá desistir de seu trabalho acadêmico. O momento de arrancar o olho direito terá chegado.

Essa é a natureza essencial da vida acadêmica do modo como a vejo, mas ela possui valores indiretos que são especialmente importantes na atualidade. Se o mundo todo fosse cristão, não importaria se o mundo todo não fosse educado. No entanto, do modo como as coisas são, uma vida cultural existirá fora da Igreja, independentemente se ela existe ou não dentro dela. Ser ignorante e simples agora — não sendo capaz de enfrentar os inimigos em seu próprio campo — seria derrubar nossas armas e trair nossos irmãos não educados, que não têm, sob Deus, nenhuma defesa contra os ataques intelectuais dos pagãos a não ser nós. É necessário que haja boa filosofia, se não por outra razão, porque a filosofia ruim precisa de uma resposta. O bom intelecto deve trabalhar não apenas contra o bom intelecto do outro lado, mas contra os confusos misticismos pagãos que negam o intelecto completamente. Acima de tudo, talvez, precisamos de um conhecimento íntimo do passado, não porque o passado tenha alguma magia em torno de si, mas porque não podemos estudar o futuro. Ainda assim, necessitamos de algo para contrapor o presente, para nos lembrar de que as pressuposições básicas têm sido muito diferentes em diferentes períodos e que muito daquilo que parece absoluto para os que não são educados é meramente modismo temporário. O homem que já viveu em muitos lugares tem menos possibilidades de ser enganado pelos erros de seu local de origem. O erudito vive em contextos diferentes e, portanto, tem a percepção mais aguçada a respeito da enxurrada de tolices que jorram da imprensa e dos microfones de seu próprio tempo.

Portanto, a vida acadêmica é um dever para alguns e nesse momento parece-me que esse dever é de vocês. Estou muito consciente de que parece haver uma discrepância quase cômica entre os temas mais elevados que consideramos e a tarefa imediata na qual vocês podem estar ocupados, como as boas leis anglo-saxônicas ou fórmulas químicas. Mas existe um choque semelhante nos aguardando em cada vocação — um jovem pároco pode se envolver com questões do coro da igreja, e um jovem soldado com o fazer o inventário de potes de geleia. E é bom que seja assim. Isso acaba por limpar o terreno das pessoas que são falsas, turbulentas e mantêm aquelas que são humildes e fortes. Nesse tipo de dificuldade, não precisamos desperdiçar nossa simpatia, mas a dificuldade peculiar imposta pela guerra sobre vocês é outra questão, e sobre isso eu vou repetir o que tenho dito, de uma forma ou de outra, desde que comecei — não deixe que seus sentimentos e emoções os levem a pensar que seu dilema é mais incomum do que realmente é. Talvez seja útil mencionar os três exercícios mentais que poderão servir como defesas contra os três inimigos que a guerra levanta contra o erudito.

O primeiro inimigo é o entusiasmo — a tendência de pensar e sentir sobre a guerra quando tencionamos pensar em nosso trabalho. A melhor defesa é o reconhecimento de que nisso, como em tudo mais, a guerra realmente não levantou um novo inimigo, mas apenas agravou um inimigo velho. Existem sempre muitos rivais para o nosso trabalho. Estamos sempre nos apaixonando ou discutindo, procurando emprego ou com medo de perdê-lo, adoecendo e recuperando a saúde, acompanhando acontecimentos públicos. Se deixarmos isso para nós mesmos, estaremos sempre na expectativa de alguma distração ou outra para terminar antes mesmo de realmente sermos capazes de continuar no nosso trabalho. Nunca existirão condições favoráveis. Há momentos, é claro, em que a pressão do entusiasmo é tão grande que somente um domínio próprio sobre-humano pode resistir. Eles vêm tanto na guerra quanto na paz. Precisamos fazer nosso melhor.

O segundo inimigo é a frustração — o sentimento de que não teremos tempo de terminar. Se eu lhe disser que ninguém tem tempo para terminar, que a vida humana mais longa torna a pessoa, seja qual for o ramo do saber, uma iniciante, parecerei dizer algo bem acadêmico e teórico. Você ficaria surpreso se soubesse como é cedo quando alguém começa a sentir que a corda é curta, de tantas coisas, mesmo em meia-idade, em que temos de dizer “não tenho tempo para isso”, “agora é tarde” e “não é para mim”. A própria natureza, porém, o proíbe de compartilhar essa experiência. Uma atitude mais cristã, que pode ser obtida em qualquer idade, é deixar o futuro nas mãos de Deus, e deveríamos fazer isso mesmo, pois Deus vai certamente reter isso, quer o deixemos para ele ou não. Seja na paz ou na guerra, nunca dedique sua virtude ou sua felicidade ao futuro. O trabalho feliz é mais bem realizado pela pessoa que considera seus planos de longo prazo de uma forma leve e que trabalha de momento a momento “como para o Senhor”. É somente pelo nosso pão diário que somos encorajados a pedir. O presente é o único tempo em que algum dever pode ser cumprido ou alguma graça pode ser recebida.

O terceiro inimigo é o medo. A guerra nos ameaça com a morte e a dor. Ninguém — especialmente nenhum cristão que se lembra do Getsêmani — precisa tentar alcançar uma indiferença estoica quanto a essas coisas, mas podemos nos policiar contra as ilusões da imaginação. Podemos pensar sobre as ruas de Varsóvia e contrastar as mortes que lá aconteceram com uma abstração chamada Vida. Contudo, não existe uma questão de vida ou morte para qualquer um de nós, apenas uma questão desta morte ou daquela — de uma bala de metralhadora agora ou um câncer daqui a quarenta anos. O que a guerra realiza em função da morte? Ela certamente não a torna mais frequente; cem por cento de nós vão morrer e essa porcentagem não pode ser aumentada. Ela adianta certa quantidade de mortes, mas acho difícil supor que seja isso que tememos. Certamente, quando o momento chegar, não fará muita diferença quantos anos foram deixados para trás. Será que a guerra aumenta a nossa probabilidade de uma morte dolorosa? Duvido. O quanto me é possível imaginar, aquilo que denominamos morte natural é normalmente precedido por sofrimento, e um campo de batalha é um dos poucos lugares em que se tem uma razoável possibilidade de morrer sem dor alguma. Será que a guerra diminui nossas possibilidades de morrer em paz com Deus? Não posso acreditar nisso. Se o serviço militar ativo não for capaz de persuadir um homem a se preparar para a morte, que outra série imaginável de circunstâncias o faria? Por outro lado, a guerra faz uma coisa em relação à morte. Ela nos força a lembrar dela. A única razão por que o câncer aos sessenta anos ou a paralisia ao setenta e cinco não nos incomodam é que nos esquecemos deles. A guerra torna a morte real para nós e isso seria considerado como uma de suas bênçãos pela maioria dos grandes cristãos do passado. Eles achavam bom para nós estar sempre conscientes de nossa mortalidade. Estou inclinado a pensar que eles estavam certos. Toda a vida animal em nós, todos os esquemas de felicidade que estão centrados neste mundo, sempre estiveram fadados ao fracasso. Em tempos de normalidade, somente os mais sábios podiam reconhecer isso. Agora, até o mais estúpido de nós sabe. Vemos, de modo inequívoco, o tipo de universo em que estamos vivendo todo esse tempo e devemos acertar as contas com ele. Se tínhamos esperanças não-cristãs acerca da cultura humana, elas estarão agora destroçadas. Se pensávamos que estivemos construindo um Céu na Terra, se procurávamos por algo que iria mudar o mundo presente, de ser um lugar de peregrinação para uma cidade permanente que satisfaz a alma de uma pessoa, estamos desiludidos e não é sem tempo. Porém, se pensávamos que para algumas almas, em alguns tempos, a vida acadêmica oferecida humildemente a Deus era, em seu pequeno próprio modo, uma das abordagens indicadas para a realidade Divina e a beleza Divina que esperamos um dia desfrutar, podemos sim continuar a pensar desse modo.

