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A Matemática na República de Platão

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Tempo de leitura: 34 minutos.


Apresentamos um trecho do livro Republica, de Platão, com tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, Editora Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. Contextualizando, no Livro VI, Sócrates e Glauco conversam sobre a ideia do bem.

LIVRO VI - [509d - 511e]

- SÓCRATES: Imagina então - comecei eu - que, conforme dissemos, eles [41] são dois e que reinam, um na espécie e no mundo inteligível, o outro no visível. Não digo «no céu», não vás tu julgar que estou a fazer etimologias com o nome [42]. Compreendeste, pois, estas duas espécies, o visível e o inteligível?

- GLÁUCON: Compreendi.

- Supõe então uma linha em duas partes desiguais; corta novamente cada um dos segmentos segundo a mesma proporção, o da espécie visível e o da inteligível; e obterás, no mundo visível, segundo a sua claridade ou obscuridade relativa, uma secção, a das imagens. Chamo imagens, em primeiro lugar, às sombras; seguidamente, aos reflexos nas águas, e àqueles que se formam em todos os corpos compactos, lisos e brilhantes, e a tudo o mais que for do mesmo género, se estas a entender-me.

- Entendo, sim.

- Supõe agora a outra secção, da qual esta era imagem, a que nos abrange a nós, seres vivos, e a todas as plantas e toda a espécie de artefactos. 

- Suponho.

- Acaso consentirias em aceitar que o visível se divide no que é verdadeiro e no que não o é, e que, tal como a opinião está para o saber, assim está a imagem para o modelo?

- Aceito perfeitamente.

- Examina agora de que maneira se deve cortar a secção do inteligível.

- Como?

- Na parte anterior, a alma, servindo-se, como se fossem imagens, dos objectos que então eram imitados, é forçada a investigar a partir de hipóteses, sem poder caminhar para o princípio, mas para a conclusão; ao passo que, na outra parte, a que conduz ao princípio absoluto, parte da hipótese, e, dispensando as imagens que havia no outro, faz caminho só com o auxilio das ideias.

- Não percebi bem o que estiveste a dizer.

- Vamos lá outra vez - disse eu - que compreenderás melhor o que afirmei anteriormente. Suponho que sabes que aqueles que se ocupam da geometria, da aritmética e ciências desse género, admitem o par e o ímpar, as figuras três espécies de ângulos, e outras doutrinas irmãs destas, segundo o campo de cada um. Estas coisas dão-nas por sabidas, e, quando as usam como hipóteses, não acham que ainda seja necessário prestar contas disto a si mesmos nem aos outros, uma vez que são evidentes para todos. E, partindo daí e analisando todas as fases, e tirando as consequências, atingem o ponto a cuja investigação se tinham abalançado.

- Isso, sei-o perfeitamente.

- Logo, sabes também que se servem de figuras visíveis e estabelecem acerca delas os seus raciocínios, sem contudo pensarem neles, mas naquilo com que se parecem; fazem os seus raciocínios por causa do quadrado em si ou da diagonal em si, mas não daquela cuja imagem traçaram, e do mesmo modo quanto às restantes figuras. Aquilo que eles modelam ou desenham, de que existem as sombras e os reflexos na água, servem-se disso como se fossem imagens, procurando ver o que não pode avistar-se, senão pelo pensamento.

- Falas verdade.

- Portanto, era isto o que eu queria dizer com a classe do inteligível, que a alma é obrigada a servir-se de hipóteses ao procurar investigá-la, sem ir ao princípio, pois não pode elevar-se acima das hipóteses, mas utilizando como imagens os próprios originais dos quais eram feitas as imagens pelos objectos da secção inferior, pois esses também, em comparação com as sombras, eram considerados e apreciados como mais claros.

- Compreendo que te referes ao que se passa na geometria e nas ciências afins dessa.

- Aprende então o que quero dizer com o outro segmento do inteligível, daquele que o raciocínio atinge pelo poder da dialéctica, fazendo das hipóteses não princípios, mas hipóteses de facto, uma espécie de degraus e de pontos de apoio, para ir até àquilo que não admite hipóteses, que é o princípio de tudo, atingido o qual desce, fixando-se em todas as consequências que daí decorrem, até chegar à conclusão, sem se servir em nada de qualquer dado sensível, mas passando das ideias umas às outras, e terminando em ideias.

- Compreendo, mas não o bastante - pois me parece que é uma tarefa cerrada, essa de que falas - que queres determinar que é mais claro o conhecimento do ser e do inteligível adquirido pela ciência da dialéctica do que pelas chamadas ciências, cujos princípios são hipóteses; os que as estudam são forçados a fazê-lo, pelo pensamento, e não pelos sentidos; no entanto, pelo facto de as examinarem sem subir até ao princípio, mas a partir de hipóteses, parece-te que não têm a inteligência desses factos, embora eles sejam inteligíveis com um primeiro princípio. Parece-me que chamas entendimento [43], e não inteligência, o modo de pensar dos geómetras e de outros cientistas, como se o entendimento fosse algo de intermédio entre a opinião e a inteligência.

- Apreendeste perfeitamente a questão - observei eu -. Pega agora nas quatro operações da alma e aplica-as aos quatro segmentos: no mais elevado, a inteligência, no segundo, o entendimento; ao terceiro entrega a fé, e ao último a suposição, e coloca-os por ordem, atribuindo-lhes o mesmo grau de clareza que os seus respectivos objectos têm de verdade.

- Compreendo - disse ele -; concorda, e vou ordená-los como dizes.

LIVRO VII - [522c - 531c]

[...]

- Vamos! - prossegui eu -. Se de nada mais podemos lançar mão, fora estas, tomemos uma daquelas ciências que abrangem tudo.

- Qual?

- Por exemplo, aquela ciência comum, da qual se utilizam todas as artes, todos os modos de pensar, todas as ciências - e também aquela que é preciso aprender entre as primeiras.

- Qual?

- Aquela modesta ciência - prossegui eu - que distingue o um do dois e do três. Refiro-me, em resumo, à ciência dos números e do cálculo. Ou não é ela de tal modo que toda a arte e ciência é forçada a ter parte nela?

- Sim, e muito.

- Até a arte da guerra?

- É absolutamente forçoso.

- Realmente, é um general muito cómico, aquele Agamémnon que Palamedes está sempre a mostrar-nos nas tragédias [9]. Ou não reparaste que Palamedes, dizendo-se o inventor do número, pretende ter distribuído os postos do acampamento em Ílion e ter contado os navios e tudo o mais, como se antes estivessem por contar, e como se Agamémnon não soubesse sequer, ao que parece, quantos pés tinha, uma vez que não sabia contar? E agora que espécie de general achas que ele era?

- Um general esquisito, se na verdade era assim.

- Logo, que outra ciência havemos de considerar necessária a um guerreiro, como a de poder calcular e contar?

- Essa mais do que todas, se quiser compreender alguma coisa de táctica, e mais ainda, se quiser ser um homem.

- Pensas desta ciência o mesmo que eu?

- O quê?

- Pode muito bem ser uma daquelas ciências que procuramos, e que conduzem naturalmente à inteligência, mas de que ninguém se serve correctamente, apesar de ela nos elevar perfeitamente até ao Ser.

- Que queres dizer?

- Tentarei mostrar qual a minha opinião. Examina comigo as coisas, que eu vou, pelo meu lado, distinguir como úteis para o que pretendemos, ou não, e aprova ou desaprova, a fim de vermos mais claramente se é como eu conjecturo.

- Mostra lá.

- Mostrarei que, se reparares bem, nas sensações, há objectos que não convidam o espírito à reflexão, como se ficassem suficientemente avaliados pelos sentidos, ao passo que outros obrigam de toda a maneira a reflectir, como se a sensação não produzisse nada de são.

- Ora nós dissemos que também a vista via a grandeza e a pequenez, não como coisas separadas, mas misturadas. Não é assim?

- É.

- E, para clarificar o assunta, o entendimento é forçado

a ver a grandeza e a pequenez, não misturadas, mas distintas, ao invés da visão.

- É verdade.

- Não é daí que, pela primeira vez, nos surge a ideia de indagar que coisa é a grandeza e a pequenez?

- Absolutamente.

- E foi assim que designámos o inteligível e o visível.

- Exactamente.

- Ora era isso mesmo que eu há pouco tentava dizer, que certos objectos convidam à reflexão, e outros não, colocando entre os primeiros os que recaem sobre a sensação acompanhada de impressões apostas; ao passo que os que não estavam nessas condições, os colocava entre os que não despertam o entendimento.

- Já compreendo, e parece-me que é assim.

- Ora pois! O número e a unidade, a qual dos dois te parece que pertencem?

- Não atinjo.

