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Apresentamos o capítulo 2, Aprendizado em tempos de guerra, do livro O peso da glória, de C. S. Lewis; traduzido por Estevan Kirschner, pela Editora Thomas Nelson Brasil, 2017. O “Aprendizado em tempos de guerra” também foi apresentado, a partir de um convite do cônego Milford, no culto vespertino em St. Mary the Virgin em 22 de outubro de 1939.
Aprendizado em tempos de guerra
A universidade é uma sociedade em busca de aprendizado. Como estudantes, espera-se de vocês que se preparem para ser, ou ao menos comecem a ser, aquilo que na Idade Média denominava-se um erudito, que se tornem filósofos, cientistas, acadêmicos, críticos ou historiadores. À primeira vista, isso parece algo estranho de se fazer durante uma grande guerra. Qual é a utilidade de se iniciar uma tarefa cujas chances de concluir são mínimas? Ou, ainda que nós mesmos não sejamos interrompidos pela morte ou pelo serviço militar, por que razão deveríamos — de fato, como poderíamos — continuar tendo um interesse nessas tarefas plácidas quando a vida de nossos amigos e as liberdades da Europa estão em risco? Não seria o mesmo que tocar harpa enquanto Roma arde em chamas?
Parece-me que essas questões não podem ser respondidas enquanto não as colocarmos juntas a outras perguntas que todo cristão deveria fazer a si mesmo em épocas de paz. Falei, agora há pouco, de tocar harpa enquanto Roma arde em chamas. Porém, para o cristão, a verdadeira tragédia de Nero não deveria ser que ele tocava harpa durante o incêndio da cidade, mas que ele tocava harpa à beira do Inferno. Peço perdão pelo uso da expressão. Sei que atualmente muitos cristãos, mais sábios e melhores do que eu, não apreciam a menção de Céu e de Inferno, nem mesmo no púlpito. Entretanto, essa fonte é o Nosso Senhor Jesus. Alguns podem dizer que a fonte é Paulo, mas isso não é verdade. Essas doutrinas contundentes são dominicais. Não se pode realmente removê-las do ensinamento de Cristo ou de sua Igreja. Se não crermos nelas, nossa presença na Igreja não passa de uma grande farsa. Se crermos, precisamos por vezes vencer nosso pudor espiritual e mencioná-las.
No momento em que fizermos isso, poderemos ver que cada cristão que chega à universidade precisa ter sempre uma questão em relação à qual outras questões levantadas em função da guerra perdem relativa importância. Precisará se perguntar como pode ser correto, ou mesmo psicologicamente possível, para criaturas que estejam a cada momento avançando, seja em direção ao Céu ou ao Inferno, gastar uma fração do pouco tempo a elas permitido viver neste mundo em atividades triviais tais como literatura ou arte, matemática ou biologia. Se a cultura humana puder resistir a esse questionamento, poderá resistir a qualquer coisa. Admitir que se possa manter o interesse no aprendizado sob a sombra dessas questões eternas, mas não sob a sombra de uma guerra na Europa, seria o mesmo que admitir que nossos ouvidos estão fechados à voz da razão e muito abertos à voz dos nossos sentimentos ou emoções coletivas.