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Leia mais em Sobre o papel da Literatura na Educação

Leia mais em O Cristianismo e a Educação Clássica - parte 1



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A Verdadeira Importância do Latim, por Napoleão Mendes

Uma cópia do Borgianus Latinus, um missal de Natal feito para o Papa Alexandre VI



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Tempo de leitura: 20 minutos.

Apresentamos o prefácio do livro Gramática Latina de Napoleão Mendes de Almeida, Saraiva, 29ª ed. 2000.

Se a idéia do bem constitui o objeto supremo do conhecimento, a educação para o estudo constitui a finalidade precípua do latim.


A VERDADEIRA IMPORTÂNCIA DO LATIM

1 - É de todo falso pensar que a primeira finalidade do estudo do latim está no benefício que traz ao aprendizado do português. Vejamos, por meio de fatos e de pessoas, onde reside a primeira importância do estudo desse idioma.

Chegados ao Brasil, três eminentes matemáticos de renome internacional, Gleb Wataghin, professor de mecânica racional e de mecânica celeste, Giacomo Albanese, professor de geometria, e Luigi Fantapié, professor de análise matemática, que vieram contratados para lecionar na recém-fundada Faculdade de Filosofia de S. Paulo - o professor Wataghin é considerado, no mundo inteiro, um dos maiores pesquisadores de raios cósmicos cuidaram, logo após os primeiros meses de aula, de enviar um ofício ao então ministro da educação, que na época cogitava de reformar o ensino secundário. Vejamos o que, mais de esperança que de desânimo, continha esse ofício, do qual tive conhecimento antes do seu endereçamento, dada a solicitação dos três grandes professores de uma revisão minha do seu português:

"Chegados ao Brasil, ficamos admirados com o cabedal de fórmulas decoradas de matemática com que os estudantes brasileiros deixam o curso secundário, fórmulas que na Itália - os três professores eram catedráticos de diferentes faculdades italianas - são ensinadas só no segundo ano de faculdade; ficamos, porém, chocados com a pobreza de raciocínio, com a falta de ilação dos estudantes brasileiros; pedimos a vossa excelência que na reforma que se projeta se dê menos matemática e MAIS LATIM no curso secundário, para que possamos ensinar matemática no curso superior".

2 - O professor Albanese costumava dizer - e muitas pessoas são disto prova - "Deem-me um bom aluno de latim, que farei dele um grande matemático".

3 - Outra prova de que é falso pensar que a primeira finalidade do latim está no proveito que traz ao conhecimento do português posso aduzir com este fato, comigo ocorrido.

Indo a visitar um amigo, encontrei-o a conversar com um senhor, de forte sotaque estrangeiro, que explicava as razões de certa modificação na planta de um prédio por construir; como, no decorrer da troca de idéias, tivesse por duas vezes proferido sentenças latinas, perguntei-lhe se havia feito algum curso especial de latim.

- Curso especial de latim? Não fiz, senhor.

- Mas o senhor esteve em algum seminário?

- Não, senhor; sou engenheiro.

- Percebo que o senhor é engenheiro; mas onde estudou latim? - Na Áustria.

- Quantos anos?

Sete anos.

- Sete anos?! Todo o engenheiro austríaco tem sete anos de latim?

- Sim, senhor; quem se destina a estudos superiores na Áustria estuda sete anos o latim.

Pois bem, relatando a um alemão esse fato, mostrou-se admirado com não saber eu que na Alemanha se estuda nove anos o latim e não somente sete.

4 - É também inteiramente falso educadores - assim chamados porque dentro das lutas e ambições políticas ocuparam pastas de educação ou, quando muito, escreveram livros de psicologia infantil - dizerem que estas palavras foram proferidas numa sessão da comissão de "diretrizes e bases do ensino", comissão nomeada para cumprimento do artigo 5, inciso XV, d, da constituição federal - "nos Estados Unidos da América, país que ninguém nega estar na vanguarda do progresso, não se estuda latim".

Felizmente, nessa mesma reunião, a desastrada afirmação não ficou sem resposta; um dos membros da comissão não se fez esperar: "Como não se estuda? É fácil provar; peçamos de diversos estabelecimentos americanos de diversos, porque a programação do ensino secundário aí não é única como no Brasil - o programa, que veremos a verdade". Dias e dias decorreram, e nada de programas; interrogado, o "educador" respondeu que não tinham chegado; um dia, porém não sei de quem foi maior a distração - o defensor do latim examina uma gaveta, esquecida aberta, e aí vê, guardados ou escondidos, os programas solicitados, e em todos eles o latim rigorosamente exigido.

Esse "educador" era, a esse tempo... presidente de uma seção estadual de partido político.

5 - Não encontra o pobre estudante brasileiro quem lhe prove ser o latim, dentre todas as disciplinas, a que mais favorece o desenvolvimento da inteligência. Talvez nem mesmo compreenda o significado de "desenvolver a inteligência", tal a rudeza de sua mente, preocupada com outras coisas que não estudos.

O hábito da análise, o espírito de observação, a educação do raciocínio dificilmente podemos, pobres professores, conseguir de um estudante preocupado tão só com médias, com férias, com bolas, com revistas.

Muita gente há, alheia a assuntos de educação, que se admira com ver o latim pleiteado no curso secundário, mal sabendo que ensinar não é ditar e educar não é ensinar. É ensinar dar independência de pensamento ao aluno, fazendo com que de per si progrida: o professor é guia. É educar incutir no estudante o espírito de análise, de observação, de raciocínio, capacitando-o a ir além da simples letra do texto, do simples conteúdo de um livro, incentivando-o, animando-o. No fazer do estudante de hoje o cidadão de amanhã está o trabalho educacional do professor.

6 - Quando o aluno compreender quanta atenção exige o latim, quanto The prendem o intelecto e lhe deleitam o espírito as várias formas flexionais latinas, a diversidade de ordem dos termos, a variedade de construções de um período, terá de sobejo visto a excelente cooperação, a real e insubstituível utilidade do latim na formação do seu espírito e a razão de ser o latim obrigatório nos países civilizados.

Ser culto não é conhecer idiomas diversos. Não é o conhecimento do inglês nem do francês que vem comprovar cultura no indivíduo. Tanto marinheiro, tanto mascate, tanto cigano há a quem meia dúzia de idiomas são familiares sem que, no entanto, possuam cultura.

Não é para ser falado que o latim deve ser estudado. Para aguçar seu intelecto, para tornar-se mais observador, para aperfeiçoar-se no poder de concentração de espírito, para obrigar-se à atenção, para desenvolver o espírito de análise, para acostumar- se à calma e à ponderação, qualidades imprescindíveis ao homem de ciência, é que o aluno estuda esse idioma.

"lo, lo, omnes adsunt - indeed! We who teach Latin would do a far grater service to the cause if we channeled pupil interest toward the task of learning Latin rather than into such academic (sic) shenanigans as chariot racing (an event at the Albuqueque convention of Latin students). The intelligent 20th century teen-ager will work hard at Latin when he is shown some of the many genuine values in such study. We need not always entertain him with superficialities" (Fred Moore, Chairman, Language Department, Riverside High School, Painesville, Ohio, USA).

