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Sobre Euclides, sua Geometria e seus Elementos - parte 1

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Tempo de leitura: 55 minutos.

Apresentamos o Prefácio e parte da Introdução do livro Os Elementos de Euclides, traduzido por Irineu Bicudo, Editora Unesp, 2009.

A parte II pode ser encontrada aqui (em breve) e a parte III aqui (em breve).


Prefácio


É-me forte a impressão de, desde sempre, eu ter querido estudar o grego clássico. Lembro com que sentimento de encanto folheava o caderno que um vizinho me emprestara, contendo as lições de um quase nada daquela língua que ele aprendera quando seminarista. Cursava eu, então, a antiga escola primária. Essa vontade cresceu com as aulas de latim nas quatro séries ginasiais. Em várias épocas, cheguei a comprar gramáticas e livros com textos em grego. Mas a oportunidade (καιρός: “Quando pousa / o pássaro // quando acorda / o espelho // quando amadurece / a hora”) [1] só surgiu, de fato, arrebatadora, no segundo semestre de 1988, na disciplina de Língua Grega, ministrada pelo Professor Dr. Henrique Graciano Murachco, no Programa de Extensão Universitária da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Então, por dez anos, sempre que minhas atividades como professor, vice-diretor e depois diretor do Instituto de Geociências e Exatas da UNESP de Rio Claro e algumas viagens ao exterior me permitiram, participei com dedicação e entusiasmo, nas tardes das sextas-feiras, com um grupo de pessoas de várias procedências profissionais, do que o Professor Henrique chamava de “Oficina de Tradução”. Ali vertemos para o português longas passagens de Homero, Heródoto, Píndaro, Sófocles, Platão, Xenofonte, Aristóteles. O meu envolvimento com as letras aumentava com o tempo, e a consequência disso foram os múltiplos e honrosos convites, sempre aceitos, para participar de bancas examinadoras de concurso para ingresso de professor, de teses de doutoramento, de concurso de livre-docência e de dois concursos de professor titular, todos do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da velha universidade.

O livro que ora dou a público é o fruto amadurecido, desde então, pelos

longos anos de aprendizagem. Com ele viso, evidentemente, aos estudantes de Matemática e aos professores dessa ciência. Incluo no público-alvo também as pessoas cultas em geral que se interessem pelas conquistas gregas na Antiguidade, os estudantes de Filosofia e os de Letras Clássicas (grego), cujo curso, do meu ponto de vista, deixa aberta uma imensa lacuna no conhecimento da cultura grega ao não estudar obras matemáticas e hipocráticas, grandiosos monumentos daquela civilização.

Proclus, para mostrar a excelência do trabalho de Euclides, descreve algumas qualidades que um trabalho desse tipo deva ter, e que o de Euclides, de fato, tem.

Assim, diz:

É preciso a obra que tal desembaraçar-se de todo o supérfluo – pois isso é um obstáculo à instrução [2];

muita preocupação (deve) ter sido efetivada relativa a clarezas e, ao mesmo tempo, a concisões – pois os contrários dessas turvam a nossa inteligência [3].

De fato, a prática de Euclides frequentemente contempla a concisão – por exemplo, em lugar de “o quadrado sobre a AB (isto é, de lado AB)” diz, na maioria das vezes, “o sobre a AB”; e, “o pelas AB, CD”, em lugar de “o retângulo contido pelas AB, CD (ou seja, de lados AB, CD)”; “cortar em duas” sempre significa “cortar em duas partes iguais (isto é, bissectar)” etc. Mas se, por um lado, a concisão leva, entre outras coisas, a esse encurtamento das expressões, que mantive na tradução em respeito ao estilo euclidiano, ao contrário do que faz a recente versão francesa que se farta de palavras ausentes no grego, por outro lado, a clareza não abandona o leitor atencioso que logo se habituará com essas particularidades.

Chamo a atenção para o fato de, em grego, o termo “lado” (πλευρά) ser feminino e assim só esse gênero aparecer ao referir-se o texto a “o lado AB do triângulo...” ou a “a reta (ou seja, segmento) AB do triângulo...”. Então, a tradução usa, nesses casos, indiferentemente, os artigos masculino ou feminino.

Previno, por fim, a quem possa interessar, que é preciso fôlego para acompanhar muitíssimas das demonstrações que aqui se encontram, e determinação. Garanto, no entanto, que, vencida a inércia, ultrapassado o obstáculo, alcançado o objetivo com a compreensão do resultado, cabe a recompensa de ter mergulhado no próprio processo do que denominamos “pensar” e de haver podido apreendê-lo em toda a sua abrangência. Mais: brotará disso a convicção de que, se com Homero a língua grega alcançou a perfeição, atinge com Euclides a precisão. E o método formular, que consiste em usar um conjunto de frases fixas que cobrem muitas ideias e situações comuns, poderoso auxílio à memória em um tempo de cultura e de ensino eminentemente orais, serve para aproximar o geômetra do poeta e então mostrar que perfeição e precisão podem ser faces da mesma medalha.

Agradeço à minha esposa, Elizabeth Christina Plombon, que digitou com carinho e cuidado todo o trabalho, confeccionando-lhe as, muitas vezes, complicadas figuras, e sendo de importante ajuda nas revisões; ao Prof. Dr. Henrique Murachco, pelo ensino e a amizade, e ao Prof. Dr. José Rodrigues Seabra Filho, docente de latim da USP, e companheiro daquelas sextas-feiras, por ter conferido comigo a tradução que fiz do Prefácio Latino de Stamatis. 

Sou o único responsável por todas as traduções do grego e do latim, e por quase todas as do inglês, francês, alemão e italiano.

Pois, tendo aprendido algo, jamais neguei, fazendo o conhecimento ser como uma descoberta minha; mas louvo como sábio o que me instruiu, tornando públicas as coisas que aprendi com ele.

Platão, Hippias Menor, 372 c5-8 [4]

P.S.: (i) Conforme salienta Kirk (The Songs of Homer [5]: “Finally that perennial problem, the spelling of Greek names.” [6]), a solução que adotei, nem sempre com sucesso, foi a de preservar as formas usuais em português dos mais conhecidos, e prover para os outros a latinizada, como, de hábito, praticam-na os de língua inglesa.

(ii) O uso de colchetes na tradução reproduz o que se encontra no texto grego e, ali, indica o que Heiberg julga ter sido inserido por terceiros no escrito de Euclides.

(iii) Ensina Said Ali na sua Gramática (p.171-2):

Nos enunciados de caráter condicional, em que a hipótese é um fato inexistente cuja realização não se espera ou não parece provável, emprega-se o imperfeito do conjuntivo para esta hipótese condicionante, e o futuro do pretérito para a oração principal.

Na linguagem familiar costuma-se substituir o futuro do pretérito pela forma do imperfeito do indicativo. É substituição permitida em linguagem literária (grifo meu):

“Se Deus nos deixara tentar mais do que podem as nossas forças, então tínhamos justa causa de recusar as tentações.” (Vieira)

Por isso, apoiado na autoridade de um Vieira, vali-me dessa forma na tradução, por exemplo, das Proposições I.19, I.25 etc., ficando assim rente ao original.

Irineu Bicudo


Notas:

[1] FONTELA, O. Poesia Reunida. São Paulo: 7 Letras/CosacNaify, 2006 [1969/1996].

[2] δεῖ δὲ τὴν τοιαύτην πραγματεία πᾶν μὲν ἀπεσκευάσθαι τὸ περιττόν ὲμπόδιον γὰπ τοῦτο πρὸς τὴν μάθησιν

[3] σαφανείας δ'ἂμα καὶ συντομίας πολλὴν πεποιῆσθαι πρόνοιαν τὰ γὰρ ἐπιθολοῖ τὴν διάνοιαν ἠμῶν.

[4] οὺ γὰρ πώποτε ἒξαρνος ἐγενόμην μαθών τι, ὲμαυτοῦ ποιούμενος τὸ μὰθνμα εῖναι ὠς εὔρημα. ὰλλ'ὲγκωμιάζω τὸν διδάξαντά με ώς σοφὸν ὂντα, ὰποφαίνων ἂ ἔμαθον παρ'αὐτου.

[5] Os poemas de Homero, Prefácio.

[6] [“Finalmente, aquele problema constante, a grafia dos nomes gregos”].


Introdução


Sinto-me compelido ao trabalho literário: (...) pelo meu
não reconhecimento da fronteira realidade-irrealidade;
(...) pelo meu amor platônico às matemáticas; (...) 
porque através do lirismo propendo à geometria.

Murilo Mendes

Sinopse

No prefácio do seu livro Euclid. The Creation of Mathematics [1], o matemático alemão Benno Artmann escreve:

Este livro é para todos os amantes da matemática. É uma tentativa de entender a natureza da matemática do ponto de vista da sua fonte antiga mais importante.

Mesmo que o material coberto por Euclides possa ser considerado elementar na sua maior parte, o modo como ele o apresenta estabeleceu o padrão por mais de dois mil anos. Conhecer os Elementos de Euclides pode ser da mesma importância para o matemático hoje que o conhecimento da arquitetura grega para um arquiteto.

É claro que nenhum arquiteto contemporâneo construirá um templo dórico, muito menos organizará um local de construção como os antigos o faziam. Mas, para o treino do julgamento estético de um arquiteto, um conhecimento da herança grega é indispensável. Concordo com Peter Hilton quando diz que a matemática genuína constitui uma das mais finas expressões do espírito humano, e posso acrescentar que aqui, como em tantos outros casos, aprendemos dos gregos aquela linguagem de expressão.

Enquanto apresenta a geometria e a aritmética, Euclides ensina-nos aspectos essenciais da matemática em um sentido muito mais geral. Exibe o fundamento axiomático de uma teoria matemática e o seu desenvolvimento consciente rumo à solução de um problema específico. Vemos como a abstração trabalha e impõe a apresentação estritamente dedutiva de uma teoria.

Aprendemos o que são definições criativas e como uma compreensão conceitual leva à classificação dos objetos relevantes. Euclides criou o famoso

algoritmo que leva o seu nome para a solução de problemas específicos na aritmética e mostrou-nos como dominar o infinito nas suas várias manifestações.

Um dos poderes maiores do pensamento científico é a habilidade de desvelar verdades que são visíveis somente “aos olhos da mente”, como diz Platão, e de desenvolver modos e meios de lidar com elas. É isso que Euclides faz no caso das magnitudes irracionais ou incomensuráveis. E, finalmente, nos Elementos encontramos tantas amostras de bela matemática que são facilmente acessíveis e que podem ser minuciosamente estudadas por qualquer um que possua um treino mínimo em matemática.

Vendo tais fenômenos gerais do pensamento matemático que são tão válidos hoje quanto o foram no tempo dos antigos gregos, não podemos deixar de concordar com o filósofo Immanuel Kant, que escreveu em 1783, na introdução à sua filosofia sob o título “Afinal, é a metafísica possível?”: “Não há absolutamente livro na metafísica como temos na matemática. Se quiserdes conhecer o que é a matemática, basta olhardes os Elementos de Euclides.”

Benno Artmann ofereceu-nos, na passagem que acabamos de enunciar, um voo panorâmico da famosa obra do geômetra grego. Mas, do alto, os montes pouco se destacam, fios de água parecem os rios, a vegetação é apenas uma cobertura verde. Há mister de viajar por terra.

A citação de Kant faz eco ao fato de, até o final do século XIX, ser Euclides sinônimo de geometria, daquela geometria de régua e compasso. Assim, a história dos Elementos confunde-se, em larga escala, com a história da matemática grega. Mas a história de um domínio tão relevante do pensamento humano dificilmente se desvincularia da história mesma do homem. Hajamos, pois, por bem começar a nossa história, a nossa expedição terrestre, pelo era uma vez na antiga Grécia.


Era uma vez


Estranho animal é este bicho homem (...)

José Saramago

Certamente, é um assunto admiravelmente vão, variado
e inconstante o homem. É difícil fundar nele julgamento
firme e uniforme.

Michel de Montaigne

Sustentam muitos pensadores ser o homem uma estranha criatura. De fato oscila, constantemente, entre o passado, que deseja conhecer, e o imperscrutável futuro, incapaz de aceitar que a vida de todos os dias retoma, invariavelmente, a cada dia, o seu dia.

A memória prende-o ao que foi; o desejo, ao que será.

Como antecipar o que ainda não é equivale a chorar antes do tempo, e como o que há de ser virá, claro, na madrugada, com os seus raios, deixemos de lado o porvir, que a si próprio se basta, pois os invisíveis dedos das coisas e dos atos idos, próximos e longínquos, tecem, no tear do Fado, o manto que nos vestirá para sempre.

Somos o que os séculos nos fizeram!

O que somos de razão e vontade, o que somos de pensamento e ação, o que somos de sensibilidade e frieza, de trabalho e lazer, de descrença e esperança, o que somos de bílis e coração é terem existido outros, é terem traçado rumos, e terem aberto estradas, é terem apontado caminhos!

Eis nossos predecessores!

Para entendermos a nós próprios é preciso entendê-los. E os predecessores dos predecessores; e assim por diante, continuando essa busca, pois é sem fundo o poço do passado da espécie humana, essa essência enigmática, cujo mistério “inclui o nosso próprio mistério e é o alfa e o ômega de todas as nossas questões, emprestando um imediatismo candente a tudo o que dizemos e um significado a todo o nosso esforço”[2].

Consultemos, pois, os velhos registros, leiamos as obras de antanho que chegaram até nós, procuremos em alfarrábios o que pareça haver de nós nos que vieram antes, e, assim, começaremos a compreender o que pensávamos saber: quem somos, o que nos é possível conhecer, que estrelas e que sóis poderemos acrescentar ao universo herdado.

Em nosso caso de povo ocidental e no que tange à ciência da nossa predileção, a busca conduz-nos ao era uma vez.