Esse é, de fato, o caso com a maioria de nós, e certamente comigo. Por essa razão, considero importante tentar observar a calamidade presente sob uma perspectiva verdadeira. A guerra não cria nenhuma situação absolutamente nova; ela simplesmente agrava a situação humana permanente de tal maneira que não podemos mais ignorá-la. A vida humana sempre viveu à beira do precipício. A cultura humana sempre teve de existir sob a sombra de algo infinitamente mais importante do que ela mesma. Se os seres humanos tivessem de adiar a pesquisa pelo conhecimento e pela beleza até estarem seguros, a pesquisa jamais teria começado. É um equívoco comparar a guerra com a “vida normal”. A vida nunca foi normal. Até mesmos os períodos que julgamos ser os mais tranquilos, como o século XIX, foram, sob um olhar mais acurado, cheios de crises, situações alarmantes, dificuldades e emergências. Razões plausíveis nunca faltaram para se adiarem todas as atividades meramente culturais, até algum perigo iminente ser afastado ou alguma injustiça clamorosa ser retificada, mas há muito tempo a humanidade decidiu negligenciar essas razões plausíveis. Queriam conhecimento e beleza agora e não esperariam pelo momento adequado que nunca chega. A Atenas de Péricles nos legou não apenas o Pártenon, mas também, significativamente, a Oração Fúnebre. Os insetos escolheram um procedimento diferente: eles buscam primeiramente a prosperidade e a segurança da colmeia e presumivelmente têm sua recompensa. Os seres humanos são diferentes; propõem teoremas matemáticos em cidades sitiadas, conduzem argumentos metafísicos em celas de condenados, fazem piadas no patíbulo, discutem o último e novo poema enquanto avançam contra as muralhas de Quebec e penteiam o cabelo no desfiladeiro das Termópilas. Isso não é petulância; é a nossa natureza.
No entanto, uma vez que somos criaturas decaídas, o fato de que essa é a nossa natureza não iria, por si só, provar que isso é racional ou correto. Devemos perguntar se existe realmente algum lugar legítimo para as atividades do erudito num mundo como este. Ou seja, temos de sempre responder a esta pergunta: “Como você pode ser tão fútil e egoísta em pensar sobre qualquer outra coisa que não seja a salvação das almas humanas?” E necessitamos, no momento, responder à questão adicional: “Como você pode ser tão fútil e egoísta em pensar sobre qualquer outra coisa que não seja a guerra?” É verdade que parte de nossa resposta será a mesma para ambas as perguntas. Uma das perguntas implica que nossa vida pode, e deve, tornar-se exclusiva e explicitamente religiosa; a outra, que pode, e deve, tornar-se exclusivamente nacionalista. Acredito que toda a nossa vida pode e, de fato, deve, tornar-se religiosa num sentido a ser explicado mais tarde, mas se isso quer dizer que todas as nossas atividades devem ser do tipo que podem ser reconhecidas como “sagradas”, em oposição a “seculares”, então eu daria uma resposta simples para ambos os meus inquiridores imaginários. Eu diria: “Mesmo que devesse ou não acontecer, aquilo que você está sugerindo não vai acontecer”. Antes de me tornar cristão, eu não tinha entendido completamente que a vida de alguém depois da conversão iria inevitavelmente consistir em fazer a maior parte das mesmas coisas que fazia antes, assim se espera, com um novo espírito, mas sendo ainda as mesmas coisas. Além disso, antes de partir como soldado para a Primeira Guerra Mundial, eu certamente esperava que minha vida nas trincheiras fosse, em algum sentido misterioso, somente voltada para a guerra. Na realidade, percebi que, quanto mais próximo se chegasse à frente de batalha, menos se falava e se pensava a respeito da causa dos aliados e do progresso da campanha. Fico feliz que Tolstói registra o mesmo no maior livro já escrito sobre a guerra, e, a seu próprio modo, a Ilíada também. Nem a conversão nem o alistamento no exército obliterarão a nossa vida humana. Soldados e cristãos são ainda seres humanos; as ideias do não-religioso sobre a vida religiosa, e a do cidadão civil sobre o serviço militar, são delirantes. Em qualquer um dos casos, se você tentar suspender toda a sua atividade intelectual e estética, o único sucesso que você terá é a substituição de uma vida cultural ruim por uma melhor. De fato, você não irá ler nada, tanto na Igreja quanto na linha de frente; se você não lê bons livros, lerá livros ruins. Se você não pensar racionalmente, pensará de forma irracional. Se rejeitar a satisfação estética, cairá em satisfação sensual.
