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Este é um blog sobre Matemática em geral, com ênfase no período clássico-medieval, também sobre as Artes liberais (Trivium e Quadrivium), so...

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Introdução geral ao Quadrivium (Matemáticas)

Sobre a imagem: O tetraktys dos pitagóricos ampliado pelo lambda do Timeu. Platão manteve três números escondidos e revelou apenas sete: $1, 2, 3, 4, 8, 9$ e $27$, em relação aos planetas. Seixos ou khálix (forma grega para “cal’’: resíduos de minerais ou metais após a calcinação) era a norma grega para a matemática.

Introdução Geral

O Quadrivium foi inicialmente formulado e ensinado por Pitágoras como o Tetraktys [1], por volta de 500 a.C., em uma comunidade em que todos eram iguais, até materialmente e moralmente, e na qual as mulheres possuíam um status equivalente ao dos homens. Foi a primeira estrutura de ensino europeia a aprimorar a educação enfocando em sete temas essenciais, depois conhecidos como as sete artes liberais.

Educação vem do latim educere [2], que significa "conduzir para fora" [3], apontando para a doutrina central que Sócrates, sob a pena de Platão, elucidou tão claramente — o conhecimento é parte inerente e intrínseca da estrutura de nossa alma. O Trivium da linguagem está estruturado sobre os valores fundamentais e objetivos da Verdade, da Beleza e da Bondade [4]. Seus três temas são: a Gramática, que assegura a boa estrutura da linguagem; a Lógica, para encontrar a verdade; e a Retórica, para o belo uso da linguagem ao expressar a verdade. O Quadrivium surge do mais reverenciado de todos os assuntos disponíveis à mente humana: o número. A primeira dessas disciplinas é a Aritmética. A segunda é a Geometria ou a ordem do espaço como número no espaço. A terceira é a Harmonia, que, para Platão, significava o número no tempo. A quarta é a Astronomia ou o número no espaço e no tempo. Todos esses estudos oferecem uma escada segura e confiável para alcançar os valores simultâneos da Verdade, da Beleza e da Bondade. Por sua vez, isso leva ao valor essencial e harmonioso da Totalidade.

A alma humana, que Sócrates provou ser imortal no Fédon, vem de uma posição de completo conhecimento antes de nascer no corpo. Recordar [5] — o ponto principal da educação — significa trazer novamente ao coração algo que ficou esquecido. O objetivo de estudar essas disciplinas era ascender de volta à Unidade através de uma simplificação, baseada na compreensão adquirida pela prática em cada área do Quadrivium [6]. A finalidade residia em encontrar sua fonte (tradicionalmente, este era o único propósito da busca do conhecimento).

Em sua discussão sobre os ideais da educação, Sócrates revela seu modelo de continuidade da consciência. Era como uma "linha" traçada verticalmente, atingindo desde os primórdios do conhecimento consciente em avaliações até o clímax da consciência como noesis, que é o entendimento unificado. Para além disso, está o indescritível e o inefável. Há, significativamente, quatro fases (outro quadrivium ou tetraktys) dadas pela divisão de Sócrates da "linha ontológica". A primeira divisão encontra-se entre o mundo sensorial e o mundo inteligível, que são fundamentais, assim como entre mente e matéria. A seguir, cada um deles é dividido. Esse é o lugar onde as avaliações podem ser distinguidas das opiniões — mesmo as opiniões corretas, porém ainda baseadas na experiência sensorial. Acima da primeira linha divisória, entramos no mundo inteligível da Mente e encontramo-nos no reino que "comporta a verdade" do Quadrivium. Este é agora o conhecimento objetivo. A última e mais elevada divisão do inteligível é o Nous ou Conhecimento Puro propriamente dito, em que conhecedor, conhecido e conhecimento se tornam Um. Essa é a finalidade e a fonte de todo o conhecimento. Assim, com tempo e sabedoria testados, o Quadrivium oferece ao buscador sincero a oportunidade de recuperar a própria compreensão interna da natureza integral do universo e de si mesmo como parte inseparável desse universo.

A aritmética possui três níveis: o materialmente numerado, o número dos matemáticos (indefinido) e o número ideal ou arquetípico completo no dez. A geometria desdobra-se em quatro estágios: o ponto não dimensional, que se move para se tomar uma linha; a linha move-se para se tornar um plano; e, finalmente, o plano alcança a solidez como o tetraedro. A harmonia, que é igualmente a natureza da alma, possui quatro "escalas", como a música: a pentatônica [7], a diatônica [8], a cromática [9] e a shruti [10]. A palavra cosmos foi criada por Pitágoras e significa "ordem" e "ornamento". Esta última era a forma com que os gregos descreviam o céu que podemos ver como um "ornamento" dos princípios puros, o número dos planetas visíveis relacionado aos princípios da harmonia proporcional. O estudo da "perfeição" do céu servia como uma forma de aperfeiçoar os movimentos da própria alma.

Dentre os estudantes do Quadrivium estão: Cassiodonus, Filolau (de Crotona), Timeu, Arquitas (de Tarento), Platão, Aristóteles, Eudemus, Euclides, Cícero, Fílon, o Judeu (de Alexandria), Nicômaco, Clemente de Alexandria, Orígenes, Plotino, Jâmblico, Macróbio, Capella (a versão mais divertida disponível), Dionísio Areopagita, Beda (o Venerável), Alcuíno, Al-Khwarizmi, Al-Kindi, Eurigena, Gerbert d’Aurillac (Papa Silvestre II), os Irmãos da Pureza, Fulbert, Ibn Sina (Avicena), Hugo de São Vitor, Bernardo Silvestre, Bernardo de Claraval, Hildegard von Bingen, Alanus ab Insulis (Alain de Lilles), Joaquim de Fiore, Ibn Arabi, Robert Grosseteste (o grande cientista inglês), Roger Bacon, Tomás de Aquino, Dante e Kepler.

Terminemos com uma citação dos pitagóricos, dos Versos Dourados: "E saberás que a lei [...] estabeleceu a natureza interna de todas as coisas de modo idêntico"; e com outra de Jâmblico: "Não foi por tua causa que o mundo (cosmos) foi gerado, mas foste tu que nasceste para o bem dele".

Keith Critchlow

Notas:

[1] Representação pitagórica em forma de triângulo, denominado "triângulo perfeito". Para os pitagóricos, os números mantinham uma relação direta com a matéria, considerando, por exemplo, o número $1$ como um ponto, o $2$ como uma reta, o $3$ como uma superfície, e o $4$ como um sólido. Assumindo que $1 + 2 + 3 + 4 = 10$, o número $10$ era visto como uma espécie de conjunto de $4$ elementos, o alicerce das coisas do mundo. Assim, de acordo com os pitagóricos, o $10$ corresponderia a um tetraktys. (N. T.)

[2] Verbo composto, formado pelo prefixo ex (fora) e pelo verbo ducere (conduzir, levar). (N. T.)

[3] Do inglês lead out, o verbo, aqui, não se aplica a um movimento físico de direcionamento, mas à ação de preparar um indivíduo para o mundo. (N. T.)

[4] Ver Irmã Miriam Joseph, O Trivium — As Artes Liberais da Lógica, da Gramática e da Retórica. São Paulo, É Realizações, 2014.

[5] Do latim, verbo composto pelo prefixo re (novamente) e pela palavra cordis (coração). (N. T.)

[6] É importante lembrar que. para os antigos romanos e gregos, o coração não era a sede dos sentimentos, como hoje pensamos, mas a localização física da mente, do pensamento. Além disso, a mente não estava situada na cabeça ou no cérebro, mas dentro do peito. Por isso, voltar a passar pelo coração significava a mesma coisa que voltar à mente ou retomar ao pensamento No original em inglês deste texto, o autor utilizou o verbo remember (lembrar, relembrar, recordar), associando-o literalmente à reunião de membros separados ou dispersos novamente em uma totalidade Por essa razão, segue-se a afirmação sobre a subida de volta à Unidade. (N. T.)

[7] Conjunto de todas as escalas formadas por cinco notas ou, em outras palavras, uma escala com cinco notas musicais por oitava. Escalas pentatônicas são muito comuns e podem ser encontradas em todo o mundo. As mais usadas são as pentatônicas menores e as maiores, que podem ser ouvidas em estilos musicais como o blues, o rock e a música popular. Muitos músicos chamam-na simplesmente penta. (N. T.)

[8] Escala de oito notas, com cinco intervalos de tons e dois intervalos de semitons (menor intervalo utilizado nessa escala) entre as notas. Esse padrão se repete a cada oitava nota, numa sequência tonal de qualquer escala É típica da música ocidental e concerne à fundação da tradição musical europeia. As escalas modernas maior e menor são diatônicas, assim como todos os sete modos tonais utilizados atualmente. (N. T)

[9] Escala que contém doze notas com intervalos de semitons entre elas. (N. T.)

[10] Termo sânscrito utilizado em diversos contextos ao longo da história da música indiana. Literalmente, significa "aquilo que é ouvido" e representa o menor intervalo de altura do som que o ouvido pode detectar. (N. T.)

***

Trecho extraído da introdução do livro O Quadrivium: as quatro artes liberais clássicas da aritmética, da geometria, da música e da cosmologia. John Martineau (org.). É Realizações, 2014. 


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Sobre as Sete Artes Liberais - Rabano Mauro

Trechos retirado do livro Trivium e Quadrivium publicado pelo Instituto Hugo de São Vitor da Coleção de Artes Liberais Vol. 1.