- Mas raciocina por analogia com o que dissemos anteriormente. Se a unidade é suficientemente vista tal como é, ou é apreendida por meio de qualquer outro sentido, não nos levaria até à essência, tal como dissemos a propósito do dedo. Mas, se na visão da unidade há sempre ao mesmo tempo uma certa contradição, de tal modo que não parece mais unidade que o seu inverso, será portanto já necessário quem julgue a questão, e em tal situação a alma seria forçada a uma posição de embaraço e a procurar, pondo em acção dentro de si o entendimento, a indagar o que será a unidade em si, e assim é que a apreensão intelectual da unidade pode pertencer ao número das que incitam e voltam o espírito para a contemplação do Ser.

- Ora a verdade é que a apreensão visual da unidade não pertence menos a esse número, pois vemos simultaneamente a mesma coisa como unidade e como ilimitada em multiplicidade.

- Mas se é assim com o numero - prossegui eu - também com todos os números se dá o mesmo.

- Como não havia de ser?

- Mas realmente o cálculo e a aritmética são totalmente consagradas ao número?

- Totalmente.

- Essas ciências parecem, certamente, conduzir à verdade.

- Acima de tudo.

- São, portanto, ao que parece, daquelas ciências que procuramos. Com efeito, é forçoso que o guerreiro as aprenda, por causa da táctica, e o filosofo, para atingir a essência, emergindo do mundo da geração, sem o que jamais se tornará proficiente na arte de calcular.

- É verdade.

- Ora dá-se o caso de o nosso guardião ser guerreiro e filósofo.

- Sem dúvida.

- Seria, portanto, conveniente, ó Gláucon, que se determinasse por lei este aprendizado e que se convencessem os cidadãos, que hão-de participar dos postos governativos, a dedicarem-se ao cálculo ·e a aplicarem-se a ele, não superficialmente, mas até chegarem à contemplação da natureza dos números unicamente pelo pensamento, não cuidando deles por amor à compra e venda, como os comerciantes ou retalhista, mas por causa da e facilitar a passagem da própria alma da mutabilidade à verdade e à essência.

- Dizes muito bem.

- Ora depois de falar da ciência de calcular, agora é que eu compreendo como é bela e útil de tantas maneiras ao nosso propósito, desde que uma pessoa a cultive por amor do saber, e não para a traficância.

- De que maneiras?

- É o facto de, como agora mesmo dizíamos, elevar poderosamente a alma para o alto e forçá-la a discorrer sobre os números em si, sem aceitar jamais que alguém introduza nos seus raciocínios números que tenham corpos visíveis ou palpáveis. Deves saber que os que são peritos nestes e assuntos, se alguém tentar, na discussão, dividir a unidade em si, fazem troça e não lhe dão aceitação. Mas, se a dividires, eles multiplicam-na [11] com receio de que a unidade não pareça una, mas um composto de muitas partes.

- Dizes a verdade.

- E que te parece, ó Gláucon, se alguém lhes perguntasse: «Meus caros amigos, a respeito de que números é que estais a discutir, entre os quais estão as unidades, tal como vós entendeis que existem, cada qual absolutamente igual às outras, e sem diferir em nada, nem conter qualquer parte em si?» Que te parece que eles responderiam?

- Acho que diriam que falavam de números que se situam apenas na região do entendimento, e que não é possível manusear de nenhum outro modo.

- Vês então, meu caro amigo, que é natural que esta ciência nos seja realmente indispensável, uma vez que se torna claro que obriga a alma a servir-se da em si para chegar à verdade pura?

- De facto, actua fortemente nesse sentido.

- Pois então! Já observaste que os que nasceram para o cálculo nasceram prontos, por assim dizer, para todas as ciências, e que os espíritos lentos, se forem instruídos e exercitados nele, ainda que não lhes sirva para mais nada, de qualquer maneira lucram todos em ganhar maior agudeza de espírito?

- Assim é.

- Além disso, segundo julgo, não seria fácil encontrar muitas ciências que proporcionem maior esforço na sua aprendizagem e na sua prática.

- Pois não.

- Por todos estes motivos, não devemos abandonar esta ciência, mas sim formar no seu estudo os melhores engenhos.

- Concordo - respondeu ele.

- Fiquemos, portanto, com esta ciência. Vejamos se uma que lhe é afim porventura nos convém.

- Qual? Ou é à geometria que te referes?

- A essa mesma - respondi eu.

- Na medida em que se aplica às questões de guerra, é evidente que nos convém. Efectivamente, para formar um acampamento, para conquistar uma região, para cerrar ou dispor as fileiras e quantas evoluções fazem os exércitos nas próprias batalhas ou em marcha, há uma diferença entre quem é geómetra e quem o não é.

- Ora a verdade é, que, para esse efeito, bastaria uma reduzida parte de geometria e cálculo. É preciso examinar se a parte central e mais adiantada tende para aquele objectivo, de fazer ver mais facilmente a ideia do bem. Ora tende para aí tudo o que força a alma a volta-se para aquele lugar onde se encontra o mais feliz de todos os seres, o que ela de toda a maneira tem de contemplar.

- Está certo o que dizes.

- Portanto, se o que ela obriga a contemplar é a essência, convém-nos; se é o mutável, não nos convém.

- Assim o declaramos.

- O certo é que - prossegui eu - mesmo aqueles que têm pouca prática da geometria não nos regatearão um ponto, a saber, que a natureza dessa ciência está em rigorosa contradição com o que acerca dela afirmam os que a exercitam.

- Como assim?

- Fazem para aí afirmações bem ridículas e forçadas. É que é como praticantes e para efeitos práticos que fazem todas as suas afirmações, referindo-se nas suas proclamações a quadraturas, construções e adições e operações no género, ao passo que toda esta ciência é cultivada tendo em vista o saber.

- Absolutamente.

- Não devemos ainda concordar no seguinte?

- Em quê?

- Que se tem em vista o conhecimento do que existe sempre, e não do que a certa altura se gera ou se destrói.

- É fácil de concordar - respondeu ele - uma vez que a geometria é o conhecimento do que existe sempre.

- Portanto, meu caro, serviria para atrair a alma para a verdade e produzir o pensamento filosófico, que leva a começar a voltar o espírito para as alturas e não cá para baixo, como agora fazemos, sem dever.

- É muito capaz de o fazer.

- Portanto, prescreveremos afincadamente aos habitantes do nosso belo Estado que não deixem, de modo algum, a geometria. Além disso, os seus efeitos acessórios não são pequenos.

- Quais? - perguntou ele.

- Aqueles que tu disseste: os que dizem respeito à guerra, e, em especial, a todas as modo que se apreendem melhor. De qualquer modo, sabemos que aquele que estudou geometria difere totalmente de quem não a estudou.

- Totalmente, por Zeus!

- Vamos então propor esta ciência em segundo lugar aos jovens?

- Vamos.

- Ora bem. E vamos pôr a astronomia em terceiro lugar? Ou não te parece?

- Parece-me, sem dúvida, porquanto convém não só à agricultura e à navegação, mas não menos à arte militar, uma perfeita compreensão das estações, meses e anos.

- Divertes-me, por pareceres receoso da maioria, não vá afigurar-se-lhes que estás a prescrever estudos inúteis. Mas eles não são de âmbito modesto, embora seja difícil de acreditar que nestas ciências se purifica e reaviva um órgão da alma de cada um que fora corrupto e cego pelas restantes ocupações, e cuja salvação importa mais do que a de mil órgãos da visão, porquanto só através dele se avista a verdade. Aqueles que entendem do mesmo modo não terão dificuldade em declarar que pensas bem, mas aqueles que não têm qualquer compreensão do assunto é natural que julguem que não vale nada o que dizes. Na verdade, não vêem nestas ciências nenhuma outra utilidade digna de apreço. Repara, pois, de uma vez para sempre, com qual destes partidos vais discutir. Ou não te diriges aos outros, e fazes os teus raciocínios sobretudo para ti mesmo, sem, todavia, negares a outrem qualquer vantagem que deles possa auferir.

- É essa a minha escolha: falar, perguntar e responder sobretudo para mim mesmo.

- Vamos então tornar atrás, pois ainda agora não pegámos como deve ser na ciência a seguir à geometria.

- Pegar, como?

- Depois da superfície, pegámos nos sólidos em movimento, antes de nos ocuparmos deles em si. Ora o que está certo é que, após a segunda dimensão, se trate da terceira, que é a dos cubos e a que possui profundidade.

- É isso, mas tal ciência parece que ainda não foi descoberta [12].