Existe, portanto, essa analogia entre as reivindicações de nossa religião e as reivindicações da guerra: nenhuma das duas, para a maioria de nós, simplesmente cancelará ou removerá de cena a vida meramente humana que estávamos vivendo antes de entrarmos nelas, mas as duas operarão dessa maneira por razões diferentes. A guerra fracassará em absorver toda nossa atenção por ser um objeto finito e, por isso, intrinsecamente incapaz de suportar toda a atenção de uma alma humana. Para evitar mal-entendidos, devo fazer algumas considerações. Acredito que a nossa causa é, no que diz respeito a causas humanas, muito justa e, portanto, eu acredito que seja nosso dever participar desta guerra. Todo dever é um dever religioso e nossa obrigação de cumprir cada dever é, assim, absoluta. Dessa forma, talvez tenhamos o dever de resgatar um homem que esteja se afogando e, quem sabe, se vivermos numa área litorânea perigosa, de aprender primeiros socorros a fim de estarmos prontos para ajudar, quando necessário, qualquer pessoa que esteja se afogando. É possível que seja nosso dever perder a vida para salvar a vida de outra pessoa, mas qualquer pessoa que se dedica a ser um salva-vidas no sentido de dar a isso sua total atenção — de modo que não pensa nem fala sobre mais nada e exige a cessação de todas as outras atividades humanas até que todos aprendam a nadar — é um monomaníaco. O resgate de pessoas em situação de afogamento é, então, um dever pelo qual vale a pena morrer, mas não viver. Parece-me que todos os deveres políticos (entre os quais incluo o serviço militar) são desse tipo. Um homem poderá ter de morrer por seu país, mas nenhuma pessoa deve, em nenhum sentido exclusivo, viver por seu país. Aquele que se entrega sem reservas às reivindicações temporais de uma nação, ou de um partido, ou de uma classe, estará entregando a César aquilo que, acima de tudo, pertence da forma mais enfática possível a Deus; estará entregando a sua própria pessoa.
Entretanto, é por outra razão que a religião não pode ocupar o todo da vida no sentido de excluir todas as atividades naturais, pois é claro que, em certo sentido, deve ocupar a vida como um todo. Não há dúvida sobre uma acomodação entre as reivindicações de Deus e as reivindicações da cultura, da política, ou de qualquer outra coisa. A exigência de Deus é infinita e inexorável. Você pode recusá-la ou começar a tentar cumpri-la. Não existe caminho intermediário. Apesar disso, está claro que o cristianismo não exclui nenhuma das atividades humanas normais. O apóstolo Paulo diz às pessoas que vivam normalmente cumprindo suas tarefas. Ele até mesmo presume que cristãos compareçam a jantares e, o mais surpreendente, jantares patrocinados por pagãos. Nosso Senhor comparece a uma celebração de casamento e providencia vinho a partir de um milagre. Sob a proteção de sua Igreja, e na maioria dos séculos cristãos, o aprendizado e as artes floresceram. A solução para esse paradoxo, claro, é bem conhecida. “Assim, quer vocês comam, bebam ou façam qualquer outra coisa, façam tudo para a glória de Deus.”
Todas as nossas atividades naturais serão aceitas, se forem oferecidas a Deus, mesmo a mais humilde delas; e todas elas, mesmo as mais nobres, serão pecaminosas se não forem dedicadas a Deus. Não é que o cristianismo simplesmente substitui nossa vida natural por uma nova vida; é antes uma nova organização que cultiva esses materiais naturais para seus próprios fins sobrenaturais. Não há dúvida de que, em dada situação, ele exige a entrega de algumas, ou de todas, as nossas aspirações meramente humanas; é melhor ser salvo com um só olho do que, tendo os dois, ser lançado no Geena. Contudo, ele faz isso, em certo sentido, per accidens [por acidente] — porque naquelas circunstâncias especiais deixou de ser possível realizar esta ou aquela atividade para a glória de Deus. Não há discordância essencial alguma entre vida espiritual e as atividades humanas em si. Assim, a onipresença da obediência a Deus na vida cristã é, de certo modo, comparável à onipresença de Deus na dimensão espacial. Deus não preenche o espaço como um corpo o faz, no sentido de que diferentes partes dele estariam em diferentes partes do espaço, excluindo outros objetos. Ainda assim, ele está em toda parte — completamente presente em cada ponto do espaço — segundo bons teólogos.