I. Sobre a Gramática e suas espécies

A primeira das artes liberais é a gramática, a segunda retórica, a terceira dialética, a quarta aritmética, a quinta geometria, a sexta música, a sétima astronomia. A gramática tem seu nome de gramma, letra, como a etimologia da palavra mostra, pode-se definir: a gramática é a ciência que ensina ao explicar os poetas e historiadores e a maneira de escrever e falar corretamente. Ela é a origem e o fundamento das artes liberais, e é apropriado lê-la na escola católica, porque nela é baseada a arte da correta fala e escrita. Como alguém reconhecerá o poder da palavra falada ou o significado das letras e sílabas se não a aprendeu primeiro? Ou como alguém poderia entender a diferença de nível, pronúncia e grau de comparação se não fora ensinado sobre isso neste assunto? Ou como se saberiam as regras sobre as partes do discurso, a beleza das figuras, o poder das figuras, os princípios da explicação das palavras, a grafia correta, se não se familiarizou com a arte da gramática antes? Sem falhas, e não apenas isso, é louvável que quem aprende e adora esta arte, o faça não como um argumento vazio com palavras, mas aprenda a arte da fala e da fluência correta na escrita. Ela é a juíza de todos os escritores de livros porque condena todos os erros assim que os vê e confirma a boa ortografia com o seu consentimento. Todas as figuras do discurso, tantas das quais a arte secular conhece, podem ser encontradas nos livros sagrados. Além disso, nossos escritores usaram gravuras com mais frequência e abundância do que se possa pensar e acreditar e qualquer um que ler cuidadosamente os livros sagrados encontrá-las-á.  E não há apenas exemplos de todas essas figuras, mas algumas delas também estão nos próprios nomes dos livros bíblicos, como alegoria, enigma, parábola. Portanto, todo o seu conhecimento é necessário para esclarecer certas partes das Escrituras; porque se alguém quisesse usar as palavras no sentido apropriado, não haveria mais dúvidas. Portanto, é necessário examinar se isso ou aquilo que não entendemos é talvez uma expressão pictórica; dessa maneira, a maior parte do que antes era escuro ficou claro. O ensino dos metros dos versos — que também é tratado na gramática — também não deve ser negligenciado, porque, segundo o testemunho de São Jerônimo, o saltério hebraico às vezes se move em jâmbicos, às vezes soa no verso alcéico, às vezes soa na estrofe sáfica, às vezes dá passos de meio metro. O Deuteronômio, a canção de louvor de Isaías, bem como Salomão e Jó, são originalmente compostos por hexâmetros e pentâmetros fluidos, como atestam Josefo e Orígenes. Portanto, não é necessário desconsiderar esse ensinamento, embora geralmente seja encontrado entre escritores pagãos, deles aprenda-se o quanto for necessário. Muitos homens cristãos escreveram livros sobre essa arte a partir de livros desenhados e tentaram agradar a Deus: Juvenco, Sedúlio, Arator, Alcuíno, Clemente, Paulino, Fortunato e muitos outros. No entanto, se quisermos ler os poemas e os livros dos pagãos em geral pelo bem de seus discursos, devemos proceder como a mulher no cativeiro, de quem o quinto livro de Moisés fala. Lá, o Senhor ordena que, se um israelita quiser que ela seja sua mulher, ela deve raspar os cabelos da cabeça, cortar as unhas, tirar o vestido em que foi pega e depois deixá-la sob a autoridade do vencedor. Se entendermos isso pela letra, é ridículo. Por isso, também fazemos isso e precisamos fazê-lo quando lemos os poetas pagãos, quando livros de sabedoria mundana entram em nossas mãos. Se encontrarmos algo útil, aplicamos à nossa doutrina; mas o que é prejudicial, dos ídolos, dos casos de amor, das preocupações com as coisas temporais devem ser eliminadas e cortadas com a faca mais afiada. Mas, acima de tudo, temos que garantir que essa liberdade não irrite os fracos, para que o irmão, que ainda é fraco em nossa ciência e por quem Cristo morreu, não pereça quando nos vir lidar com os ídolos.

II. Sobre a Retórica

A retórica, como dizem os professores, é a instrução para falar bem na sabedoria secular, na medida em que se relaciona com questões civis. Se, mesmo depois dessa explicação, parece se referir apenas à sabedoria mundana, ainda permanece não muito distante da sabedoria da Igreja. Porque tudo o que o orador e professor da lei divina ensina de maneira eloquente e delicada, ou o que ele apropriada e refinadamente coloca no papel se relaciona com a experiência nesta arte. Aqueles que adotaram esta arte em tempo hábil e que seguem suas regras ao escrever e ao fazer um discurso não precisam temer que estejam cometendo um erro; e quem dela se apropria tão perfeitamente para pregar a Palavra de Deus está fazendo um bom trabalho. Pois tanto a verdade quanto a falsidade podem ser aconselhadas. Quem ousaria dizer que a verdade deve estar indefesa contra as mentiras, de modo que aqueles que querem impor algo errado sejam ínclitos, atentos e dóceis ao ouvinte, e nós não? Que eles representam o errado de maneira sucinta, clara e plausível, enquanto nós apresentamos a verdade de tal maneira que os ouvintes se cansam e não entendem o que é dito? Que eles que aparentemente atacam a verdade e pregam o falso, mas que nós sejamos incapazes de defender a verdade e refutar o falso? Que eles enganam e levam a mente do ouvinte ao erro, aterrorizam, entristecem, a aquecer os ânimos com suas palavras, mas que nós somos preguiçosos, frios e sonolentos à verdade? Quem seria tão irracional em pensar que isso é razoável? Então o dom da fala é um meio, de fato, que pode ajudar muito a falar sobre o mal e o bem. Por que o homem bom não deve se esforçar por adquiri-lo, de modo a argumentar a favor da verdade, mais do que os maus em favor de seus atos errados e vãos? O que quer que seja considerado um hábito e uma regra aqui, tu só podes alcançar o que é chamado eloquência pelo uso apropriado das ricas técnicas e pela prática constante da língua. E isso deve ocorrer em um tempo definido especificamente para esse fim e em idade apropriada nas quais aprende-se e adquire-se a arte rapidamente. Mesmo os oradores mais excelentes entre os romanos não deixaram de dizer que essa arte só pode ser aprendida cedo ou nunca. No entanto, não a valorizamos tanto que desejamos incentivar pessoas mais maduras a fazê-lo. Basta que alguns jovens se esforcem para fazer o que é preciso em benefício da Igreja, mas apenas aqueles que ainda não são requisitados para coisas mais urgentes. Porque se tu não tens um espírito aguçado e vivo, é mais fácil obter eloquência ouvindo homens eloquentes ou lendo seus escritos do que estudando as regras da eloquência. Além dos livros canônicos, não deve haver falta desses escritos eclesiásticos, que estão associados à barreira protetora da autoridade superior. E bom que o jovem leia e compreenda e, se prestar atenção ao conteúdo, que seja pelo menos influenciado pelo modo de falar sobre o assunto, principalmente ao lidar com ele quando existe a prática de escrever, dispor e, finalmente, também recitar o que ele acredita de acordo com a piedade e a regra da fé. Mas isto já é o suficiente sobre a retórica, mais abaixo explicarei as regras para os diferentes tipos de eloquência em mais detalhes.

III. Sobre a Dialética

A dialética é a ciência da razão, que ensina a investigar, definir e explicar os termos, para poder distinguir o verdadeiro do falso. E, portanto, a ciência das ciências; ensina como ensinar e como aprender; nela, a razão mostra e se abre ao que é, ao que quer e ao que vê. Ela sozinha define o que é conhecimento e, além de querer nos dar o conhecimento, também pode fazê-lo. Ao raciocinarmos através dela, podemos concluir o que somos e de onde viemos; através dela, reconhecemos quem é bom e o que é bom, quem é o criador e a criatura; através dela, exploramos o verdadeiro e reconhecemos o errado; através dela, aprendemos a tirar conclusões e descobrir o que é o certo a ser seguido e não o que está em conflito com a essência das coisas, o que é verdadeiro em questões e disputas, o que é provável e o que está completamente errado. Nesta ciência, investigamos tudo engenhosamente, explicamos corretamente e discutimos com Sabedoria. Portanto, o clero deve entender essa nobre arte e manter suas regras sob constante reflexão, para que possam ver claramente a astúcia dos professores mal orientados e refutar seus ditos envenenados com conclusões engenhosas. Porque existem muitas das chamadas falácias, falsos raciocínios, que geralmente são tão parecidos com os reais que enganam não apenas fracos, mas também os inteligentes se não estiverem atentos. Em uma conversa entre dois, um afirmou: “O que eu sou, você não é”. O outro admitiu. Era parcialmente verdade, em parte porque um era um pouco mal intencionado e o outro era inofensivo. Depois, acrescentou: “Mas eu sou um ser humano.” Isso também foi admitido pelo outro, do qual surgiu a conclusão: “Então você não é um ser humano”. Na minha opinião, essas conclusões cativantes abominam as Escrituras na maior parte do tempo em que diz: “Quem fala enganosamente é odioso”. Aliás, esse discurso, que não é cativante, mas tem mais decoração das palavras do que dignidade, é chamado de enganador. Também existem raciocínios corretos que levam a conclusões erradas tiradas do erro da pessoa com quem se está tratando. Mas eles também são atraídos por um homem justo e educado, de modo que o homem que persegue o erro, se envergonha de desistir do erro. Porque se ele quisesse permanecer nele, ele também teria que aceitar o que rejeita como errado. Portanto, não foi uma conclusão correta quando o apóstolo disse: “Assim, Cristo não ressuscitou”; e quando ele acrescenta: “Portanto, nossa fé é em vão, também nosso sermão é em vão”. Isso é totalmente errado, porque Cristo ressuscitou e o sermão daqueles que creram não foi em vão. Mas, como a conclusão está errada, a premissa também deve estar errada. Este pré-requisito diz: “Não há ressurreição dos mortos”, diziam aqueles cujo erro o apóstolo queria refutar. Pois, a partir do pré-requisito que estabeleceram que não há ressurreição dos mortos, segue-se necessariamente: “Portanto, Cristo não ressuscitou”. Agora, esta conclusão está errada, pois Cristo ressuscitou. Daí a premissa de que não há ressurreição dos mortos é ruim. Portanto, há uma ressurreição dos mortos. Em poucas palavras, toda essa evidência é a seguinte: “Se não houver ressurreição dos mortos, Cristo não terá ressuscitado. Mas Cristo ressuscitou, então há uma ressurreição dos mortos”. Como as conclusões corretas podem assim ser derivadas não apenas da verdade, mas também de pressupostos errados, é fácil aprender uma conclusão correta também nas escolas que estão fora da Igreja. Permaneça na Igreja, mas as frases verdadeiras podem ser encontradas nos santos livros eclesiásticos, mas a exatidão das conclusões não foi introduzida pelos homens, mas foi percebida e observada por eles e pode ser aprendida e ensinada. Está na natureza imperecível e determinada por Deus, como ele mesmo a criou. Isto é suficiente para a lógica, vamos à matemática.

IV. Sobre a Matemática

Matemática é o que em latim chamamos de ciência que ensina, que considera a quantidade abstrata. A quantidade abstrata é dita aquela que, pelo intelecto, separamos da matéria ou de outros acidentes, como as noções de par e ímpar ou outras coisas que somente tratamos pelo raciocínio. A matemática é dividida em aritmética, música, geometria e astronomia. Falarei delas de acordo com esta ordem.