7 - Muitos indagam a razão da fatuidade, da leviandade, da aridez intelectual da geração moça de hoje. É que, tendo aprendido a ler pelo método analítico, tão prático e fácil, julga o estudante que a disciplina que prática e facilidade no aprendizado não contiver não lhe trará proveito, senão tédio e perda de tempo. Acostumado a tudo assimilar com facilidade no primeiro grau, esbarra o aluno no segundo com a obrigação de pensar, e ele estranha, e ele se abate, e ele se rebela. O menino que no primeiro grau era o primeiro da classe passa para lugar inferior no segundo; perda de inteligência, diferença de idade? Não: falta de hábito de pensar. O que no primeiro grau estava em quinto, em décimo lugar passa no segundo às primeiras colocações; aquisição de inteligência? Também não: pensamento mais demorado, mais firme por isso mesmo, sobrepuja agora os colegas de intelecto mais vivo, vivo porém tão só para as coisas objetivas e de evidência.

Raciocinar é, partindo de idéias conhecidas, diferentes, chegar a uma terceira, desconhecida, e é o latim, quando estudado com método, calma e ponderação, o maior fator para aguçar o poder de raciocínio do estudante, tornando-lhe mais claras e mais firmes as conclusões.

8 - O que é certo, inteiramente certo, é não conhecerem alguns homens que nos representam no congresso o que é educação, o que é cultura. Fato ocorrido não há muito tempo vem prová-lo.

Discorrendo sobre a necessidade de nova reforma de ensino, um deputado citava as disciplinas inúteis nos diversos anos do curso secundário, quando é apoiado por um colega, que acrescenta: "O latim para as meninas".

Para este herói, o latim é inútil para as meninas, porque elas não vão ser padres: é a única justificação que até agora pude entrever nesse tão infeliz aparte. As meninas, pobrezinhas, por que ensinar-lhes latim se não vão ler breviário?

Por que esse "para as meninas"? E por que, pergunto, não é também inútil para os meninos? Que distinção cultural faz esse deputado entre menino e menina? Que quer ele para elas? Aulas de arte culinária? Aulas de corte e costura? Pretende dizer que as suas meninas não devem estudar ou quer com isso afirmar que o latim só interessa a padres?

A questão não é o que os meninos vão fazer do latim, mas o que o latim vai fazer dos meninos: The question is not what your boy will do with Latin, but what Latin will do for your boy, dizia com o bom senso pachorrento e inato de sua gente o senador Arnold.

PORQUE É O LATIM REPUDIADO

9 - A quem conhecia o regime de estudos de um seminário tornava-se dispensável toda e qualquer critica a programas de latim. A quem não conhecia não era demais dizer que nos seminários não existia programa de latim... Existia estudo de latim com seis horas semanais, existia consciência do que se fazia. Em que seminário já se ouviu falar em "sintaxe do verbo?" Pois assim estava no programa do último ano clássico. Procure-se, agora, em todo o programa, "verba timendi", "verba declarandi", "verba voluntatis", "verba impediendi", orações finais, orações interrogativas, orações dubitativas, orações causais, orações relativas, orações infinitivas, orações condicionais etc.; nada disso se encontrava. Por que então programa?

Ou se divide a matéria, ou seja, ou ela é realmente programada pelas séries ou então programa não se faz. Se o programa na lexeologia pedia "qui, quae, quod", descendo a uma discriminação quase cômica, partilhando dessa forma a matéria, como falar depois, retumbantemente, em "período composto", em "discurso indireto", em "emprego dos modos e dos tempos nas orações subordinadas"?

10 - Com todos os erros de que estava eivado o programa de latim, o descalabro se tornou ainda maior quando se considera que uma portaria reduziu o número de aulas semanais de três para duas; modificaram o programa? Não; continuou o mesmo, com todas as incongruências, deficiências e disparates.

Era de tal forma pedida a parte gramatical e tão poucas as horas de aula que não havia possibilidade de traduzirem os alunos os autores exigidos a menos que desejasse o professor provar aos seus discípulos ser o latim intraduzível.

Considere-se ainda que pessoas existiam a lecionar latim mais acanhadas de equilíbrio mental do que de capacidade didática, pessoas que, na primeira aula, isto diziam: "Eu sei que vocês não vão aprender latim" - "Eu sou contra o latim"

"Eu sou cego", "Eu não sei por que os meus alunos não aprendem", "Eu não sei ensinar" - é que deveriam confessar aos alunos esses truões.

11 - Preocupação nefasta para o ensino do latim é a da tradução de autores latinos. Dar a alunos sem conhecimento de princípios essenciais do latim trechos para traduzir é dar-lhes pedradas, é dar-lhes cacetadas. Nem Eutrópio, nem Fedro, nem César, nem Cicero previram portarias ministeriais; nem Ovídio, nem Virgílio, nem Horácio escreveram latim para estudantes que nem sequer sabem o que é agente da passiva, o que é ablativo absoluto, o que é sujeito acusativo; nem Publílio Siro, nem Valério Máximo escreveram latim para estudantes, quer meninos quer meninas, que nem do idioma pátrio têm aulas de gramática, para meninos ou para meninas que nem sabem o que é objeto direto, o que é adjunto adverbial, o que é predicativo, o que é aposto.

Conseqüência dessa impossibilidade era darem certos professores irresponsáveis a tradução já pronta para que os alunos a decorassem, fato por si bastante para provar ou a incompetência do professor, ou o erro do programador, ou a conivência de ambos no desbarato do ensino em nossa terra, na decadência e no despautério educacionais a que em nossa pátria vimos assistindo.

12 - Com lacunas de toda a sorte, o latim tornou-se ainda mais antipatizado, seu ensino passou a ser ainda mais dificultado com a introdução, mormente em estados do Sul, e de maneira especial em S. Paulo, da pronúncia reconstituída, galicamente chamada pronúncia "restaurada". Apedrejados e vergastados como se já não bastasse, nossos pirralhos passaram a ser torturados por ex-alunos universitários que de faculdades de filosofia saíam cientes de latim mas inscientes de didática, rapazes e moças que, tão preocupados em mostrar sabença, passavam a ensinar a tal pronúncia e se esqueciam de ensinar latim.

"Para nós - são palavras do eminente educador, padre Augusto Magne - o que interessa no latim é sua literatura, sua virtude formadora do espírito. Desviar o estudo do latim para a especialização em questiúnculas de pronúncia reconstituída é desvirtuar aquela disciplina e tirar-lhe seu poder formador para recair no eruditismo balofo, pretensioso e estéril."

Por que não ensinam nas faculdades de letras de S. Paulo a pronunciar o portu- guês à lusitana, se a pronúncia de um idioma deve ser a dos seus clássicos? Precisa- mente aí está a explicação da pronúncia novidadeira do latim; quem a introduziu em S. Paulo foi um professor lusitano que, achando mais fácil ensinar o latim pela pro- núncia da Alemanha que pela de Portugal, impingiu-a aos alunos da faculdade, que então teimavam em pretender passá-la adiante.

Se não é para falar latim que um estudante vai aprendê-lo, muito menos deve estudá-lo para o pronunciar mais à alemã que à portuguesa, tirando do latim até a própria utilidade para o vernáculo.

MÉTODO

13- Não há professor de latim que deixe de lastimar a pobreza de conhecimentos do vernáculo em seus discípulos. Vendo na deficiência de conhecimento dos princípios fundamentais de análise sintática do período português a causa principal desse desajustamento é que me pus a redigir este curso, mostrando ao aluno o que realmente dificulta o aprendizado do latim e fazendo com que, através de questionários e de exercícios muito graduados, demonstre conhecimento do essencial e suficientemente necessário ao estudo desse idioma.

Como obrigar um aluno a decorar a conjugação total de um verbo se ele não sabe o que é particípio presente, o que é gerúndio, o que é supino? Como dar-lhe a voz passiva se ele não sabe o que é agente da passiva? De que lhe adianta saber muito bem de cor o "qui, quae, quod", se não sabe analisar um relativo em frase portuguesa? 

Asas de um pássaro, o latim e o português devem voar juntos: tal é a minha convicção, tal a minha preocupação em todas estas 104 lições.

Napoleão Almeida

***

Leia mais em Quem matou o Latim nas escolas?