Era uma vez, acima de todas, em que “os atributos da juventude humana tornam-se os atributos de um povo, as características de uma civilização” e em que

um sopro de encantadora adolescência passou roçando pelo rosto de uma raça. Quando a Grécia nasceu, os deuses presentearam-na com o segredo da sua imorredoura juventude. A Grécia é a alma jovem. “Aquele que, em Delfos, contempla a densa multidão de jônios”, diz um dos hinos homéricos, “imagina que eles jamais haverão de envelhecer” [3].

Michelet comparou a atividade da alma helênica a um jogo festivo, em torno de que se reúnem e sorriem todas as nações do mundo. Mas, desse jogo de crianças, nas praias do arquipélago e à sombra das oliveiras da Jônia, nasceram a Arte, a Filosofia, a livre reflexão, “a curiosidade da investigação, a consciência da dignidade humana, todos esses estímulos que ainda são a nossa inspiração e orgulho”, e a Matemática.

Era uma vez a origem do pensamento ocidental. A Filosofia e a Matemática, no período mais pujante daquele distante passado, falam o grego clássico.


O grego clássico


A língua grega é um dos ramos mais importantes do grupo linguístico chamado indo-europeu. A sua origem remonta ao “indo-europeu primitivo”. O que possui em palavras e formas de flexão é herança, na sua maior parte, de um tempo que precede a sua existência separada.

Os traços característicos, no entanto, que dão ao grego a sua peculiaridade frente às outras línguas suas irmãs, surgiram, manifestadamente, só depois do desmembramento da primitiva comunidade de povos, e é provável que esse ajuste tenha tido lugar já em solo grego.

A ideia de um “grego primitivo” homogêneo, isto é, com uma verdadeira unidade, é problemática.

O que podemos dizer é que, no momento em que a encontramos nos documentos autênticos, a língua grega está dividida em certo número de dialetos falados, classificáveis comodamente em quatro grupos: o jônio, o árcade-cipriota, o eólio e os diferentes falares chamados comumente dórios.

E. Ragon ensina-nos que, à exceção do árcade-cipriota, cada um desses grupos desenvolveu uma língua literária, cuja tonalidade morfológica varia com a data dos autores e com o gênero literário adotado.

O primeiro daqueles dialetos, o jônio, falado na Ásia Menor, tem por marca evitar as contrações e foi empregado pelos prosadores Heródoto e Hipócrates. Mas, misturado a elementos eólios, serve ao ápice da perfeição, sendo o pano de fundo dos poemas homéricos que influenciaram a língua de todos os poetas da Grécia.

O pouco que resta do eólio é o que conhecemos das odes de Alceu e da grande Safo.

O dialeto dório, de sons graves e musicais, está gravado no bronze eterno dos poemas de Píndaro e de Teócrito.

Por fim, o grego clássico ou o dialeto ático, um ramo privilegiado do jônio. É o falado na áurea época de Atenas, os séculos V e IV a.C. Torna-se com Ésquilo, Sófocles e Eurípides a linguagem dos deuses e dos heróis; com Aristófanes é o idioma da sabedoria que zomba da sapiência; é história com Tucídides; defesa pública e exortação, com Isócrates, Ésquines e Demóstenes; memória e ensinamento com Xenofonte; e, acima de tudo, Verdade e Beleza, com Platão.

Para ter acesso a toda essa cultura grega, da qual a matemática é uma das importantes partes, o vestíbulo do conhecimento autêntico, há mister de aprender-lhe a língua. Como substituto dessa insubstituível necessidade, a tradução.


Princípios de fé desta tradução


Há, por certo, imensa gama de concepções a respeito do que deva ser o traduzir. No que tange à versão de uma obra científica, parece haver acordo em que a precisão não deva ser sacrificada no altar da sutileza. Parodiando Novalis, quanto mais precisa, mais verdadeira.

De um modo grosseiro, poderíamos classificar os tipos de tradução como traduções à francesa e traduções à alemã.

O ideal das primeiras encontra expressão na passagem: “Se há algum mérito em traduzir, só pode ser o de aperfeiçoar, se possível, o seu original, de embelezá-lo, de apropriar-se dele, dar-lhe um ar nacional e naturalizar, de certa maneira, essa planta estrangeira”.

A meta das segundas está refletida nas seguintes críticas de Schlegel e de Goethe àquelas do primeiro grupo. Schlegel: “(...) é como se eles desejassem que cada estrangeiro, no país deles, se comportasse e se vestisse segundo os seus costumes, o que os leva a nunca conhecerem realmente um estrangeiro”. Goethe: “O francês, assim como adapta à sua garganta as palavras estrangeiras, faz o mesmo com os sentimentos, os pensamentos e até os objetos; exige a qualquer preço, para cada fruto estrangeiro, um equivalente que tenha crescido no seu próprio território”.

Evidentemente, esse modo de agrupar nada tem a ver com a nacionalidade do tradutor, mas com a sua maneira de trabalhar. Freud, por exemplo, traduzia “à francesa”, pois, segundo Jones, na sua biografia do pai da psicanálise, este “em vez de transcrever laboriosamente, a partir da língua estrangeira, idiotismos e todo o resto, lia um trecho, fechava o livro e perguntava-se como um escritor alemão teria vestido os mesmos pensamentos”.

Chateaubriand, o célebre escritor francês, mantém, sem reservas, o ponto de vista contrário, na sua tradução de Milton:

Se eu quisesse ter feito apenas uma tradução elegante do Paraíso perdido, talvez se considere que tenho suficiente conhecimento da arte para que não me fosse impossível atingir a altura de uma tradução dessa natureza; mas o que empreendi foi uma tradução literal, em toda força do termo, uma tradução que uma criança e um poeta poderão acompanhar no texto, linha por linha, palavra por palavra, como um dicionário aberto sob os seus olhos.

Por entendermos que a tradução de um texto antigo, de uma tradição com pensamentos próprios e próprios modos de expressão é um ato de reverência e entrega, adotamos, como Chateaubriand, uma versão literal, “em toda a força do termo”, esperando acordar no leitor a curiosidade que o conduza a acompanhar a tradução contra o original, “linha por linha, palavra por palavra”. Sendo o grego uma língua sintética e o português, uma analítica, é fácil dar-se conta do grau de afastamento das suas sintaxes. Por isso, por permanecermos o mais possível ligado ao original, prevenimos poder o leitor estranhar algumas vezes o resultado alcançado.

Usamos como texto grego a edição de Heiberg-Stamatis, da Editora Teubner, de Leipzig, 1969-1977.


O texto grego e a Ecdótica


O que significa falar do texto grego dos Elementos de Euclides? Qual o sentido de se mencionar a edição de Heiberg-Stamatis?

Tendo essa obra sido escrita por volta do final do século IV a.C., é difícil que se possa imaginar ter chegado até nós o manuscrito do seu autor, o chamado manuscrito autógrafo. De fato, não possuímos tais manuscritos dos autores clássicos – gregos e latinos. O tempo, esse “deus atroz que os próprios filhos devora sempre”[4], é a correnteza que leva os dias, os homens, os saberes. Mas a obra de valor a tudo afronta e na placa da memória “grava seu ser / durando nela” [5]. Se não temos os originais, possuímos cópias. Infelizmente, o que nelas reluz é só imitação do ouro. De fato, “os deuses vendem quando dão” [6], pois quem diz cópia, diz erro. Para agravar a situação, relativamente aos Elementos, os manuscritos mais antigos sobreviventes distam séculos de Euclides.

Como o arqueólogo tenta, a partir de pequenas peças de evidência, reconstruir a vida e a cultura de povos antigos, o filólogo, voltado à Ecdótica, trata de, com apoio nos manuscritos, trazer à luz, por reconstituição, aquele original, o texto autógrafo, o arquétipo de que os que temos são cópias. O assim idealmente produzido, com todo o aparato da crítica textual ou Ecdótica (do verbo grego ἐκδίδωμι “publicar”), é referido como o texto crítico da obra em questão.

Como é produzido o texto crítico?

É preciso lembrar, primeiramente, que muitos autores clássicos chegaram até os dias de hoje em manuscritos em pergaminho ou em papel, que raramente são anteriores ao século IX, e frequentemente são até do século XVI. Alguns trabalhos foram preservados em um único manuscrito, outros, em centenas. Muitos manuscritos clássicos estão agora em bibliotecas europeias ou em coleções de museus, alguns também em monastérios, particularmente da Grécia, e alguns pertencendo a particulares; há-os ainda em lugares como Istambul ou Jerusalém, ou em bibliotecas americanas. Entre as maiores coleções, é lídimo mencionar aquelas da Biblioteca do Vaticano, de especial importância no nosso caso – em virtude do manuscrito Gr. 190 –, da Ambrosiana em Milão, da Marciana em Veneza, da Österreichische Nationalbibliothek em Viena, da Bibliothèque Nationale em Paris e do British Museum em Londres.

De volta, então, à edição crítica de um texto da Antiguidade. Para levá-la a termo, há duas etapas a cumprir:

(i) A da fixação do texto, isto é, o seu preparo segundo as normas da crítica textual;

(ii) A da apresentação do texto, a sua organização técnica, contemplando, em geral, os seguintes elementos elucidativos: história dos manuscritos usados, informações sobre os critérios adotados, aparato crítico (certamente o elemento mais importante) etc., tendo em vista a sua publicação.

Quanto a autores gregos e romanos, existem editoras que se notabilizam pela publicação das suas edições críticas, como a Editora Teubner (Teubner Verlag) de Leipzig, com a sua Bibliotheca Scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana, por certo a mais importante e abrangente, a Editora da Universidade de Oxford, com a sua Scriptorum Classicorum Oxoniensis, a Société D’Édition “Les Belles Lettres”, Paris, e a sua Collection des Universités de France, sob os auspícios da Association Guillaume Budé e a Harvard University Press com a Loeb Classical Library.

No que segue, visamos a dar uma pálida ideia da complexidade envolvida nos dois passos acima mencionados.


A fixação do texto


Observada a doutrina de Karl Lachmann, o fundador da moderna crítica textual, a fixação do texto passa por uma série de operações agrupadas em três fases, a saber, recensio (do verbo latino recensere: “fazer uma revisão”), estemática (de stemma codicum: “a árvore genealógica dos códices” – essa fase é referida por Lachmann como originem detegere: “descobrir a origem, revelar a ascendência”) e emendatio (de emendere: “emendar, corrigir”).

A recensio consiste na pesquisa e coleta de todo o material existente de uma obra. Isso constitui a sua tradição, que pode ser direta – formada pelos seus manuscritos – ou indireta, compreendendo as fontes, as traduções, as citações, os comentários, as glosas e as paráfrases, as alusões e as imitações, vale dizer, tudo o que circula à volta da obra, que é dela sem ser ela própria.

Reconhecidos os testemunhos obtidos, passa-se à collatio codicum, a “comparação dos manuscritos”. Faz-se o cotejo de tudo o que se possua da tradição direta contra um manuscrito mais completo ou que pareça bom, denominado o exemplar de colação. Dessa operação resultará o expurgo dos testemunhos inúteis, a eliminatio codicum descriptorum, rejeição das cópias coincidentes, de acordo com a máxima filológica frustra fit per plura quod fieri potest per pauciora (“é feito inutilmente por meio de muitos o que pode ser feito por meio de poucos”). Existindo o modelo, rejeita-se a sua cópia. Com essa eliminação termina a primeira fase.

A análise acurada dos manuscritos – principalmente o confronto dos chamados lugares ou pontos críticos e o exame sistemático dos chamados erros comuns – possibilita estabelecer tanto a dependência entre os manuscritos quanto a afinidade ou parentesco entre eles. Aqui a hipótese tomada é “pouco, simples e razoável”. Se o mesmo erro ocorrer em dois manuscritos, é razoável considerar não terem surgido independentemente, a menos que esteja envolvido um engano muito simples e natural. Depois, supõe-se que o copista não corrija o trabalho do seu predecessor. Uma consequência disso, em conjunção com a propensão dos seres humanos de cometerem erros – “os deuses vendem quando dão” [7] – é que os textos se tornem mais e mais corrompidos com as sucessivas cópias. O que resulta dessas hipóteses de trabalho é o estabelecimento da árvore genealógica dos códices, stemma codicum, depois de arrolados os elementos da tradição em famílias, cada uma formada segundo os pontos críticos comuns, e de construídos, caso necessário, os cabíveis subarquétipos (os “pais das famílias”) e o arquétipo ou codex interpositus (“o pai de todos”), aquele que se interpõe entre o original e as cópias da tradição, e que tomará o papel do original perdido “em negro vaso / de água do esquecimento”. O sistema assinala a dependência e também a contaminação que pode existir entre exemplares de famílias distintas. Assim a estemática é feita.

A reconstituição de uma obra clássica finda com a emendatio, a parada mais importante nessa verdadeira via crucis, pois, de novo, vale o postulado da tradição manuscrita: “quem diz cópia, diz erro”. O exame de qualquer cópia (manuscrito apógrafo) revela o seu caráter contingente: passagens mal transcritas, obscuras, com interpolações, discrepâncias gramaticais e estilísticas com o que se conhece do autor, e muitos outros problemas. Grande desafio ao filólogo-editor no seu afã de restabelecer, ou ao menos aproximar-se o mais possível do que fora um dia a obra original.

Diante do erro, o editor procede segundo as condições da tradição manuscrita, empregando a bateria do seu conhecimento geral, daquele da obra e da época em que floresceu o seu autor e também da sua intuição divinatória, e isso é, a mais das vezes, um trabalho de gigante. Prezemos, pois, e muito, os filólogos-editores dos textos da Antiguidade.

Se a correção dos erros for possibilitada pelos próprios manuscritos e pelo que os demais testemunhos coletados oferecem, tem-se a denominada emendatio ope codicum, “correção com a ajuda dos manuscritos”. Caso tal auxílio não seja suficiente à consecução da tarefa, há o editor de recorrer à sua intuição e aos seus saberes, e ter-se-á a dita emendatio ope ingenii ou emendatio ope conjecturae ou ainda divinatio ou crítica conjectural.