- Os motivos são duplos: porque nenhum Estado presta honra a estes estudos, a investigação é débil, devido à sua dificuldade; e os investigadores precisam de um director, sem o qual não farão descobertas. Primeiro que tudo, é difícil encontra-lo; depois, no caso de aparecer, tal como as coisas estão agora, não lhe obedeceriam os que se dedicam a tais investigações, devido à sua arrogância. Mas se o Estado inteiro cooperasse com o director, honrando os seus trabalhos, eles obedecer-lhes-iam, e as investigações, seguidas e vigorosas, chegariam a resultados evidentes. Pois mesmo agora, apesar de desprezados e amesquinhados pela maioria, sem que formem ideia, os que tal investigam, da sua utilidade, mesmo assim, apesar de tudo isto, encontram-se em grande pujança, devida ao seu fascínio, e não admira nada que surjam à luz.

- São realmente estudos fascinantes e superiores. Mas explica-me mais claramente o que há pouco dizias. Colocavas primeiro o estudo das superfícies, a geometria?

- Colocava.

- Depois, punhas, a seguir a essa, primeiro a astronomia, depois, voltaste atrás.

- É que, com a pressa de percorrer rapidamente todas as ciências, em vez disso afrouxo [13]. Com efeito, a seguir fica o estudo metódico da dimensão da profundidade, mas como é estudada de uma forma ridícula, passei-a adiante, pondo após a geometria a astronomia, por ser o movimento das profundidades.

- Dizes bem.

- Ponhamos então em quarto lugar a astronomia, partindo do princípio de que a ciência que agora deixamos de lado existira, se a cidade o deixar.

- É natural - replicou ele -. Há momentos, ó Sócrates, censuraste-me a propósito de ter elogiado grosseiramente a astronomia; agora vou elogia-la segundo a tua maneira. Julgo evidente para toda a gente que essa ciência força todas as almas a olhar para cima e as conduz das coisas terrenas às celestes.

- Talvez seja evidente para toda a gente, excepto para mim; pois a mim não me parece tal.

- Como assim?

- Tal como a tratam actualmente os que quereriam elevar-nos até à filosofia, fazem-na olhar muito para baixo.

- Que queres dizer?

É de uma generosa audácia, me parece, a tua maneira de abordar o estudo das coisas celestes. Arriscas-te, na verdade, a supor que, se alguém estivesse a observar os ornatos do tecto, olhando para cima, e apreendesse qualquer coisa, tal pessoa estava a fazer essa contemplação com o pensamento, e não com os olhos. Talvez tu suponhas muito bem, e eu seja um simplório. Mas eu, por mim, não posso pensar em nenhum outro estudo que faça a alma olhar para cima, senão o que diz respeito ao Ser e ao invisível. Mas se uma pessoa empreender o estudo de qualquer coisa de sensível, quer esteja de boca aberta, a olhar para cima, quer de boca fechada, a olhar para baixo, jamais direi que ela tenha conhecimento - pois a ciência não tem nada a ver com tais processos - nem que a sua alma olha não para cima, mas para baixo, ainda que estude nadando de costas, na terra ou no mar [14].

- Tenho o que mereço, e tens razão em me censurar. Mas como é que tu dizes que era precisa aprender astronomia diferentemente do que agora se aprende, se quiseres sabê-la de maneira a ser útil ao nosso plano?

- Do seguinte modo - expliquei eu -. Estes ornamentos que há no céu, na medida em que estão incrustados no visível, devíamos realmente considerá-los o mais belo e perfeito de tudo o que é visível, mas muito inferiores aos verdadeiros - muito inferiores aos movimentos pelos quais a velocidade essencial e a lentidão essencial, em número verdadeiro, e em todas as formas verdadeiras, se movem em relação urna à outra, e com isso fazem mover aquilo que nelas é essencial: são os verdadeiros ornamentos, que se apreendem pelo raciocínio e pela inteligência, mas não pela vista. Ou pensas outra coisa?

- De modo nenhum.

- Devemos servir-nos, portanto, dos ornamentos celestes, como exemplos, para o estudo das coisas invisíveis, tal como se alguém encontrasse desenhos feitos por Dédalo [15] ou qualquer outro artista ou pintor, delineados e elaborados de forma excepcional. Ao ver essas obras, um conhecedor da geometria pensaria que eram uma maravilha de factura, mas que seria ridículo examiná-las a séria, para apreender nelas a verdade referente às relações de igualdade, duplicação ou qualquer outra proporção.

- Como não haveria de ser ridículo?

- Mas o verdadeiro astrónomo - prossegui eu - não achas que pensará da mesma maneira ao olhar para os movimentos dos astros? E que há-de entender que da maneira mais bela por que podiam ser executados, assim foi que o demiurgo [16] do céu o formou, a este e a tudo o que ele contém. Mas, quanta à proporção entre a noite e o dia, e entre estes e o mês, e entre o mês e o ano, e entre os outros astros e estes [17], e uns com os outros, não achas que ele considerará absurdo que alguém julgue que são sempre assim, e nunca conhecem nenhum desvio, apesar de serem corpóreos e visíveis, e que procure de toda a maneira apreender a verdade deles?

- Ao ouvir-te, parece-me que sim.

- É com problemas, portanto, que nos dedicaremos à astronomia, tal como à geometria; e dispensaremos o que há no céu, se quisermos realmente tratar de astronomia, tornando útil, de inútil que era, a parte naturalmente inteligente da alma.

- Realmente é um trabalho complicado, em relação ao que têm agora, esse que tu prescreves aos astrónomos.

- Penso que faremos prescrições para as outras ciências no mesmo estilo, se de alguma coisa servirmos como legisladores. Mas tens a lembrar alguma ciência que nos convenha?

- Não tenho - disse ele -, pelo menos, por agora.

- Contudo, o movimento não oferece uma só forma, mas várias, ao que suponho. Enumerá-las todas é coisa que talvez um sábio possa fazer. Mas as que nos são visíveis, são duas.

- Quais?

- Além desta de que falei, há uma que lhe equivale.

- Qual?

- É provável que, assim como os olhos foram moldados para a astronomia, os ouvidos foram formados para o movimento harmónico e as próprias ciências são irmãs uma como afirmam os Pitagóricos e nós, ó Gláucon,

concordamos. Ou não será assim?

- É - respondeu ele.

- Ora, como a empresa é vasta, perguntar-lhes-emos o seu parecer sobre estas matérias e outras ainda além destas. Mas em todas as circunstâncias manteremos o nosso princípio.

- Qual?

- Que não tentem jamais que os nossos educandos aprendam qualquer estudo imperfeito e que não vá dar ao ponto onde tudo deve dar, como dizíamos há pouco a propósito da astronomia. Ou não sabes que fazem outro tanto com a harmonia? Efectivamente, ao medirem os acordes harmónicos e sons uns com os outros, produzem um labor improfícuo, tal como os astrónomos.

- Pelos deuses! É ridículo, sem dúvida, falar de não sei que intervalos mínimos [18] e apurarem os ouvidos, como se fosse para captar a voz dos vizinhos; uns afirmam ouvir no meio dos sons um outro, e que é esse o menor intervalo, que deve servir de medida; os outros sustentam que é igual aos que já soaram, e ambos colocam os ouvidos à frente do espírito.

- Referes-te àqueles honrados músicos que perseguem e torturam as cordas, retorcendo-as nas cavilhas. Mas não vá a minha metáfora tomar-se um tanto maçadora, se insista nas pancadas dadas com o plectro, e nas acusações contra as cordas, ou porque se recusam ou porque exageram - acabo com ela e declaro que não é desses que eu falo, mas daqueles que há momentos dissemos que havíamos de interrogar sobre a harmonia. É que fazem o mesmo que os que se dedicam à astronomia. Com efeito, eles procuram os números nos acordes que escutam, mas não se elevam até ao problema de observar quais são os números harmónicas e quais o não são, e por que razão diferem.

- Tarefa divina, essa que tu dizes.

- Útil certamente, para a procura do belo e do bom, mas inútil, se se levar a cabo com outra fim.

- É natural.


Notas:

Livro VI

[41] Entenda-se: o Sol e a Ideia do Bem.

[42] Se chamasse ao Sol «rei do céu» βασιλεὐς οὐρανοῦ, pareceria sugerir o parentesco entre οὐρανος («céu») e όρατός («visível»), género de etimologia popular que provavelmente era corrente no tempo de Platão (e que, de resto, não destoaria de muitas outras que o filósofo aceitou no Crátilo).

[43] Esta definição de διάνοια, que é da autoria de Platão, parece querer sugerir, como nota Adam, uma suposta etimologia que tirasse de διά («entre») o sentido de «entre νοῦς («inteligência») e δόξα («opinião»)».