Leia mais em Progresso e Tradição em Pedagogia



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Livro A Vida Intelectual

Capa do livro A Vida Intelectual

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Tempo de leitura: 30 min.

Trecho retirado do Prefácio e Introdução do livro A Vida Intelectual de A.-D. Sertillanges publicado pela editora É Realizações, em 2010.

Sinopse: A Vida Intelectual, do padre A.-D. Sertillanges, redigida originalmente em 1920, ainda se mantém atual para os leitores do novo milênio. Para aqueles que desejam não apenas um manual prático que permita esboçar orientações de como entrar na vida dos estudos, o livro vai além e também oferece um exemplo de vida bem-sucedida no mundo intelectual – a do próprio padre Sertillanges, que por meio de dicas preciosas permite e disponibiliza, para qualquer pessoa que tenha abertura e coragem necessárias, uma nova forma de viver que abrange gradualmente a dimensão intelectual e todos os percalços que essa vida traz consigo. A vida intelectual não é uma dimensão separada da vida prática, e sim abarca e transcende esta, trazendo novas possibilidades e responsabilidades diante de si, dos outros e do mundo. Assim, o espírito de uma vida intelectual está no fato de que se ela transcende a vida prática, deve ser no sentido de propiciar um maior entendimento dela. Suas condições são os valores éticos, como a honestidade intelectual e a sinceridade. Seu método consiste nos exemplos que percorrem toda a escrita do padre Sertillanges. Este livro é dedicado a todos aqueles que desejam uma vida plena – em todas as suas potencialidades, e não há nada mais atual que esse desejo.

Prefácio à terceira edição

Será este o momento certo para reeditar um escrito assim? Quando o universo está em chamas, será oportuno jogar sobre as brasas umas folhas de papel para serem queimadas em vez de formar uma fila e bombear água do poço?

O que se há de fazer? De qualquer forma a sensação que se tem é de esmagadora impotência. Mas se o presente só traz tormento e desconcerto, não se deveria passar através de tudo e preocupar-se com o porvir?

O porvir cabe a Deus e a nós, mas numa dada ordem. Ele não cabe antes de tudo à força, e sim ao pensamento. Após uma medonha devastação, será preciso reconstruir. Todos os elementos da civilização devem ser retomados na base. Arquitetos aventurosos virão com projetos. Já alguns se alardeiam. Poderão nossos mestres de obra chegar a um acordo condizente com a amplidão, a harmonia e a solidez que seria de se esperar? Queira Deus! Em todo caso, haverá muito trabalho para a reflexão. Há futuro para o conhecimento sob todos os aspectos que ele pode assumir em nossas complexas civilizações, quer passadas, quer em vias de renascer. O pensamento católico não terá o direito de cruzar os braços, tampouco o terão outros. Para todos os homens de boa vontade a lide vai ser imensa. Convicto de ser detentor da verdade essencial a ele confiada pelo Cristo, o católico tem mais responsabilidade que qualquer um e, para estar à altura de assumi-la, ele tem de estar de posse de todos os seus meios, conferir seus métodos e preparar seu coração pela meditação sobre suas possibilidades bem como sobre suas obrigações.

Este livro não tem outro objetivo senão o de ajudá-lo nessa tarefa. Como em épocas mais calmas e entretanto necessitadas, o leitor saberá avivá-lo com uma chama nova que jorrará de sua própria consciência. Por si só, um texto não é nada, tal como uma viagem por si só tampouco é nada. Uma alma se faz necessária para concatenar entre si os méritos desta e as frases daquele, fazendo jorrar do contato essa luz misteriosa que se chama verdade ou que tem por nome beleza.

O efeito de um livro depende de cada um de nós. A última etapa definitivamente não é a do impresso que sai do editor, mas a do verbo mental que o próprio leitor elabora. Ante o chamado dos acontecimentos e em meio à aflição atual, mais do que nunca no dia seguinte a uma paz adquirida a tão alto preço e que recobrirá tantos destroços, confiamos que as considerações aqui expostas no tocante à vida intelectual encontrarão em nossos moços uma compreensão renovada e uma eficácia superior.

Eis porque reeditamos este trabalho. Sabemos que ele tem de se difundir em outros lugares, bem longe daquele onde veio ao mundo, e é-nos uma alegria pensar que amanhã, a necessidade devendo tornar-se universal, como hoje o caos, nosso humilde esforço poderá se unir ao dos melhores numa atmosfera comum renovada e nos dois mundos.


A.-D. SERTILLANGES, O.P.
Membro do Instituto
1944


Prefácio à segunda edição

A pequena obra hoje reeditada foi reimpressa já muitas vezes. Ela data de 1920. Eu não a havia relido. Eu me perguntava, ao abordá-la com um novo olhar e uma experiência quinze anos mais velha, se nela reconheceria meu pensamento. Encontro-o integralmente, salvo certos matizes que eu não deixarei de levar em consideração na revisão que ora assumo. A razão disso é que estas páginas, na verdade, não têm data. Elas saíram de meu âmago. Já as trazia em mim havia um quarto de século quando eclodiram. Escrevi-as como alguém que expressa suas convicções essenciais e abre seu coração.

O que me dá a confiança de que elas tiveram alcance é, com toda a certeza, sua repercussão de amplas proporções; mas é sobretudo o testemunho de cartas inumeráveis, umas me agradecendo pela ajuda técnica que eu levava até os obreiros do espírito, outras pelo calor que me diziam ter sido transmitido a ânimos jovens ou viris, a maioria por aquilo que parecia ao leitor a revelação dentre todas a mais preciosa: a do clima espiritual próprio à eclosão do pensador, a sua elevação, a seu progresso, a sua inspiração, a sua obra.

Eis aí efetivamente o principal. O espírito tudo rege. É ele que inicia, executa, persevera e conclui. Como ele preside a cada aquisição, a cada criação, ele dirige o trabalho mais secreto e mais exigente que opera sobre si o trabalhador por toda a sua carreira.

Não cansarei, assim espero, o leitor ao insistir uma vez mais nesse todo da vocação de pensador ou de orador, de escritor e de apóstolo. É verdadeiramente a questão prévia; é depois a questão de fundo, e é consequentemente o segredo do sucesso.

Querem os senhores compor uma obra intelectual? Comecem por criar em seu interior uma zona de silêncio, um hábito de recolhimento, uma vontade de despojamento, de desapego, que os deixem inteiramente disponíveis para a obra; adquiram esta disposição das faculdades mentais isenta do peso de desejos e de vontade própria, que é o estado de graça do intelectual. Sem isso, não farão nada, em todo caso, nada que valha.

O intelectual não é filho de si mesmo; ele é filho da Ideia, da Verdade eterna, do Verbo criador e animador imanente a sua criação. Quando pensa corretamente, o pensador segue Deus à risca; ele não segue sua própria quimera. Quando tateia e se debate no esforço da busca, ele é Jacó lutando com o anjo e “forte contra Deus”.

Não é natural, nessas condições, que o homem que recebeu o chamado repudie e esqueça deliberadamente o homem profano? Que deste ele rejeite tudo: sua leviandade, sua inconsciência, seu desleixo no trabalho, suas ambições terrenas, seus desejos orgulhosos ou sensuais, a inconsistência de seu querer ou a impaciência desordenada de seus desejos, suas complacências e suas antipatias, seus humores acrimoniosos ou seu conformismo, toda a inumerável rede de impedimenta [1] que obstruem o caminho do vero e impossibilitam sua conquista?

O temor a Deus é o começo da sabedoria, diz a Escritura. Esse temor filial não é no fundo senão o medo de si. No campo intelectual pode-se chamá-lo de atenção liberada de todas as preocupações inferiores e de fidelidade perpetuamente apreensiva ante a possibilidade de decair. Um intelectual deve estar sempre de prontidão para o pensar, isto é, para receber uma parte da verdade que o mundo carreia em seu curso e que lhe foi preparada, para tal ou qual curva desse curso, pela Providência. O Espírito passa e não volta. Feliz de quem está pronto para não perder, para de preferência até provocar e aproveitar o milagroso encontro!