Está, pois, dada conta da (i) fixação do texto.


A apresentação do texto


Na (ii) apresentação do texto reconstituído, o arquétipo do qual todos os manuscritos são cópias, vale ressaltar o aparato crítico, isto é, as variantes encontradas, dispostas no pé de cada página, com a indicação dos manuscritos em que figuram. Com isso, o editor oferece a oportunidade de o leitor fazer a sua própria escolha da expressão que deva estar em determinado ponto do texto, com um possível significado novo para a passagem que a contenha.

A fim de que se avalie a importância da edição crítica com o seu respectivo aparato para quem se interessa pela Antiguidade e tencione estudar as próprias obras em grego (ou em latim), transcrevemos um trecho do início do livro Textual Criticism and Editorial Technique, de M. L.West [8], helenista e editor de clássicos:

Edward Fraenkel, na sua introdução aos Ausgewählte Kleine Schriften [9], de [Friedrich] Leo conta a seguinte experiência traumática que teve quando jovem estudante:

“Eu tinha, por aquele tempo, lido a maior parte de Aristófanes e comecei a falar com demasiado entusiasmo sobre isso a Leo e a crescer em eloquência sobre a magia dessa poesia, a beleza das odes corais, e assim por diante. Leo deixou-me falar, talvez por dez minutos, sem mostrar qualquer sinal de desaprovação ou impaciência. Quando terminei, perguntou: ‘Em que edição você leu Aristófanes?’ Pensei: ele não estava ouvindo? O que a sua questão tinha a ver com o que eu lhe dissera? Depois de uma agitada hesitação de momento, respondi: ‘A Teubner.’ Leo: ‘Oh, você leu Aristófanes sem um aparato crítico.’ Disse-o bem calmamente, sem qualquer aspereza, sem nem um traço de sarcasmo, apenas sinceramente surpreso que fosse possível a um jovem tolerantemente inteligente fazer tal coisa. Olhei para o gramado próximo e tive uma única, irresistível sensação: νῦν μοι χάνοι εὐρεῖα χθῶν (‘agora que a terra se entreabra para mim’, Ilíada 4,182). Posteriormente, pareceu-me que naquele momento entendi o significado real da sabedoria.”

(...)

Segue que qualquer um que queira fazer sério uso de textos antigos deve prestar atenção às incertezas da transmissão; mesmo a beleza das odes corais que ele admira tanto pode confirmar-se haver nelas uma mistura de conjecturas editoriais, e se ele não estiver interessado na autenticidade e confiança de pormenores, poderá ser um amante verdadeiro da beleza, porém não um sério estudante da Antiguidade.


A edição crítica dos Elementos


Théon de Alexandria, pai de Hypatia – a primeira mulher a ter o nome preservado pela história da matemática –, foi um eminente e influente estudioso do século IV. No seu Comentário ao tratado astronômico de Cláudio Ptolomeu de Alexandria, conhecido como Almageste (do árabe almajistí, adaptação de al, o artigo definido árabe, e do adjetivo superlativo grego μεγίστη (entenda-se μεγίστη σύνταξις), isto é, “a maior composição”, “o maior tratado sistemático”), escreve a certa altura: “Mas que setores em círculos iguais estão entre si como os ângulos sobre que se apoiam foi provado por mim na minha edição dos Elementos, no final do sexto livro”.

Sabemos então, da própria pena do comentarista, ter ele editado a obra de Euclides, com a adicional informação de ser da sua lavra a segunda parte da “Proposição XXXIII” do Livro VI, como encontrada em quase todos os manuscritos remanescentes. Daí provirem tais manuscritos daquela edição de Théon. Aliás, a maior parte deles traz no seu título ou a frase ἐκ τῆς Θέωνος ἐκδόσεως (“da edição de Théon”) ou ἀπὸ συνουσιῶν τοῦ Θέωνος (“das aulas de Théon” ou “dos ensinamentos de Théon”).

Desse modo, qualquer edição dos Elementos feita anteriormente a 1814 era baseada numa família de manuscritos cujo arquétipo era o texto dado à luz por Théon.

Para conta do que então ocorreu, fazendo toda a diferença, mudando o rumo da história das edições dos Elementos, citamos, por extenso, um trecho do prefácio de François Peyrard ao seu trabalho Les œuvres D’Euclide, traduites littéralement, d’après un manuscript grec très-ancien, resté inconu jusqu’a nos jours [10], Paris, 1819:

No prefácio da minha tradução dos Livros I, II, III, IV, V, VI, XI e XII dos Elementos de Euclides, que apareceu em 1804, e que eu fizera segundo a edição de Oxford, propus-me o compromisso de publicar as traduções completas de Euclides, de Arquimedes e de Apolônio. A minha tradução das Obras de Arquimedes apareceu em 1808. Antes de dar à impressão a minha tradução das Obras de Euclides, quis consultar os manuscritos da Biblioteca do Rei. Esses manuscritos, vinte e três em número, foram-me confiados, e não tardei a me aperceber que esses manuscritos preenchiam lacunas, restabeleciam passagens alteradas que se encontram na edição da Basileia e naquela de Oxford, cujo texto grego é apenas uma cópia frequentemente infiel, como provei na sequência do prefácio do terceiro volume do meu Euclides em três línguas. A maior parte desses manuscritos rejeita uma multidão de superficialidades que mãos ignaras tinham introduzido no texto, e que se encontra em grande parte nos textos das edições da Basileia e de Oxford.

Todos esses manuscritos, exceto o n.190, são, com pequena diferença, conformes uns aos outros, salvo os erros dos copistas e as superficialidades de que acabo de falar.

O manuscrito 190 traz todos os caracteres do nono século, ou pelo menos do começo do décimo, enquanto que os outros são-lhe posteriores de quatro, de cinco, e mesmo de seis séculos.

Esse manuscrito, cujos caracteres são da maior beleza, e sem ligaduras, restabelece lacunas e passagens alteradas, o que teria sido impossível de restabelecer com a ajuda dos outros manuscritos. Encontra-se nele uma multidão de lições que merecem, quase sem exceção, a preferência às lições dos outros manuscritos.

O manuscrito 190, que permanecera desconhecido até os nossos dias, pertencia à Biblioteca do Vaticano. Foi enviado de Roma a Paris por Monge e Bertholet, quando o exército francês tornou-se senhor daquela cidade.

Na segunda invasão dos exércitos coligados, a França viu-se obrigada a restituir todos os objetos de arte que haviam sido recolhidos aos povos vencidos. Por solicitação do Governo Francês, o Santo Padre houve por bem ter a bondade de deixar-me às mãos esse precioso manuscrito até a completa publicação do meu Euclides.

Tendo, então, à minha disposição esse manuscrito, como todos aqueles da Biblioteca do Rei, determinei-me a dar uma edição grega, latina e francesa das Obras de Euclides. O primeiro volume apareceu em 1814, o segundo em 1816, e o terceiro em 1818.

O manuscrito Gr. 190 da Biblioteca do Vaticano, denominado P por Heiberg, em homenagem ao padre Peyrard, o seu descobridor, não pertence, pois, à família theonina, e serviu como exemplar de colação para a edição crítica do filólogo dinamarquês, aquela que permanece aceita até hoje. A história das edições críticas dos Elementos assinala a seguinte sequência:

− A editio princips, “primeira edição”, Basileia, 1533, a cargo de Simon Grynaeus, baseada em dois manuscritos – Venetus Marcianus 301 e Paris Gr. 2343 – do século XVI, que estão entre os piores existentes. Essa edição servia de fundamento para;

− A de Oxford, Euclidis quae supersunt omnia. Ex recensione Davidis Gregorii M. D. Astronomiae Professoris Saviliani et R. S. S. Oxoniae, et Theatro Sheldiano. An. Dom. MDCCIII. Para levar a cabo o seu trabalho, Gregory consultou somente os manuscritos legados à Universidade por Sir Henry Savile, nos lugares em que o texto da Basileia diferia da excelente tradução latina de Commandinus (1572). Essa célebre edição das obras de Euclides é a única completa antes da de Heiberg e Menge;

− A de Peyrard, na trilíngue acima citada, na qual usou P somente para corrigir a da Basileia;

− A de E. F. August (1826-9), que segue P mais de perto, tendo também usado o manuscrito Vienense Gr. 103.

De Morgan recomenda vivamente o alcançado por August: “Ao estudioso que queira uma edição dos Elementos, devemos decididamente recomendar esta, por unir tudo o que foi feito para o texto do maior trabalho de Euclides”.

Tendo assim alcançado a sua hora fugaz de celebridade, esta edição acaba por cumprir o vaticínio do célebre historiador francês da matemática, Paul Tannery, em uma carta a Heiberg: “todos os trabalhos de erudição são em grande parte destinados a perecer para serem substituídos por outros”. Pois, coube precisamente a este sancionar aquela predição;

− A edição de Heiberg, baseada em P e nos melhores manuscritos theoninos, e considerando também outras fontes como Herão e Proclus, tornou-se o novo e definitivo texto grego dos Elementos;

− Por fim, a edição elaborada por E. S. Stamatis não lança no limbo das coisas ultrapassadas aquela do sábio dinamarquês, um trabalho de erudição que insiste em não perecer. Para dar fé do que dizemos, traduzimos do latim boa parte da adição ao prefácio (additamentum praefationis) de Heiberg, escrito por Stamatis ao texto crítico por ele dado a público.

Nenhum dentre os homens versados em geometria antiga existe que não julgue ser necessária agora uma nova edição dos Elementos, de Euclides. De fato, os exemplares da notável edição Heiberguiana há muito foram vendidos, além disso os estudos referentes aos Elementos em nossos dias desenvolveram-se grandemente. Por esse motivo, tendo sido convidado por um estimadíssimo livreiro, por exortação do Instituto de Ciência da Antiguidade Greco-Romana, que foi fundado por decisão da Academia Alemã de Ciências de Berlim, para que eu cuidasse de nova edição dos Elementos de Euclides acolhi essa ocupação com o coração gratíssimo. Realmente, sei que muitos admiradores da ciência matemática, que sabem grego, desejam conhecer o texto euclidiano.

Agradou-me muito o plano do estimadíssimo livreiro que me persuadiu a que eu omitisse a tradução latina que Heiberg preparara para a sua edição pelo que a nova edição saísse à luz mais curta. De fato, é evidente os versados na língua grega não terem muita necessidade da tradução latina. Pois que assim seja, o plano da nova edição foi organizado assim como é indicado abaixo [11]:

Para o texto do primeiro volume, considerei as coisas que deviam ser antecipadas, que foram ensinadas sobre os Elementos e sobre a vida de Euclides e sobre os princípios e os primórdios da geometria (Textui primo voluminis praemittenda, quae de Elementis et de vita Euclidis et de principiis primordiisque geometriae tradita sunt, existimavi).

[Realmente, no HOC VOLVMINE CONTINENTVR, lê-se o seguinte:

Testimonia:

De Euclides elementorum et vitae memoria

De principiorum geometriae memoria]

Acrescentei imediatamente três índices (annexui continuo tres indices).

Em terceiro lugar, ajuntei uma sinopse, em que as notabilíssimas edições dos Elementos de Euclides são recordadas (tertio loco conspectum, in quo praestantissimae Euclidis Elementorum editiones, adiunxi).

(De fato, Stamatis adicionou o seguinte:

CONSPECTVS EDITIONVM

Recensio antiquior quam editio Theonis Alexandrini

Theon Alexandrinus Alexandriae circa 370 p.Chr.

Simon Grynaeus Basileae 1530 (editio 2: 1533 apud Ioan.

Hervagium (“Hervagiana”), ed.3: 1537,

ed.4: 1539, ed.5: 1546, ed.6: 1558

Angelus Caianus Romae 1545 (sine demonstr.)

I.Camerarius Lipsiae 1549

I. Scheybl Basileae 1550 (1-6)

S.T. Gracilis Lutetiae 1558, 1573, 1598

C. Dasypodius Argentorati 1564

I. Sthen Vitebergae 1564

M. Steinmetz Lipsiae 1577 (cum demonstr.)

Dav. Gregorius Oxonii 1703

Fr. Peyrard Parisii 1814-18

I.G. Camerer et C.Fr. Hauber Berolini 1824-25 (1-6)

G.C. Neide Halis Saxonum 1825 (1-6, 11,12)

E.F. August Berolini 1826-29

I.L. Heiberg Lipsiae 1883-88

E.S. Stamatis Athenis 1952-57.

Stamatis indica no pé da página as obras consultadas para a confecção da lista acima. Revive com ela o gosto antigo pelas listas ou catálogo, como o “Catálogo dos navios”, no Segundo Canto da Ilíada, ou o “Catálogo dos geômetras”, do desaparecido livro de História da geometria, de Eudemo, discípulo de Aristóteles, mas preservado por Proclus no seu Comentário ao livro I dos elementos de Euclides.

Chamamos ainda a atenção para o fato de que, ao tecer anteriormente considerações concernentes às edições dos Elementos, consideramos apenas, dentre “as notabilíssimas”, as principais.)

Decidi abordar o que, para o texto, diz respeito aos vestígios da edição de Heiberg. Com efeito, é certo entre todos os homens instruídos ser muito bom o serviço prestado por Heiberg aos Elementos de Euclides. Nem, de fato, depois da sua morte, códices novos, além do que ele examinara, foram comparados nem a nossa colheita de papiros forneceu novas lições. Ora, justamente, terminando a minha edição dos Elementos de Euclides, que foi impressa em Atenas, nos anos 1952-1957, eu próprio reconheci a perfeição e a exatidão da edição Heiberguiana [12].

Fechemos logo, no entanto, as portas do templo em que acabamos de acender as velas no altar da adoração, para que o vento da discordância não as apague todas. Há, no entanto, uma voz que clama na ágora e seria prudente ouvi-la.

