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Tempo de leitura: 34 minutos.
Apresentamos um trecho do livro Republica, de Platão, com tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, Editora Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. Contextualizando, no Livro VI, Sócrates e Glauco conversam sobre a ideia do bem.
LIVRO VI - [509d - 511e]
- SÓCRATES: Imagina então - comecei eu - que, conforme dissemos, eles [41] são dois e que reinam, um na espécie e no mundo inteligível, o outro no visível. Não digo «no céu», não vás tu julgar que estou a fazer etimologias com o nome [42]. Compreendeste, pois, estas duas espécies, o visível e o inteligível?
- GLÁUCON: Compreendi.
- Supõe então uma linha em duas partes desiguais; corta novamente cada um dos segmentos segundo a mesma proporção, o da espécie visível e o da inteligível; e obterás, no mundo visível, segundo a sua claridade ou obscuridade relativa, uma secção, a das imagens. Chamo imagens, em primeiro lugar, às sombras; seguidamente, aos reflexos nas águas, e àqueles que se formam em todos os corpos compactos, lisos e brilhantes, e a tudo o mais que for do mesmo género, se estas a entender-me.
- Compreendo, mas não o bastante - pois me parece que é uma tarefa cerrada, essa de que falas - que queres determinar que é mais claro o conhecimento do ser e do inteligível adquirido pela ciência da dialéctica do que pelas chamadas ciências, cujos princípios são hipóteses; os que as estudam são forçados a fazê-lo, pelo pensamento, e não pelos sentidos; no entanto, pelo facto de as examinarem sem subir até ao princípio, mas a partir de hipóteses, parece-te que não têm a inteligência desses factos, embora eles sejam inteligíveis com um primeiro princípio. Parece-me que chamas entendimento [43], e não inteligência, o modo de pensar dos geómetras e de outros cientistas, como se o entendimento fosse algo de intermédio entre a opinião e a inteligência.
- Apreendeste perfeitamente a questão - observei eu -. Pega agora nas quatro operações da alma e aplica-as aos quatro segmentos: no mais elevado, a inteligência, no segundo, o entendimento; ao terceiro entrega a fé, e ao último a suposição, e coloca-os por ordem, atribuindo-lhes o mesmo grau de clareza que os seus respectivos objectos têm de verdade.
- Compreendo - disse ele -; concorda, e vou ordená-los como dizes.
LIVRO VII - [522c - 531c]
[...]
- Vamos! - prossegui eu -. Se de nada mais podemos lançar mão, fora estas, tomemos uma daquelas ciências que abrangem tudo.
- Qual?
- Por exemplo, aquela ciência comum, da qual se utilizam todas as artes, todos os modos de pensar, todas as ciências - e também aquela que é preciso aprender entre as primeiras.
- Qual?
- Aquela modesta ciência - prossegui eu - que distingue o um do dois e do três. Refiro-me, em resumo, à ciência dos números e do cálculo. Ou não é ela de tal modo que toda a arte e ciência é forçada a ter parte nela?
- Sim, e muito.
- Até a arte da guerra?
- É absolutamente forçoso.
- Realmente, é um general muito cómico, aquele Agamémnon que Palamedes está sempre a mostrar-nos nas tragédias [9]. Ou não reparaste que Palamedes, dizendo-se o inventor do número, pretende ter distribuído os postos do acampamento em Ílion e ter contado os navios e tudo o mais, como se antes estivessem por contar, e como se Agamémnon não soubesse sequer, ao que parece, quantos pés tinha, uma vez que não sabia contar? E agora que espécie de general achas que ele era?
- Um general esquisito, se na verdade era assim.
- Logo, que outra ciência havemos de considerar necessária a um guerreiro, como a de poder calcular e contar?
- Essa mais do que todas, se quiser compreender alguma coisa de táctica, e mais ainda, se quiser ser um homem.
- Pensas desta ciência o mesmo que eu?
- O quê?
- Pode muito bem ser uma daquelas ciências que procuramos, e que conduzem naturalmente à inteligência, mas de que ninguém se serve correctamente, apesar de ela nos elevar perfeitamente até ao Ser.
- Que queres dizer?
- Tentarei mostrar qual a minha opinião. Examina comigo as coisas, que eu vou, pelo meu lado, distinguir como úteis para o que pretendemos, ou não, e aprova ou desaprova, a fim de vermos mais claramente se é como eu conjecturo.