Toda obra intelectual começa pelo êxtase; só depois se exerce o talento do arranjador, a técnica dos encadeamentos, das relações e da construção. Ora, o que é o êxtase senão um elevar-se para longe de si mesmo, um esquecimento de se viver, de si próprio, para que viva no pensamento e no coração o objeto de nossa embriaguez?

A memória mesma participa desse dom. Existe uma memória baixa, uma memória de papagaio e não de inventor: esta aí causa obstrução, tapando as vias por onde flui o pensamento em proveito de palavras e fórmulas fechadas. Mas há uma memória engatilhada em todas as direções e à espera de uma eterna descoberta. Em seu conteúdo, nada há que venha “já pronto”; suas aquisições são sementes de futuro; seus oráculos são promessas. Ora, tal memória é também extática; ela funciona pelo contato com as fontes de inspiração; de modo algum se compraz de si mesma; o que encerra é novamente intuição, sob o nome de lembrança, e o eu de quem é hóspede se entrega por seu intermédio à exaltante Verdade tanto quanto à busca.

O que é verdadeiro para as aquisições e as consecuções era já verdadeiro para o chamado no início do percurso. Depois das hesitações da adolescência, quase sempre angustiada e perplexa, foi inevitável chegar à descoberta de si, à percepção desse impulso secreto que persegue em nós não sei qual resultado longínquo que a consciência ignora. Supõem que isso seja simples? ”À escuta de si mesmo” é uma outra formulação para esta expressão: À escuta de Deus. É no pensamento criador que jaz nosso ser verdadeiro e nosso eu na forma autêntica. Ora, essa verdade de nossa eternidade, que domina nosso presente e prevê nosso porvir, é-nos revelada tão somente no silêncio da alma, silêncio dos vãos pensamentos que levam ao “divertimento” pueril e dissipador; silêncio dos barulhos de chamada que as paixões desordenadas não se cansam de fazer-nos escutar.

A vocação pede o atendimento, que, num esforço único para sair de si, escuta e atende. 

O mesmo se dará por ocasião da escolha dos meios para ser bem-sucedido, da estruturação de seu modo de vida, de seus relacionamentos, da organização de seu tempo, da partilha entre a contemplação e a ação, entre a cultura geral e a especialização, entre o trabalho e os descansos, entre as concessões necessárias e as intransigências ferozes, entre a concentração que fortalece e as expansões que enriquecem, entre o retrair-se e o relacionar-se com gênios, pessoas com quem se tem afinidade de ideias, com a natureza ou a vida social etc. etc. Tudo isso só é avaliado com sabedoria quando em êxtase também, perto do eternamente verdadeiro, longe do eu que cobiça e é tomado de paixão.

E ao final a dádiva dos resultados e sua extensão estipulada lá no alto exigirão a mesma virtude de acolhida, a mesma postura desinteressada, a mesma paz em uma Vontade que não seja a nossa. Chega-se ao que se pode, e nosso poder precisa avaliar-se, para não se subestimar, de um lado, ou, inversamente, transbordar de presunção e jactância vazia. De onde vem esse julgamento senão de um olhar fiel à verdade impessoal e da submissão a seu veredicto, mesmo que isso nos custe um esforço ou um desapontamento secreto?

Os grandes homens nos parecem ter uma grande ousadia; no fundo, eles são mais obedientes que os outros. A voz soberana os alerta. É porque um instinto provindo dela os aciona que eles tomam, com coragem sempre e às vezes com grande humildade, o lugar que a posteridade lhes conferirá mais tarde, ousando atitudes e arriscando inovações com muita frequência contrárias a seu meio, sendo até mesmo alvo de sarcasmos. Eles não têm medo porque, por mais isolados que pareçam, não se sentem sozinhos. A seu favor está o que tudo decide no final. Eles pressentem seu futuro poder.

Nós temos sem dúvida de lidar com uma humildade de natureza totalmente diversa, nós devemos entretanto ir colher nossa inspiração nas mesmas alturas. É a altitude que mede a pequenez. Quem não possui o sentido das grandezas se deixa exaltar ou abater facilmente, quando não as duas coisas ao mesmo tempo. É para não pensar no escaravelho gigante que a formiga acha o ácaro demasiadamente pequeno, e é para não sentir o vento dos cumes que o caminhante se demora languidamente nas encostas. Sempre conscientes da imensidão da verdade e da exiguidade de nossos recursos, jamais empreenderemos o que está além de nosso alcance, e iremos até o fim do nosso poder. Seremos felizes, então, com o que nos terá sido oferecido à nossa altura.

Não se trata aqui de pura mensuração. O motivo da observação é o fato de que o trabalho insuficiente ou pretensioso é sempre um trabalho malfeito. Uma vida empurrada muito para o alto ou largada muito lá embaixo é uma vida que se desorienta. Uma árvore pode ter uma rama e uma floração medíocre ou magnífica: ela não as chama e não as constrange; sua alma vegetal desabrocha pela ação da natureza no geral e das influências do ambiente. Nossa própria natureza geral é o pensamento eterno; recorremos a ele com as forças que dele provêm e com os instrumentos que ele nos fornece: deve haver concordância entre o que recebemos em matéria de dons – incluindo-se a coragem – e o que devemos esperar em matéria de resultados.

O que não haveria para se dizer sobre essa disposição fundamental, ante um destino inteiramente dedicado à vida pensante! Mencionei as resistências e as incompreensões que agem contra os grandes; mas elas atingem também os pequenos: como resistir a elas sem um puro apego ao verdadeiro e sem autoesquecimento? Quando não se procura agradar o mundo, ele se vinga; se por acaso se consegue agradá-lo, ele ainda assim se vinga nos corrompendo. A única saída é trabalharmos longe dele, tão indiferentes a seu julgamento quanto prontificando-nos a ser-lhe úteis. O bom é, talvez, que ele nos repele e nos obriga assim a retirar-nos para nosso próprio interior, a crescermos por dentro, a controlar-nos, a aprofundar-nos. Esses benefícios vêm à proporção que nosso desinteresse se torna superior, isto é, que nosso interesse se centra naquilo que é o unicamente necessário.

Estaríamos nós mesmos sujeitos, para com outrem, às tentações da difamação, da inveja, das críticas sem fundamento, das disputas? Teríamos então de nos lembrar que inclinações como essas, ao perturbar o espírito, são nocivas à verdade eterna e são incompatíveis com seu culto.

É preciso observar nesse particular que a difamação, até um determinado nível, é mais aparente do que real e tem algum valor para a formação da opinião geral. Nós nos enganamos com frequência sobre o modo como os mestres falam uns dos outros. Eles se criticam severamente, mas bem sabem, mutuamente, o que valem, e criticam os outros quando não atribuem importância a isso.

Seja como for, o progresso em comum precisa de paz e de ação conjunta e sofre grande atraso por conta de estreitezas. Diante da superioridade de outrem, só resta uma atitude honrosa: amá-la, e ela se torna assim nossa própria alegria, nossa própria fortuna.

Uma fortuna diferente poderá nos tentar: a que se obtém mediante um êxito exterior, a bem dizer, hoje em dia, bastante raro, quando se trata de um verdadeiro intelectual. O público, de modo geral, é vulgar e só gosta da vulgaridade. Os editores de Edgar Poe diziam ser obrigados a pagar-lhe menos do que a outros, porque ele escrevia melhor que os outros. Conheci um pintor a quem um marchand de arte dizia: “Seria bom tomar umas aulas.” – ?... – “Sim, para aprender a não pintar tão bem”. O homem dedicado à perfeição não entende essa linguagem; ele não aceita por preço algum, sob forma alguma, ser um seguidor do que Baudelaire chamava de zoocracia. Mas e se essa dedicação esmorecesse?...