Sobre a Aritmética

Aritmética é a ciência dos números em si mesmos. Portanto, é a teoria dos números, porque ἀριθμον em grego significa número. Os escritores seculares a colocam à frente das ciências matemáticas porque ela existe como um assunto independente, sem precisar de mais nada. Por outro lado, a música, a geometria e a astronomia precisam da aritmética para poderem existir. Josefo, o hebreu erudito, conta no capítulo 9 do primeiro livro de suas Antiguidades que Abraão ensinou aritmética e astronomia aos egípcios, e foi a partir desse ensino que estes homens engenhosos desenvolveram outros assuntos. Nossos Santos Padres aconselham, com razão, o estudo desta arte com grande entusiasmo, porque, dessa maneira, os pensamentos são, em grande parte, atraídos pelos sentidos e direcionados para o que podemos compreender com o coração com a graça do Senhor. O significado do número também não deve ser ridicularizado. Em muitos lugares, as Escrituras Sagradas mostram o quanto algo parece ser alto quando olhado de perto. Não é à toa que louvamos a Deus por ter criado tudo com tamanho, número e peso. Mas cada número é determinado por suas peculiaridades, de modo que nenhum deles pode ser igual ao outro. Eles são, portanto, desiguais e diferentes um do outro; cada um é diferente, cada um é limitado e todos são ilimitados. Mas quem se atreve a subestimar os números como se não pertencessem ao conhecimento de Deus? Pois Platão, que é tão respeitado, diz que Deus criou o mundo a partir dos números. Aqui também o Profeta diz de Deus: “Ele cria o mundo em números”. O Salvador também diz no evangelho: “Todo o seu cabelo é contado”. Os números se apresentam aos nossos olhos, como se fossem imagens dos corpos, por exemplo, quando se considera a composição, ordem e divisão do número de seis; no entanto, a visão mais alta e mais prevalente não concorda com ela, porque engloba a natureza do número; em outras palavras, significa que a unidade do número não pode ser dividida em partes, enquanto todos os corpos podem ser divididos em partes. “Sim,
o céu e a terra, criados após o número seis, passariam mais cedo do que poderia acontecer que o número seis não consistisse em suas partes. Portanto, não podemos dizer que o número seis é perfeito porque Deus fez tudo em seis dias, completou suas obras, mas é por isso que Deus completou suas obras em seis dias, porque o número seis é perfeito. Portanto, se essas (obras) não estavam lá, que (número) seria perfeito; mas se não fosse perfeito, elas não seriam perfeitas. A ignorância dos números também é responsável pelo fato de que não se entende muitas coisas que são figuradas e misteriosamente mencionadas nas Escrituras. A mente inquiridora, pelo menos, não merece esse nome, a menos que saiba por que Moisés, Elias e o próprio Senhor jejuaram por quarenta dias. O significado secreto desta ação não pode ser explicado sem que se conheça este número. São dez vezes quatro, por assim dizer, o conhecimento de todas as coisas entrelaçadas com os tempos. Depois, em quatro, as horas do dia e as estações do ano correm; as horas do dia são as horas da manhã, meio-dia, tarde e noite; e as estações do ano a primavera, o verão, o outono e o inverno. Porém, enquanto vivermos no tempo, temos que evitar a conveniência dos tempos e jejuar pelo bem da eternidade em que queremos viver. A passagem do tempo já nos ensina que devemos subestimar o temporal e buscar o eterno. O número dez denota o conhecimento do criador e das criaturas. Como o número três vai para o criador, o número sete designa a criatura após a vida e o corpo. Como existem três, também devemos amar a Deus com todo o coração, alma e mente. No corpo, no entanto, os quatro elementos dos quais consiste são evidentes. Se tomarmos o número dez temporalmente, isto é, se o multiplicarmos por quatro, devemos recomendar que vivamos castos e relutantes em desfrutar do prazer temporal, ou seja, em jejuar por quarenta dias. E isso que a lei incorporada em Moisés quer; é isso que os profetas ensinam, representado em Elias; o próprio Senhor exorta a isso, que, como atestado pela lei e pelos profetas, foi transfigurado no meio da montanha diante dos olhos dos três discípulos espantados. Há também a questão de como o número cinquenta vem de quarenta. Esse número também é santificado em grande parte em nossa religião pelo Pentecostes. Se tomares as mesmas três vezes, por causa das três vezes antes da lei, sob a lei e sob a graça, ou por causa do nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, adicionarás as três, por causa do segredo mais sublime e sagrado da nossa Igreja, existem 153, que é o número de peixes capturados nas redes jogados para a direita após a ressurreição do Senhor. Ainda existem muitos relacionamentos secretos entre as diferentes formas de números nos livros sagrados que estão ocultos aos leitores por causa da ignorância dos números. Portanto, aqueles que querem aprender sobre as Escrituras devem aprender diligentemente esta arte. Se a aprenderes, entenderás os números misteriosos nos livros sagrados com mais facilidade.

V. Sobre a Geometria

Agora queremos passar para a geometria, que consiste na representação vivida das figuras. E uma ferramenta de ensino amplamente utilizada pelos filósofos, que dizem que Júpiter pratica constantemente geometria em seus trabalhos. Mas me parece questionável se há elogios ou críticas, a saber, se eles confessam que Júpiter desenhe no céu o que eles representam com areia colorida na terra. Se estivesse corretamente relacionada ao verdadeiro Criador e Deus Todo-Poderoso, a frase seria, na melhor das hipóteses, baseada na verdade. Pois a Divindade Sagrada é baseada na geometria, se assim se pode dizer, atribuindo diferentes tipos e formas às suas criaturas, que Ela ainda chama à existência; ou se Ela dirige às estrelas com seu poder digno de adoração, deixa os planetas rolarem certos círculos e grampeiam as estrelas fixas em certos pontos. Os ensinamentos dessa ciência podem ser aplicados a tudo que está bem organizado. De acordo com o texto, geometria significa medir a terra. Sua definição é: a ciência de tamanhos e formas imóveis. Segundo as várias figuras, o Egito foi distribuído pela primeira vez aos proprietários individuais, como alguns dizem. Os mestres nesta arte foram, portanto, chamados de agrimensores. Mas Varro, um dos mais instruídos entre os latinos, diz que esse nome vem do fato de que uma vez que as pessoas mediam os países e definiam as fronteiras, povos errantes a usaram para os acordos de paz; depois, eles teriam dividido todo o curso do ano em meses, e, portanto, os meses também têm seu nome como corte do ano. Mas quando essas coisas foram encontradas, elas foram levadas pela curiosidade a investigar o invisível e começaram a perguntar a que distância a lua estava da terra, a que distância o sol estava da lua; quanto é a distância até o ápice do céu. Os geômetras mais habilidosos, ele diz, teriam revelado isso. Então, como ele relata com credibilidade, toda a Terra foi ocupada, e é por isso que a própria ciência recebeu o nome de metrologia da terra, que agora se mantém há muitos séculos. Essa ciência também foi usada na construção do tabernáculo e do templo, onde há círculos e esferas da mesma escala, depois também hemisférios, quadrados e outras figuras. Saber tudo isso é de grande benefício para aqueles que estão preocupados com isso, para uma compreensão mais profunda.

VI. Sobre a Música

A música é a ciência que lida com as relações dos números, principalmente os encontrados nos tons, como duplo, triplo, quádruplo e similares. Esta ciência é, portanto, tão nobre e tão útil que aqueles que não a possuem não podem preencher adequadamente um ofício espiritual. Isso pode ser devido à pronúncia correta das leituras, ao adorável canto dos salmos na igreja, essa ciência leva a isso, e não apenas para ler e cantar na igreja, mas para realizar todo o culto adequadamente. Assim, o assunto da música se estende a todas as ações de toda a nossa vida da seguinte maneira: Primeiro, quando observamos os mandamentos do nosso Criador e O servimos com a mente pura no momento certo. Porque tudo o que estamos falando ou o que nos move internamente devido à pulsação prova que tudo está conectado com forças harmônicas através do ritmo da música. A música é a ciência da batida e medida certa. Portanto, se lutarmos por uma causa justa, nos mostraremos como verdadeiros amigos desta arte; mas quando fazemos o mal, não temos harmonia. Até o céu e a terra, junto com tudo o que acontece neles através de influência mais alta, nada mais são do que música; Pitágoras afirma que este mundo foi criado pela música e pode ser governado por ela. Também está intimamente relacionado à religião cristã; portanto, a ignorância de algumas coisas musicais esconde e obscurece muitas coisas. Alguém levantou temas engenhosos sobre a diferença entre harpa e citara; e, quanto à harpa de dez cordas, os estudiosos argumentam com razão se existe uma lei musical que exige um número tão grande de cordas ou, se esse não for o caso, se esse número não é particularmente sagrado por causa dos dez mandamentos da lei. Se a pergunta também for levantada por causa desse número, ela deve ser encaminhada apenas ao criador e à criatura, como foi demonstrado em relação ao número dez acima. Até o número de anos que levou para a construção do templo, 46, segundo o Evangelho, parece expressar algo harmonioso. Se alguém se refere ao templo do corpo do Senhor, o que significa quando o templo é mencionado, muitos dos professores de erros têm que admitir que o filho de Deus não adotou um corpo aparente, mas real e humano. Portanto, descobrimos que tanto os números quanto a música são honrados em muitos lugares das Escrituras Sagradas. Tão longe de nós estão os erros da superstição pagã, que as nove musas inventaram como as filhas de Júpiter e Mnemosine (memória). Varro já os refutou, e não creio que tenha havido um pesquisador acadêmico e engenhoso nesse assunto. Ele diz que uma cidade — não me lembro o nome — ordenou que três estátuas das musas de três artistas fossem colocadas como presentes votivos no templo de Apoio, para que fossem comparadas e a mais bela, escolhida e comprada. Mas aconteceu que esses artistas apresentaram suas obras igualmente bonitas, de modo que os cidadãos gostaram das nove. Então todas foram compradas para serem dedicadas a Apoio no templo. Então, ele diz, o poeta Hesíodo acrescentou os nomes a elas. Sendo assim, Júpiter não criou as nove musas, mas três artistas produziram três cada. Mas os três escolheram a cidadania não porque os viram em seus sonhos ou porque muitos estavam flutuando na frente de qualquer um deles, mas porque era fácil observar que toda nota que forma a base da melodia tem uma natureza tríplice: ou é provocada pela voz, como naqueles que cantam com a garganta sem acompanhamento instrumental; ou tocando, como trombetas e flautas; ou golpeando, como citaras e tímpanos e todos os outros instrumentos, que são tocados com golpes. Seja como Varro relata ou não, não precisamos fugir da música por causa de abusos supersticiosos se pudermos aprender algo que seja útil para entender as Escrituras. Nem devemos nos permitir ser tentados às piadas teatrais se estivermos lidando com citaras e instrumentos de som para obter ganho intelectual. Nós também não aprendemos as ciências, embora elas tenham Mercúrio como deus da virtude e da justiça porque honram as consagrações do templo em homenagem a elas e preferem adorá-las em pedras, em vez de em corações? Todo o bom e verdadeiro cristão deve estar convencido de que, onde quer que encontre a verdade, seu Deus também estará presente.