- Mostra lá.
- Mostrarei que, se reparares bem, nas sensações, há objectos que não convidam o espírito à reflexão, como se ficassem suficientemente avaliados pelos sentidos, ao passo que outros obrigam de toda a maneira a reflectir, como se a sensação não produzisse nada de são.
- Ora nós dissemos que também a vista via a grandeza e a pequenez, não como coisas separadas, mas misturadas. Não é assim?
- É.
- E, para clarificar o assunta, o entendimento é forçado
a ver a grandeza e a pequenez, não misturadas, mas distintas, ao invés da visão.
- É verdade.
- Não é daí que, pela primeira vez, nos surge a ideia de indagar que coisa é a grandeza e a pequenez?
- Absolutamente.
- E foi assim que designámos o inteligível e o visível.
- Exactamente.
- Ora era isso mesmo que eu há pouco tentava dizer, que certos objectos convidam à reflexão, e outros não, colocando entre os primeiros os que recaem sobre a sensação acompanhada de impressões apostas; ao passo que os que não estavam nessas condições, os colocava entre os que não despertam o entendimento.
- Já compreendo, e parece-me que é assim.
- Ora pois! O número e a unidade, a qual dos dois te parece que pertencem?
- Não atinjo.
- Mas raciocina por analogia com o que dissemos anteriormente. Se a unidade é suficientemente vista tal como é, ou é apreendida por meio de qualquer outro sentido, não nos levaria até à essência, tal como dissemos a propósito do dedo. Mas, se na visão da unidade há sempre ao mesmo tempo uma certa contradição, de tal modo que não parece mais unidade que o seu inverso, será portanto já necessário quem julgue a questão, e em tal situação a alma seria forçada a uma posição de embaraço e a procurar, pondo em acção dentro de si o entendimento, a indagar o que será a unidade em si, e assim é que a apreensão intelectual da unidade pode pertencer ao número das que incitam e voltam o espírito para a contemplação do Ser.
- Ora a verdade é que a apreensão visual da unidade não pertence menos a esse número, pois vemos simultaneamente a mesma coisa como unidade e como ilimitada em multiplicidade.
- Mas se é assim com o numero - prossegui eu - também com todos os números se dá o mesmo.
- Como não havia de ser?
- Mas realmente o cálculo e a aritmética são totalmente consagradas ao número?
- Totalmente.
- Essas ciências parecem, certamente, conduzir à verdade.
- Acima de tudo.
- São, portanto, ao que parece, daquelas ciências que procuramos. Com efeito, é forçoso que o guerreiro as aprenda, por causa da táctica, e o filosofo, para atingir a essência, emergindo do mundo da geração, sem o que jamais se tornará proficiente na arte de calcular.
- É verdade.
- Ora dá-se o caso de o nosso guardião ser guerreiro e filósofo.
- Sem dúvida.
- Seria, portanto, conveniente, ó Gláucon, que se determinasse por lei este aprendizado e que se convencessem os cidadãos, que hão-de participar dos postos governativos, a dedicarem-se ao cálculo ·e a aplicarem-se a ele, não superficialmente, mas até chegarem à contemplação da natureza dos números unicamente pelo pensamento, não cuidando deles por amor à compra e venda, como os comerciantes ou retalhista, mas por causa da e facilitar a passagem da própria alma da mutabilidade à verdade e à essência.
- Dizes muito bem.
- Ora depois de falar da ciência de calcular, agora é que eu compreendo como é bela e útil de tantas maneiras ao nosso propósito, desde que uma pessoa a cultive por amor do saber, e não para a traficância.
- De que maneiras?
- É o facto de, como agora mesmo dizíamos, elevar poderosamente a alma para o alto e forçá-la a discorrer sobre os números em si, sem aceitar jamais que alguém introduza nos seus raciocínios números que tenham corpos visíveis ou palpáveis. Deves saber que os que são peritos nestes e assuntos, se alguém tentar, na discussão, dividir a unidade em si, fazem troça e não lhe dão aceitação. Mas, se a dividires, eles multiplicam-na [11] com receio de que a unidade não pareça una, mas um composto de muitas partes.
- Dizes a verdade.