O historiador da matemática Wilbur R. Knorr, prematuramente falecido, publicou na revista Centaurus, 38 (1996) um longo trabalho – 69 páginas – com o título “The Wrong Text of Euclid: on Heiberg’s Text and its Alternatives” [13]. Eis o seu resumo:

Em dois artigos publicados em 1881 e 1884, dois jovens acadêmicos, Martin Klamroth e Johan L. Heiberg, engajaram-se em um breve debate sobre as escolhas textuais que deveriam governar a publicação de uma nova edição crítica dos Elementos de Euclides. Esse curto debate parece ter assentado o problema a favor de Heiberg sobre o que deveria ser tomado como o texto definitivo dos Elementos de Euclides. Mas a questão deve ser considerada de novo porque há boas razões para a reivindicação de que Klamroth estava certo, e Heiberg, errado. Se assim for, temos consultado e continuamos a consultar o texto errado para interpretar a tradição euclidiana. A fim de dar substância a essa afirmação, a questão textual debatida por Klamroth e Heiberg é ensaiada de novo, e as razões principais trazidas por Heiberg contra a posição de Klamroth são reconstruídas. Espécimes de três amplas áreas de evidência – estrutural, linguística e técnica – serão considerados. Eles revelam como a tradição medieval do texto advogado por Klamroth exibe superioridade em relação à tradição grega promovida por Heiberg. Uma tal reconstituição dos textos tem o potencial de mudar significantemente nossa compreensão da matemática antiga.

Se Knorr tem ou não razão é difícil de decidir. O peso da tradição é esmagador e o tempo passado entre aquele debate mencionado e hoje ajuda a sedimentar a opinião favorável à escolha de Heiberg.

De um modo ou de outro, a existência de divergência socorre-nos quando nos preparamos para responder às perguntas iniciais: “O que significa falar do texto grego dos Elementos?” e “Qual o sentido de mencionar-se a edição de Heiberg–Stamatis?”; e, com isso, completar o círculo das considerações. A edição de Heiberg–Stamatis do texto grego dos Elementos é o que Heiberg diz, com a confirmação de Stamatis, ser a coisa mais próxima do texto original de Euclides.

[Continua]


Notas:

[1] [Euclides. A criação da matemática].

[2] MANN, T. “José e seus irmãos”. As histórias de Jacó. O jovem José. v.1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1983.

[3] RODO, J. E. Ariel. Campinas: Editora da Unicamp, 1991.

[4] PESSOA, F. Obra poética. Volume único. Rio de Janeiro: Companhia Nova Aguilar, 1965.

[5] Idem, ibidem.

[6] Idem, ibidem.

[7] PESSOA, F., ibidem.

[8] Crítica textual e técnica editorial. Stuttgart: B. G. Teubner, 1973.

[9] [Pequenos escritos escolhidos].

[10] [As obras de Euclides, traduzidas literalmente, com base em um manuscrito grego antiquíssimo, desconhecido até nossos dias].

[11] Nemo ex viris antiquæ geometriae peritis est quin putet nova editione Euclidis Elementorum in praesenti opus esse. Exemplaria enim praeclarae editionis Heibergianae iamdudum divendita sunt, studia autem ad Elementa pertinentia nostra aetate admodum increverunt. Qua de re cum a bibliopola honestissimo, hortatu Instituti scientiae antiquitatis Graecoromanae, quod auctoritate Academiae Scientiarum Germanicae Berlinensis constitutum est, invitatus essem, ut novam Euclidis Elementorum editionem curarem, gratissimo animo hoc negotium suscepi. Nam multos studiosos scientiae mathematicae, qui Graece sciunt, Euclidianum textum desiderare cognovi.

Valde autem mihi consilium bibliopolae honestissimi placuit, qui mihi suasit, ut translationem Latinam qua Heiberg editionem suam instruxerat omitterem, quo nova editio brevior in lucem prodiret. Patet enim linguae Graecae peritos Latina translatione non nimis egere. Quae cum ita sint, ratio novae editionis, ita ut infra indicatur, ordenata est.

[12] Quod ad textum attinet Heibergianae editionis vestigia ingredi statui. Nam inter omnes viros doctos Heiberg optime de Euclidis Elementis meritum esse constat. Neque enim post obitum eius codices novi, praeter quos ille inspexerat, collati sunt, neque seges papyrorum nobis novas lectiones praebuit. Ipse autem editionis Heibergianae perfectionem absolutionemque perspexi, cum meam Euclidis Elementorum editionem, quae annis 1952-1957 Athenis impressa est, absolverem.

[13] [O texto errado de Euclides: sobre o texto de Heiberg e suas alternativas].

[Continua em breve]

***

Leia mais em Elementos de Euclides

Leia mais em Sobre as Geometrias Não-Euclidianas e Não-Arquimédicas



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O Currículo da Matemática Medieval

Detalhe da Aritmética e da Geometria em
As sete virtudes e as sete artes liberais,
Francesco Stefano Pesellino, 1450


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Tempo de leitura: 52 minutos

Apresentamos os capítulos 7 e 8 do livro As sete artes liberais: um estudo sobre a cultura medieval, Paul Abelson. Editora Kírion, 2019.

CAPÍTULO VII

Aritmética

A

CARÁTER GERAL DO QUADRIVIUM

Se é inquestionável que o trivium — gramática, retórica e lógica — ocupava a maior parte do tempo dedicado ao estudo das sete artes liberais, a tradicional opinião de que “a verdadeira educação secular da idade das trevas foi o trivium”, sendo as disciplinas do quadrivium, ou matemáticas, raramente estudadas, está longe de ser historicamente correta [1]. Tal aԂrmação não se poderia fazer nem mesmo com respeito à era das universidades, quando a lógica e a filosofia foram sabidamente os estudos essenciais. O equívoco, entretanto, é bastante compreensível; as reais dimensões do conhecimento matemático anterior ao século XII eram tão reduzidas, que até pouco tempo atrás foram praticamente desconsideradas. Historiadores das ciências matemáticas consideraram esse período “estéril”. Chegou-se a afirmar que a mente medieval sequer tivesse aptidão para o estudo da matemática [2].

Mas a ausência de trabalho criativo durante uma boa parte da nossa época não implica necessariamente a falta de instrução na disciplina. Muito pelo contrário, no caso.

Tomando a questão de todos os pontos de vista, parece que evidências permitem uma única conclusão: as disciplinas do quadrivium foram amplamente estudadas no curso de toda a Idade Média. Em primeiro lugar, as experiências pessoais que ilustram o estudo das sete artes liberais incluem, invariavelmente, tanto as disciplinas do trivium como as do quadrivium [3]. O exame dos fatos relativos à posição da Igreja revela que sínodo após sínodo, desde os dias de Carlos Magno, fizeram do cômputo eclesiástico e da música obrigações para o clero. É certo que na Inglaterra, para citar um único exemplo, entre o século VIII e a conquista normanda, não se ordenou um só sacerdote incapaz de calcular a data da Páscoa e depois explicá-lo ao modo de Beda, o Venerável [4]. É ponto pacífico que a Igreja tivesse interesse em ao menos três disciplinas do quadrivium: aritmética, astronomia e música. Daí que não devamos esperar hostilidades à instrução do quadrivium nas escolas medievais.

Ademais, examinando o estado geral das escolas européias entre o período carolíngio e o renascimento intelectual do século XIII, facilmente identificamos um interesse contínuo pela matemática em todas as escolas monásticas e catedrais. Isso vale para as escolas de Fulda, Heresfeld, Reichenau, São Galo, Augsburg, Mainz, Hildesheim, Espira, Colônia, Stavelot, Münster, Verdun, Corvey, Ratisbona, Saint-Emmeran, Passau, Ranshofen, Klosterburg, Reichersburg, Wessobrunn, Metten, Benediktbeuern, Polling, Niederaltaich, Kremsmünster, Saint-Florian, Admont e muitos outros centros educacionais do Sacro Império Romano-Germânico. Interesse ainda maior nota-se em diversas instituições na França e nos Países Baixos, tais como as de Reims, Liège, Lobach, entre outras [5]. Constatamos também que os grandes professores do período foram quase todos conhecidos por aulas de matemática e suas contribuições a essa ciência. A título de ilustração, podemos citar os nomes de Rábano Mauro, Érico e Remígio de Auxerre, os três Notkers, Radberto, Ermenrico, Heilpric, Tatto, Hermano Contracto, Guilherme de Hirsau, Heraldo de Landsberg, Odão de Cluny, Gerberto (mais tarde Papa Silvestre II), Enguelberto de Liège, Bispo Gilberto de Lisieux, Odão de Tournai, Abbo de Fleury, Hucbald, Otlo, Conrado de Nuremberg (irmão do famoso Anselmo), Sigfrido e Reginbald. Estudos demonstram que todos eles tinham aptidão matemática, lecionavam matemática e, na maioria dos casos, produziram obras de mérito nas áreas do quadrivium [6]. A falta de valor cientíԂco na maior parte desses tratados explica o desinteresse em publicar a grande quantidade de manuscritos que se encontram pelas bibliotecas da Europa [7]. Mesmo incompleta, porém, a relação dos livros-texto do quadrivium sugere a contento que essas disciplinas foram bastante estudadas.

Muito se fala, de modo geral, sobre o fato de o conhecimento matemático ter sido próximo do insignificante até o século XII [8]. Apesar disso, o exame mais ligeiro dos livros-texto realmente utilizados nessa época derrubaria a afirmação de que somente as mais elementares proposições da geometria, o método para o calcular a Páscoa e o uso do ábaco fossem o objeto da atenção dos matemáticos. É preciso precaver-se contra aquilatar as realizações da Idade Média desde o ponto de vista do nosso tempo, em que os lugares-comuns da matemática são projeções, cálculo infinitesimal e teorias da composição.

Nos capítulos seguintes, dedicados às disciplinas do quadrivium, tentaremos defender as seguintes teses:

1. Consideradas as dimensões do conhecimento matemático à disposição na Europa no período em questão, as proporções do conhecimento transmitido ao estudante do quadrivium eram relativamente grandes. Isso não quer dizer que os professores medievais soubessem muito de matemática, mas sim que as escolas cumpriam a sua missão, transmitindo às futuras gerações todo o conhecimento matemático que possuíam, e que o aluno era obrigado a apropriar-se desse conhecimento antes de passar ao estudo avançado da filosofia.

2. O padrão da educação matemática nas grandes escolas na Idade Média era muito alto. Embora não haja evidências de trabalho criativo nos primeiros séculos, os últimos indicam progresso na assimilação de novos materiais [9].

3. A quantidade e o caráter da instrução matemática na Idade Média andaram pari passu com o avanço do conhecimento matemático nas várias disciplinas.

4. Mesmo depois do século XIII, quando, já na universidade, o quadrivium fundiu-se ao programa geral da filosofia, os estudos matemáticos passavam longe do descaso. Mesmo sob o domínio dos escolásticos, a quantidade de instrução matemática acompanhou o passo do gradual avanço das ciências [10].

B

A EXTENSÃO DO CONHECIMENTO

O conhecimento aritmético da Idade Média pode ser classificado em três períodos. No primeiro, que termina com o século X, a Europa sabia pouquíssimo do tipo de aritmética tão cultivado pelos gregos na dita era alexandrina. Sabia-se, basicamente, o que consta nos manuais do neopitagórico Nicômaco, composto no final do século [11]. Nesse período, o estudo da aritmética limitava-se ao cômputo eclesiástico, no âmbito da prática, e às propriedades numéricas, no âmbito teórico. O ábaco romano era o rude instrumento das operações numéricas, e utilizavam-se os algarismos romanos [12].

No segundo período, entre o final do século X e o final do século XII, nota-se um avanço considerável. O emprego do ábaco modificado por Gerberto difundiu-se; a divisão complementar e o cálculo por colunas, métodos que em muito superavam a dactilonomia da era anterior, eram comuns [13]. Progresso ainda maior há no terceiro período, também chamado de época algorística, durante os anos finais da Idade Média. Os algarismos arábicos e o zero entraram em uso quando boa parte da antiga matemática grega foi recobrada por meio de traduções do árabe [14]. Ainda que cada período tenha o seu método próprio, sua porção de conhecimento e a sua amplitude em termos de instrução matemática, não é de supor que se possam traçar quaisquer linhas definitivas entre eles. Veremos a seguir que essas linhas sobrepõem-se umas às outras e que as obras didáticas características de uma época anterior continuaram a ser usadas em certa medida [15].

PRIMEIRO PERÍODO

CARÁTER GERAL

A aritmética, nesta fase, é essencialmente a arte do cálculo. Dedica-se quase que exclusivamente ao cômputo da Páscoa — tanto assim que as palavras “computus” e “arithmetica” tornaram-se sinônimos —, mas não se pode sustentar que lhe escapasse por completo o tratamento das propriedades e das relações numéricas. Com efeito, os elementos místicos e simbólicos são muito presentes na aritmética teórica; e isso graças a Nicômaco, cujo livro foi a fonte de Boécio e dos cristãos — Isidoro de Sevilha, Alcuíno, Rábano Mauro, entre outros — ter-se enveredado por esse tipo de especulação. O método era rude; raramente empregava-se o ábaco, e a pesada notação romana tornava quase impossível o cálculo com números grandes. Na verdade, não há registro autêntico de operações realizadas para além dos três dígitos [16]. As frações romanas, sempre que empregadas, necessitavam do auxílio de tábuas especiais, baseadas no “sistema do meio”. Se os livros-texto de uso corrente provam alguma coisa, o conjunto de conhecimentos matemáticos possuído pela Europa Ocidental durante esse período era mesmo pequeno — ao ponto de dar às redescobertas e traduções posteriores, nomeadamente da escola alexandrina de matemática, a aparência de um acréscimo inteiramente novo [17].