VII. Sobre a Astrologia

Finalmente, há a astronomia, que, como alguém disse uma vez, é uma ferramenta de ensino digna para os piedosos e um grande incômodo para os curiosos. Ou seja, quando a exploramos com uma mente mais alta e humilde, ela preenche nossa mente, como dizem os idosos, com grande clareza. O que significa subir ao céu em seus pensamentos, investigar sua formação como um todo com um espírito inquiridor e, pelo menos parcialmente, compreender a nítida perspicácia da mente que criou um espaço tão grande! Porque, como dizem alguns, o mundo deve ser agrupado em uma bola redonda e, assim, compreender as várias formas de coisas ao seu redor. Sêneca, de acordo com as investigações dos filósofos, escreveu um livro sobre esse assunto com o título “A Forma do Mundo”. A astronomia com a qual estamos lidando agora é chamada Lei das Estrelas, porque elas não fazem isso de outra maneira além daquela determinada pelo Criador, e nem existem ou se movem a menos que mudou milagrosamente após a decisão divina. Lemos que Joshua Nave ordenou que o sol em Gabaon ficasse parado, e que em sua época de o rei Ezequias recuou dez passos, para que o sol escurecesse por três horas, o tempo em que o Senhor sofreu, e que milagres são chamados de fenômenos porque se destacam de uma maneira impressionante contra o curso normal da natureza, como dizem os astrônomos. As estrelas parecem estar firmemente no céu, por outro lado, os planetas se movem, isto é, são estrelas errantes, que completam seu curso de acordo com certas leis, como já foi dito. A astronomia é a ciência que lida com o curso e as imagens das estrelas, bem como com todos os relacionamentos das estrelas entre si e com a terra com um espírito inquiridor. Há uma certa diferença entre astronomia e astrologia, embora ambas façam parte de uma só ciência. Porque a astronomia inclui a rotação do céu, a ascensão, o pôr e o movimento das estrelas e de onde elas receberam seu nome. Em contraste, a astrologia se baseia em parte na natureza, em parte na superstição. A astrologia natural deriva uma certa qualidade de tempo do curso do sol, lua e estrelas; a supersticiosa, no entanto, é aquela que os matemáticos seguem, aqueles que contam a sorte nas estrelas, que distribuem os doze sinais do céu entre os membros individuais da alma ou do corpo e tentam dar natividade às pessoas a partir do curso das estrelas. Esta parte da astrologia — que se baseia na exploração da natureza, explora cuidadosamente o curso do sol, da lua e das estrelas e de certas mudanças no tempo — o clero cristão deve adquirir com um exame cuidadoso, a fim de fazer suposições confiáveis baseadas nas regras confiáveis e tirar conclusões inequívocas não apenas para investigar períodos passados de acordo com a verdade, mas também para poder julgar o futuro com probabilidade. Também deve poder observar cuidadosamente o início da Páscoa e os horários específicos de todos os festivais e celebrações, a fim de torná-los conhecidos do povo cristão pela celebração.

VIII. Sobre os livros dos filósofos

Creio que expliquei suficientemente o quão útil é para os católicos aprenderem as sete artes liberais das formas seculares. Queremos acrescentar que, se há algo nos escritos e tratados dos chamados filósofos que seja verdadeiro e de acordo com nossa crença, especialmente entre os platônicos, não só não precisamos ter medo, mas também devemos nos apropriar de tudo. Pois como os egípcios não apenas tinham ídolos e serviços religiosos que o povo de Israel detestava e fugia, mas também vasos de ouro e prata, e roupas que estes secretamente se apropriavam para um melhor uso quando saíram do Egito, não por sua própria presunção, mas porque foi ordenado por Deus que os próprios egípcios emprestaram, sem pensar, o que não usavam adequadamente. Sendo assim, todos os sistemas de ensino pagãos contêm não apenas poemas falsos e supersticiosos e um fardo opressivo de trabalho inútil, que cada um de nós, aqueles que Cristo chamou, deve evitar. Mas entre elas estão as artes liberais que acabamos de discutir, que são muito adequadas ao serviço da verdade e são muito úteis à vida, existe algo do Deus verdadeiro entre elas. E estas coisas pagãs, como se fossem ouro e prata, não os prepararam, mas antes cavaram os poços para Providência Divina, que permeia tudo; mesmo fazendo isso às mentiras, erros e injustiças e as usando mal a serviço do diabo. O cristão agora, que em espírito se afasta de sua triste condição de pecado, deve aprender estas artes e usá-las para o fim correto, para a proclamação do evangelho. Também suas roupas, isto é, suas instituições humanas, adaptadas à sociedade civil e indispensáveis para esta vida, podem ser apropriadas para uso cristão. E o que mais muitos de nossos bons crentes fizeram? Eles não se mudaram do Egito com tanto ouro, prata e roupas quanto possível? Tanto Cipriano, tão distinto e professor amoroso quanto um mártir feliz, quanto Lactâncio, Victorino, Optato, Hilário e inúmeros estudiosos seguiram o exemplo dado pelo servo mais fiel de Deus, Moisés, que disse: “Ele foi ensinado com toda a sabedoria dos egípcios”. O paganismo supersticioso nunca teria de todos esses homens — e menos ainda no momento em que era sacudido o jugo de Cristo e seus discípulos perseguidos — as ciências que lhe pareciam úteis, se houvesse suspeita de que elas poderiam ser usadas para adorar o verdadeiro e único Deus, por quem o serviço ocioso dos ídolos foi destruído. Então eles deram ouro, prata e roupas ao povo de Deus que saiu do Egito, sem perceber que seus dons seriam usados para servir a Cristo. Porque, sem dúvida, o que aconteceu quando deixei o Egito, figurativamente, deve ser entendido, com aquilo que não quero antecipar outra interpretação igualmente boa ou melhor. Mas um leitor das escrituras assim preparado pode levar isso a sério quando ele começa a pesquisá-las, a saber, que ele não esquece o ditado do apóstolo: “A ciência infla, o amor edifica”. Essa deve ser a atitude dele, não importa quão ricamente ele se mude do Egito, porque se ele não celebra a Páscoa, ele não pode ser salvo. “Nosso Cordeiro da Páscoa, Cristo, foi sacrificado”. E o sacrifício de Cristo não nos chama nada mais insistente do que aquilo que ele mesmo chama àqueles a quem ele lutou no Egito sob o faraó: “Vinde a mim todos vós que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei”. Leve meu jugo e aprenda comigo; porque sou manso e humilde de coração; encontrarás descanso para tua alma, porque meu jugo é doce e meu fardo é leve.

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Matemática Sagrada na Divina Comédia de Dante

Deus como criador geômetra do
Universo, ideia muito presente
no Quadrivium

Por José Carlos Fernández -- Escritor e diretor da Nova Acrópole Portugal.

Giovanni Bocaccio na sua belíssima biografia de Dante Aliguieri, no capítulo sobre a sua educação, diz:

“E dando-se conta de que as obras dos poetas não são vãs nem simplesmente fábulas ou maravilhas, como pensa a estulta multidão, senão que nela se encontram os doces frutos da verdade histórica e filosófica (motivo pelo qual a intenção dos poetas não pode ser entendida completamente sem um conhecimento de história, de moral e de filosofia natural) elaborou uma sensata divisão do seu tempo e esforçou-se em aprender história pelos seus próprios meios e filosofia sob a tutela de vários mestres, o que conseguiu com prolongado estudo e esforço. E arrebatado pela doçura em conhecer a verdade das coisas divinas e não encontrando na vida nada que lhe fosse mais querido, pôs completamente de parte todas as outras preocupações, consagrando-se por completo à sua demanda. E para que não deixasse qualquer parte da filosofia sem investigar, a sua mente sagaz examinou as profundezas mais ínfimas da teologia. E o resultado não ficou muito distante da intensão. Insensível ao frio e ao calor, com jejuns e vigílias, e no meio de qualquer outro tipo de aspereza física, acabou por conhecer graças a um estudo assíduo, tudo o que inteligência humana pode conhecer da essência divina e dos anjos. E como nas várias etapas da sua vida estudou os diferentes ramos do conhecimento, deste modo continuou os seus diversos estudos sob a direção de diversos mestres.”

O que diz implica que estudou a fundo as disciplinas do Trivium (Gramática, Retórica e Dialética) e Quadrivium (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia).

Recordemos que estas disciplinas, e seguindo a filosofia platônica, estavam desenhadas para elevar a consciência humana ao plano dos Ideais, abrindo o olho da alma a esta dimensão do inteligível. Isto é, permitiam conjugar e viver a chave que faz irmãos todos os outros conhecimentos, afirmar o sentido e lei de analogia que nos permite penetrar no mistério. O objetivo não era simplesmente aumentar o conjunto dos nossos conhecimentos, mas também ir desvelando cada vez mais claramente as certezas, como estrelas, no “Tudo está em Tudo” dos magos e alquimistas. Repito, o objetivo, que seria coroado após a morte, deixando as roupas velhas que nos atam aos sentidos, era voltar às “estrelas do Real”, pois tudo o que existe é filho de uma Estrela (não as do céu sensível), de uma Verdade infinitamente simples, o desenvolvimento do seu “fio de vida” nos caminhos do espaço, do tempo e da causalidade.

Não seria Dante alheio a este mistério, como o insinua várias vezes na sua Divina Comédia. Além disso, para o confirmar, o último verso da cada parte (ou seja, Inferno, Purgatório e Paraíso) termina, como nos recorda Boccaccio, com a palavra “estrelas”.

Há uma relação entre as Estrelas, os Deuses ou Arquétipos, as Monadas, os Átomos e os Números, e a Matemática que se expõe de modo aberto ou oculto, encriptado, na Divina Comédia é uma Matemática Sagrada.

Esquema do Purgatório da Divina Comédia de Dante

Vejamos alguns exemplos e simetrias:

O triângulo, figura geométrica que alude à Santíssima Trindade (ou seja, o Fogo Divino) e o número $3$, que é o seu fundamento aritmético, aparecem continuamente na obra que está dividida em três partes, de $33$ cantos cada uma, aos que se somam um de introdução. A soma total é então de $100$ cantos, o número da perfeição, do desenvolvimento vivo e no todo da Unidade.

Os versos, hendecassílabos, dançam também de $3$ em $3$, com uma rima entrelaçada, ABA BCB CDC, etc., ou seja, tercetos entrelaçados ou terza rima, que Dante diz ter inventado, em estrofes de $10$ versos.