Livro VII

[9] Palamedes, herói da guerra de Tróia, inventor dos números e do jogo do xadrez, que desmascarara o expediente de Ulisses, de simular a loucura para não ter de acompanhar a expedição, e por isso sofrera a vingança do herói, que, acusando-o de suborno por parte de Príamo, causara a sua lapidação, foi figura frequentemente tratada na tragédia. Tanto Ésquilo, como Sófocles e Eurípedes compuseram um drama intitulado Palamedes, embora nenhum dos três se tenha conservado. É curioso que Ésquilo, no Prometeu Agrilhoado, atribui a invenção do número ao Titã.

[11] Entenda-se que multiplicam logo a unidade pelo mesmo factor por que foi dividida.

[12] Trata-se da estereometria, criação, pelo menos em grande parte, de Teeteto, mas que só recebeu nome, como observa Adam, a partir de Aristóteles (An. Post. II. 13. 78b 38).

O mais famoso problema de estereometria era o da duplicação do cubo, também conhecido por «problema de Delos». Ter-se-ia originado, segundo uma das versões transmitidas por Eratóstenes, num oráculo dado aos habitantes daquela ilha, de que, para se verem livres da peste, tinham de duplicar as dimensões do altar, que era de forma cúbica. Consultados a este propósito os geómetras da Academia, Arquitas de Tarento encontrou uma solução, e Eudoxo de Cnidos outra. Vide M. R. Cohen-I. E. Drabkin, A Source Book in Greek Science, Harvard University Press, 1958, pp. 62-66, e O. Bekker, Das mathematische Denken der Antike, Göttingen, 1957, pp. 75-80.

[13] Trocadilho sobre o provérbio grego σπεῦδε βραδἐως (em latim: festina lente), equivalente ao nosso «devagar se vai ao longe».

[14] Todas estas alusões um tanto humorísticas parecem visar o episódio de As Nuvens de Aristófanes, em que Sócrates entra em cena suspenso numa cesta, para observar mais de perto os fenómenos celestes.

[15] Segundo a tradição, as estatuas de Dédalo moviam-se, o que está de acordo com o «exemplo» das revoluções celestes escolhido.

[16] Empregámos a palavra grega que figura também no Timeu, para designar o construtor do mundo.

[17] Entenda-se: o Sol e a Lua, causadores das variações do dia, noite, mês e ano.

[18] Para definir o que seja πυκνώματα, termo da linguagem musical, Adam cita Aristóxeno, Baquio e, entre os modernos, Schneider, que interpreta que «haec ipsa πυκνά vel alia parva et tamen composita intervalla» se chamam assim «propter sonorum in augusto spatio quasi confertorum frequentiam». Veja-se ainda M. L. West, Ancient Greek Music, Oxford, 1992, p. 162

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Leia mais em O papel das matemáticas na educação, segundo Platão

Leia mais em Matemática e Pedagogia de Platão



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Filosofia da Matemática em Aristóteles e S. Tomás - Introdução


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Tempo de leitura: 12 minutos.

É com grande alegria que apresentamos uma tradução do Prólogo e da Introdução do livro La Filosofía de las Matemáticas en Santo Tomás, em traduzimos como A Filosofia da Matemática em Santo Tomás. Este livro foi escrito por José Alvarez Laso, C. M. F., Professor de Filosofia no Colégio Claretiano de Santa Cruz Zinacantepec. Foi publicado pelo Editorial Jus, México, 1952. Primeiramente quero agradecer a minha esposa pela tradução e revisão do texto em espanhol. As demais traduções são nossa. Futuramente teremos mais novidades deste livro. Aguardem!

PRÓLOGO 

Antes de entrar no assunto, convém citar aqui algumas advertências. E, primeiramente, para que ninguém ache que minha tese é um de tantos esforços para atribuir a Santo Tomás, sete séculos antes, o que agora dizemos, hei de explicar

A ocasião deste tema. Muitos matemáticos modernos e não poucos filósofos de todo tipo de escolas prestam grande atenção aos problemas filosóficos que a Matemática oferece, agrupados sob a denominação comum de Filosofia da Matemática.
Basta ler as últimas páginas da monografia de W. Dubislav, A filosofia da Matemática na Atualidade [Die Philosopie der Mathematik in der Gegenwart] (Berlín, 1932), para se convencer disso. 
Por outro lado, os escolásticos, esquecendo o exemplo dos grandes Mestres (veja a Conclusão), pouco ou nada fizeram neste campo estritamente metafísico. 
É, pois, este terreno como diz o P. Hoenen, Um campo de pesquisa para Escolástica (O Escolástico Moderno 12 [A field of research for Scholasticism (The Modern Schoolman 12)] [Nov. 1934] 15-18). 

Objeto desta pesquisa. Não é minha intenção propor uma filosofia da Matemática segundo a doutrina escolástica. Meu trabalho será mais modesto: colaborar com meu grãozinho de areia para este ideal preparando a história destes problemas na escolástica. 

Autor escolhido. E para sintetizar, na medida do possível, esta história, escolhi como autor central Santo Tomás de Aquino, que representa melhor que nenhum outro a doutrina escolástica. Ele reuniu toda a ciência anterior e dele derivam mais ou menos todos os Escolásticos posteriores. Por isso, creio que as 
Fontes principais deste trabalho devem ser os Comentários do Angélico aos livros do Estagirita [Aristóteles]. Assim, poderemos estudar paralelamente o pensamento do Filósofo e de seu melhor intérprete. Uma consequência prática é a maneira de citar ambas as referências o mais preciso possível. Somente os que quiseram consultar alguma vez o pensamento de Santo Tomás com os outros Comentadores antigos e modernos, verão a utilidade destas citações. 

Características do meu trabalho. Assim, pois, meu trabalho é primariamente histórico. Apresentar as soluções que Santo Tomás deu aos problemas que oferecia a matemática de seu século.
Em segundo lugar, meu trabalho deve ser crítico. Em dois sentidos: primeiro em relação aos problemas que o próprio Santo Tomás se propunha: estão plenamente resolvidos?; logo, em relação aos problemas de agora, as soluções tomistas podem ser aplicadas a eles? 

Método seguido. Eu segui o método histórico e documental, pesquisando o que de fato disse Santo Tomás. Método diametralmente oposto ao que segue D. García em seu artigo De metaphysica multitudinis ordinatione (Div. Thom. Plac. 31 [1928] 83-109; 607-638). [Sobre a metafísica da ordem do número].

Uso dos idiomas. O método documental exige a menor intervenção possível do pesquisador nos textos. Por isso, embora o texto da dissertação esteja na minha língua materna [espanhol], as citações estão sempre nos idiomas dos respectivos autores. 
É lamentável ter que dizer, mas é um fato, cito autores em nove línguas diferentes e nenhum em espanhol. 
Para maior comodidade, o índice de referências está em latim.


Divisão da tese. Fiz um esquema quase a priori sobre os problemas filosóficos que a Matemática oferece para ordenar, segundo ele, os materiais que estivesse recolhendo, mas logo tive a sorte de encontrar um belo texto de Santo Tomás que me deu uma magnífica divisão da matéria, segundo exponho no primeiro capítulo. 

A bibliografia que aparece nas páginas seguintes compreende, sistematicamente catalogados, todos e apenas os livros e artigos empregados para compor a dissertação. 

Fruto da minha pesquisa. Creio que o mérito principal do meu trabalho está em ter encontrado em Santo Tomás um esboço de Filosofia da Matemática, que é necessário desenhar e colorir com muito cuidado para poder apresentá-lo diante do público de nossos dias. 

Defeitos da minha dissertação. Certamente, terão muitos a serem delatados ao principiante. Mas, há três que eu mesmo vejo e que quero confessar aqui. 
Facilmente se nota que os últimos capítulos estão menos trabalhados, embora em parte se deva ao fato de que são menos filosóficos. 
Logo, teria que ler de novo todos os textos, para referendar mais a doutrina. Conheço mais textos dos que aparecem usados na dissertação como facilmente poderá constatar quem tivesse paciência para comparar o texto com o Apêndice. Talvez, em algum momento, teria que corrigir alguma frase ou polir alguma expressão, como tive que fazer em relação ao número. Na primeira redação, atribuía a Santo Tomás uma doutrina errônea sobre o objeto da aritmética, que depois tive a satisfação de constatar que era apenas de João de Santo Tomás e de outros que o copiavam (veja a nota 29 do cap. III). 
Por fim, em relação à matemática moderna, é vasta e tão variada a literatura, que não sei se terei escolhido sempre o que é típico e característico.

Devo manifestar minha sincera gratidão e reconhecimento ao R. P. Pedro Hoenen, S.J., sob cuja amável e sábia direção trabalhei. 
Devo recordar aqui a memória do falecido R. P. L. W. Keeler (que Deus o tenha), que tanto me ajudou na leitura dos Manuscritos. Que o bom Deus, para cuja maior glória trabalhávamos juntos na Biblioteca Vaticana, lhe tenha agraciado no céu por sua extrema bondade para comigo. 