OBRAS DIDÁTICAS

Por estranho que pareça, os livros-texto do período não tratam de métodos de operação. Os poucos casos em que isso acontece, e incidentalmente, sugerem intenso trabalho mental e de dactilonômico [18]. Os textos seguintes figuram entre os mais usados:

1. O capítulo sobre aritmética em De nuptiis Philologiae et Mercurii, de Marciano Capela, é nada mais que um resumo sumaríssimo da aritmética de Nicômaco. Além da introdução alegórica, o texto traz material sobre as propriedades e o significado místico dos números em consonância às noções pitagóricas. O texto deve a sua popularidade ao fato de constar como capítulo num bom livro-texto sobre sete artes liberais [19].

2. De intitutione arithmetica libri duo, de Boécio, foi a fonte de conhecimento aritmético da Idade Média por cerca de dois séculos, mesmo após a introdução do sistema hindu de notação e cálculo. Resumida, comentada e editada inúmeras vezes, chegou a passar pelo prelo até o século XVI [20]. Quais são, afinal, os conteúdos dessa obra notável?

O exame das suas 80 colunas e 100 diagramas surpreende pela ausência de uma única regra de operação; tudo o que se vê é uma interminável classificação das propriedades numéricas — triangulares, perfeitos, excessivos, defectivos etc. Verifica-se uma variedade de números pares e ímpares, bem como o tratamento de proporções e progressões. O conteúdo da obra parece indicar que o texto de Boécio não se destinava ao uso dos alunos, mas à orientação do professor. Ademais, constitui-se numa introdução adequada à interpretação mística dos números bíblicos, da qual não raro deduziam-se lições de moral [21].

3. O breve De arithmetica de Cassiodoro é, na melhor das hipóteses, um condensado da obra de Boécio. Nada de novo é apresentado. Quatro diagramas classificam as propriedades numéricas, e cada tipo tem a sua definição e ilustração. A obra nada informa a respeito de métodos práticos [22].

O breve capítulo de Isidoro de Sevilha segue as mesmas linhas que o de Cassiodoro. Trata-se de uma classificação quádrupla dos números, baseada nas suas propriedades e relações. O autor inclui alguns absurdos a respeito da nomenclatura latina e certos arroubos sobre a importância dos números [23]. Também nesta obra, buscamos em vão por uma única sentença acerca dos métodos e das regras das operações.

5. De temporum ratione, do Venerável Beda, é o primeiro texto do período a tocar o aspecto prático do cálculo — a obra trata do cômputo eclesiástico. Não surpreende, portanto, que ele tenha servido de modelo para os séculos seguintes [24].

6. O Liber de ratione computi, do mesmo autor, é de caráter similar, porém de forma mais condensada [25].

7. Também De cursu et saltu lunae ac bissexto, de Alcuíno, é uma obra sobre o cômputo eclesiástico. O seu conteúdo, no entanto, é mais astronômico do que aritmético [26].

8. O Liber de computo, de Rábano Mauro, é talvez o mais completo e mais característico livro-texto do período em questão. Os 96 capítulos abordam em detalhe, mas concisamente, todo o conhecimento necessário no tocante ao cômputo da Páscoa. É claro que se apresenta a classificação multiforme das propriedades e relações numéricas, mas isso em menos que uma coluna. O restante da obra é dedicado ao sistema grego de notação, às divisões do tempo, aos calendários grego e romano, aos nomes dos planetas, a fatos sobre a Lua, a solstícios, equinócios, epactae e outros fenômenos astronômicos envolvidos no estudo do cômputo. Os ciclos lunares e o método de cálculo da Páscoa são explicados conforme o plano de Beda. Como é de esperar, a seção mais importante da obra inteira dedica-se ao cômputo eclesiástico [27]. É significativo que haja, logo na introdução, um capítulo sobre dactilonomia e os símbolos romanos. Mais significativa, porém, é a omissão das regras para as quatro operações. Assim, parece que o cálculo se fizesse principalmente de cabeça, talvez com a ajuda de um sistema elaborado de dactilonomia, e que as quatro operações elementares, com números inteiros, fossem pré-requisito para o estudo do cômputo. Sob todos os aspectos, pode-se tomar a obra de Rábano Mauro como representativa do conhecimento e do ensino aritmético do período. A grande influência do “praeceptor Germaniae” sugere por si só o amplo uso da sua obra, e numerosos livros-texto sobre o cômputo, anônimos ou não, basearam-se no seu tratado [28].

Além desses livros-texto, em que se revelam as características atribuídas ao período, há ainda, da mesma época, outras obras excepcionais sobre a aritmética. A sua existência e o seu emprego, todavia, de modo algum debilitam as nossas conclusões sobre o caráter geral da instrução aritmética nessa fase inicial da Idade Média [29].

Sobre os métodos de divisão e as frações, são de particular interesse os seguintes e breves escritos, erroneamente atribuídos a Beda:

  • De numerorum divisione libellus.
  • De loquela per gestum digitorum et temporum ratione libellus.
  • De unciarum ratione [30].

A origem desses tratados não pode ser rastreada para além do século X [31]. Supõe-se, por conseguinte, que eles indiquem um lento progresso do conhecimento aritmético. De todo modo, esse mesmo material serviria de base para as realizações de Gerberto.

SEGUNDO PERÍODO

CARÁTER GERAL

O ponto de partida para rastrear o progresso do estudo aritmético nesse período pode ser encontrado nas marcantes realizações matemáticas de Gerberto. O valor exato das suas contribuições à aritmética ainda é uma questão em aberto. Alguns lhe atribuem a introdução do cálculo por colunas na Europa Ocidental [32]; outros lhe atribuem, também, a introdução do sistema arábico de notação [33]. Por outro lado, Cantor, o Nestor dos historiadores da matemática, sustenta que Gerberto não tivesse familiaridade alguma com o sistema arábico [34].

Todos, porém, concordam nos seguintes pontos: (1) Gerberto e seus discípulos, nomeadamente Bernelinus, incrementaram o ábaco e estenderam a sua utilização com a introdução de apices diferenciados no topo de coluna; (2) Gerberto e seus discípulos não se utilizaram do zero; (3) encontramos no livro de Gerberto a primeira obra sobre o método de cálculo com o ábaco; (4) Gerberto, que foi o primeiro a empregar o método da divisão complementar, tornou possível a realização das quatro operações no ábaco. Para os fins da nossa investigação, ainda outro fato sobre Gerberto é pertinente: ele ensinou as disciplinas do quadrivium com notável sucesso na escola de Reims entre 972 e 982, e um registro completo dos seus métodos ainda existe [35].

As duas obras de Gerberto, Regulae de abaci numerorum rationibus e o fragmentário De numerorum abaci rationibus, podem ser tomadas como representativas do que fosse um livro-texto de aritmética entre o século X e o início do século XIII. O exame desses tratados [36] revela que os processos empregados em adição, subtração e multiplicação são muito parecidos com os métodos modernos, enquanto o processo de divisão — tema da segunda obra, que é a menor — difere por completo. Comparados ao sistema arábico, os métodos de divisão de Gerberto foram considerados, não impropriamente, “quase tão complicados quanto o engenho humano seria capaz de fazê-los”. Confirma essa opinião o nome “divisio ferrea”, que passou a acompanhar os métodos de Gerberto após a introdução do sistema hindu, chamado, por sua vez, de “divisio aurea” [37].

Nos dias de Gerberto, de um modo geral, quem escrevia sobre a aritmética era conhecido por “abacista”. A introdução dos métodos hindus, por inԅuência dos árabes, veio a restringir esse termo àqueles apegados aos métodos antigos, a saber: (1) a utilização do ábaco; (2) a notação romana; (3) as frações duodecimais; (4) a ausência do zero; (5) a incapacidade de extrair-se a raiz quadrada [38]. Os melhores métodos dos algoristas, como os autores do período seguinte eram chamados, não necessariamente suplantaram a obra dos abacistas. Houve, de fato, uma competição entre a escola abacista — por vezes chamada, erroneamente, escola boeciana — e a nova escola, dita arábica.

A intrínseca superioridade do novo sistema não causou de imediato o desaparecimento dos livros-texto baseados no antigo. Assim como as obras aritméticas de Boécio foram impressas até o século XVI, também edições dos antigos abacistas continuaram em uso muito para além do triunfo dos alegoristas [39].

LIVROS-TEXTO

Passando aos livros-texto do período, encontramos, com efeito, diversas impressões. Contudo, apenas os mais típicos, aqueles mais celebrados no seu tempo, pedem aqui ser mencionados.

1. Hermano Contracto, monge e professor em Reichenau na primeira metade do século XI, é o autor de um Liber de abaco. O tratado é mais breve do que as obras de Gerberto e confessadamente baseado nelas mesmas [40].

2. Rodolfo de Laon compôs tratado similar no século XII [41].

3. João de Garlandia, autor de um tratado sobre o cômputo, compôs também um livro-texto sobre o ábaco. É significativo que o mesmo autor tenha preparado as duas obras; isso mostra que o escopo da aritmética houvera-se ampliado, causando a separação total entre o cômputo eclesiástico e a aritmética propriamente dita [42].

TERCEIRO PERÍODO

CARÁTER GERAL DO CONHECIMENTO MATEMÁTICO

O exame do terceiro período, o algorístico, traz-nos até o meio da era das universidades. Embora o quadrivium estivesse fundido no programa geral oferecido sob o auspício das faculdades, a aritmética, tanto teórico como prática, foi mais estudada nesse do que no período anterior. Isso, claro, graças aos avanços do conhecimento na matéria.

As características da aritmética algorística eram: (1) o uso do sistema hindu-arábico de notação; (2) o sistema de valor local; (3) o uso do zero; (4) a dispensa total do ábaco; (5) o uso combinado de símbolos e números — na verdade, uma combinação de álgebra e aritmética, na acepções atuais dos termos —; (6) a introdução, na Europa Ocidental, de vastíssimo material aritmético do Oriente, proporcionada por traduções latinas de fontes árabes. A tendência geral foi abordar a aritmética pelos lados prático e cientíԂco, mas nem por isso os aspectos místicos da disciplina, tão populares em outros períodos, foram negligenciados de algum modo. O tratamento fantástico das propriedades numéricas continuou bastante comum [43].

Desse modo, o começo do século XIII é marcado pela introdução do sistema arábico de notação e pela sua adoção, no lugar da notação romana e do ábaco. Essa revolução fundamental deu-se gradualmente. A transição entre o período do ábaco e era do algarismo remonta às traduções da aritmética hindu-arábica feitas pelos seguintes e prestigiados matemáticos do século XII:

  • Adelardo de Bath, que escreveu Regulae abaci às voltas de 1130. A ele também se atribui o manuscrito de Cambridge intitulado Algorithm de numero indorum [44].
  • Abraham Ibn Ezra, cujo tratado sobre a aritmética data de inícios do século XII [45].
  • João de Sevilha, que compôs o seu Algorismus às voltas de 1140 [46].
  • Geraldo de Cremona, que preparou um Algorismus na segunda metade do século XII [47].
  • O anônimo que, às voltas de 1200, compôs um breve tratado sobre os algarismos no sul da Alemanha [48].

Essas obras de transição, conquanto escritas anteriormente à ascensão das universidades, durante o declínio das escolas monásticas e catedrais, se estabelecem a seqüência histórica neste estudo particular, não se podem tomar como livros-texto característicos do período. Não precisamos, portanto, demorarmo-nos sobre eles, que serviram tão-somente a um propósito admirável: apresentar o sistema hindu-arábico aos matemáticos da Europa, pavimentando o caminho para trabalhos posteriores.

É verdade, entretanto, que os primeiros anos do século XIII foram realmente decisivos na história dos estudos aritméticos e matemáticos. Isso porque inauguraram um fluxo constante, e que perpassou todo o restante do século, de traduções e adaptações de livros árabes e gregos [49]. No campo da aritmética, a introdução desse novo conhecimento produziu dois efeitos diversos: (1) sua utilização e extensão na aplicação ao comércio; e (2) a adoção do sistema arábico de notação nos estudos acadêmicos da matemática. O primeiro resultou num extraordinário desenvolvimento dos aspectos práticos da aritmética e de partes da álgebra nos centros comerciais de Itália, Inglaterra e Alemanha durantes os três séculos posteriores [50]. O principal representante dessa tendência foi Leonardo de Pisa, que era filho de um mercador. O seu volumoso Liber abaci, composto em 1202, apresentou ao mundo uma quantidade de conhecimento prático e teórico que ainda hoje pode ser considerada admirável [51]. Não obstante, a influência desse livro sobre as universidades não foi perceptível nem mesmo na Itália, seu país [52]. Nesse contexto, podemos nomear outro notável: o dominicano Jordano de Nemi, cujos esforços para tornar acessível a ciência aritmética às tradicionais escolas medievais comparam-se aos de Leonardo para popularizar a descoberta entre os mercadores europeus [53]. Dele interessam-nos Algorithmus demonstratus, breve tratado sobre o cálculo [54]; Arithmetica demonstrata, sobre a teoria dos números [55]; e De numeris datis, sobre a álgebra [56]. O seu caráter abstrativo, científico, assenta no emprego de símbolos gerais. Excluindo-se de partida todos as aplicações comerciais, temos, nesses tratados, o material perfeitamente adequado para o estudo acadêmico da disciplina [57].

ESCOPO

A pergunta sugere-se a si mesma: quanto desse material era de fato empregado no ensino da aritmética? O exame dos registros da instrução nas universidades deve dar-nos a resposta.

Passando a esses registros, deparamos as seguintes condições: em Paris, dava-se pouca atenção à matemática. Os pré-requisitos para o mestrado, em 1366, ditam vagamente “que o estudante compareça a seminários sobre alguma obra matemática” [58] De todo modo, o fato de Sacrobosco ter lecionado matemática na Universidade de Paris antes de 1255, considerando-se que o mesmo fora autor de um algorismo baseado em Jordano, permite supor que, antes de 1366, tenha-se estudado ali ao menos o material contido na aritmética de Jordano.