A respeito da importância do $10$, recordemos que resume a Tetractis e fecha um ciclo. Na Matemática Sagrada diz-se que está completo tudo o que chega ao estado quatro da sua realização (por exemplo, Fogo, Ar, Água e Terra) dado que cada elemento se soma aos anteriores e assim dizer $4$ é como dizer $10$. Sendo $10$ ($1+2+3+4$) o número triangular por excelência (junto com o $3$ ou o próprio triângulo).

Dez são, também, as esferas celestes (as $7$ dos planetas, a $8$ correspondente às Estrelas fixas, a $9$ à do Primeiro Móbil, e a $10$ o Empíreo ou Luz pura de Deus) sobre as que reinam as hierarquias angélicas, também dispostas em torno do Ponto Central ou Deus.

Como reflexo invertido, $9$ são os Infernos, sendo o centro imóvel a massa pétrea da Terra, para onde tende toda a gravidade do material, o décimo invertido. Ou talvez o décimo seja a antessala, onde moram os que não deixaram pegada no mundo, nem infâmias, nem mérito algum, que correm sem descanso picados por insetos, os das obras por realizar. 

Inclusivamente, o Purgatório também está dividido em dez, sete para redenção e purificação dos pecados capitais, dos ante-purgatórios e o Paraíso Terrenal ou Éden onde viveram de forma pura os primeiros pais, já aberto ao Paraíso Celestial.

Como já temos visto em vários artigos, um dos grandes segredos matemáticos da antiguidade foi a chamada Divina Proporção, que Platão define como a relação entre duas partes de um segmento de modo que a relação entre a menor e a maior seja equivalente à da maior e o segmento inteiro.

Já sabemos que este Número ou Proporção, $\varphi = 0,618...$ e a sua inversão, $1,618$ (a relação entre a parte maior e a menor, entre o todo e a parte maior).

Ainda que este segredo – como nasceu, a equação, qual o seu significado matemático filosófico – devia estar reservado a um círculo restrito, mas não a sua aplicação em geometria como vemos continuamente nas catedrais góticas, por exemplo.

No artigo “Números na Comédia” de Marcos Perilli, o autor aplica a mesma proporção ao número de cantos da obra e também em cada uma das partes obtendo um resultado realmente surpreendente.

Os $100$ Cantos, multiplicados por $0,618$, dá-nos o canto $61.8$, ou seja, os últimos parágrafos do $61$. E é exatamente, quando Virgílio, no Purgatório, anuncia a separação com Dante.

Literalmente:

“Não esperes minhas palavras, nem conselhos
Já; são e reto é teu arbítrio,
e seria um erro não obrar o que ele te diga:
e por isto te mitro e te coroo”.

Se entendermos que Virgílio, como Mestre-Guia representa a Mente Superior ou a Razão Humana (Manas) e Beatriz a Alma divina (Budhi), é um ponto de viragem muito importante. Virgílio guiou-o pelo Inferno e pelo Purgatório. Como muito bem explica o autor do artigo:

“A chave está nos cantos contínuos: foi a despedida de Virgílio, a última sentença que a razão expressa. O tema do livre-arbítrio é central na Comédia; e é central no sentido geométrico do plano. A razão humana, a filosofia, o juízo que se aperfeiçoa, são o processo que leva a alma a conhecer-se a si mesma e, por fim, portanto, a preparar-se para a viagem transcendente: Virgílio vai-se, chega Beatriz, a teologia, o caminho imaterial para o céu. O ponto áureo do poema coincide com esta transição: da filosofia à teologia, da razão humana à razão divina, do corpo ao espírito, da terra e da água ao ar e ao fogo”.

Aplica de novo esta proporção no livro do Inferno, e surge o parágrafo em que se revela como este se quebrou antes da chegada do Salvador, é a fenda que marca o seu caminho. Outro ponto de viragem é o da luz divina de Cristo entrando no Inferno e destruindo-o, abrindo o caminho para o Céu.

Estrutura geocêntrica do Paraíso de Dante.

Aplica-o depois aos $33$ cantos do Purgatório dando $20$ que indica o tremor, um terramoto, quando uma Alma é salva, que dele sai e é recebida no Paraíso, outro ponto de viragem.

E de novo aplica a secção áurea no Paraíso, que também surge no canto $20$, onde se explica como se salvam, milagrosamente e contra todo o prognóstico as almas de alguns pagãos por interseção divina, por exemplo, a de Trajano.

Tal como vemos no “homem de Vitrúvio”, a Proporção de Ouro, aplicada às diferentes partes e subpartes, vai marcando as articulações. Dante aplica-a a vários cantos e coincide com o fim ou princípio de uma história. Por exemplo, no Canto $34$ do Inferno, o verso que coincide com a proporção áurea é quando Virgílio sai do Inferno e faz que Dante saia de lá.

“Todos os exemplos apontam ao clímax narrativo ou ao nó conceptual de cada canto. O princípio é ativo no conjunto e nas partes, é norma de uso, ferramenta inteligente para traçar a geometria do mais além, a estrutura pensada como ideia, como trama e conteúdo.”

Explica também que o verso que exatamente se encontra no centro da obra completa diz: 

“se chora; e agora quero que conheças”
É o verso número $7117$ (de entre os $14.233$ da obra). Que está no terceto:
“Este triforme amor aqui debaixo
Se chora; e agora quero que conheças,
O que corre até ao bem corruptamente.”

Que é o coração filosófico da obra, pois diz Dante que a essência da natureza é o Amor, que simplesmente flui até ao terrenal e instinto de conservação, ou até ao celeste. Quem o determina é o livre-arbítrio de cada um.

Vejamos algumas simetrias mais que aparecem no dito artigo o qual recomendo a sua leitura, pois aqui simplesmente esboçam-se algumas ideias básicas.

“O nome de Virgílio aparece $32$ vezes, o nome de Beatriz, $64$ vezes. Virgílio está presente em $64$ cantos, Beatriz em $32$ cantos”.

A palavra “virtude” aparece $64$ vezes.

Logo sendo o $6$ o número da Justiça (as seis faces de um cubo perfeito, ou o duplo triângulo Fogo-Água) o Canto 6 do Inferno trata da situação política em Florença; no Purgatório, idem, na Itália inteira; e no Paraíso, idem, a história do Império Romano.

Outro número muito importante é o DXV dos versos. Depois de explicar a corrupção da Igreja e a sua rivalidade com o Império, um gigante, diz que:

Em que um quinhentos (D), um dez (X), um quinhentos (V)
Enviado de Deus, à rameira
Matará o gigante com quem peca.
(Purg., XXXIII, 43-45)

Diz-se que representa o DUX, um imperador arauto da vontade divina, que trará de novo a concórdia e a unidade a todos.

Sobre todos os valores, significados e alusões de este DXV, o pintor, escritor e especialista em Matemática Sagrada, Lima de Freitas (1927-1998) escreveu um livro, “$515$, o Lugar do Espelho”.

Ainda que o número que subjaz é o $10$, ou o $100$, como símbolos da Unidade desenvolvida, o que organiza a estrutura da natureza e a vida é o $7$, como temos analisado já muitas vezes. Isto mesmo vemos na Divina Comédia:

Os $7$ pecados capitais com os seus lugares de castigo próprios no Inferno.

As $7$ divisões do Purgatório, em que as almas se purificam destes pecados (os $7$ P’s na frente de Dante, que são gravados ao entrar no Purgatório e que um anjo vai apagando à medida que vai ascendendo pela sua montanha de purificação).

As $7$ damas que rodeiam o Carro tirado pelo Grifo e que representam as $7$ virtudes (incluídas as $4$ cardeais de Justiça, Prudência, Fortaleza e Temperança; e as $3$ teologais de Fé, Esperança e Caridade).

Os $7$ Planetas e as $7$ primeiras esferas associadas, no Paraíso.

Como bem diz o autor do artigo mencionado:

“O $7$, na Idade Média, é o número que ordena e organiza os sistemas, toda a articulação do pensamento”.

Dante e Beatriz encontram dois grupos de doze sábios na Esfera do Sol

Na Idade Média, seguindo o pensamento aristotélico da matéria e da forma, esta última é a alma, o espiritual de qualquer existência (que é, existência, precisamente, onde a matéria e a forma convergem). Mas a Forma não é apenas o perfil visual de algo, mas a sua alma, e, portanto, as qualidades e propriedades derivadas dela, e estas derivam, em última instância, de números.


Diz Dante, na sua Divina Comédia:

“Em tudo quanto existe há uma ordem, e esta é a forma pela qual o universo é semelhante a Deus. Aqui veem as altas criaturas o molde do eterno valor, o fim em que a referida forma é feita.”

De este modo, as almas desvinculadas do seu contato com a carne e a matéria grosseira são, como dizia Marco Aurélio, esferas perfeitas (mentalmente somos ovos de vida, tal é a forma da nossa aura em que se reflete a nossa existência de pensamentos e estados de consciência), ou pontos luminosos, os mesmos em que as fadas se fazem muitas vezes presentes.

Assim vê Dante, no Paraíso, na esfera de Saturno, os espíritos contemplativos:

“Voltei os olhos como ela quis [Beatriz] e vi cem pequenas esferas que se embelezavam umas às outras com os seus respetivos raios.”

E a respeito da forma, ainda não no Paraíso, Dante sente-se como uma pirâmide, como um tetraedro, firme e flamejante, bem como o fogo que esta forma representa: “Oh, minha querida planta, que te elevas tanto, que olhando o Ponto a quem todas as coisas são presentes, vês as coisas contingentes antes de serem elas mesmas, como veem as inteligências terrestres que dois ângulos obtusos não podem caber num triângulo! Enquanto acompanhado por Virgílio subi a montanha onde as almas se curam e quando baixava pelo mundo dos mortos, disseram-me coisas graves acerca da minha vida futura, e ainda que me considere um tetrágono diante dos golpes da desgraça, quisera saber qual é a sorte que me está reservada, pois o dardo previsto fere com menos força.”

Dante e Beatriz veem Deus como
um Ponto de Luz rodeado de anjos

Deus, que é o que irradia a essência ou Luz Divina Absoluta de que estão feitas todas as formas, é, para Dante, “a Igualdade Primeira”, ou seja, aquele em que tudo é unidade, ou a unidade da que tudo é. Diz:

“Desde que a Primeira Igualdade se tornou evidente, o afeto e a inteligência têm um peso igual em cada um de vós, porque nesse Sol, que vos ilumina e vos queima com a sua luz [sabedoria] e calor [amor] são tão iguais nessa virtude que toda a semelhança é pouca.”