Mesmo não dando importância aos juízos de terceiros, não estamos nós à mercê, quando a sós, dos tolos julgamentos da vaidade e da puerilidade instintiva? “Nunca cales, nunca escondas de ti o que se pode pensar contra teu próprio pensamento”, escreve Nietzsche. Já não se trata mais aí dos incompetentes e dos curiosos, e sim de nosso próprio testemunho em estado vigilante e íntegro. Quantas vezes não gostaríamos de desconversar, de alcançar a autossatisfação mesmo que enganosa, de dar-nos a preferência conquanto indevidamente! A severidade para consigo, tão propícia à retidão dos pensamentos e à preservação destes contra os mil riscos da busca, é um ato de heroísmo. Como declarar-se culpado e amar sua condenação sem o amor desvairado daquilo que julga?

Isso se corrige, é verdade, por um apego intransigente às nossas persuasões profundas, às intangíveis intuições que se encontram na base de nosso esforço e até de nossa crítica. Não se constrói sobre o nada, e os retoques do artesão não afetam os primeiros alicerces. O que está assimilado e averiguado deve ser resguardado de retratações infundadas e de escrúpulos. É o mesmo amor pela verdade que assim o quer; é o mesmo desinteresse que se interessa, em nós, por aquilo que nos supera e que nem por isso deixou de vir alojar-se em nossa consciência. Apreciações como essas são delicadas; elas são porém necessárias. Sob hipótese alguma as elevadas certezas sobre as quais se assenta todo o trabalho da inteligência devem ser abaladas.

É inclusive o caso de defender-se, em nome desse mesmo apego, contra este melhor que se chamou muito adequadamente de inimigo do bom. Pode ocorrer, ao ampliar-se o campo da pesquisa, que ela se enfraqueça, e pode ocorrer, ao aprofundar-se nela para além de determinados limites, que o espírito fique perturbado e não consiga alcançar nada além de perplexidade. A estrela que se fita de modo por demais ardente e contínuo pode, em razão desse próprio fator, pôr-se a piscar cada vez mais e acabar desaparecendo do céu.

Não decorre daí que se deva evitar aprofundar-se, nem tampouco desprezar essa vasta cultura que é uma condição para o aprofundamento em qualquer setor; mas alerto contra os excessos, e aponto que o puro apego ao que é verdadeiro, sem paixão pessoal, sem frenesi, é o que constitui sua especificidade.

Existe ainda uma outra defesa contra a precipitação nos julgamentos e na elaboração das obras. Ninguém se deixa ofuscar, quando ama a verdade, por uma ideia brilhante à qual se deu por auréola meras banalidades. Não é assim que uma obra adquire seu valor. Pode acontecer que o mais medíocre dos seres encontre uma ideia, como se fosse um diamante bruto ou uma pérola. O difícil é lapidar essa ideia e sobretudo engastá-la na joia da verdade que será a verdadeira criação.

“Na categoria dos leitores precipitados de uma obra”, diz o sr. Ramon Fernandez usando uma formulação divertida, “eu incluiria de bom grado o autor da mencionada obra”. Está muito bem! Mas de onde provém essa pressa negligente, que absolve de antemão um leitor menos interessado e menos responsável? Ela deverá ser evitada, por uma dedicação mais profunda tão somente à verdade.

Será preciso igualmente abster-se de se lançar sobre um tema específico que se gostaria de desenvolver sem ter investigado seus antecedentes gerais e seus vínculos. Ser múltiplo por longo tempo é a condição para ser uno sem perder a riqueza. A unidade do ponto de partida não é senão um vazio. Isso se sente quando a elevada e misteriosa verdade tem nosso culto. Se não utilizarmos então tudo quanto aprendemos, restará no que dissermos uma ressonância secreta, e a confiança recompensa essa plenitude. É um grande segredo o de saber fazer com que uma ideia se irradie graças a seu fundo feito de noite crepuscular. Outro segredo é o de fazer-lhe conservar, apesar desse fulgor, sua força de convergência.

O fracasso nos espreita, ou chega a ser sequer sentido? É hora de se refugiar no culto imutável, incondicionado, que havia inspirado o esforço. “Meu cérebro se transformou num retiro para mim”, escreve Charles Bonnet. Acima do cérebro está aquilo a que ele se consagra, e o retiro, então, é de uma segurança toda especial. Mesmo à custa de muita dor, a criação é uma alegria, e, mais do que a criação, a veneração da ideia de onde ela procede.

De mais a mais, como observava Foch, “é com resíduos que se ganham as batalhas”. Um fracasso em tal coisa é o que prepara para uma vitória em tal outra, para uma vitória, em suma, como fica assegurado a qualquer um que tenha mérito e faça esforço.

*

Quero assinalar um último efeito da submissão absoluta da qual acabo de tecer o elogio. Ela limita nossas pretensões não apenas pessoais, mas também humanas. A razão não pode tudo. Sua última ação, segundo Pascal, consiste em constatar seus limites. Ela o faz tão somente se ela se entregou à sua primeira lei, que não é sua verdade própria, encarada como propriedade ou como conquista, mas a Verdade impessoal e eterna.

Aqui, mais nenhuma limitação para a honra, pelo próprio fato de se haver renunciado à fatuidade. O mistério compensa. A fé substituída à busca arrasta o espírito em vastidões que ele jamais teria conhecido por si mesmo, e a luminosidade de seu próprio plano só tem a ganhar com o fato de que astros longínquos o obriguem a voltar o olhar para o céu. A razão tem por ambição apenas um mundo; a fé lhe dá a imensidão.

*

Não quero prolongar mais esse discurso. Tornar-se-á necessariamente a encontrá-lo, visto ser seu objeto o de assinalar onde está o todo.

Este todo, defendi-lhe os direitos com uma incapacidade de que tenho plena consciência e pela qual peço desculpas. Faço votos de que minhas sugestões no que toca a ele, por mais insuficientes que sejam, contribuam para trazer até ele melhores panegiristas e mais ardentes servidores.


A.-D. Sertillanges
Dezembro de 1934


Introdução

Encontra-se entre as obras de Santo Tomás uma carta a um certo frei João, onde são enumerados Dezesseis Preceitos para Adquirir o Tesouro da Ciência. Essa carta, seja ela autêntica ou não, pede para ser examinada em si mesma; ela não tem preço; gostar-se-ia de deixar gravados todos os seus termos no íntimo do pensador cristão. Acabamos de publicá-la mais uma vez na sequência das Orações do mesmo Doutor, nas quais se condensa seu pensamento religioso e transparece sua alma [2].

Tivemos a ideia de comentar os Dezesseis Preceitos a fim de anexar-lhes o que pode vir a ser útil lembrar aos estudiosos modernos. Na prática, esse procedimento nos pareceu um tanto limitado, preferimos agir mais livremente. Mas a substância desse pequeno volume nem por isso deixa de ser totalmente tomista; nele se encontrará o que nos Dezesseis Preceitos, ou em algum outro escrito, o mestre sugere quanto aos caminhos por onde conduzir o espírito.

*

Este livrinho não tem a pretensão de substituir As Fontes; ele em parte faz referência a elas. O autor não esqueceu, não mais que muitos outros sem dúvida, a comoção de seus vinte anos, quando o padre Gratry estimulava nele o ardor pelo saber.

Numa época que tanto necessita de luz, vamos lembrar tão frequentemente quanto possível as condições que permitem obter-se luz e preparar sua difusão por meio de obras.

*

Não se tratará aqui da produção em si mesma: seria o objeto de um outro trabalho. Mas a mente é sempre a mesma, quer ao propiciar o enriquecimento, quer ao proceder a um sábio dispêndio.