México, D. F., 13 de abril de 1952, solenidade de Páscoa. 


INTRODUÇÃO 

A MATEMÁTICA EM SANTO TOMÁS 

Santo Tomás estudou a Aritmética e a Geometria com as demais disciplinas do Quadrivium na Universidade de Nápoles [1] nos anos de 1236 a 1239 [2].
Tão bem diligente sairia destas aulas, à medida que se abundam em suas obras filosóficas e teológicas as alusões à Matemática [3]. 
Não é minha intenção estudar esta introdução um ponto [4], que não tem nenhum interesse nem para a Matemática nem para a História [5]. 
Só quero registrar os dados necessários para demonstrar que Santo Tomás poderia refletir sobre a Matemática. 
Conhecia bem [6] Euclides [7]. Poucas vezes cita [8] a aritmética de Boécio [9]; mas todos sabem que os livros VII-IX de Euclides são pura aritmética. 
Sabido é também o lugar que ocupa a Matemática na classificação geral das ciências que faz Santo Tomás [10]. 
Quero encerrar esta breve nota com uma frase do grande historiador da Matemática M. Cantor, que demonstra o grande afeto e admiração que professava por Tomás de Aquino: “O matemático chama-os (Alberto Magno e Tomás de Aquino) com pesar de amigos da sua ciência” (Vorlesungen über Geschichte der Mathematik [Lições sobre a história da matemática], Leipzig, Teubner, 1892, vol. II, p. 86).

Notas:

[1] Veja os parágrafos em que os três primeiros biógrafos de Santo Tomás falam de seus estudos em Nápoles: 
O pai enviou seu filho a Nápoles para que ele pudesse ser completamente educado em gramática, dialética e retórica. Pois quando ele logo deixou Martinho, seu tutor de gramática, ele foi entregue ao seu professor Pedro, o Ibérico, que, tendo-o instruído em ciências lógicas e naturais”. Calo P., Vita S. Thomae A., ed. Prümmer, p. 20. 
Assim, seguindo o conselho dos pais, o menino foi enviado para Nápoles e aprendeu gramática e lógica com o Mestre Martinho, e ciências naturais com o Mestre Pedro da Ibéria.”. Tocco G., Historia B. Thomae de Aq., ed. Prümmer, p. 70. 
Em pouco tempo, portanto, quando ele fez grande progresso em gramática, lógica e filosofia natural...”. Guidonis B., Legenda Sancti Thomae de Aq., ed. Prummer, p. 70. 

[2] El P. Prümmer (Chronología vitae S. Thomae Aq., en Xenia Thomistica) atribui o ano 1235 como o primeiro ano de sua estadia em Nápoles. P. Walz (Delineatio vitae S. Thomae de Aquino, Romae, Angelico, 1927, p. 16) coloca "anno 1236 vel 1239". 

[3] Veja o índice dos lugares em que Santo Tomás fala de Matemática, posto como Apêndice desta dissertação. 

[4] Do ponto de vista sistemático, H. Meyer estudou este ponto em vários artigos de Philosophisches Jahrbuch publicados à parte depois. Sobre a Matemática, trata o volume 47 (1934) nas páginas 441-464. 

[5] Talvez, o nome de Santo Tomás deva figurar na história da Matemática outro conceito. Veja, de fato, o que diz Timerding (Die Verbreitung mathematisches Wissens und mathematischer Auffassung, Leipzig, Teubner, 1914 [A disseminação do conhecimento matemático e da compreensão matemática]):
Além da já mencionada tradução de Euclides por Campanus, devem ser mencionadas as traduções que, segundo consta, foram feitas por Guilherme de Mörbecke da Catóptrica de Heron e dos escritos arquimedianos a pedido de Tomás de Aquino (1274)”. Zeuthen (Die Mathematik in Altertum und im Mittelalter, Leipzig, Teubner, 1912 [A Matemática na Antiguidade e na Idade Média]), atribui este mérito a Witelo. Veja Cantor, Vorlesunger über Geschichte der Mathematik, Leipzig, Teubner, 1892, Vol. II, p. 89.

[6] Veja, por exemplo, estes textos:

Explica o nome Elemento

III Met. 1.8, n. 424.

  “                “             “

V Met. 1.4, n. 801.

Cita o livro I de Euclides

III De An. 1.1, n. 577.

               III

II De cae 1.26. n. 6. 

                 IV

    De mem 1.7, n. 392

                 X

I An. Pos. 1.4, n. 13



[7] Segundo Montucla (Histoire des Mathématiques, Paris, 1758, I, p. 213), só no século XIII começaram os latinos a conhecer Euclides no mesmo texto.

[8] Veja, por exemplo: 
                    De pot. q. 3, a. 16 sed contra 4. 
                    I Sent. d. 24; q. 1 ob. 2. 
                    De Trin. q. 1. a. 4 ad 2. 
                            q. 4 á. 1 arg. 1. 

[9] Veja o juízo que faz Montucla (vol. I, p. 492), das obras matemáticas de Boécio: 
Sua aritmética e geometria são, estritamente falando, apenas traduções livres do primeiro (Nicômaco) e do último (Euclides), onde ele preservou para nós muitas características interessantes da história dessas ciências”.

[10] Veja, por exemplo, no recente livro de H. Meyer, Thomas von Aquino, Bonn, 1938, p. 399-407. 

***

Leia mais em Filosofia Tomista da Matemática

Leia mais em Aristotelismo e Filosofia da Matemática



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Algumas filosofias da Matemática

Arquimedes pensativo, por Domenico Fetti

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Tempo de leitura: 38 minutos.

REALISMO, NOMINALISMO E CONCEPTUALISMO

Genial. Contudo, até o leitor mais benevolente pode questionar se Platão não foi um pouco além da conta; Aristóteles certamente achava que foi. Mas é importante entender que, descontados certos detalhes e floreios retóricos, até muitas pessoas que não são solidárias à cosmovisão global de Platão admitem que sua teoria é altamente plausível e defensável, e ela sempre teve defensores de peso, inclusive nos dias atuais. O motivo é que é notoriamente dificílimo evitar algo pelo menos similar à teoria de Platão se quisermos que a matemática, a linguagem, a ciência e a própria estrutura do mundo da experiência façam sentido.

Para entender o porquê, consideremos três tipos de coisas (embora haja outras) que têm toda a aparência de ser objetos abstratos como os que Platão postula, isto é, entidades existentes fora do tempo e do espaço e fora da mente humana. Os primeiros são os universais, dos quais já vimos exemplos. Além deste ou daquele triângulo específico, temos a “triangularidade” universal; além deste ou daquele ser humano, temos “o humano” universal; além desta ou daquela coisa vermelha, temos a “vermelhidão” universal; e, em geral, cada coisa específica parece exemplificar várias características universais. As coisas específicas são únicas e irrepetíveis – há apenas um Sócrates, um Aristóteles, um George W. Bush etc. – mas os aspectos que exemplificam (por exemplo, “humano”) são repetíveis e comuns a muitas coisas e, portanto, “universais”.

Um segundo exemplo são os números e outras entidades matemáticas. Os números não são objetos físicos: o numeral “$2$” não é o número $2$, assim como o nome “George Bush” não é a mesma coisa que o homem George Bush, e apagar todos os numerais $2$ que todas as pessoas já escreveram não fará com que de repente $2 + 2 = 4$ seja falso. Tampouco são os números puramente mentais: como acontece com as verdades geométricas, as verdades da matemática em geral são coisas que nós antes descobrimos que inventamos; de alguma forma elas já estão “por aí” esperando que as encontremos; portanto, não é necessário que pensemos sobre elas para que sejam verdadeiras. São ainda verdades necessárias, não contingentes. Saber, digamos, que há nuvens sobre Vênus é saber um fato contingente, isto é, que poderia não ter ocorrido. Por exemplo, poderia ser que Vênus nunca tivesse existido, ou que sua órbita o levasse para tão perto do Sol, que qualquer atmosfera que tivesse teria sido dissipada há muito tempo; e, seja como for, em algum momento do futuro o Sol se expandirá e engolirá tanto Vênus como as nuvens que o recobrem, incinerando-os completamente. Mas conhecer mesmo um fato matemático simples, como $2 + 2 = 4$, é conhecer uma verdade necessária, que não poderia não ocorrer [10]; $2$ e $2$ já eram $4$ muito antes de alguém saber disso e continuariam $4$ ainda que todos nos esquecêssemos disso ou morrêssemos. Aliás, continuaria a ser verdade que $2 + 2 = 4$ ainda que todo o universo despencasse sobre si mesmo. Mas se essa verdade matemática é de tal modo necessária, então as coisas a respeito das quais é verdadeira – os números – também devem existir de modo necessário, fora do tempo e do espaço e independente de qualquer mente.