O no Canto $28$ do Paraíso que vê a Deus como Ponto Único e Infinito. E é lógico que seja neste lugar, e no nono céu, o Primeiro Móbil. O Canto é o $28$ porque este número é um número perfeito (ou seja, aquele que é a soma dos seus divisores, neste caso $1, 2, 4, 7, 14$). Este Ponto Único é a melhor forma de simbolizar Deus, ainda que não fique claro, na minha opinião se é ou não é Deus, dado que este é percebido no final como a Santíssima Trindade, como $3$ Círculos entrelaçados pela Luz divina. Todas as hierarquias angélicas giram ao redor de este Ponto e de Ele recebem a sua luz e o seu poder. É um Ponto, como nas tradições orientais para representar o mistério da Divindade, cujo movimento é perpétuo. Recordemos os ensinamentos da Doutrina Secreta de Blavatsky em que se representa Deus como um “Ponto voltado sobre si mesmo”, ou como um Perpétuo Movimento (chamado precisamente “o Grande Alento”). Ou a dos pitagóricos, Nicolás de Cusa, Giordano Bruno e Espinosa, em que Deus é uma circunferência cujo centro está em todas as partes.

Em torno de esse Ponto giram círculos de fogo, tanto mais rápido quanto mais estão perto dele. Estes círculos são e dão vida aos querubins, serafins, tronos, domínios, virtudes, potestades, arcanjos e anjos.

Dante diz que “de este Ponto depende o Céu e toda a natureza”. As esferas celestes copiam em velocidade inversa, os círculos de fogo dos Poderes dirigentes que giram em seu torno. Nas esferas, até chegar ao Primeiro Móbil, na nona, cada vez são mais rápidos, aqui é ao contrário, quanto mais perto estão do Ponto, mais rápido giram, segundo diz:

“Vê aquele círculo que está mais próximo dele, e sabe que o seu movimento é tão rápido por causa do ardente amor que o impulsiona.”

Dante vai referindo as sucessivas formas da Geometria Sagrada que são a expressão da unidade e figuram os números, e que representam o Divino até chegar ao Fogo que seria o Tetraedro:

1. Ponto Central num Círculo

2. Deus como Diâmetro, como a letra I (que é Jod, o $10$ hebreu ou o jota, o $10$ grego, ainda que também pode representar o I, o uno romano). Falando Adão a Dante, diz: “Antes de que eu descesse às angústias infernais, se dava o nome de I ao Sumo Bem de quem procede a alegria que me circunda”. Este mesmo Diâmetro é o Rio Divino de Luz do Canto 30 do Paraíso: “E vi em forma de rio uma luz áurea que se desprendia em esplêndidos fulgores entre duas bordas adornadas de admirável primavera. Deste rio saíam vivas centelhas que por todas as partes choviam sobre as flores, parecendo rubis engastados em ouro.”

3. O Duplo Diâmetro no Círculo que é o símbolo que irradia a coragem e a virtude no quinto Céu e que ele associa a Marte: “O Venerável signo que produz a intersecção dos quadrantes num círculo”.

3. Também associado com o $3$, Deus como Santíssima Trindade (Pai-Filho-Espírito Santo), que diz que é absolutamente incapaz de descrever na sua glória e refulgência; e com a que finaliza a Divina Comédia. “Na profunda e clara substância de alta luz apareceram-me três círculos de três cores e de uma só dimensão. O uno parecia refletido pelo outro como um Iris por outro Iris, e o terceiro parecia fogo refletido por ambos por igual.”

Os Três Círculos da Trindade, ilustração de John Flaxman, Canto 33.

4. O Tetraedro ou expressão geométrica do fogo, e com o qual se identifica, como antes dissemos.

Também é interessante no Canto $28$ do Paraíso como o Fogo Divino se espalha na Natureza, numa escala descendente, como num sistema de espelhos, seguindo o processo de potencialização. E em concreto da potência crescente do $2$. Já que se usa como exemplo o xadrez com as suas $64$ casas. $1, 2, 4, 8, 16, 32, 64, 128...$ “Começaram a faiscar os círculos, como chispa de ferro incandescente, e aquele centelho, parecia um incêndio, era imitado por cada chispa por si, sendo estas tantas, que o seu número se multiplicava mil vezes mais que o produzido pela multiplicação das casas de um tabuleiro de xadrez.”

Vamos ver que as operações do $4$ e do $3$ são fundamentais na Matemática Sagrada e na Divina Comédia.

$4 + 3 = 7$

$4 \times 3 = 12$ (os signos do zodíaco, os sábios na esfera do Sol, dois grupos de 12) $4^3 = 64$ (Número de vezes que aparece o nome de Beatriz e a palavra “virtude” na Divina Comédia [1]).

E como diz Thomas Rendall no seu artigo The Numerology of Dante’s Divine Vision, mais importante ainda é o número $3^4$, ou seja, o $81 (9 \times 9)$. Explica que este, o verso número $81$ do canto $33$ do paraíso (o final do livro), é onde culmina a aproximação do poeta a Deus, e não deve ser casualidade, pois o verso indica esta fusão da sua alma-luz-olhar com Deus:

“Pela intensidade do vivo raio que suportei sem cegar, creio que me tivera perdido, se eu tivesse separado os meus olhos dele; e recordo que por isto fui tão ousado para suportá-lo, que uni o meu olhar com o Poder infinito.”

E’ mi ricorda ch’io fui pi`u ardito
per questo a sostener, tanto ch’i’ giunsi
l’aspetto mio col valore infinito (verso 81 do Canto 33)

E ainda que, depois da sublime visão desta Divina Comédia, retornará aos seus trabalhos na terra dos mortais, neste Infinito consumou a sua união definitiva com Beatriz e não só, mas também com a Alma de tudo o que vive n’Ela e em Deus e cuja suma expressão é a Rosa Mística.

Notas:

[1] Segundo o artigo mencionado anteriormente

***

Texto retirado do link.


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A incrível história do papa matemático

Iluminura do Codex Manesse
mostra a escola da catedral de
Reims, comandada por Gerberto
Por Marcio Antonio Campos

Na virada do primeiro para o segundo milênio, um dos maiores matemáticos e astrônomos do Ocidente cristão, se não o maior deles, não estava em uma das escolas que se tornariam os embriões das universidades medievais: estava sentado no trono de São Pedro. O papa Silvestre II, ou Gerberto de Aurillac, é o tema da biografia The abacus and the cross, de Nancy Marie Brown. Após ler o livro, o retrato que temos da época de Gerberto se mostra bem diferente de muitas das lendas que costumamos ouvir sobre a cristandade medieval – uma delas é justamente a de que havia uma firme crença de que o mundo acabaria na passagem do ano 999 para o ano 1000. Na verdade, provavelmente nossa geração ficou mais estressada com o bug do milênio que os medievais com um eventual fim do mundo, até porque nem todos sabiam exatamente em que ano estavam…

Mas, voltando a Gerberto, é inegável que ele chegou aonde chegou por seu brilhantismo intelectual, mas ter conhecido as pessoas certas nas horas certas também ajudou. Monge beneditino em Aurillac, ele se mostrou genial no trivium, formado por gramática, retórica e dialética. Mas não havia em toda a França quem ensinasse sua continuação, o quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música). Para sorte de Gerberto, um conde catalão passou pelo mosteiro e, a pedido do abade, levou consigo o jovem monge, que passou a estudar em uma cidade próxima a Barcelona.

Na época, a Catalunha era uma das fronteiras entre o Ocidente cristão e a Península Ibérica islâmica. Os três anos que Gerberto passou lá moldaram toda a sua vida, pois o intercâmbio cultural e científico era enorme. O monge absorveu tudo o que podia (não se sabe se ele chegou a conhecer a Espanha árabe ou se ficou apenas na Catalunha) e, acompanhando o conde Borrell e o bispo Ato em uma peregrinação a Roma, em 970, impressionou o papa João XIII com seu conhecimento. O pontífice avisou o imperador Oto I, do Sacro Império Romano-Germânico, que havia encontrado a pessoa perfeita para ser tutor do príncipe que se tornaria Oto II. Gerberto trocou a Catalunha pela corte germânica, mas por pouco tempo. Com o casamento do príncipe, Gerberto ficaria sem emprego, mas foi imediatamente recrutado por Adalbero, arcebispo de Reims, então a principal cidade da França. Começou ensinando o quadrivium na escola da catedral, e depois se tornou diretor da escola. Pelas suas mãos passaram futuros bispos, arcebispos, abades, um futuro rei da França e um futuro papa.

Os anos de Gerberto como chefe da escola da catedral de Reims foram os mais produtivos da vida do religioso, e suas realizações científicas estão descritas na segunda parte do livro. Gerberto introduziu no Ocidente cristão os numerais indo-arábicos e o zero, e reintroduziu o ábaco e a esfera armilar (uma espécie de planetário primitivo), instrumentos que construiu; e pode ter feito um astrolábio (não há registros, mas sabe-se que ele conhecia o objeto). Deixou tratados de matemática, normalmente escritos a pedido de alunos e ex-alunos. Construiu órgãos de tubo e armas de cerco. Na base de toda essa produção e paixão pelos números e pelo conhecimento, estava a convicção de que Deus havia feito tudo “com medida, quantidade e peso”, de acordo com o livro bíblico da Sabedoria: conhecer matemática era ter um vislumbre da mente divina.

Página do tratado “De Geometria”,
um dos diversos livros sobre
matemática escritos por Gerberto.

Mas a carreira de Gerberto como cientista e professor acabaria dando lugar à intensa politicagem em que se meteu, e que de certa forma o acompanhou até o fim da vida, muitas vezes contra a sua vontade. Em 980, ele já tinha passado pela experiência de ser abade em Bobbio, na Itália, o mosteiro com a maior biblioteca da Europa cristã. Mas Gerberto tinha sido enviado para lá por Oto II para ser um administrador, não um erudito. Tudo correu muito mal, e o monge voltou para Reims e sua escola. Anos depois, ele e o arcebispo Adalbero trabalharam pelos interesses do Sacro Império contra o rei Lotário, da França, motivo pelo qual Gerberto quase foi morto por traição. Com a morte de Lotário, a dupla interferiu na sucessão do trono francês, ajudando Hugo Capeto a encerrar a dinastia carolíngia.

Adalbero morreu em 989, e não escondia de ninguém que queria Gerberto como sucessor. Mas Hugo colocou um filho ilegítimo do rei Lotário no posto (sim, era uma época em que a mistura entre Igreja e Estado corria a todo vapor), dando início a uma disputa feroz em que se questionou até a extensão do poder do papa e na qual Gerberto chegou a ser excomungado. Por isso, ele agarrou a chance de ser tutor e conselheiro do imperador Oto III, que em 996 influenciou a ascensão ao papado de seu primo, que se tornou Gregório V. O novo papa não entregou a sé de Reims a Gerberto, mas o nomeou como arcebispo de Ravenna. Em 999, Gregório morreu e Oto forçou a eleição de Gerberto, que se tornou Silvestre II (lembremos que o sistema atual de conclaves só surgiu quase 200 anos depois).