Devendo dizer mais para a frente que o dispêndio é nesse caso um dos meios da aquisição, não podemos duvidar da identidade dos princípios que tornam, em ambas as situações, nossa atividade intelectual fecunda.

É uma razão para ter a esperança de ser útil a todos.


CHANDOLIN, 15 de agosto de 1920


Notas:

[1] Em latim no original. (N. E.)

[2] Les Prières de Saint Thomas d’Aquin [As Orações de Santo Tomás de Aquino]. Tradução e apresentação de A.-D. Sertillanges. Paris, Librairie de l’Art Catholique.


Sobre o autor: Antonin-Dalmace Sertillanges, conhecido também como Antonin-Gilbert Sertillanges ou Antonin Sertillanges (Clermont-Ferrand, 16 de novembro de 1863 – Sallanches, 26 de julho de 1948), foi um filósofo e teólogo francês, considerado como um dos maiores expoentes do neotomismo da primeira metade do séc. XX.

Em 1883 ingressa na ordem dos dominicanos, mudando o próprio nome para Antonin-Gilbert. Chefe de redação da Revue Thomiste, em 1900 é nomeado professor de Ética do Institut Catholique de Paris, onde permanecerá até 1922. A publicação do seu monumental Thomas D’Aquin (1910) dá-lhe notoriedade nacional e internacional. Em 1918 é eleito membro da Académie des Sciences Morales et Politiques. Depois de um longo período em Jerusalém (1923), transfere-se para o convento de Le Saulchoir como professor de Ética Social, fazendo-se cada vez mais notar como um dos principais representantes do neotomismo francês, ao lado de Jacques Maritain e Etienne Gilson. De volta a Paris em 1940, falece oito anos depois, aos 85 anos, de parada cardíaca durante uma convenção num convento de Haute Savoie.

Segundo Sertillanges, toda atividade humana e todo saber encontram a própria razão de ser no cristianismo. Em Le Christianisme et les Philosophies, publicado em dois volumes, em 1939 e em 1941, trata os dados do próprio pensamento segundo as relações entre cristianismo e filosofia. Depois da aparição dos Evangelhos não pode haver filosofia alguma que possa prescindir dos seus ensinamentos. Segundo Sertillanges: “Sem o cristianismo não haveria nenhuma filosofia aceitável (...) todas as que apareceram depois do Evangelho, por mais úteis que sejam se fundidas com ele, jamais poderiam sozinhas trazer qualquer benefício à nossa civilização (...)”.

O teólogo francês é também um profundo conhecedor e admirador de Santo Tomás, de quem se aproximou desde que, no final do séc. XIX, foi nomeado chefe de redação da Revue Thomiste. A sua biografia do santo, publicada, como já se disse, em 1910, é uma obra imprescindível a todos que desejam aprofundar-se no estudo da vida e da obra do Aquinate. Voltará a ocupar-se de Santo Tomás em La Philosophie Morale de Saint Thomas D’Aquin (1916) e Les Grandes Thèses de la Philosophie Thomiste (1928). De Santo Tomás, Sertillanges aprecia sobretudo a aguda inteligência amparada em sólida fé e em vigorosa tensão espiritual. Logra, além disso, extrair a radical modernidade da metafísica tomista do ser (em latim, esse) e sua profunda autonomia em relação a Aristóteles, que, não obstante, o santo tinha por modelo. Escreve o filósofo francês: “[Santo Tomás] não hesita em afastar-se da autoridade de Aristóteles sempre que lhe pareça justo (...) ele engrandece a doutrina de Aristóteles e a enriquece infinitamente (...)”.

Sertillanges também é conhecido por seus estudos sobre Pascal (Blaise Pascal, 1941) e sobre Bergson (Henri Bergson et le Catholicisme, 1941), a quem era ligado por uma profunda amizade. Os seus ensaios de divulgação têm tido difusão enorme, como os teológicos Catéchisme des Incroyants (1930) e Dieu ou Rien? (1933), além de La Vie Catholique (1921) e Recueillement (1935), de inspiração moral. O teólogo também tratou de aspectos estéticos do culto cristão, sobretudo em Un Pèlerinage Artistique à Florence (1895) e Art et Apologétique (1909).

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Como estudar Matemática de Nível Superior


Tempo de leitura: 3 minutos.

Abaixo segue o resumo do vídeo Como ler livros difíceis (e não desistir) do Canal Corre de PhD disponível no LINK. [Conselhos para alunos do Bacharelado Matemática/Física ou Pesquisa Científica].

Conselho principal: NÃO EXISTE FÓRMULA MILAGROSA: Você tem que sentar, estudar e repetir isso várias vezes e por várias horas, se possível.

1. Não queira fazer algum grandioso! Não trace grande objetivos para seus estudos!

QUERER estudar um capítulo inteiro de um livro [de Matemática] e/ou QUERER resolver todos os exercícios desse capítulo em uma tarde ou de uma vez só, não vai dar certo. Seu cérebro precisa absorver as informações de maneira mais suave.

Orientação: Em um papel, escreva tudo que você já sabe sobre o assunto que você estar a estudar (escrever definições, proposições, demonstrações, etc.). No momento em que surgir "buracos" no seu conhecimento, busque o livro. O objetivo é deixar o estudo começar de maneira natural.

2. Não "tente entender" o que o autor do livro escreveu!

Em um capítulo, há geralmente as definições, exemplos, depois algumas proposições e teoremas demonstrados. Se você leu tudo isso e não entendeu nada, foi porque você "tentou entender" o que autor escreveu, ou seja, foi feita uma leitura de maneira passiva. 

Orientação: Leia de maneira ativa. Construa a teoria para você mesmo.

Leia a definição do livro e suas propriedades. Feche o livro. No papel, tente desenvolver tal definição, testando as propriedades, verificando os detalhes e criando seus próprios exemplos. Familiarize-se com a definição. Após isso, volte ao livro, siga adiante lendo os próximos tópicos e repita o mesmo processo:

  • Nas definições, crie seus próximos exemplos. 
  • Ao chegar nas proposições e lemas, demonstre-os ou pelo menos tente.
  • A princípio, faça um esboço da lógica da demonstração. Só depois siga com a demonstração mais técnica.
  • Para os teoremas, cheque-os, ou seja, retire alguma hipótese para enfraquecer o teorema, achando seus contraexemplos.

3. Não pare, se um exemplo/exercício não fez sentido.

Se não conseguir fazer um exercício, siga em frente para conseguir confiança e maturidade matemática. Futuramente você pode revisitar tal exercício para resolvê-lo.

DICA EXTRA: Ao bater o cansaço nos temas mais complexos, estude algo mais fácil/simples para recuperar mais confiança ou revisar conteúdos anteriores.

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Sobre o modo de estudar

Monges Dominicanos, detalhe do Ciclo de
Quarenta Membros Ilustres da Ordem
Dominicana, 1342 - Tomaso da Modena

Texto retirado do capítulo XVIII: São Tomás de Aquino: estudo, do livro Cultura e Educação na Idade Média. Luiz Jean Lauand (org.). Editora WMF Martins Fontes, 2013.

A. INTRODUÇÃO

1. O estudo segundo Tomás de Aquino: uma carta

O "De Modo Studendi" [DMS] é uma carta de autoria de Tomás de Aquino [1], aconselhando sobre o modo de estudar. Tomás dava muita importância à correspondência. Victor White observa que não é raro que Tomás deixe de lado seu trabalho em obras maiores para elaborar respostas a cartas, especialmente de seus irmãos dominicanos [2]. O destinatário da "De modo studendi", um tal "irmão João", é um dominicano jovem [3] que, iniciando seus estudos, e afoito por mergulhar no "oceano da sabedoria", resolveu escrever ao mestre consumado, perguntando sobre atalhos.