Em Bolonha, onde cultivava-se a matemática muito mais do que em Paris, houve na faculdade de artes uma cadeira de aritmética. Previa-se, deԂnitivamente, um curso sobre “algorismi de minutiis et integris”, material do Algorithmus demonstratus de Jordano [59].

Os estatutos da Universidade de Praga para o ano 1367 requerem, para a conclusão do mestrado, um curso sobre “algorismus”. O conteúdo, segundo uma escala de conferências para o mesmo ano, devia-se aprender em até três semanas, donde ser claro que a disposição inicial referia-se ao estudo de obras tais como a de Sacrobosco, ou seja, dos elementos práticos da aritmética [60]. Na mesma universidade, encontramos “o estudo da aritmética” entre os pré-requisitos para o mestrado; outros registros indicam que ali se estudavam “algorismus” e “arithmetica accurata”. Aqui, obviamente, distingue-se entre os elementos práticos e teóricos da aritmética [61].

A Universidade de Viena, durante toda a Idade Média, foi tão reconhecida pelo estudo da matemática quanto a de Paris pelo estudo da ԂlosoԂa; chegou, inclusive, a abrigar disputações sobre a matéria. E enquanto os dados sobre o ensino da aritmética em Viena não representam a situação que, como vimos, era comum a tantas outras universidades, as informações de que dispomos a esse respeito, quando alinhadas a outras evidências, são, de fato, reveladoras. A agenda de seminários para 1391–1399 mostra que ali se abordavam: (1) “algorismus de integris”; (2) “algorismo de minutiis”; (3) “computus physicus”; (4) “frações astronômicas”; (5) “arithmetica et proportiones”; e (6) “arithmetica” [62]. À luz do cuidado que ali se tomou para evitar a competição, duplicando-se os seminários, podemos supor que esses cursos tratassem de aritmética e álgebra elementar e teórica — justamente o tema da obra de Jordano.

A mesma distinção entre algorismus e arithmetica, isto é, entre os elementos práticos e teóricos da aritmética, é também enfatizada em registros do século XV. Ao que parece, havia níveis de remuneração para diferentes tipos de professores de aritmética. Os seminários de “arithmetica” valiam o dobro dos seminários de “algorismus”, se bem que o número de sessões fosse o mesmo para ambas as disciplinas. Também parece significativo que o honorário correspondente aos seminários de aritmética fosse igual à remuneração pelo mesmo número de aulas sobre uma matéria aparentada à matemática teórica: a música [63].

Em Leipzig, filha de Praga, prevaleciam as mesmas condições [64].

Mais significativo, talvez, seja o fato de a Universidade de Colônia, fundada 1389 sobre as mesmas bases da Universidade de Paris, ter disposto para o mestrado, em 1398, os mesmos pré-requisitos adotados em Viena [65].

Condições similares existiram em Erfurt, Heidelberg, Oxford, e mesmo em universidades italianas, como as de Pádua e de Pisa, onde a obra de Leonardo não teve influência alguma durante o século XV.

As evidências indicam claramente o escopo da instrução aritmética nas universidades européias. Dado que o material utilizado nesses programas era aparentemente idêntico ao conteúdo dos três livros de Jordano, é-nos permitido inferir que o conhecimento científico sobre a aritmética estava plenamente representado na educação universitária, sendo prevista, para a conclusão do mestrado, a sua quase totalidade.

LIVROS-TEXTO

Determinado o caráter das obras didáticas do período, passamos ao exame dos livros-texto empregados nas universidades.

1. O primeiro em importância, porque o mais usado durante três séculos, foi o do inglês John Hollywood, dito Sacrobosco, cujo Tractatus de arte numerandi, ou Algorismus, foi reimpresso inúmeras vezes e sob diversos títulos [66]. A obra não é senão um excerto do Algorismus demonstratus de Jordano; traz as regras da aritmética sem demonstrações ou ilustrações, e palavra nenhuma sobre as frações. Na verdade, mal passa de uma exposição das nove operações aritméticas tais como explicadas por Jordano — as regras de multiplicação aparecem em verso. O caráter da obra determina prontamente o seu lugar no currículo: serve como um guia, um texto a partir do qual se introduzirem os elementos da aritmética antes de iniciar-se o estudo da aritmética teórica, mais audacioso [67]

2. O que Sacrobosco fez a título de levar o Algorismus de Jordano até as universidades, outros fizeram-no com as suas duas outras obras. Arithmetica speculativa, de Thomas Bradwardinus (1290–1349), cobre toda a aritmética avançada de Jordano [68].

3. Sacrobosco e Bradwardinus foram os adaptadores de Jordano, isto é, da sua aritmética prática e teórica. Do mesmo modo, em meados do século XIV, Nicolau Oresme, que foi aluno e professor da Universidade de Paris, difundiu a aritmética e a álgebra de Jordano, especialmente as partes dedicadas às frações e à álgebra sincopada. Seu Algorismus proportionum [69] baseia-se inconfundivelmente na obra de Jordano. Esse tratado, no entanto, foi mais do que uma simples exposição: o uso de expoentes fracionários marca um avanço de Oresme em relação à sua fonte [70].

4. Jean de Murs, outro matemático francês do mesmo século, trabalhou na simplificação de Boécio e de Jordano, fontes do seu Arithmetica speculativa. A ampla utilização desse livro, um manual padrão de aritmética teórica, é atestada pelo grande número de edições ainda existentes [71].

5. De minutiis physicis, de Johannes von Gmünden, é o típico livro-texto das universidades germânicas do século XV. O autor, docente afamado na Universidade de Viena, foi o primeiro em toda a Europa a ensinar matemática como especialidade — antes do seu tempo, como se sabe, era costume que os professores se revezassem em diferentes disciplinas dentro das suas faculdades. Johann von Gmünden lecionou em Viena, tanto “algorismus de integris” como “algorismus de minutiis”, de 1412 a 1417. Ele empregava textos populares nas suas aulas: sobre aritmética integral, Sacrobosco; sobre frações, algum comentador de Jordano; e sobre frações astronômicas, seu próprio De minutiis physicis [72].

6. O Algorismus “para estudantes” de Johann von Peuerbach foi muito usado na Alemanha pela geração seguinte à de Gmünden. A popularidade desse livro deveu-se ao fato de o autor ter sucedido o mesmo Gmünden na Universidade de Viena. Como livro-texto, o tratado representa um avanço em relação a Sacrobosco, cuja obra Peuerbach almeja suplantar [73].

7. Podemos encerrar o nosso exame com Algorismus de integris, de Prosdocimo de Beldemandi, professor da disciplina na Universidade de Pádua em 1410. Esse texto, em tudo similar ao de Sacrobosco, mostra que as universidades italianas não haviam sofrido qualquer influência de Leonardo de Pisa até meados do século XV. Nesse tempo, ao que parece, elas ainda trilhavam o que se poderia chamar aritmética acadêmica [74].

Com o aumento e o avanço do conhecimento universal em aritmética — termo aplicado à álgebra —, houve uma tendência, já no final do século XV, a retirar-se a aritmética elementar dentre os pré-requisitos para o mestrado. Isso explica a importância de uma nota sobre Heidelberg, de 1443. O estudo do “algorism” e “de proportionibus” é ali posto numa classe de disciplinas eletivas, “quos non oportet scholares formaliter in scolis ratione alicuius gradus audivisse” [75]. Esses seminários, pagos, davam-se, evidentemente, como um curso extra ou auxiliar, para ajudar os alunos a “desenferrujar”. Assim, vê-se que a exigência da aritmética nas universidades aumentara sensivelmente desde o século XIV [76].

Não quisemos, com este capítulo, apenas delinear o caráter e o escopo da instrução aritmética tal como inserida entre as sete artes liberais. Quisemos, também, oferecer ao leitor uma melhor compreensão da natureza das evidências que fundamentaram as nossas visões, expressas, de partida, nos parágrafos introdutórios. Embora a variedade e o caráter alusivo dos dados disponíveis por vezes desafiem a capacidade de análise, fica demonstrada a continuidade histórica do estudo da aritmética no esquema do ensino superior medieval. Não restam dúvidas de que as escolas medievais ensinaram sempre tudo quanto se soubesse de aritmética; de que os professores de aritmética fossem geralmente os grandes matemáticos do seu tempo; de que esse magistério, porque em dia com o progresso do conhecimento, tinha, justamente, um caráter progressivo; de que jamais, nem mesmo nas infecundas gerações que encerram a Idade Média, quando a educação escolástica já sobrevivia à sua utilidade, deixou a aritmética de ser estudada no seio das faculdades medievais.

CAPÍTULO VIII

Geometria

No capítulo anterior, fizemos uma análise detalhada do caráter geral da instrução no quadrivium, especialmente no que se refere à aritmética. As mesmas conclusões, entretanto, aplicam-se à geometria. É de supor que a geometria fosse amplamente ensinada tanto no período pré-universitário como na era das universidades, e que o escopo dessa instrução caminhasse pari passu com os avanços do conhecimento na matéria.

Resta-nos indicar as proporções do conhecimento em geometria disponível a cada período e descrever brevemente as obras didáticas utilizadas. Como no caso da aritmética, distinguem-se três períodos: (1) antes de Gerberto; (2) entre os tempos de Gerberto e o século XIII; (3) entre o século XIII e o humanismo.

PRIMEIRO PERÍODO

Até o final do século X, a era de Gerberto, quase que não existia na Europa Ocidental conhecimento em geometria tal como a define o uso moderno da palavra. Com efeito, parece que o termo se empregava em sentido etimológico, e não no sentido em que os gregos o entendiam. Dada a negligência dos romanos, que apenas cuidavam da sua aplicação prática, a agrimensura, o mais provável é que nenhuma geometria digna do nome de ciência tenha sido transmitida à Idade Média [1]. Disso dão testemunho os livros-texto do tempo de Gerberto. Os mais usados eram os de Marciano Capela, Cassiodoro e Isidoro de Sevilha.

O texto de Capela, de modo geral, é um breve relatório sobre geografia, a localização de sítios históricos e fatos congêneres. Somente no final da obra encontramos algumas definições: linhas, triângulos, quadrângulos, o círculo, a pirâmide, o cone. Nada há nesse texto de geometria propriamente dita, ou mesmo de agrimensura [2]. O capítulo de Cassiodoro não se sai melhor [3], e o mesmo vale para o tratamento de Isidoro de Sevilha [4].

Conquanto esses tenham sido, ao que tudo indica, os únicos livros-texto de geometria à época de Gerberto, é bem verdade que os agrimensores do Império Romano tardio, os gromatici, legaram à Idade Média algum conhecimento sobre estimar-se a área de um triângulo, de um quadrilátero e de círculo [5].

Mas se a ciência da geometria fora negligenciada, a geograԂa e a cosmografia foram introduzidas para suprir a deficiência. O material sobre essas disciplinas era farto, e por isso elas foram muito cultivadas. A maioria dos vinte livros das Etymologiae, de Isidoro de Sevilha, diziam respeito à Naturkunde [6]. De universo, de Rábano Mauro, foi outra compilação do mesmo tipo [7]. Compêndios baseados na geografia de Plínio, entre outros, foram muito numerosos no período, e as referências ao estudo desses obras como parte do quadrivium são bastante comuns [8].

SEGUNDO PERÍODO

Passando ao tempo de Gerberto, deparamos um aumento pequeno, embora relativamente significativo, na quantidade de conhecimento em geometria. Graças à “descoberta” de uma cópia das obras boecianas sobre a geometria, e também do Codex arcerius, um bocado da geometria de Euclides e alguns fragmentos dos gromatici vieram parar nas escolas da cristandade [9]. Todavia, o novo aporte geométrico não teve lá muito valor, nem pela quantidade, nem pela qualidade. As supostas obras de Boécio, as quais Gerberto encontrara [10], consistiam em dois livros: o primeiro, todo ele baseado em Euclides, continha basicamente os enunciados dos livros I e III, inclusive definições, axiomas e scholia; algumas das proposições dos livros III e IV; e as demonstrações completas das três primeiras proposições do livro I, dadas, nas palavras do autor, “ut animus lectoris ad enodatioris intelligentiae accessum quasi quibusdam graditus perducatur”. A segunda obra trazia os cálculos das áreas de figuras geométricas. Esses, segundo Chasles, baseiam-se quase que inteiramente nas obras do gromaticus Frontino [11].

Comparando esse corpo de conhecimento ao texto de Euclides transmitido por Téon, vemos que a geometria de Boécio consiste nas definições euclidianas, na teoria dos triângulos e quadriláteros e em algumas teorias dos círculos e polígonos. Além disso, encontramos as suas próprias demonstrações dos seguintes problemas: (1) a construção de triângulo equilátero, dado o lado; (2) traçar-se, de um ponto dado, uma linha reta de determinado comprimento; e (3) segmentar uma linha menor numa linha maior.

Gerberto, aparentemente, tomou posse de todas as pecinhas de conhecimento geométrico disponíveis, tanto teóricas como práticas, e fez do conjunto delas a base mesma da sua obra [12]. O seu livro-texto não impressionou os estudiosos pela originalidade, e pode-se considerar que ele representa a totalidade da instrução em geometria oferecidas nas escolas até o final do século do século XIII. Em grande medida, esse livro e outras obras de caráter similar logo substituíram a geograԂa e a cosmografia, que, graças à escassez de verdadeira geometria, passaram por esse nome até os dias de Gerberto [13].

TERCEIRO PERÍODO

Como no caso da aritmética, os séculos XII e XIII formam um período de transição. A geometria de Euclides, como é de supor, foi uma das muitas obras matemáticas que alcançaram a Europa Ocidental por meio de traduções de fontes árabes. Naturalmente, esse incremento do conhecimento em geometria logo foi apropriado pelas universidades, que o integraram ao novo curso, ampliado.