Estamos agora em condições de responder à perspectiva de que a cultura humana é uma futilidade inexcusável da parte de criaturas incumbidas dessas terríveis responsabilidades, como nós. Rejeito imediatamente a noção que predomina na mente de algumas pessoas modernas de que atividades culturais são por si só espirituais e meritórias — como se eruditos e poetas fossem intrinsecamente mais agradáveis a Deus do que catadores de lixo e engraxates. Creio que foi Matthew Arnold quem primeiro usou o termo inglês spiritual no sentido do alemão geistlich, inaugurando assim esse erro perigosíssimo e muito anticristão. Devemos nos livrar completamente dessa mentalidade. A obra de Beethoven e o trabalho de uma faxineira se tornam ambas espirituais precisamente na mesma condição, de serem oferecidas a Deus, de serem realizadas de maneira humilde “como para o Senhor”. Isso não significa, é claro, que seja mera questão de sorte para cada um, se irá varrer salas ou compor sinfonias. Uma toupeira precisa cavar para a glória de Deus e um galo deve cantar. Somos membros de um corpo, mas membros diferentes, cada um com a sua vocação. A educação de uma pessoa, seus talentos, suas circunstâncias, são geralmente um indicador aceitável de sua vocação. Se nossos pais nos mandaram para Oxford, se nosso país nos permite permanecer aqui, essa é uma evidência prima facie de que a vida que, em todo caso, é a melhor que podemos viver para a glória de Deus no presente, é a vida acadêmica. Ao dizer que podemos viver para a glória de Deus, não quero dizer, é claro, que devamos fazer com que qualquer das nossas tentativas de pesquisa intelectual deva redundar em conclusões edificantes. Isso seria o mesmo que, como diz Bacon, oferecer ao autor da verdade o sacrifício impuro de uma mentira. Refiro-me à busca pelo conhecimento e pela beleza num sentido que seja pela própria busca em si, mas num sentido que não exclua que seja também para Deus. Existe um apetite para essas coisas na mente humana, e Deus não faz nenhum apetite em vão. Podemos, dessa forma, buscar o conhecimento como tal, e a beleza como tal, com a confiança inabalável de que ao fazer isso estaremos progredindo em nossa própria visão de Deus, ou indiretamente ajudando outros a fazer o mesmo. A humildade, não menos que o apetite para essas coisas, nos encoraja a concentrar simplesmente no conhecimento ou na beleza, não nos preocupando em demasia com sua relevância final para a visão de Deus. Essa relevância pode não ser destinada a nós, mas a quem é melhor do que nós — para as pessoas que vêm depois e encontram o significado espiritual daquilo que desenterramos em obediência cega e humilde à nossa vocação. Esse é o argumento teleológico de que a existência do impulso e da capacidade prova que eles devem ter uma função apropriada no esquema de Deus — o argumento com o qual Tomás de Aquino demonstra que a sexualidade existiria mesmo sem a Queda. A robustez do argumento, no que diz respeito à cultura, é comprovada pela experiência. A vida intelectual não é o único caminho para Deus, nem mesmo o mais seguro, mas descobrimos ser um caminho, e poderá ser o caminho destinado a nós. É verdade que isso será assim somente enquanto mantivermos o impulso puro e desinteressado. Essa é a grande dificuldade. Como diz o autor de Theologia Germanica, podemos nos tornar amantes do conhecimento — nosso conhecimento — mais do que da coisa conhecida; ter prazer não no exercício de nossos talentos, mas no fato de que são nossos, ou mesmo na reputação que eles nos trazem. Cada sucesso na vida do estudioso aumenta esse perigo. Se isso se tornar irresistível, ele deverá desistir de seu trabalho acadêmico. O momento de arrancar o olho direito terá chegado.