- E que te parece, ó Gláucon, se alguém lhes perguntasse: «Meus caros amigos, a respeito de que números é que estais a discutir, entre os quais estão as unidades, tal como vós entendeis que existem, cada qual absolutamente igual às outras, e sem diferir em nada, nem conter qualquer parte em si?» Que te parece que eles responderiam?
- Acho que diriam que falavam de números que se situam apenas na região do entendimento, e que não é possível manusear de nenhum outro modo.
- Vês então, meu caro amigo, que é natural que esta ciência nos seja realmente indispensável, uma vez que se torna claro que obriga a alma a servir-se da em si para chegar à verdade pura?
- De facto, actua fortemente nesse sentido.
- Pois então! Já observaste que os que nasceram para o cálculo nasceram prontos, por assim dizer, para todas as ciências, e que os espíritos lentos, se forem instruídos e exercitados nele, ainda que não lhes sirva para mais nada, de qualquer maneira lucram todos em ganhar maior agudeza de espírito?
- Assim é.
- Além disso, segundo julgo, não seria fácil encontrar muitas ciências que proporcionem maior esforço na sua aprendizagem e na sua prática.
- Pois não.
- Por todos estes motivos, não devemos abandonar esta ciência, mas sim formar no seu estudo os melhores engenhos.
- Concordo - respondeu ele.
- Fiquemos, portanto, com esta ciência. Vejamos se uma que lhe é afim porventura nos convém.
- Qual? Ou é à geometria que te referes?
- A essa mesma - respondi eu.
- Na medida em que se aplica às questões de guerra, é evidente que nos convém. Efectivamente, para formar um acampamento, para conquistar uma região, para cerrar ou dispor as fileiras e quantas evoluções fazem os exércitos nas próprias batalhas ou em marcha, há uma diferença entre quem é geómetra e quem o não é.
- Ora a verdade é, que, para esse efeito, bastaria uma reduzida parte de geometria e cálculo. É preciso examinar se a parte central e mais adiantada tende para aquele objectivo, de fazer ver mais facilmente a ideia do bem. Ora tende para aí tudo o que força a alma a volta-se para aquele lugar onde se encontra o mais feliz de todos os seres, o que ela de toda a maneira tem de contemplar.
- Está certo o que dizes.
- Portanto, se o que ela obriga a contemplar é a essência, convém-nos; se é o mutável, não nos convém.
- Assim o declaramos.
- O certo é que - prossegui eu - mesmo aqueles que têm pouca prática da geometria não nos regatearão um ponto, a saber, que a natureza dessa ciência está em rigorosa contradição com o que acerca dela afirmam os que a exercitam.
- Como assim?
- Fazem para aí afirmações bem ridículas e forçadas. É que é como praticantes e para efeitos práticos que fazem todas as suas afirmações, referindo-se nas suas proclamações a quadraturas, construções e adições e operações no género, ao passo que toda esta ciência é cultivada tendo em vista o saber.
- Absolutamente.
- Não devemos ainda concordar no seguinte?
- Em quê?
- Que se tem em vista o conhecimento do que existe sempre, e não do que a certa altura se gera ou se destrói.
- É fácil de concordar - respondeu ele - uma vez que a geometria é o conhecimento do que existe sempre.
- Portanto, meu caro, serviria para atrair a alma para a verdade e produzir o pensamento filosófico, que leva a começar a voltar o espírito para as alturas e não cá para baixo, como agora fazemos, sem dever.
- É muito capaz de o fazer.
- Portanto, prescreveremos afincadamente aos habitantes do nosso belo Estado que não deixem, de modo algum, a geometria. Além disso, os seus efeitos acessórios não são pequenos.
- Quais? - perguntou ele.
- Aqueles que tu disseste: os que dizem respeito à guerra, e, em especial, a todas as modo que se apreendem melhor. De qualquer modo, sabemos que aquele que estudou geometria difere totalmente de quem não a estudou.
- Totalmente, por Zeus!
- Vamos então propor esta ciência em segundo lugar aos jovens?
- Vamos.
- Ora bem. E vamos pôr a astronomia em terceiro lugar? Ou não te parece?
- Parece-me, sem dúvida, porquanto convém não só à agricultura e à navegação, mas não menos à arte militar, uma perfeita compreensão das estações, meses e anos.