Por fim, temos o que os filósofos chamam de proposições – declarações sobre o mundo, sejam verdadeiras ou falsas, que são distintas das frases que as expressam. “John é solteiro” e “John não é comprometido” são frases diferentes, mas expressam a mesma proposição. “A neve é branca” e “Schnee ist weiss” também são frases diferentes – na verdade, aquela é do português e esta do alemão – mas expressam, do mesmo modo, exatamente a mesma proposição, a saber, a proposição de que a neve é branca. Quando a mente cogita qualquer pensamento de qualquer tipo, seja verdadeiro ou falso, é em última análise uma proposição que cogita, não uma frase. Esse é o motivo pelo qual podemos todos cogitar os mesmos pensamentos apesar de estarmos separados por diferentes línguas, épocas e lugares: quando pensam que a neve é branca, Sócrates e George Bush estão pensando exatamente a mesma coisa, apesar do fato de que um deles expressa esse pensamento em grego na Atenas do século V antes de Cristo e o outro em inglês no Texas do século XXI. Diferindo de qualquer frase, aliás de qualquer outra sequência física de sons ou formas que se pode usar para expressá-las, as proposições são em algum sentido distintas do mundo material. Porém, como uma proposição ou é verdadeira ou é falsa ainda que ninguém a cogite – novamente, $2 + 2 = 4$ continuaria verdadeiro mesmo que nos esquecêssemos disso amanhã, $2 + 2 = 5$ seria falso mesmo que todos passássemos a acreditar que é verdadeiro e a neve já era branca muito antes de ser vista por alguém –, parece seguir-se que as proposições também são independentes de qualquer mente.

A posição de que os universais, os números e/ou as proposições existem objetivamente, à parte de qualquer mente humana e distintos de qualquer aspecto material ou físico do mundo, é chamada de realismo e a Teoria das Formas de Platão talvez seja a sua versão mais famosa (embora não a única, como veremos). As posições alternativas tradicionais são o nominalismo, que nega que os universais e similares sejam reais, e o conceptualismo, que reconhece sua realidade mas insiste que eles existem apenas na mente; e, como o realismo, cada uma dessas posições vem em diversos modelos. O debate entre essas três correntes é antigo e extremamente complicado [11]. Pode parecer ainda, à primeira vista, bastante improdutivo, esotérico e irrelevante para a vida prática. Mas nada pode estar mais longe da verdade. O fato é que não é exagerado afirmar que virtualmente todas as grandes controvérsias religiosas, morais e políticas das últimas décadas – aliás, dos últimos séculos – repousam de algum modo em discordâncias sobre o “problema dos universais” (como é conhecido), ainda que esse fato esteja implícito ou não seja notado. Isso inclui a disputa entre os “neoateus” e seus adversários, por mais ignorantes que aqueles (embora, com frequência, também estes) sejam das verdadeiras raízes da questão. Quando fez a famosa observação de que “ideias têm consequências” [livro], Richard Weaver não estava afirmando o fato banal de que aquilo em que acreditamos afeta o modo como agimos; estava se referindo às radicais implicações sociais e morais do abandono do realismo e da adoção do nominalismo para a civilização ocidental moderna [12].

Examinaremos essas consequências no momento devido. Por ora, analisemos brevemente algumas das razões que fazem com que o realismo, de uma forma ou de outra, pareça inescapável até para muitos pensadores visceralmente inclinados a rejeitá-lo; e por que as tentativas de escapar dele – a saber, o nominalismo e o conceptualismo – parecem, em última análise, indefensáveis, por maior que seja o entusiasmo (ou o desespero) com que se tenta defendê-las.

Já aludimos a alguns dos argumentos que se seguem, mas será útil resumi-los e torná-los mais explícitos. (Alguns também são levemente técnicos; rogo a tolerância do leitor.) Em prol da simplicidade, alguns deles serão formulados de maneira “platônica”; realistas de outras correntes os modificariam ligeiramente.

1. O argumento doum sobre o múltiplo”: A “triangularidade”, a “vermelhidão”, o “humano” etc. não são redutíveis a nenhum triângulo, objeto vermelho ou ser humano específico, nem mesmo a uma coleção de triângulos, objetos vermelhos ou seres humanos. Pois qualquer triângulo, objeto vermelho ou ser humano específico, ou até o conjunto completo dessas coisas, poderia deixar de existir sem que a triangularidade, a vermelhidão e o humano deixassem de poder ser representados novamente. Essas coisas também podem ser, e muitas vezes são, representadas ainda que nenhuma mente humana esteja ciente disso. Portanto, a triangularidade, a vermelhidão, o humano e outros universais não são nem coisas materiais, nem conjuntos de coisas materiais, nem dependentes de mentes humanas para existir.

2. O argumento da geometria: Na geometria, lidamos com linhas perfeitas, círculos perfeitos e assemelhados e descobrimos fatos objetivos a respeito deles. Como são objetivos – nós não os inventamos e não poderíamos alterá-los se quiséssemos – esses fatos não dependem da nossa mente. Como são necessários e inalteráveis (ao contrário dos fatos que dizem respeito a coisas materiais) e como nenhuma coisa material tem a perfeição que os objetos geométricos têm, eles também não dependem do mundo material. Portanto, são fatos que dizem respeito a uma “terceira esfera” de objetos abstratos.

3. O argumento da matemática em geral: As verdades matemáticas são necessárias e inalteráveis, ao passo que o mundo material e a mente humana são contingentes e mutáveis. Essas verdades já eram verdadeiras antes de o mundo material ou as nossas mentes existirem e continuariam a ser verdadeiras se estes deixassem de existir. Assim, os objetos a respeito dos quais essas verdades são verdades – números e similares – não podem ser nem mentais nem materiais, mas abstratos. Além disso, a série de números é infinita, mas há apenas uma multiplicidade finita de coisas materiais e apenas uma multiplicidade finita de ideias em qualquer mente humana ou conjunto de mentes humanas; logo, as séries numéricas não podem ser identificadas com nada material nem como nada mental. 

4. O argumento da natureza das proposições: As proposições não podem ser identificadas nem com algo material nem com algo mental. Pois algumas proposições (por exemplo, verdades matemáticas como $2 + 2 = 4$) são necessariamente verdadeiras e, portanto, continuariam verdadeiras ainda que nem o mundo material nem a mente humana existissem. Muitas proposições contingencialmente verdadeiras também continuariam verdadeiras em tais circunstâncias: “César foi assassinado nos Idos de Março” continuaria verdadeiro ainda que o mundo inteiro e todas as mentes humanas saíssem da existência amanhã. Ainda que nem o mundo material nem mente humana alguma jamais tivessem existido, a proposição “não há nem mundo material nem qualquer mente humana” teria sido verdadeira, caso em que não seria algo nem material nem mental. E assim por diante [13]. 

5. O argumento da ciência. As leis e classificações científicas, sendo de aplicação geral ou universal, necessariamente fazem referência a universais; e o interesse da ciência é descobrir fatos objetivos, independentes de qualquer mente. Assim, aceitar os resultados da ciência é aceitar que existem universais independentes da mente. Além disso, a ciência usa formulações matemáticas, e dado que (como observado acima) a matemática diz respeito a uma esfera de objetos abstratos, quem aceita os resultados da ciência fica, portanto, obrigado a aceitar que há tais objetos [14].

Esses argumentos são diretos. Existem também os indiretos, isto é, aqueles que mostram a impossibilidade de as alternativas ao realismo estarem corretas. Considere o nominalismo, que sustenta que não existem universais, nem números, nem proposições [15]. Onde acreditamos haver universais, afirma o nominalista, há apenas termos gerais, palavras que aplicamos a muitas coisas. Assim, por exemplo, há o termo geral “vermelho”, que aplicamos a vários objetos, mas não existe “vermelhidão” nenhuma. Evidentemente, surge com isso a questão de por que aplicamos o termo “vermelho” precisamente às coisas que aplicamos, e é difícil compreender qual outra resposta plausível poderia haver além de “porque todas elas têm a vermelhidão em comum”, o que nos leva novamente, no fim das contas, a afirmar a existência dos universais. O nominalista pode tentar evitar essa conclusão alegando que chamamos coisas diferentes de “vermelhas” porque elas lembram umas às outras, sem especificar em que aspecto o fazem. Isto é manifestamente implausível – não é simplesmente óbvio que elas lembram umas às outras com respeito à sua vermelhidão? – mas há outros problemas também:

6. O problema do regresso vicioso: Como Bertrand Russell observou, a própria “semelhança” a que o nominalista recorre é um universal [16]. Um sinal de “Pare” se assemelha a um caminhão de bombeiros, motivo pelo qual classificamos ambos de “vermelhos”. A grama lembra a pele do Incrível Hulk, razão pela qual chamamos a ambas de “verdes”. E assim por diante. O que temos, pois, são múltiplas representações de um mesmo universal, “semelhança”. Ora, o nominalista pode tentar evitar esta consequência dizendo que só chamamos todos esses exemplos de “semelhança” porque eles lembram uns aos outros, sem especificar em que aspecto o fazem. Mas aí, em vez de ser resolvido, o problema apenas surge novamente em um grau superior. Esses vários casos de semelhança se assemelham a vários outros casos de semelhança, de modo que temos uma semelhança de ordem superior, que será ela mesma um universal. E se o nominalista tentar evitar este universal aplicando mais uma vez a estratégia original, apenas enfrentará o mesmo problema novamente em um grau ainda mais elevado, ad infinitum.