Essa é a natureza essencial da vida acadêmica do modo como a vejo, mas ela possui valores indiretos que são especialmente importantes na atualidade. Se o mundo todo fosse cristão, não importaria se o mundo todo não fosse educado. No entanto, do modo como as coisas são, uma vida cultural existirá fora da Igreja, independentemente se ela existe ou não dentro dela. Ser ignorante e simples agora — não sendo capaz de enfrentar os inimigos em seu próprio campo — seria derrubar nossas armas e trair nossos irmãos não educados, que não têm, sob Deus, nenhuma defesa contra os ataques intelectuais dos pagãos a não ser nós. É necessário que haja boa filosofia, se não por outra razão, porque a filosofia ruim precisa de uma resposta. O bom intelecto deve trabalhar não apenas contra o bom intelecto do outro lado, mas contra os confusos misticismos pagãos que negam o intelecto completamente. Acima de tudo, talvez, precisamos de um conhecimento íntimo do passado, não porque o passado tenha alguma magia em torno de si, mas porque não podemos estudar o futuro. Ainda assim, necessitamos de algo para contrapor o presente, para nos lembrar de que as pressuposições básicas têm sido muito diferentes em diferentes períodos e que muito daquilo que parece absoluto para os que não são educados é meramente modismo temporário. O homem que já viveu em muitos lugares tem menos possibilidades de ser enganado pelos erros de seu local de origem. O erudito vive em contextos diferentes e, portanto, tem a percepção mais aguçada a respeito da enxurrada de tolices que jorram da imprensa e dos microfones de seu próprio tempo.
Portanto, a vida acadêmica é um dever para alguns e nesse momento parece-me que esse dever é de vocês. Estou muito consciente de que parece haver uma discrepância quase cômica entre os temas mais elevados que consideramos e a tarefa imediata na qual vocês podem estar ocupados, como as boas leis anglo-saxônicas ou fórmulas químicas. Mas existe um choque semelhante nos aguardando em cada vocação — um jovem pároco pode se envolver com questões do coro da igreja, e um jovem soldado com o fazer o inventário de potes de geleia. E é bom que seja assim. Isso acaba por limpar o terreno das pessoas que são falsas, turbulentas e mantêm aquelas que são humildes e fortes. Nesse tipo de dificuldade, não precisamos desperdiçar nossa simpatia, mas a dificuldade peculiar imposta pela guerra sobre vocês é outra questão, e sobre isso eu vou repetir o que tenho dito, de uma forma ou de outra, desde que comecei — não deixe que seus sentimentos e emoções os levem a pensar que seu dilema é mais incomum do que realmente é. Talvez seja útil mencionar os três exercícios mentais que poderão servir como defesas contra os três inimigos que a guerra levanta contra o erudito.
O primeiro inimigo é o entusiasmo — a tendência de pensar e sentir sobre a guerra quando tencionamos pensar em nosso trabalho. A melhor defesa é o reconhecimento de que nisso, como em tudo mais, a guerra realmente não levantou um novo inimigo, mas apenas agravou um inimigo velho. Existem sempre muitos rivais para o nosso trabalho. Estamos sempre nos apaixonando ou discutindo, procurando emprego ou com medo de perdê-lo, adoecendo e recuperando a saúde, acompanhando acontecimentos públicos. Se deixarmos isso para nós mesmos, estaremos sempre na expectativa de alguma distração ou outra para terminar antes mesmo de realmente sermos capazes de continuar no nosso trabalho. Nunca existirão condições favoráveis. Há momentos, é claro, em que a pressão do entusiasmo é tão grande que somente um domínio próprio sobre-humano pode resistir. Eles vêm tanto na guerra quanto na paz. Precisamos fazer nosso melhor.