- Divertes-me, por pareceres receoso da maioria, não vá afigurar-se-lhes que estás a prescrever estudos inúteis. Mas eles não são de âmbito modesto, embora seja difícil de acreditar que nestas ciências se purifica e reaviva um órgão da alma de cada um que fora corrupto e cego pelas restantes ocupações, e cuja salvação importa mais do que a de mil órgãos da visão, porquanto só através dele se avista a verdade. Aqueles que entendem do mesmo modo não terão dificuldade em declarar que pensas bem, mas aqueles que não têm qualquer compreensão do assunto é natural que julguem que não vale nada o que dizes. Na verdade, não vêem nestas ciências nenhuma outra utilidade digna de apreço. Repara, pois, de uma vez para sempre, com qual destes partidos vais discutir. Ou não te diriges aos outros, e fazes os teus raciocínios sobretudo para ti mesmo, sem, todavia, negares a outrem qualquer vantagem que deles possa auferir.
- É essa a minha escolha: falar, perguntar e responder sobretudo para mim mesmo.
- Vamos então tornar atrás, pois ainda agora não pegámos como deve ser na ciência a seguir à geometria.
- Pegar, como?
- Depois da superfície, pegámos nos sólidos em movimento, antes de nos ocuparmos deles em si. Ora o que está certo é que, após a segunda dimensão, se trate da terceira, que é a dos cubos e a que possui profundidade.
- É isso, mas tal ciência parece que ainda não foi descoberta [12].
- Os motivos são duplos: porque nenhum Estado presta honra a estes estudos, a investigação é débil, devido à sua dificuldade; e os investigadores precisam de um director, sem o qual não farão descobertas. Primeiro que tudo, é difícil encontra-lo; depois, no caso de aparecer, tal como as coisas estão agora, não lhe obedeceriam os que se dedicam a tais investigações, devido à sua arrogância. Mas se o Estado inteiro cooperasse com o director, honrando os seus trabalhos, eles obedecer-lhes-iam, e as investigações, seguidas e vigorosas, chegariam a resultados evidentes. Pois mesmo agora, apesar de desprezados e amesquinhados pela maioria, sem que formem ideia, os que tal investigam, da sua utilidade, mesmo assim, apesar de tudo isto, encontram-se em grande pujança, devida ao seu fascínio, e não admira nada que surjam à luz.
- São realmente estudos fascinantes e superiores. Mas explica-me mais claramente o que há pouco dizias. Colocavas primeiro o estudo das superfícies, a geometria?
- Colocava.
- Depois, punhas, a seguir a essa, primeiro a astronomia, depois, voltaste atrás.
- É que, com a pressa de percorrer rapidamente todas as ciências, em vez disso afrouxo [13]. Com efeito, a seguir fica o estudo metódico da dimensão da profundidade, mas como é estudada de uma forma ridícula, passei-a adiante, pondo após a geometria a astronomia, por ser o movimento das profundidades.
- Dizes bem.
- Ponhamos então em quarto lugar a astronomia, partindo do princípio de que a ciência que agora deixamos de lado existira, se a cidade o deixar.
- É natural - replicou ele -. Há momentos, ó Sócrates, censuraste-me a propósito de ter elogiado grosseiramente a astronomia; agora vou elogia-la segundo a tua maneira. Julgo evidente para toda a gente que essa ciência força todas as almas a olhar para cima e as conduz das coisas terrenas às celestes.
- Talvez seja evidente para toda a gente, excepto para mim; pois a mim não me parece tal.
- Como assim?
- Tal como a tratam actualmente os que quereriam elevar-nos até à filosofia, fazem-na olhar muito para baixo.
- Que queres dizer?
É de uma generosa audácia, me parece, a tua maneira de abordar o estudo das coisas celestes. Arriscas-te, na verdade, a supor que, se alguém estivesse a observar os ornatos do tecto, olhando para cima, e apreendesse qualquer coisa, tal pessoa estava a fazer essa contemplação com o pensamento, e não com os olhos. Talvez tu suponhas muito bem, e eu seja um simplório. Mas eu, por mim, não posso pensar em nenhum outro estudo que faça a alma olhar para cima, senão o que diz respeito ao Ser e ao invisível. Mas se uma pessoa empreender o estudo de qualquer coisa de sensível, quer esteja de boca aberta, a olhar para cima, quer de boca fechada, a olhar para baixo, jamais direi que ela tenha conhecimento - pois a ciência não tem nada a ver com tais processos - nem que a sua alma olha não para cima, mas para baixo, ainda que estude nadando de costas, na terra ou no mar [14].