Depois dos trabalhos de Adelardo de Bath, que traduziu Euclides do árabe em 1120, e de Geraldo de Cremona, autor de outra tradução [14], datada de 1188, pode-se dizer que a Europa Ocidental fora devidamente apresentada à geometria euclidiana. Foi então que as obras de Boécio e de Gerberto acabaram descartadas pelas universidades, e assim restou, como disciplina do currículo, o lado puramente teórico da ciência.

Temos evidências bastantes de que Euclides, tal como adaptado no De triangulis de Jordano de Nemi, por exemplo, foi ensinado durante toda a Idade Média, até o Renascimento [15]. Quase todas as listas de pré-requisitos para o mestrado incluem cinco ou seis dos seus livros — Bolonha, Praga, Viena, Leipzig, Pádua, Pisa e Colônia, invariavelmente [16]. Mesmo a Universidade de Paris, notoriamente desinteressada da matemática, requereu, na alta Idade Média, os seis livros completos de Euclides — e não apenas os três primeiros, como geralmente se supõe [17]. É certo, por conseguinte, que o candidato a universitário, mirando um diploma nas artes, tivesse o mínimo de conhecimento sobre o texto euclidiano: a teoria dos triângulos e quadriláteros; as várias aplicações da teoria de Pitágoras a um grande número de construções; os teoremas do círculo; os teoremas dos polígonos inscritos e circunscritos; as proporções geométricas; e a similaridade das figuras. Acresça-se a isso tudo a teoria dos números — contida nos livros VII, VIII, IX e X —, que era estudada como parte da aritmética teórica, e então nos veremos forçados a concluir que, como parte quadrivium, transmitia-se um tanto muito mais que considerável da geometria.

Cursos adicionais sobre a teoria das coordenadas foram ministrados nas universidades dos séculos XIV e XV [18]. O ensino avançado da geometria abriu o caminho para geometria analítica de Descartes, no século XVI [19]. Pode-se dizer o mesmo do estudo da perspectiva, que, em algumas universidades, foi tema de cursos ministrados como parte do quadrivium [20].

Que os gregos apresentados à Europa Ocidental por influência dos árabes estimularam inclusive especulações originais, isso vê-se pelas obras de Leonardo de Pisa (Practica geometria, 1220), Jordano de Nemi (De triangulis, c. 1237), ӷomas Bradwardinus (Geometria speculativa, c. 1327) e Nicolau Oresme (Tractatus de latitudine forarum), às quais ainda hoje atribui-se mérito científico [21]. É decerto verdade que essas obras, por marcantes que sejam de um afastamento em relação aos gregos, não encontraram o seu caminho até o currículo medieval [22]. Mas essa falta de assimilação, esse deixar passar novas idéias, se presta a evidência do interesse superԂcial pela instrução matemática [23].

Mesmo nos nossos dias, depois de cinco séculos de fenomenal desenvolvimento nos estudos da geometria, o valor exato da obra de Euclides como livro-texto continua a ser uma questão em aberto [24]. Com isso em mente, não parece razoável esperar que as universidades medievais — instituições de uma era que louvava a tradição — estivessem mais dispostas a se desfazer de Euclides do que hoje estão as nossas escolas.


Notas:

CAPÍTULO VII

[1] Rashdall, Universities in the Middle Ages, vol. I, p. 35. Laurie, Rise and Constitution of the Early Universities, pp. 61 e ss. Ambos partilham dessa visão tradicional.

[2] Hankel, Geschichte der Mathematik, pp. 304–59, esp. pp. 334, 358.

[3] Por exemplo: vida de São Cristóvão, por Walter de Speyer; vida de São Wolfgang, por Otlo de Saint-Emmeran; vida de Santo Adalberto, por Bruno de Querfurt. Cf. Specht, op. cit., pp. 89–149, esp. 127 e ss.

[4] Günther, Geschichte des mathematischen Unterrichts im deutschen Mittelalter, p. 14.

[5] Specht, op. cit., pp. 297–394; Wattenbach, Deutschlands Geschichtsquellen im M. A., 7ª ed., pp. 241–487, passim. V. Ziegelbauer, Historia Rei. Lit. O. S. B., I, passim.

[6] Cantor, Vorlesungen über Gcschichte der Mathematik, vol. I, pp. 771–97; Günther, op. cit., pp. 39–61, onde há referências especíԂcas à atividade matemática de cada uma das escolas e pessoas mencionadas. Para listas de obras congêneres, v. Ziegelbauer, op. cit., vol. IV, 304-411.

[7] O Codex Vaticanus 3896 contém nada menos que 26 tratados sobre aritmética em manuscritos; cf. Günther, op. cit., p. 67.

[8] V. Hankel, op. cit., p. 334.

[9] Günther, op. cit., pp. 81–121, 146–207.

[10] O descaso tradicionalmente atribuído à Idade Média com relação à matemática baseia-se numa suposição equivocada: que o desinteresse de Paris, mãe das universidades, fosse partilhado pelo período como um todo. Objete-se, no entanto, que a Universidade de Viena deu muitíssimo valor às disciplinas matemáticas. Na verdade, o que se dava na maioria das universidades medievais era justamente um meio-termo entre os extremos — Paris e Viena —, de maneira que elas ofereciam uma carga razoável de instrução matemática. Cf. Rashdall, op. cit., vol. I, pp. 440–43; Günther, op. cit., pp. 2017 e ss.

[11] Foi por meio de Boécio, tradutor e adaptador do texto, que essa forma particular de aritmética tornou-se conhecida como boeciana. Texto de Nicômaco na edição R. Hoche, Leipzig (1866). Para uma análise de Nicômaco, v. Gow, Short History of Greek Mathematics, pp. 89–95.

[12] Cf. Ball, History of Mathematics, p. 137.

[13] H. Weissenborn, Gerbert-Beiträge zur Keniniss der Mathematik des Mittelalters (Berlim, 1888), pp. 208–51. Cajori, History of Mathematics, pp. 114 e ss.

[14] Günther, op. cit., vol. I, pp. 797–809. A palavra “algoritmo” é derivada de Al-Khwarizmi, nome do primeiro e mais importante matemático árabe conhecido na Europa.

[15] Existe ainda um Computus datado de 1395. Trata-se de uma interessante coleção de textos medievais sobre aritmética, pertencente ao Sr. George Plimpton, de Nova York.

[16] Hankel, op. cit., pp. 309 e ss.

[17] Cf. Günther, op. cit., pp. 64–78.

[18] Na obra de Alcuíno sobre o cômputo, De cursu et saltu lunae ac bissexto (PL 101, cols. 979 e ss.), multiplica-se CCXXXV por IV:

        CC             x IV — DCC

        XXX         x IV — CXX

        V               x IV — XX

                          DCCCCXL

Para um exemplo similar (6144: 15), v. Pseudo-Beda, De argumentis lunae, PL 90, col. 719.

[19] Eyssenhardt (ed.), livro VII, pp. 254–96. Para um exemplo mais completo das interpretações metafísicas de Capela, v. Gow. op. cit., pp. 69. e ss.

[20] V. Morgan, Arithmetical Books, pp. 3, 4, 10, 11, 13. Referências aos livros de Boécio impressos em Paris e em Viena, o último datado de 1521. De arithmetica libri duo (PL 63, cols. 1079–1168).

[21] Cf. Günther, op. cit., pp. 82 e ss. Texto em PL 63, cols. 1079–1166 (ed. Friedlein, 1867). Para um caso divertido de interpretação dos números, v. Rábano Mauro, De institutione clericorum, PL 107, col. 400, onde se explica o sentido místico no número 40.

[22] De artibus, PL 70, cols. 1204–8.

[23] “Tolle numerum rebus omnibus et omnia pereunt. Adime saeculo computum et cuncta ignorantia caeca complectitur nee differi potest a ceteris animalibus qui calculi nesciunt rationem” (Etymol. lib. XX, livro II, cap. 4). Texto completo em PL, 82, cols. 154–63.

[24] PL 90, cols. 294–578. À parte glosas e scholia, restam cerca de 80 colunas de texto — tamanho moderado.

[25] Ibid., cols. 579–606.

[26] PL 101, cols. 679–1002.

[27] PL 107, cols. 669–727. Como essa era a parte essencial de todos os livros-texto do período, cabe fazer uma breve exposição do problema implicado no cômputo eclesiástico. O objetivo do cômputo era determinar a data do primeiro domingo seguido à primeira meia-lua depois do equinócio da primavera. Resolvia-se o problema encontrando o chamado “número áureo” e as “letras dominicais”, indicações, com o que se determinavam as posições e relações nas tábuas do ciclo metônico. Ser capaz de fazê-lo implicava conhecer: (1) o equinócio da primavera; (2) o dia da primeira lua cheia; e (3) o ajuste necessário às tábuas do ciclo metônico. Desde os tempos do abade Dionísio Exíguo (c. 525), resolveram-se os problemas astronômicos e elaboraram-se sucessivas tábuas entre o mesmo Dionísio, o abade Félix de Cyrilla, Isidoro de Sevilha e o Venerável Beda. Com o auxílio de duas regras para as operações e o uso das tábuas referidas, a data da Páscoa podia ser prontamente determinada. As regras eram: (1) para encontrar o número áureo, some-se 1 ao numeral do ano — na tábua — e divida-se a somatória por 19; o resto será o número áureo, e, não havendo resto, o número áureo é 19. (2) “Para encontrar a letra dominical, some-se ao numeral do ano o quociente da sua própria divisão por 4; some-se a isso mais 4; divida-se por 7 a somatória, e o seu resto, subtraia-o de 7. O resto determinará o lugar das letras na tábua”. A partir dessas respostas, determinava-se a data da Páscoa com facilidade. As exigências de conhecimento aritmético aos alunos que intentavam simplesmente resolver esse problema não eram lá muito grandes, mas é certo que, depois do renascimento carolíngio, todo e cada sacerdote que estudasse as artes liberais seria capaz de entender não somente os métodos, mas também os princípios por trás dessas operações, o que implica, além de bom raciocínio matemático, um tanto não desconsiderável conhecimento aritmético e a astronômico. V. Smith & Chietham, Dictionary of Christian Antiquities, entrada “Páscoa”; F. J. Brockman, “Die Christliche Oesterrechnung”, em Systeme der Chronologie, pp. 53–83. Para uma versão modernamente simplificada do cômputo da Páscoa, v. Ball, Mathematical Recreations and Problems, p. 238; Cantor, op. cit., vol. I, pp. 532 e ss; p. 780.

[28] Günther, op. cit., p. 66. Entre os professores medievais que basearam as suas obras sobre o cômputo inteiramente em Rábano Mauro, são dignos de nota, porque demonstram a amplitude da sua influência: Heilpric, monge de São Galo; Hermano Contracto, Guilherme de Hirsau, Notquero Labéu e João de Garlandia. Note-se, porém, que as suas obras, conquanto escritas antes de Gerberto, e por isso mesmo pertencentes, em princípio, ao segundo período da nossa classiԂcação, não podem ser tomadas como índices dos métodos que então se utilizavam. Quando foram compostas, o estudo do cômputo já se havia tornado simplesmente o estudo técnico para o cálculo da Páscoa; já não signiԂcava, como no tempo de Rábano Mauro, o estudo da aritmética.

[29] Assim, “Prepositiones (arithmeticae) Alcuini ad acuendos juvenis”, coleção de problemas difíceis corretamente atribuída ao famoso professor, se é de especial interesse sob certos pontos de vista, não pode, entretanto, ser tomada como indicativo de que comumente se estudassem tais problemas naquela época. O fato de Gerberto os conhecer ao final do século X é igualmente inconclusivo no que diz respeito à sua aplicação em sala de aula, haja vista que Gerberto foi o gênio matemático do seu tempo. Esses problemas pertencem à mesma classe dos jogos matemáticos que eram conhecidos de tão poucos. Texto em PL 101, col. 1143. Cf. Hankel, op. cit., p. 310, nota. Referências completas aos jogos matemáticos medievais em Günther, op. cit., p. 88, nota 1.

[30] PL 90, cols. 682–709. V. Karl Werner, Beda der Ehrwilrdige und seine Zeit (Viena, 1875), pp. 107 e ss., citado em Günther, op. cit., p. 5.

[31] Hankel, op. cit., pp. 307–10.

[32] Nagl, “Gerbert und die Rechenkunst des 10 ten Jahrhunderts”, em Sitzungsberichte der Hist. Philol. Class, der Kais. Akad. der Wiss, vol. CXVI, pp. 861–922; Friedlein, “Das Rechnen mit Columnen vor dem 10 tem Jahrhundert”, em Zeitschrijt fur Math. u. Phys., vol. IX, pp. 297–330, esp. pp. 320 e ss.

[33] Weissenborn, Gerbert-Beiträge sur Kenntniss der Maihematik des Mittelalters, pp. 209–239, esp. 233.

[34] Cantor, Vorlesungen, vol. I, pp. 797 e ss, onde resumem-se os pontos históricos da controvérsia.

[35] Richer, Hist. Lib., MGH-SS 3, pp. 618 e ss.

[36] Últimas edições críticas em Bubnov, Gerberti opera Mathematica (Berlim, 1899). Pode-se inferir a extensão da influência dessas obras pela vasto número de manuscritos ainda existentes, os quais são enumerados pelo editor (op. cit., pp. 17–111, passim).

[37] Cajori, History of Mathematics, p. 117. O seu caráter mecânico revela-se em algumas regras que Gerberto nos oferece: (1) o uso da multiplicação restringia-se o quanto possível, e jamais deveria pedir a multiplicação de um número de dois dígitos por outro; (2) tinha-se de evitar a subtração e, na medida do possível, substituí-la pela adição; (3) as operações tinham todas de proceder mecanicamente, sem espaço para juízos. V. Hankel, op. cit., pp. 319 e ss, onde há exemplos concretos de divisão por esse método. A ilustração mais complicada é dada em Friedlein, Die Zahlzeichen und das elementar Rechenen der Griechen und Römer und des Christlichen Abendlandes nom 7 ten bis 13 ten Jahrhundert, pp. 109–34.