7. O problema de que “as palavras também são universais”: O nominalista afirma que não há universais como “vermelhidão”, apenas termos gerais como “vermelho”. Contudo, esta afirmação parece obviamente autocontraditória, uma vez que o próprio termo “vermelho” é um universal. Você enuncia a palavra “vermelho”, eu enuncio a palavra “vermelho”, Sócrates enuncia a palavra “vermelho” e todas são obviamente enunciações específicas da mesma palavra, que existe para além das nossas várias enunciações dela. (Segundo a formulação usual dos filósofos, cada enunciação é um diferente token [espécime, exemplar] do mesmo type [tipo, palavra única].) Em verdade, esta é a única razão pela qual a proposta nominalista tem alguma plausibilidade (se é que ela tem alguma plausibilidade): Que a mesma palavra se aplique a muitas coisas pode parecer suficiente (pelo menos se você não pensar com cuidado na da questão) para gerar nossa impressão intuitiva de que há algo em comum entre elas. Mas, novamente, se é a mesma palavra, temos, uma vez que há diferentes enunciações dela, situação idêntica à do “um sobre o múltiplo” que o nominalista quer evitar. Para escapar desse resultado, ele pode afirmar que quando você, eu e Sócrates dizemos a palavra “vermelho”, na verdade nós não estamos enunciando a mesma palavra de maneira alguma, mas apenas palavras que se parecem umas com as outras. Isto seria, é claro, simplesmente de uma estupidez cristalina, além de um desespero patético. Na barganha, implicaria que a comunicação é impossível, uma vez que jamais estaríamos usando as mesmas palavras (aliás, você jamais usaria a mesma palavra mais de uma vez nem quando estivesse falando consigo mesmo, mas apenas palavras que lembram umas às outras) – neste caso, por que o nominalista está falando conosco? E o recurso à “semelhança” abriria novamente a porta ao problema do regresso vicioso.

Em geral, é dificílimo defender o nominalismo de um modo que não leve de volta, pela porta dos fundos, à adesão sub-reptícia aos universais ou outros objetos abstratos, em cujo caso a posição é autocontraditória. Por razões como esta, o conceptualismo procura escapar do realismo não negando que os universais existam, mas antes negando apenas que existam fora da mente. É uma tentativa de chegar a um meio termo entre o realismo e o nominalismo. Mas ele também enfrenta dificuldades que são consideradas em geral insuperáveis:

8. O argumento da objetividade dos conceitos e do conhecimento. Quando eu e você consideramos qualquer conceito – o conceito de um cachorro, digamos, ou de vermelhidão, ou aliás do próprio conceptualismo – cada um de nós está considerando o mesmo conceito; não é que você esteja considerando o seu conceito específico de vermelho e eu esteja considerando o meu, sem que haja nada em comum entre eles. Similarmente, quando cada um de nós considera várias proposições e verdades, estamos considerando as mesmas proposições e verdades. Assim, por exemplo, quando você pensa no Teorema de Pitágoras e eu penso no Teorema de Pitágoras, cada um de nós está pensando sobre uma única e mesma verdade; não é que você esteja pensando sobre o seu próprio Teorema de Pitágoras pessoal e eu esteja pensando no meu (o que quer que isso significasse). Assim, os conceitos (e, portanto, os universais) e as proposições não existem apenas na mente, subjetivamente, mas independentemente dela, objetivamente. Relacionado a este argumento há outro:

9. O argumento da possibilidade de comunicação: Suponha que, como sugere o conceptualismo, os universais e as proposições não fossem objetivos, mas existissem apenas nas nossas mentes. Nesse caso, nossa comunicação seria impossível. Pois toda vez que você dissesse algo – “A neve é branca”, por exemplo – os conceitos e proposições que expressasse seriam coisas que existiriam apenas na sua mente e assim seriam inacessíveis a todas as outras pessoas. Sua ideia de “neve” seria inteiramente diferente da minha ideia de “neve”, e como você só teria acesso à sua ideia e eu só teria acesso à minha, nós jamais diríamos a mesma coisa quando falássemos a respeito da neve ou, aliás, a respeito de qualquer outra coisa. Mas isto é absurdo: nós somos capazes de nos comunicar e apreender os mesmos conceitos e proposições. Logo, essas coisas não são subjetivas nem dependentes da mente, mas objetivas, como afirma o realismo.

Argumentos similares aos dois últimos se originam com o lógico Gottlob Frege (1848-1925), cuja preocupação era defender o estatuto científico da lógica e da matemática contra uma doutrina conhecida como “psicologismo”, que tendia a reduzir as leis dessas a meros princípios psicológicos dirigindo a operação da mente humana [17]. Isso significa, de acordo com essa perspectiva, que a lógica e a matemática não descrevem a realidade objetiva, mas apenas o modo pelo qual a estrutura da mente faz com que pensemos sobre a realidade. Há óbvias afinidades entre o conceptualismo e esse tipo de ponto de vista, que deriva de pensadores como Immanuel Kant (a respeito do qual diremos algumas coisas em capítulos posteriores). Quando se acrescenta a ele (o que Kant não fez) a sugestão de que a estrutura da mente é determinada por circunstâncias culturais, históricas e sociais contingentes e em evolução, o resultado é uma forma de relativismo cultural bastante radical, na qual todos os nossos conceitos, assim como a lógica, a matemática, a ciência etc., são condicionados pela cultura e sujeitos a revisão, sem nenhuma relação necessária com a realidade objetiva.

Radical e totalmente contraditório, como são o psicologismo e o conceptualismo em geral. Pois se afirmamos que os conceitos, as regras da lógica etc. não são determinados por nenhuma correspondência necessária com a realidade objetiva, mas antes pelos efeitos exercidos na nossa mente por forças históricas, culturais e similares contingentes, ou mesmo pela nossa evolução biológica, então temos de explicar exatamente como isto funciona – isto é, temos de dizer precisamente quais foram as forças biológicas e/ou culturais responsáveis por isso, como elas formaram nossa mente e assim por diante – e teremos ainda de dar argumentos em defesa desta explicação. Mas tal explicação terá necessariamente de recorrer a vários universais (“pressões seletivas darwinianas”, “interesses de classe”, “mutações genéticas”, “tendências sociais” etc.) e a princípios científicos e matemáticos controladores dos processos relevantes; e para defendê-los será necessário recorrer às regras da lógica. Contudo, essas são as coisas mesmas que, segundo o ponto de vista em questão, não têm nenhuma validade objetiva e (como supostamente dependem dela para existir) não existiam antes de a mente existir. Logo, teorias como essa são totalmente autocontraditórias.

Suponha que, em vez disso, seguindo Kant, o conceptualista ou psicologista adote a posição menos radical de que embora os conceitos e/ou as regras da lógica e da matemática reflitam apenas as operações da mente e não a realidade objetiva, este é um fato necessário a respeito de nós, algo que não pode ser mudado por evolução biológica nem cultural. Em outras palavras, estamos presos aos conceitos e regras que temos e os aspirantes a engenheiros sociais simplesmente deram azar. Isto impediria que essa posição desmoronasse por incoerência? De maneira alguma. Pois, novamente, o defensor dela terá de explicar como é que sabe de tudo isso e como, então, a mente ficou assim, e se recorrer a conceitos, regras de lógica etc., dos quais acabou de nos dizer que não têm nenhuma relação com a realidade objetiva e que têm existência dependente da mente, estará assim, na prática, contradizendo o próprio argumento. Por outro lado, na medida em que afirma ser um fato necessário a respeito da mente que tenhamos precisamente os conceitos, as regras de lógica etc. que temos, então está afirmando assim ter conhecimento da natureza objetiva das coisas – especificamente, da natureza objetiva do funcionamento da mente – do tipo que deveria ter sido excluído pela sua teoria. Pois para formular e defender o que afirma ele precisa recorrer a certos universais (como “mente”), às regras da lógica etc.; e, novamente, sua teoria alega que estes não têm validade objetiva. Portanto, ele se vê em um dilema: se insiste, como sua teoria deve levá-lo a fazer, que os conceitos, as regras da lógica etc. não têm validade objetiva, será incapaz de defender a própria posição; se afirma que eles de fato têm validade, de modo a justificar sua pretensão de ter conhecimento sobre a natureza objetiva da mente, estará apenas contradizendo o próprio ponto de vista no ato mesmo de defendê-lo. De novo, a teoria é simplesmente incoerente [18].