- Tenho o que mereço, e tens razão em me censurar. Mas como é que tu dizes que era precisa aprender astronomia diferentemente do que agora se aprende, se quiseres sabê-la de maneira a ser útil ao nosso plano?
- Do seguinte modo - expliquei eu -. Estes ornamentos que há no céu, na medida em que estão incrustados no visível, devíamos realmente considerá-los o mais belo e perfeito de tudo o que é visível, mas muito inferiores aos verdadeiros - muito inferiores aos movimentos pelos quais a velocidade essencial e a lentidão essencial, em número verdadeiro, e em todas as formas verdadeiras, se movem em relação urna à outra, e com isso fazem mover aquilo que nelas é essencial: são os verdadeiros ornamentos, que se apreendem pelo raciocínio e pela inteligência, mas não pela vista. Ou pensas outra coisa?
- De modo nenhum.
- Devemos servir-nos, portanto, dos ornamentos celestes, como exemplos, para o estudo das coisas invisíveis, tal como se alguém encontrasse desenhos feitos por Dédalo [15] ou qualquer outro artista ou pintor, delineados e elaborados de forma excepcional. Ao ver essas obras, um conhecedor da geometria pensaria que eram uma maravilha de factura, mas que seria ridículo examiná-las a séria, para apreender nelas a verdade referente às relações de igualdade, duplicação ou qualquer outra proporção.
- Como não haveria de ser ridículo?
- Mas o verdadeiro astrónomo - prossegui eu - não achas que pensará da mesma maneira ao olhar para os movimentos dos astros? E que há-de entender que da maneira mais bela por que podiam ser executados, assim foi que o demiurgo [16] do céu o formou, a este e a tudo o que ele contém. Mas, quanta à proporção entre a noite e o dia, e entre estes e o mês, e entre o mês e o ano, e entre os outros astros e estes [17], e uns com os outros, não achas que ele considerará absurdo que alguém julgue que são sempre assim, e nunca conhecem nenhum desvio, apesar de serem corpóreos e visíveis, e que procure de toda a maneira apreender a verdade deles?
- Ao ouvir-te, parece-me que sim.
- É com problemas, portanto, que nos dedicaremos à astronomia, tal como à geometria; e dispensaremos o que há no céu, se quisermos realmente tratar de astronomia, tornando útil, de inútil que era, a parte naturalmente inteligente da alma.
- Realmente é um trabalho complicado, em relação ao que têm agora, esse que tu prescreves aos astrónomos.
- Penso que faremos prescrições para as outras ciências no mesmo estilo, se de alguma coisa servirmos como legisladores. Mas tens a lembrar alguma ciência que nos convenha?
- Não tenho - disse ele -, pelo menos, por agora.
- Contudo, o movimento não oferece uma só forma, mas várias, ao que suponho. Enumerá-las todas é coisa que talvez um sábio possa fazer. Mas as que nos são visíveis, são duas.
- Quais?
- Além desta de que falei, há uma que lhe equivale.
- Qual?
- É provável que, assim como os olhos foram moldados para a astronomia, os ouvidos foram formados para o movimento harmónico e as próprias ciências são irmãs uma como afirmam os Pitagóricos e nós, ó Gláucon,
concordamos. Ou não será assim?
- É - respondeu ele.
- Ora, como a empresa é vasta, perguntar-lhes-emos o seu parecer sobre estas matérias e outras ainda além destas. Mas em todas as circunstâncias manteremos o nosso princípio.
- Qual?
- Que não tentem jamais que os nossos educandos aprendam qualquer estudo imperfeito e que não vá dar ao ponto onde tudo deve dar, como dizíamos há pouco a propósito da astronomia. Ou não sabes que fazem outro tanto com a harmonia? Efectivamente, ao medirem os acordes harmónicos e sons uns com os outros, produzem um labor improfícuo, tal como os astrónomos.
- Pelos deuses! É ridículo, sem dúvida, falar de não sei que intervalos mínimos [18] e apurarem os ouvidos, como se fosse para captar a voz dos vizinhos; uns afirmam ouvir no meio dos sons um outro, e que é esse o menor intervalo, que deve servir de medida; os outros sustentam que é igual aos que já soaram, e ambos colocam os ouvidos à frente do espírito.