Silvestre II e Oto III compartilhavam da paixão pela ciência e do ideal de um grande império cristão. Juntos, eles seriam como o primeiro papa Silvestre e o imperador Constantino. Mas a realidade foi outra: as tarefas do papado não deram a Gerberto tempo para retomar seus estudos. Ele até conseguiu grandes feitos, trazendo para a Igreja povos na Europa Central, Leste Europeu e Escandinávia, e tentou moralizar o clero. Mas a nobreza romana não gostava nem de ser governada por um imperador estrangeiro, nem que o bispo da cidade não fosse um dos seus – Gregório V teve de lidar com um antipapa promovido pelas famílias romanas. Por isso, em uma de várias revoltas, em 1001, Oto e Silvestre foram postos para correr, refugiando-se em Ravenna. No ano seguinte, Oto morreu tentando reconquistar Roma; Silvestre conseguiu voltar para a sua sé, mas com pouco poder, e morreu em 1003.

A autora conta a história de Gerberto, mas não se limita a ela, fazendo uma série de digressões ao longo do livro: ela explica em detalhes como era o dia a dia de um mosteiro e como se copiavam os livros na época de Gerberto, descreve os avanços científicos-tecnológicos do mundo árabe e como se contava o tempo naquela época, narra desventuras dos imperadores romano-germânicos e a guerra entre carolíngios e capetos, e até conta como um biógrafo de Cristóvão Colombo inventou a lenda de que os cristãos medievais acreditavam que a Terra era plana (talvez o “desvio” que mais se afaste do assunto do livro, mas interessante mesmo assim). Há quem considere que tanta informação adicional distraia o leitor do que mais importa, que é a história de Gerberto; já eu considero que as histórias acrescentam sabor ao livro e ajudam o leitor a se ambientar.

É quando a história de Silvestre II termina que o livro degringola. Menos mal que Nancy Brown reconhece que todas as lendas surgidas em volta de Silvestre II, de que seu conhecimento científico era fruto de um pacto com o demônio (uma “demônia”, para ser mais preciso) e coisas parecidas, não provinham de nenhum preconceito católico contra a ciência, e sim de um ataque pessoal de um cardeal adversário de Gregório VII, pontífice que trabalhou pelo fortalecimento do poder papal. Gregório teria sido educado por discípulos de Gerberto, e foi assim que ele entrou na história. Só com a Reforma, no século 16, é que os protestantes usaram as lendas anti-Silvestre para tentar provar que os católicos eram inimigos da ciência e inventaram histórias para denegrir um grande matemático e astrônomo.

A autora tenta criar uma oposição entre a Idade Média pré-Gerberto, em que ciência e fé eram aliadas, em que os homens da Igreja buscavam o conhecimento – e, apesar de o subtítulo do livro, “O papa que levou a luz da ciência para a Idade das Trevas”, ser uma boa ferramenta de marketing, é desmentido pelo próprio conteúdo da obra –, e uma Idade Média pós-Gerberto, dominada pela superstição e pela intolerância. Vejamos esse trecho: “A Igreja na qual Gerberto cresceu tinha acabado. Clérigos que se opusessem a esse novo tipo de catolicismo, que repudiavam os rituais da veneração das relíquias, o batismo de crianças, a santificação do casamento, a intercessão pelos falecidos, a confissão aos padres e a veneração da cruz (…) eram denunciados como hereges” (p. 238). Ora, todas essas práticas e doutrinas remontam à era dos apóstolos (a única que ainda não tinha se tornado regra universal era a confissão auricular)! Mesmo a noção de que a ciência desaparece da Igreja após a virada do milênio é falsa (o livro cuja leitura interrompi para pegar The abacus and the cross ajuda a demonstrar isso), e historiadores como James Hannam têm trabalhado no tema. A vida de Gerberto é extraordinária por si só; não era preciso rebaixar o que veio depois para ressaltar a fantástica história do papa matemático.

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Texto retirado do link.


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Matemática: Ciência da Quantidade - Prof. Pedro Miranda

Criação do Cosmos - Cristo criando
o cosmos Gênesis 1 No princípio
- por Ted, 4 de março de 2011

Transcrevemos abaixo trechos da aula do prof. Pedro Miranda sobre Matemática: Ciência da Quantidade

O vídeo pode ser encontrado aqui: Link.

Interlocutor Pablo Cânovas: Sejam muito bem-vindos a mais um podcast da Contra Errores. Estamos aqui novamente com o professor Pedro. Dessa vez, como nós falamos no final do nosso último podcast, para falar sobre matemática. O professor Pedro também é professor de Matemática. O que o nosso professor vai fazer hoje é apresentar o desenvolvimento da Matemática de Aristóteles até hoje.

Professor Pedro Miranda: Bom dia, boa tarde, boa noite a todos os ouvintes. Agradeço mais uma vez ao Pablo por essa oportunidade de falar com vocês e de tratar desse assunto tão interessante, e que poucos falam nos dias de hoje. As Matemáticas são já bem desenvolvidas em diversas civilizações. Podem notar isso pelas descobertas arqueológicas. Como se observa os egípcios, os povos mesopotâmicos e os povos que formaram a civilização chinesa. Isso é algo que é cosmopolita esse trato com essas Matemáticas. No entanto, as Matemáticas, que são duas, estiveram sempre em torno de sua aplicabilidade. A Geometria deveu muito à agrimensura para delimitar o terreno para o plantio. A Aritmética deveu muito à contagem de quantidades de material para comercialização, quantidade de unidades de rebanho ou com unidades fixas de quantidade de grãos, por exemplo. 

A primeira coisa que deve-se salientar é que as técnicas matemáticas se desenvolveram primeiro que sua conceituação. Na Índia antiga tiveram algoritmos que permitem a técnica da divisão, para o mesmo cálculo de áreas de polígonos ou a determinação dos poliedros. Tudo isso é bem cosmopolita. O que eu farei hoje em pouco tempo, pelo menos no meu ponto de vista, é investigar como Aristóteles considera a Matemática. Nós estamos com o pressuposto de que as Matemáticas têm como sujeito de sua ciência o ens quantum em latim ou το ποσό em grego. [ente quantidade]

Em Aristóteles, evidentemente, no seu Tratado dos Complexos nas Categorias, a primeira categoria que nós estudamos é a substância. Não vamos adentrar na substância. A segunda categoria na listagem de Aristóteles, nesta obra, é a quantidade. No entanto, é importante que nós saibamos de antemão que na Metafísica, Aristóteles coloca quantidade em segundo plano enquanto acidente. Acidente é aquilo que acontece na substância, é aquilo que acontece em outro. Ele coloca em primeiro lugar a qualidade. Por quê? Porque já na altura de sua vida ele escreve Metafísica e já estabelece a doutrina de forma e matéria. De onde a qualidade flui imediatamente da forma, enquanto a quantidade flui imediatamente da matéria. Então uma substância, quando possui a categoria quantidade, podemos chamá-la de certo aspecto de corpo. Um exemplo: os anjos não são exatamente corpóreos. Eles não estão restritos à categoria quantidade. Por isso que dizemos que são substâncias separadas. Quando um anjo age, ele não age com base na localidade, pois ele intensifica sua ação no lugar que ele deseja. Ou às vezes ele pode aparecer em forma corpórea, não por necessidade corpórea, mas para se apresentar de uma forma racionalizado para nós.

O que é quantidade? Para Aristóteles, a quantidade é o acidente, cuja característica central é ter parte, pode ser divisível. Vamos fazer uma comparação para podermos enxergar essa afirmação. Quando eu pego uma qualidade, por exemplo, o branco que está na parede. Vou ter uma parede branca diante de mim. A qualidade branca pode ser separada? Ela não tem parte para ser separada. A parede é branca. Mas existe uma tendência linguística de que se diz que essa parede é muito branca, quer dizer que há uma amplitude. A superfície em que ela que é branca é grande. Então, no fundo, muitas vezes a gente diz que é muito branca, porque ela é extensa. A superfície da parede é extensa. É nesse sentido e isso também faz sentido na sintaxe grega. Os gregos falavam que isso aqui é muito branco, no sentido de que a superfície, que tem a qualidade branca, é muito extensa. Notem que a superfície é uma quantidade.

A quantidade é o acidente que têm partes e pode ser dividida em discreta e contínua. E também de acordo com suas partes a quantidade pode ter posição entre as partes ou não. O que é essa posição? Pode haver ordem entre as partes. Pode ser primeira, segunda, terceira, quarta ou não.

Pois bem, então vamos aqui tratar de alguns exemplos de quantidades discretas. Aristóteles chama a atenção para dois tipos de quantidades, que são caracteristicamente discretas que são os números e o discurso. O discurso que ele está se referindo é ao texto mesmo. O número vai quantificar certas unidades. Quando Aristóteles fala [unidade], entenda aqui um número natural: um dois, três, quatro, cinco... Não têm $0,7$. Não temos números reais aqui em Aristóteles. Quando ele fala números, ele está se referindo aos naturais que são aqueles que nós podemos contar. Por outro lado, temos os números contínuos que são os nossos lugares geométricos. A linha, a superfície, o corpo, o tempo e os ciclos. Os ciclos porque tem aspecto de quantidade, a localização, posição dentro do espaço. Que podemos discernir quantidade discreta de quantidade contínua? Quando eu escrevo $5$. Isso aqui é um algarismo que indica um número. O símbolo é o algarismo. (Em algarismo romanos V). O símbolo pode mudar, pois o símbolo corresponde ao número.  O número, no sentido aristotélico, é aquilo que se obtém a partir de uma contagem. [o professor desenha cinco pontos no quadro] O que significa? Indica que alguém contou cinco unidades de alguma coisa, de pessoas, objetos, qualquer coisa que você quiser.

Recapitulando: uma coisa é o algarismo que simboliza o número, são algarismos arábicos e romanos ($5$ e V). Esses algarismos são símbolos que indicam o número. Do ponto de vista aristotélico, o número é o resultado de uma contagem. O que é uma contagem? Uma contagem é quando eu escolho uma unidade de critério de contagem. Por exemplo, aqui na minha mesa eu tenho diversos objetos. Eu crio um critério: o critério de contagem é o objeto individual. Eu vou começar a contar os objetos individuais que estão sob minha mesa: um celular, uma caneta, mouse, uma garrafa d'água. Toda vez que eu identifico uma das unidades, eu apreço uma unidade no meu número.