Tomás, que -- no "Comentário à Ética" de Aristóteles -- afirma ser o tempo o grande colaborador (bonus cooperator), começa por responder ao impaciente frei João que não há atalhos, mas caminhos: pelos riachos é que se chega ao mar e o "difícil deve ser atingido a partir do fácil" (DMS, intr.).

Já no início da carta, Tomás, referindo-se à tarefa de obter o conhecimento, emprega sugestivamente o gerúndio - acquirendo, adquirindo - como que a indicar que a formação intelectual é mais um contínuo processo do que pacífica posse decorrente de uma ação que se perfaz de uma vez. Significativo, nesse sentido, é o uso do verbo incedere, caminhar, marchar. Com efeito, já na primeira questão da Suma, referindo-se à busca pela razão humana da verdade mais elevada, Tomás diz que "só poucos, depois de muito tempo e com mistura de muitos erros, podem chegar".

O "De modo studendi" é um espelho em que se reflete uma concepção de educação totalmente diferente da que prevalece em nosso tempo. Se um grande educador de boje fosse consultado sobre "o modo de estudar" ou sobre como "adquirir conhecimentos", certamente sua resposta dirigir-se-ia a questões técnicas, programático-curriculares, motivacionais... O conhecimento é, para nós, compartimentado, separado da existência. Já Tomás, que pensa no saber como algo integrado à existência, ante as mesmas perguntas, aconselha "sobre como deve ser tua vida" (DMS, intr.).

Se o objetivo da escola, hoje, é formar o bom profissional, ou, quando muito, "educar para a cidadania", ou formar para uma análise crítica do mundo; os conselhos de Tomás, no século XIII, incidem sobre a própria estrutura nuclear intima do ser humano.

2. A educação para a sabedoria

Assim, já na primeira questão da Suma Teológica, ao procurar caracterizar o que é a sabedoria, Tomás explica que a sabedoria não deve ser entendida somente como conhecimento que advém do frio estudo, mas como um saber que se experimenta e saboreia. Tomás, sempre muito atento aos fenômenos da linguagem, à fala do povo, como fonte de profundas descobertas filosóficas, encanta-se com o fato -- para ele experiência pessoal vivida -- de que em sua língua latina sapere signifique tanto "saber" como "saborear". Esta coincidência de significados na linguagem do povo -- Tomás bem o "sabe" -- não é casual: se há quem saiba porque estudou, verdadeiramente sábio, porém, é aquele que saboreou...

Se a sabedoria não pressupõe só uma dimensão intelectual, mas está integrada ao todo da existência, não é de estranhar que, dentre os conselhos dados por Tomás sobre o modo de estudar, encontremos a exortação ao silêncio, à vida de oração, à amabilidade, à humildade, à pureza de consciência, à santidade...

Nesse sentido, deve-se observar também que o alcance semântico da própria palavra studium em latim é muito mais abrangente do que a nossa, estudo. Studium significa amor, afeição, devotamento, a atitude de quem se aplica a algo porque ama e, não por acaso, esse vocábulo acabou especializando-se em dedicação aos estudos. Assim, o próprio título do opúsculo de Tomás "Sobre o modo de estudar" sugere algo assim como: "Sobre o modo de aplicar-se amorosamente...

E, na verdade, o que Tomás propõe é nada menos do que uma dedicação integral, uma consagração à vida intelectual. Um estilo de vida muito exigente, que supõe uma ascese de relacionamento do homem com Deus (cf. DMS, 3), com os outros (cf. DMS, 5) e consigo mesmo (cf. DMS, 12).

Na visão compartimentada do conhecimento que temos hoje, esperamos que nosso aluno demonstre teoremas, calcule empuxos, balanceie equações químicas, escreva redações sugestivas e conjugue corretamente os verbos; o que ele é enquanto homem, isto é lá com ele... Já para Tomás, como se vê no "De modo studendi", alguém dedicado ao estudo deve, antes de mais nada, cuidar das atitudes da alma.

3. A descoberta da realidade como objetivo da vida intelectual

No que se refere à vida intelectual, Tomás afirma a existência de uma ordo, de uma dinâmica própria do conhecimento, daí que o Aquinate freqüentemente compare o sábio ao arquiteto. Certamente, essa ordo exige uma ordenação do próprio objeto de estudo: do mais fácil para o mais difícil; do riacho para o alto-mar. Mas a aquisição do tesouro do saber exigirá também uma ordenação interior do sujeito que estuda. A essa ordo interius referem-se os conselhos do "De modo studendi". Afinal, o conhecimento da realidade é, para Tomás, o objetivo da educação, e mais, a própria realização do homem.

B. CARTA SOBRE O MODO DE ESTUDAR

Introdução

Já que me pediste, frei João -- irmão, para mim, caríssimo em Cristo --, que te indicasse o modo como se deve proceder para ir adquirindo o tesouro do conhecimento, devo dar-te a seguinte indicação: deves optar pelos riachos e não por entrar imediatamente no mar, pois o difícil deve ser atingido a partir do fácil. E, assim, eis o que te aconselho sobre como deve ser tua vida:

1. Exorto-te a ser tardo para falar e lento para ir ao locutório.

2. Abraça a pureza de consciência.

3. Não deixes de aplicar-te à oração.

4. Ama freqüentar tua cela, se queres ser conduzido à adega do vinho da sabedoria.

5. Mostra-te amável com todos, ou, pelo menos, esforça-te nesse sentido; mas, com ninguém permitas excesso de familiaridades, pois a excessiva familiaridade produz o desprezo e suscita ocasiões de atraso no estudo.

6. Não te metas em questões e ditos mundanos. 

7. Evita, sobretudo, a dispersão intelectual.

8. Não descuides do seguimento do exemplo dos homens santos e honrados.

9. Não atentes a quem disse, mas ao que é dito com razão e isto, confia-o à memória.

10. Faz por entender o que lês e por certificar-te do que for duvidoso.

11. Esforça-te por abastecer o depósito de tua mente, como quem anseia por encher o máximo possível um cântaro.

12. Não busques o que está acima de teu alcance.

13. Segue as pegadas daquele santo Domingos que, enquanto teve vida, produziu folhas, flores e frutos na vinha do Senhor dos exércitos.

Se seguires estes conselhos, poderás atingir o que queres.

Saudações.


Notas:

[1] Martin GRABMANN - em seu Die Werke des Hl. Thomas von Aquin, Münster, Verlag der Aschendorffschen Verlagsbuchhandlung, 2a ed., 1931, pp. 372-3 -- considera o De modo studendi um opúsculo autêntico. Contra as reservas (embora mínimas) que Mandonnet guarda a propósito da autoria do De modo studendi - incluído por ele entre os vix dubia de Tomás, Opusculum XLIV, opúsculos de que dificilmente se pode duvidar de que o autor seja o Aquinate (S. Thomae Aquinatis: Opuscula Omnia cura et studio R.P. Petri Mandonnet, vol. IV, Paris, Lethielleux, 1927) --, Victor White, em seu How to study, 2a ed., Oxford, Blackfriars, 1949, aponta razões intrínsecas que confirmam a tese da autenticidade desse opúsculo. Para a tradução, valemo-nos do texto latino apresentado por White.

[2] Como é o caso de sua carta Resposta a seis questões do irmão Gerardo de Soissons: "Embora esteja muito ocupado em diversos assuntos, cuidei de responder logo que me foi possível, para não desatender a vosso pedido." E o mesmo diz a um importuno veneziano que escreveu uma carta dirigindo-lhe 36 questões e exigindo, como ironicamente frisa Tomás, "resposta em quatro dias"

[3] White observa que São Tomás, seguindo o uso do século XIII, sempre se valia do tratamento "vos" para superiores ou iguais; nesta carta, porém, emprega o "tu".

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