O segundo inimigo é a frustração — o sentimento de que não teremos tempo de terminar. Se eu lhe disser que ninguém tem tempo para terminar, que a vida humana mais longa torna a pessoa, seja qual for o ramo do saber, uma iniciante, parecerei dizer algo bem acadêmico e teórico. Você ficaria surpreso se soubesse como é cedo quando alguém começa a sentir que a corda é curta, de tantas coisas, mesmo em meia-idade, em que temos de dizer “não tenho tempo para isso”, “agora é tarde” e “não é para mim”. A própria natureza, porém, o proíbe de compartilhar essa experiência. Uma atitude mais cristã, que pode ser obtida em qualquer idade, é deixar o futuro nas mãos de Deus, e deveríamos fazer isso mesmo, pois Deus vai certamente reter isso, quer o deixemos para ele ou não. Seja na paz ou na guerra, nunca dedique sua virtude ou sua felicidade ao futuro. O trabalho feliz é mais bem realizado pela pessoa que considera seus planos de longo prazo de uma forma leve e que trabalha de momento a momento “como para o Senhor”. É somente pelo nosso pão diário que somos encorajados a pedir. O presente é o único tempo em que algum dever pode ser cumprido ou alguma graça pode ser recebida.
O terceiro inimigo é o medo. A guerra nos ameaça com a morte e a dor. Ninguém — especialmente nenhum cristão que se lembra do Getsêmani — precisa tentar alcançar uma indiferença estoica quanto a essas coisas, mas podemos nos policiar contra as ilusões da imaginação. Podemos pensar sobre as ruas de Varsóvia e contrastar as mortes que lá aconteceram com uma abstração chamada Vida. Contudo, não existe uma questão de vida ou morte para qualquer um de nós, apenas uma questão desta morte ou daquela — de uma bala de metralhadora agora ou um câncer daqui a quarenta anos. O que a guerra realiza em função da morte? Ela certamente não a torna mais frequente; cem por cento de nós vão morrer e essa porcentagem não pode ser aumentada. Ela adianta certa quantidade de mortes, mas acho difícil supor que seja isso que tememos. Certamente, quando o momento chegar, não fará muita diferença quantos anos foram deixados para trás. Será que a guerra aumenta a nossa probabilidade de uma morte dolorosa? Duvido. O quanto me é possível imaginar, aquilo que denominamos morte natural é normalmente precedido por sofrimento, e um campo de batalha é um dos poucos lugares em que se tem uma razoável possibilidade de morrer sem dor alguma. Será que a guerra diminui nossas possibilidades de morrer em paz com Deus? Não posso acreditar nisso. Se o serviço militar ativo não for capaz de persuadir um homem a se preparar para a morte, que outra série imaginável de circunstâncias o faria? Por outro lado, a guerra faz uma coisa em relação à morte. Ela nos força a lembrar dela. A única razão por que o câncer aos sessenta anos ou a paralisia ao setenta e cinco não nos incomodam é que nos esquecemos deles. A guerra torna a morte real para nós e isso seria considerado como uma de suas bênçãos pela maioria dos grandes cristãos do passado. Eles achavam bom para nós estar sempre conscientes de nossa mortalidade. Estou inclinado a pensar que eles estavam certos. Toda a vida animal em nós, todos os esquemas de felicidade que estão centrados neste mundo, sempre estiveram fadados ao fracasso. Em tempos de normalidade, somente os mais sábios podiam reconhecer isso. Agora, até o mais estúpido de nós sabe. Vemos, de modo inequívoco, o tipo de universo em que estamos vivendo todo esse tempo e devemos acertar as contas com ele. Se tínhamos esperanças não-cristãs acerca da cultura humana, elas estarão agora destroçadas. Se pensávamos que estivemos construindo um Céu na Terra, se procurávamos por algo que iria mudar o mundo presente, de ser um lugar de peregrinação para uma cidade permanente que satisfaz a alma de uma pessoa, estamos desiludidos e não é sem tempo. Porém, se pensávamos que para algumas almas, em alguns tempos, a vida acadêmica oferecida humildemente a Deus era, em seu pequeno próprio modo, uma das abordagens indicadas para a realidade Divina e a beleza Divina que esperamos um dia desfrutar, podemos sim continuar a pensar desse modo.
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