- Referes-te àqueles honrados músicos que perseguem e torturam as cordas, retorcendo-as nas cavilhas. Mas não vá a minha metáfora tomar-se um tanto maçadora, se insista nas pancadas dadas com o plectro, e nas acusações contra as cordas, ou porque se recusam ou porque exageram - acabo com ela e declaro que não é desses que eu falo, mas daqueles que há momentos dissemos que havíamos de interrogar sobre a harmonia. É que fazem o mesmo que os que se dedicam à astronomia. Com efeito, eles procuram os números nos acordes que escutam, mas não se elevam até ao problema de observar quais são os números harmónicas e quais o não são, e por que razão diferem.
- Tarefa divina, essa que tu dizes.
- Útil certamente, para a procura do belo e do bom, mas inútil, se se levar a cabo com outra fim.
- É natural.
Notas:
Livro VI
[41] Entenda-se: o Sol e a Ideia do Bem.
[42] Se chamasse ao Sol «rei do céu» βασιλεὐς οὐρανοῦ, pareceria sugerir o parentesco entre οὐρανος («céu») e όρατός («visível»), género de etimologia popular que provavelmente era corrente no tempo de Platão (e que, de resto, não destoaria de muitas outras que o filósofo aceitou no Crátilo).
[43] Esta definição de διάνοια, que é da autoria de Platão, parece querer sugerir, como nota Adam, uma suposta etimologia que tirasse de διά («entre») o sentido de «entre νοῦς («inteligência») e δόξα («opinião»)».
Livro VII
[9] Palamedes, herói da guerra de Tróia, inventor dos números e do jogo do xadrez, que desmascarara o expediente de Ulisses, de simular a loucura para não ter de acompanhar a expedição, e por isso sofrera a vingança do herói, que, acusando-o de suborno por parte de Príamo, causara a sua lapidação, foi figura frequentemente tratada na tragédia. Tanto Ésquilo, como Sófocles e Eurípedes compuseram um drama intitulado Palamedes, embora nenhum dos três se tenha conservado. É curioso que Ésquilo, no Prometeu Agrilhoado, atribui a invenção do número ao Titã.
[11] Entenda-se que multiplicam logo a unidade pelo mesmo factor por que foi dividida.
[12] Trata-se da estereometria, criação, pelo menos em grande parte, de Teeteto, mas que só recebeu nome, como observa Adam, a partir de Aristóteles (An. Post. II. 13. 78b 38).
O mais famoso problema de estereometria era o da duplicação do cubo, também conhecido por «problema de Delos». Ter-se-ia originado, segundo uma das versões transmitidas por Eratóstenes, num oráculo dado aos habitantes daquela ilha, de que, para se verem livres da peste, tinham de duplicar as dimensões do altar, que era de forma cúbica. Consultados a este propósito os geómetras da Academia, Arquitas de Tarento encontrou uma solução, e Eudoxo de Cnidos outra. Vide M. R. Cohen-I. E. Drabkin, A Source Book in Greek Science, Harvard University Press, 1958, pp. 62-66, e O. Bekker, Das mathematische Denken der Antike, Göttingen, 1957, pp. 75-80.
[13] Trocadilho sobre o provérbio grego σπεῦδε βραδἐως (em latim: festina lente), equivalente ao nosso «devagar se vai ao longe».
[14] Todas estas alusões um tanto humorísticas parecem visar o episódio de As Nuvens de Aristófanes, em que Sócrates entra em cena suspenso numa cesta, para observar mais de perto os fenómenos celestes.
[15] Segundo a tradição, as estatuas de Dédalo moviam-se, o que está de acordo com o «exemplo» das revoluções celestes escolhido.
[16] Empregámos a palavra grega que figura também no Timeu, para designar o construtor do mundo.
[17] Entenda-se: o Sol e a Lua, causadores das variações do dia, noite, mês e ano.
[18] Para definir o que seja πυκνώματα, termo da linguagem musical, Adam cita Aristóxeno, Baquio e, entre os modernos, Schneider, que interpreta que «haec ipsa πυκνά vel alia parva et tamen composita intervalla» se chamam assim «propter sonorum in augusto spatio quasi confertorum frequentiam». Veja-se ainda M. L. West, Ancient Greek Music, Oxford, 1992, p. 162
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