Teorias como essas são provocativas e têm, por razões óbvias, apelo emocional para adolescentes de todas as idades. Mas do ponto de vista racional, são totalmente desprezíveis; como disse certa vez David Stove, ao fim e ao cabo seus proponentes não têm a oferecer muito mais do que “um sorriso maroto” [19]. Para ser justo, é preciso observar que muitos naturalistas, materialistas e ateus concordariam de bom grado com a severidade dessa conclusão. Os religiosos que acreditam que os secularistas dominantes na academia são todos relativistas estão redondamente enganados. Ao menos nos departamentos de filosofia dominados pela “filosofia analítica”, que atualmente são majoritários nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha – em outros departamentos de humanidades e departamentos de filosofia fora desses países, e/ou dominados pela “filosofia continental”, às vezes a história é completamente diferente –, reina o mais absoluto desprezo ao menos pelas formas mais extremas de relativismo, subjetivismo e similares [20]. Não devemos atribuir aos secularistas crimes de que não são culpados. O que é verdade é que muitos naturalistas, materialistas e ateus sustentam posições que são exatamente tão dementes quanto as dos relativistas radicais, e sem dúvida todos sustentam posições que têm as mesmas consequências do relativismo extremo, ainda que não tenham essa intenção.

Mas eu divago; voltaremos a tudo isso em breve. A questão no momento é que conseguir formular uma defesa plausível ou do conceptualismo ou do nominalismo é, na melhor das hipóteses, muito difícil. Ademais, não há grande motivação intelectual para fazê-lo além de tentar evitar o realismo. É inútil recorrer (como se faz com frequência) ao famoso princípio da Navalha de Ockham como motivação; pois ela recomenda optar pela teoria mais simples e evitar postular a existência de algo a não ser que seja necessário fazê-lo, e a lição clara da história do debate sobre os universais, proposições, números e similares é que é de fato necessário “postular” a existência deles. O nominalismo e o conceptualismo são teorias “mais simples” do que o realismo no mesmo sentido em que a astronomia seria “mais simples” se negasse a existência de planetas e estrelas. É tentador dizer aos oponentes do realismo: Desistam. Não dá para fugir. Parem de resistir. Aceitem. Mas há motivo para que muitos pensadores estejam dispostos a rolar nus em caco de vidro e suco de limão para não aceitar o realismo; isto ficará evidente ao final deste livro, à medida que compreendemos as consequências bastante conservadoras e bastante religiosas do realismo e das ideias adjacentes.

Algo similar à teoria de Platão, pois, afigura-se claramente correto. Mas o “algo similar” é importante. Pois é possível ser realista sem abraçar até as últimas consequências a depreciação dos sentidos e a postulação de uma misteriosa esfera de objetos além do espaço e do tempo que caracterizam sua teoria. Isto nos leva finalmente a Aristóteles

Notas:

[10] Aqui, novamente, às vezes se ouvem argumentos péssimos no sentido contrário. Por exemplo, sugere-se às vezes que se o mundo físico fosse configurado de maneira tal que sempre que se colocasse dois objetos junto a outros dois objetos um quinto objeto aparecesse magicamente entre eles, este seria um caso em que $2 + 2 = 5$. As pessoas que usam esses argumentos realmente deveriam se ouvir com mais cuidado. Pois de acordo com seu próprio relato, o que descreveram não foi $2$ e $2$ resultando em $5$, mas antes o ato de colocar 2 objetos junto a outros 2 objetos (o que dá 4 no total) causando de repente e magicamente o aparecimento de um novo e quinto objeto. (“$X$ causa $Y$” não quer dizer “$X$ é igual a $Y$”).

[11] Ver Universals (McGill-Queen’s University Press, 2001), de J.P. Moreland, para uma introdução ao debate escrito de um ponto de vista solidário ao realismo.

[12] Richard M. Weaver, Ideas Have Consequences (University of Chicago Press, 1948). Como mencionado acima, a Teoria das Formas de Platão também é conhecida como Teoria das Ideias. O título do livro de Weaver é um jogo de palavras. [O livro de Weaver tem tradução em português pela É Realizações: As Ideias têm Consequências.]

[13] As dificuldades de identificar proposições com qualquer coisa material ou mental vão muito além disso e foram bem resumidas por Alvin Plantinga em Warrant and Proper Function (Oxford University Press, 1993), capítulo 6.

[14] D. M. Armstrong é um naturalista que endossa o realismo quanto aos universais com base no papel deles na ciência e W.V.O. Quine é um naturalista que aceita a existência de alguns objetos abstratos (embora, em verdade, antes de conjuntos que de números) com base no papel que a matemática desempenha na ciência. Armstrong ajusta isso com seu naturalismo ao tentar virilmente (embora em vão, como Moreland alega) mostrar que os universais não são abstratos. (Como veremos, Aristóteles faz algo similar, mas de um modo que nenhum naturalista poderia aprovar.) Quine o faz dando de ombros. (Mais gravemente, ele o faz ampliando a definição de “naturalismo” a um grau tal que qualquer coisa que a ciência nos leve a postular seja coerente com ele.)

[15] É possível ser nominalista com relação a apenas um tipo de objeto alegadamente abstrato, ou vários tipos, sem ser nominalista com relação a todos eles. Isto é, pode-se negar que um tipo de objeto abstrato exista enquanto se aceita que outro tipo existe. Mas quem tem atração pelo nominalismo geralmente procura ampliá-lo até onde ele pode ir, e é compreensível que o faça. Pois se o nominalismo é motivado pelo desejo de defender o materialismo ou o naturalismo, não faz muito sentido ser seletivo quanto a isso, uma vez que admitir que pelo menos alguns tipos de objetos abstratos (logo, não materiais e não naturais) existem enfraquece gravemente a plausibilidade do materialismo ou do naturalismo como posição global.

[16] Bertrand Russell, The Problems of Philosophy (Prometheus Books, 1988), capítulo 9.

[17] Ver, por exemplo, o ensaio “Thought”, de Frege, em The Frege Reader (Blackwell, 1997), editado por Michael Beaney.

[18] Para uma defesa mais extensa recente desse tipo de argumento, ver Crawford L. Elder, Real Natures and Familiar Objects (MIT Press, 2004), pp. 11–17.

[19] Stove, The Plato Cult , p. 62.

[20] A diferença entre “filosofia analítica” e “filosofia continental” é uma questão complicada. A narrativa simplista corriqueira é a seguinte: A filosofia analítica tende a enfatizar clareza de expressão, argumentação explícita e rigorosa e uso pesado das ferramentas da lógica simbólica moderna. Seus criadores tinham a propensão de pensar que a solução dos problemas tradicionais da filosofia poderia ser facilitada pela análise cuidadosa da linguagem em que haviam sido expressos, e também costumavam ver a ciência empírica como o paradigma da investigação racional. Ela é a escola de pensamento predominante no mundo de língua inglesa e seus heróis são pensadores como Frege, Russell, Wittgenstein, Carnap e Quine. A filosofia continental, em contrapartida, tende a ter caráter mais literário e humanista. Sua abordagem deriva do idealismo de Kant e Hegel e mais diretamente do método “fenomenológico” de analisar a experiência humana desde dentro, buscando assim formular uma descrição precisa do modo como o mundo se manifesta ao sujeito humano, colocando, enquanto isso, a questão da verdade objetiva entre parênteses. Essa abordagem tende a predominar no continente europeu, e seus heróis modernos são pensadores como Husserl, Heidegger, Sartre, Gadamer e Foucault. A típica queixa analítica quanto à filosofia continental é que ela é inexata, confusa, subjetivista, negligente com a ciência e escrita em prosa impenetrável. A típica queixa continental quanto à filosofia analítica é que ela é superficial, reducionista, anal-retentiva, negligente aos problemas humanos e chata.

***

Texto retirado do livro A Última Superstição: Uma Refutação do Neoateísmo, de Edward Feser. Edições Cristo Rei, 2017.


Leia mais em Sobre a Realidade das Matemáticas

Leia mais em Aristotelismo e Filosofia da Matemática



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