[38] Cajori, op. cit., p. 119.

[39] Cf. Günther, op. cit., pp. 99–110. Cantor, Mathematische Beiträge zum Kulturleben der Völker, pp. 330–40.

[40] Boncompagni, Bulletino di Bibliografia e di storia delle scienze matematiche e fisiche, vol. X, pp. 643–47. Parte de uma coleção de sete textos sobre o ábaco (loc. cit., 595–647). Dois textos similares, do século XII, constam em op. cit., vol. XV, 135–62. Sobre outros abacistas do período, v. Cantor, op, cit., vol. I, pp. 831–36.

[41] Hist. lit. de la France, VII, pp. 89 e ss. Texto e crítica em Nagl, Suplemento a Zeit. für Math. u. Phys., vol. XXXIV, pp. 129–46, 161–70.

[42] Boncompagni, X, 593–607. Sobre outros abacistas do século XII, v. Cantor, op. cit., pp. 843–48; Günther, op. cit., pp. 92–106.

[43] Cantor, Beiträge, p. 338; Cajori, op. cit., p. 119.

[44] Textos, Boncompagni, Bullettino, vol. XIV, pp. 91–134; Boncompagni, Trattati di aritmetica, pp. 1–23. Fragmento da sua obra sobre multiplicação e divisão em Zeit. für. Math. u. Phys., XXV, Suplemento, pp. 132–39.

[45] Crítica da obra em Steinschneider, Zeit. für. Math., vol. XXV, suplemento, pp. 59–128.

[46] Boncompagni, Trattati d’aritmetica pp. 25–136.

[47] Cantor, op. cit., vol. I, p. 853.

[48] Texto e crítica em Cantor, Zeitsch. f. Math. u. Phys., X, pp. 1–16. Encontra-se um texto similar, composto no mesmo século e procedente de monastério próximo de Ratisbona, em Curtze (ed.), Zeitsch., XLIII, Suplemento, pp. 1–23. A existência desses manuscritos mostra que, mesmo nos dias de declínio, algumas escolas monásticas mantiveram-se atualizadas com o estado da arte em aritmética.

[49] Wüstenfeld, “Die Übersetzungen arabischer Werke in das Lateinische seit dem 11 ten J. H”. Abhand. König. Gesel. d. Wiss. zu Göttingen, vol. XXI, passim., esp. pp. 20–38; 50–96.

[50] Günther, op. cit., pp. 131–41; Cantor, Vorlesungen, vol. II, pp. 110, 216 e ss.; F. Unger, Die Methodik der practischen Arithmetik, pp. 1–33.

[51] Cantor, op. cit., vol. II, pp. 3–35.

[52] Ibid., 167, 205.

[53] Cantor, op. cit., vol. II, p. 86, localizou manuscritos de Jordano em Basiléia, Cambridge, Dresden, Erfurt, Munique, Oxford, Paris, Roma, Thorn, Veneza, Viena e em diversos pontos no Sul da Alemanha.

[54] Impresso em 1534. Por muito tempo essa obra foi erroneamente atribuída a Regiomantus. Cf. Cantor, op. cit., vol. II, pp. 49–61; Morgan, op. cit., p. 16.

[55] Impresso em 1514. Cf. Morgan, op. cit., p. 10; Cantor, loc. cit. 

[56] A melhor edição é a de Treutlein, em Zeit. für Math. u. Phys. XXXVI, Suplemento, pp. 127–66.

[57] A primeira obra mencionada é um breve tratado de aritmética prática. Em cerca de 57 páginas, explica o sistema arábico de notação e os métodos de operação, entre os quais o autor inclui nove: numeratio, additio, subtractio, duplicatio, multiplicatio, mediatio, divisio, progressio e radicum extractio. O caráter representativo desse livro ajudou na sua classificação, que tantas vezes observamos em livros populares de aritmética por toda a Europa. Espaço considerável, algo em torno de dois quintos da obra, é dedicado ao tratamento de dois tipos de frações, as “minutiae philosophicae” ou “minutiae physicae”, isto é, as frações astronômicas, e as “minutiae vulgares”, ou frações comuns. No que toca às primeiras, o texto é bastante completo; há inclusive algumas páginas sobre proporção. A segunda obra é de um caráter todo outro. Os 10 primeiros livros tratam sucessivamente de propriedades numéricas, relações, números primos e perfeitos, números poligonais, sólidos, redundantes, proporções e outras classiԂcações igualmente reԂnadas. Aqui, mais uma vez, os números são tratados da mesma forma que na obra de Boécio. Todavia, como observado por Cantor (op. cit., vol. II, pp. 61 e ss), a obra tem um valor cientíԂco diferenciado, na medida em que é o primeiro livro a empregar, em vez de números concretos, letras como símbolos gerais. A terceira obra consiste em quatro livros de problemas algébricos e aritméticos, cujas resoluções envolvem, além do estudo das proporções, equações simples e quadráticas com uma ou mais variáveis.

[58] Rashdall, op. cit., vol. I, p. 437, nota 1.

[59] Rashdall, op. cit., p. 249.

[60] Cantor, op. cit., vol. II, p. 140.

[61] Mon. Uni. Prag., I, 1, pp. 56, 77 (citado Rashdall, p. 442, nota 3).

[62] Compilado por Günther, op. cit., p. 209, de Aschbach, Geschichte der Wiener Universität im ersten Jahrhundert ihres Bestehens. V. ibid., I, pp. 137–68, passim.

[63] Günther, op. cit., pp. 210–11; Cantor, op. cit., vol. II, pp. 140, 174 e ss.

[64] Günther, op. cit., p. 215. Cf. Hankel, op. cit., p. 357. Em Leipzig, podia-se “ouvir” o algorismo de qualquer bacharelando, mas o mesmo não se dava com nenhuma outra matéria. V. “Tabula pro gradu Baccalauriatus”, em Zarncke “Die Urkündlichen Quellen zur Geschichte der Univ. Leipzig”, Abhandl. der Kön. Sachs. Gesell. der Wiss. Phil. Hist. Class., vol. II, p. 862. Esse fato reforça o argumento de que a instrução no algorismus fosse apenas uma disciplina elementar.

[65] V. De Bianco, “Statua Facultatis Artium”, em Die Alte Uni. Köln, anexo II, pp. 438–43. Cf. Hankel, op. cit., p. 357; Cantor, op. cit., vol. II, p. 442.

[66] Impresso pela primeira vez em Paris, 1496. Entre outros títulos, passou também por Opusculum de praxi numerorum quod algorismum vocant (Paris, 1511) e Algorismus domini Joannes de Sacrobosco (Veneza, 1523). Cf. Morgan, op. cit., pp. 13–4; Günther, op. cit., pp. 176 e ss. Manuscrito-cópia X510 H74, pp. 211–22, Library of Columbia University, Nova York.

[67] Tal se evidencia na existência de comentários a obra de Sacrobosco, dentre os quais um da autoria de Petrus de Dacia é descrito por Cantor (op. cit., vol. II, p. 90) e Günther (op. cit., p. 167, nota 2).

[68] Impressão em Paris e Viena em 1495 e 1502, respectivamente. Cf. Cantor, vol. II, p. 113; Morgan, op. cit., p. 11. O tratado sobre proporções, resumido por Alberto da Saxônia no final do século XIV, foi usado como livro-texto na maioria das universidades. A obra de Jordano era muito difícil, por causa da sua notação simbólica. Cf. Rashdall, op. cit., vol. I, p. 442, nota 3.

[69] Edição crítica em Zeitsch. für Math. u. Phys., XIII, Suplemento, pp. 65–73. Breve resumo das obras de Oresme Curtze, Die mathematischen Schriften des Nicolas Oresmus. O grande número de manuscritos ainda existentes comprova a sua ampla utilização. Como a obra de Bradwardinus, foi certamente livro-texto nas universidades germânicas.

[70] Os três livros da obra são organizados logicamente: o primeiro trata das definições de frações em que todas as regras se apresentam em termos simbólicos; o segundo oferece exemplos concretos e problemas para a aplicação das regras; e o terceiro lida com proporções geométricas. A similaridade essencial entre essa obra o Tractatus de proportionibus de Bradwardinus revela que ambos os autores se utilizaram, e de maneira idêntica, da mesma fonte: Jordano. Cf. Cantor, op. cit., vol. II, p. 137.

[71] Günther, op. cit., p. 183, nota 1. Cf. Morgan, op. cit., pp. 3, 11.

[72] Impresso em 1515. Cf. Morgan, op. cit., p. 11. Cantor, Vorlesungen, vol. II, p. 177; Günther, pp. 232 e ss.

[73] Impresso em 1492 como Opus algorithms jucundissimum. Sobre outras edições, v. Günther, op. cit., p. 237; Morgan, op. cit., p. 11.

[74] Publicada em 1483 e 1540, em Pádua. V. Favaro, em Bulletino, Boncompagni, t. XII, p. 60.

[75] Citado em Rashdall, op. cit., vol. I, p. 440, nota 3.

[76] No começo do século XVI, era costume publicar tratados aritméticos que reunissem todos esses textos. Para uma descrição de alguns desses, v. Morgan, op. cit., pp. 10–1.

CAPÍTULO VIII

[1] Cantor, Vorlesungen, vol. I, p. 522. Mais detalhes em Cantor, Die römischen Agrimensoren und ihre Stellung in der Geschichte der Feldmesskunst. Leipzig, 1875.

[2] De nuptiis, Eyssenhardt (ed.), pp. 194–254.

[3] PL 70, 1212–16.

[4] PL 82, 161–3.

[5] Cf. Hankel, op. cit., pp. 312 e ss; Günther, op. cit., p. 14.

[6] Günther, loc. cit.

[7] De universo libri vigintiduo, PL 111, cols. 9–612 passim, esp. livros VI–X.

[8] V. Pez, Thes. 3, III, 630; Specht, 143–49.

[9] Cf. Specht, loc. cit.; Günther, op. cit., pp. 73 e ss., 115 e ss.

[10] A geometria de Boécio por anos constituiu uma Streitfrage entre os historiadores da matemática. O fato de o uso de apices, do ábaco e da multiplicação por colunas ser explicado entre o primeiro e o segundo livros no manuscrito mais antigo, que data do século XI, principiou a controvérsia em torno da origem do ábaco e da introdução do que podemos chamar notação hindu-arábica. Nessa controvérsia, os principais historiadores da matemática, Kastner, Chasles, Martin, Friedlein, Weissenborn e Cantor, entre outros, tomaram lados diferentes — alguns chegando ao ponto de negar a Boécio a autoria dos livros sobre geometria. O peso da autoridade (Cantor, Vorlesungen, vol. I, 540–51) parece confirmar que Boécio foi o autor da geometria contida nesses manuscritos. Naquilo que diz respeito a todos, porém, todos concordam: sendo ou não sendo de Boécio a autoria dos originais, é certo que esses livros-texto não foram usados nos dias de Gerberto. Texto de Boécio em PL 63, cols. 1037–64.

[11] Chasles, Geschichte der Geometrie, trad. Sohncke, p. 524. O último cotejo das fontes de Boécio consta em Weissenborn, Zeit. f. Math,u. Phys. vol. XXIV (1879), e sustenta a opinião de que Boécio lançara mão de um excerto de Euclides, e não do original.

[12] Bubnov, Gerberti opera mathematica, pp. 48–97.

[13] Cf. Günther, op. cit., pp. 115 e ss; Cantor, op. cit., I, 809–824; Gow, op. cit., pp. 205–6.

[14] Cf. Jourdain, Recherches sur les traductions latines d’Aristote, 1ª ed. (Paris: 1819), p. 100; Hankel, op. cit., p. 335. Cf. Weissenbom, in Zeit. f. Math. u. Phys. vol. XXV, suplemento, pp. 141–66. Essa obra passou pelo século como uma tradução original de Campano, e foi a primeira das edições latinas de Euclides, publicada em 1482. Referências a Geraldo em Ball, op. cit., p. 172.

[15] Sobre o texto de Jordano de Nemi, v. Curtze (ed.), ӷorn: 1887. Cf. Cantor, op. cit., I, pp. 670, 852, notas 1 e 2.

[16] Cf. Rashdall, op. cit., I, pp. 250, 442; Hankel, op. cit., pp. 356 e ss.; Günther, op. cit., pp. 199, 209 e ss., 215, 217, 281. É incorreta a aԂrmação de Compayré (Abelard and the Origin, and Early History of Universities, p. 182), de que apenas o Euclides de Boécio foi ensinado nas universidades. Os estatutos de Viena para o ano de 1389, aos quais nos referimos e citamos, dizem claramente: “cinco livros de Euclides”. É óbvio que isso não pode significar a geometria de Boécio, que tinha apenas dois livros. V. Kollar, Statua Universitatis, Vieniensis, I, p. 237, citado em Mullinger, The University of Cambridge, p. 351.

[17] Kastner, Geschichte der Mathematik, I, p. 260.

[18] Essa disciplina foi desenvolvida por Nicolau Oresme em Tractatus de latitudinibus formarum e Tractatus de uniformitate et deformitate intensionum.

[19] Cf. Tropfke, Geschichte der Elementar-Mathematik, II, pp. 407 e ss. Günther, op. cit., pp. 181, 199, 210, 211.

[20] Günther, loc. cit.

[21] Cantor, Vorlesungen, vol. II, pp. 35–40, 73–86, 113–118, 128–137. Cf. Curtze em Zeitsch. f. Math. u. Phys. XIII, suplemento pp. 79–104.

[22] Günther, op. cit., p. 162; Cajori, op. cit., p. 134.

[23] Isso é contestado por Hankel, op. cit., p. 349; e Compayré, op. cit., p. 182.

[24] Cf. Smith, Teaching of Elementary Mathematics, p. 229, nota 1 e 2; Ball, History of Mathematics, pp. 56–64

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