Notem uma coisa: quando eu desenho assim um “bifurcamento discreto” [há cinco pontos no quadro no formato da letra W], que é um exemplo de representação de uma contagem discreta. É possível notar que cada parte [ponto] não tem um limite em comum. Elas não tem um limite em comum. No entanto, quando estou considerando elas juntas, isso para mim é quantidade. Qual é a característica da quantidade discreta? As partes dessa quantidade não tem um limite em comum.

No caso do discurso, o discurso é composto por letras, por sílabas ou fonemas. O discurso falado são fonemas. Eu posso dividir? Posso tranquilamente. Qualquer palavra pode ser dividida em partes. Essas partes são discretas. Por que são discretas? As sílabas não têm um limite em comum entre elas. Então, por exemplo, a palavra: Nú-me-ro. Não existe nada que a separa, não existe algo que separa essas sílabas ou mesmo esse fonema: Nú-me-ro. É claro que quando eu falo rapidamente, vai diminuindo o intervalo entre os sons para formar a palavra articulada “Número”. Esses são os dois exemplos que Aristóteles traz de quantidades discretas. Hoje em dia a gente tem uma disciplina chamada Matemática Discreta, cujo princípio não mudou. O princípio é o mesmo. É claro que vamos ter teoremas, corolários, proposições acerca do que nós podemos fazer com as quantidades discretas.

Agora vamos para as quantidade contínuas. Temos caracteristicamente exemplos importante. Aqui nós damos o nome de lugares geométricos. A primeira delas é a linha. A linha é potencialmente infinita. O infinito aqui é matemático. Cuidado com isso. Já vou explicar. Agora temos aqui as quantidades contínuas. Nas quantidades contínuas, nós temos três elementos importantes a serem aprendidos. Aqui eu representei uma linha ou reta. Cuidado com isso [o professor desenha uma reta no quadro]. Na Matemática, a linha reta é potencialmente infinita. Significa que ela continua para um lado e para outro lado indefinidamente. É claro que não é possível que eu desenhe uma reta ou linha [por completa]. Eu posso representar um segmento de reta, representando a reta. Eu desenhei um pedaço dela, mas eu quero dizer que ela continua de um lado e continua do outro lado. A linha ou reta é uma quantidade contínua. Se ela é uma quantidade, por definição, ela possui partes, quer dizer, que eu posso dividir ela quantas vezes eu quiser. Quantas partes eu posso potencialmente dividir uma reta ou linha? Infinitas. Não tem limite para isso. Isso vai ser de fato infinito? Não. Em Matemática, dizemos que tende indefinidamente a crescer.

Interlocutor: Eu me lembrei de uma aula de Química que eu tive no Ensino Médio. Nessa aula de química, ele compara a teoria do átomo com uma suposta teoria de Aristóteles, que era justamente quanto a infinitude das divisões da quantidade contínua. Ele dizia que, quando se descobriu o átomo, refutou Aristóteles, porque se descobriu que tinha um limite na divisão.

Professor: Eu vou falar sobre isso. Esse assunto será a cereja do nosso bolo hoje. De fato, nós podemos potencialmente dividir uma reta e infinitas partes. Potencialmente, isso pode ser atualizado, isso pode ser feito? Não. Por que falta tempo e falta ato para isso. Bom, eu tenho infinitas partes, quando eu divido uma reta, quando eu corto* uma reta. Vamos supor que eu pegue uma faca e passe a faca [numa reta]. Eu vou ter quantas partes se eu cortar aqui? Eu vou ter duas partes. Uma de um lado, outra do outro lado. Note uma coisa: se eu cortei eu tenho um ponto. O ponto é uma intersecção da parte à esquerda e da parte da direita. Esse ponto pertence tanto à parte à esquerda quanto à parte direita. Então, qual é a característica essencial da quantidade contínua? Eu sempre terei um limite entre as partes. Existe um limite. Na quantidade discreta, não existe um limite. No caso de entes de uma dimensão que é a reta, (a reta é um ente de uma dimensão) o limite de entes de uma dimensão são entes de dimensão zero que são pontos.

De modo completamente análogo, quando eu tenho uma superfície como plano ou superfície [o professor desenha uma plano no quadro]. A superfície continua é indefinidamente para lá e para cá, mesma coisa (todas as direções). Ela é infinita também e eu desenho ela como um pedaço dela, um fragmento da nossa superfície. Se eu estabelecer uma divisão em nossa superfície, vamos supor agora que eu passe uma reta aqui cortando [o professor desenha no plano uma reta o intersectando diagonalmente]. Portanto, superfície ou área é um ente geométrico de duas dimensões. Enquanto que o limite que eu coloquei na superfície é um ente de uma dimensão. Porque agora o limite das partes que contém essa superfície, (tenho duas partes: a parte de cá [à esquerda] e a parte de cá [à direta]) o limite entre as partes é uma reta.

Eu tenho um sólido, [o professor desenha um cubo no quadro] um cubo torto, um paralelepípedo, agora um tijolo. O sólido é um lugar geométrico de três dimensões. Como é que eu corto* um sólido de modo a produzir partes? Eu tenho que vir aqui agora e traçar um plano no meu sólido [o professor desenha plano intersectando o sólido]. O plano é um ente geométrico de dimensão dois. Se eu quiser, eu posso continuar em todas os lados, mas pode ser do tamanho que eu quiser. Potencialmente infinito. Infinito quantitativamente. Cuidado com isso. Uma coisa é o infinito na Teologia e na Metafísica, outra coisa é o infinito usado na Matemática. Aproveitando para falar sobre o infinito, tem uma pergunta sobre o infinito que daqui a pouco vou responder. 

Interlocutor: Uma pergunta: quando você divide uma quantidade contínua, ela já pode ser considerada como quantidade discreta, enquanto duas partes discretas?

Professor: Não. A quantidade contínua [quando dividida] continua sempre sendo contínua, por que ela continua tendo partes cujos limites existem. Eu não separei o sólido. Eu só identifiquei um limite entre duas partes do sólido aqui. Ele não se tornou discreto.

O que mais que Aristóteles considera como contínuo? O tempo é contínuo para Aristóteles. O tempo pode ser visto de certo ângulo, como uma quantidade. Cuidado com isso. Quais são as partes do tempo? Os instantes. Só que eu posso ter instantes intermediários. Qual é o limite entre passado e futuro? É o instante presente e esse instante presente está sempre caminhando adiante em direção ao futuro. Se eu imaginar o instante presente como um ponto, ele vai caminhando e vai se unindo simultaneamente. Ele vai conectar passado e futuro. Então, nesse sentido, eu posso considerar o tempo como uma quantidade contínua. O que mais é quantidade? O situs, o lugar também é quantidade continua, porque eu posso localizar corpos ou coisas usando pontos dentro do espaço. O espaço é contínuo porque o espaço, as partes do espaço possuem o limite em comum. Quando é uma reta, o limite em comum são pontos. Quando é uma superfície, o limite em comum é uma reta. O que quer dizer limite em comum? Significa que essa reta pertence tanto a esta parte [à esquerda] quanto a esta parte [à direita] (o professor se refere ao plano interceptado por uma reta). No sólido, esse plano vermelho aqui [na lousa] pertence tanto à parte de trás quanto à parte da frente. Então, existe um limite em comum entre as partes da quantidade contínua.

Além disso, existem quantidades cujas partes têm posição recíproca entre si. O que é posição recíproca? Eu tenho uma ordem. Eu posso associar uma reta ou uma direcionalidade, por exemplo, a reta dos números reais. Nós [a] simbolizamos assim [o professor desenha a reta real no quadro]. Hoje se coloca uma direção aqui no meio, o zero. Então, do zero adiante [à direita], eu tenho os números que são positivos e aumentam indefinidamente. Do zero à esquerda, eu tenho os números negativos, que também "aumentam". Na verdade, diminui indefinidamente. Aqui vai para menos infinito ($-\infty$) [lado esquerdo] e mais infinito ($+\infty$) [lado direito]. Quando um matemático e um físico usam esse símbolo ($\infty$), não estão se referindo ao infinito da Metafísica e da Filosofia. [Isso] está querendo dizer que para cá, [esquerda da reta real] os números decrescem indefinidamente. Ou seja, potencialmente tem um potencial infinito para crescer para cá [direita da reta real] para aumentar. Então aqui temos os números grandes [positivos] e para cá, os números pequenos, menores [negativos].

Tudo o que nós falamos até agora, pelo menos para Aristóteles, são quantidades em sentido próprio, per si. Mas nós usamos a quantidade de modo incorreto como, por exemplo, isso aqui é mais branco, ou é mais rápido ou o movimento é mais longo. Então, linguisticamente falamos certas coisas, pronunciamos certas coisas como se fossem quantidades, mas não são. É um recurso linguístico, mas do ponto de vista lógico é incorreto usá-los. 

Agora vamos às três propriedades da quantidade. A primeira propriedade da quantidade é que a quantidade não admite o contrário. Por exemplo, se eu tenho uma quantidade de dois metros, qual é o contrário de dois metros? Não tem sentido lógico. Não é $-2$! O $-2$ também é uma quantidade diferente de dois metros. Na verdade, $-2$ metros não existe. Não existe comprimento negativo. Usamos os números negativos na Matemática, porque são entes de razão, devido a necessidade algébrica. Mas os números negativos não representam coisas. Eles representam a ausência de coisas. Quando eu tiver um saldo negativo no meu banco, vai aparecer um número negativo, mas ele não corresponde a uma concretude, em grego, σύνολον. Ele não representa um σύνολον. Ele é um ente de razão, assim como a privação que vemos na filosofia. A privação também é um ente de razão.

Segunda propriedade da quantidade: a quantidade não admite mais ou menos. Esses são os termos de Aristóteles. O que significa mais ou menos? Se eu tenho a quantidade dois, eu contei dois feijões e depois contei duas vacas. Sobre os dois feijões, o número dois que eu abstraí dessa contagem é mais dois do que as duas vacas que eu contei? Não, são o mesmo. Uma vez que eu tenho uma quantidade igual a outra, não é mais do que a outra. Então não cabe, não faz sentido lógico, dar intensidade às quantidades.

Propriedade três da quantidade. É característico da quantidade (dizemos que é um τόπος, é o modo característico de usar linguisticamente e logicamente a quantidade) a seguinte coisa: é o mais próprio poder ser igual ou desigual. Eu posso comparar duas quantidades ou elas são iguais ou desiguais. Em Matemática, nós desenvolvemos sinais para isso. Nós temos o sinal de igualdade ($=$). Quando uma relação matemática possui um sinal de igualdade, nós damos o nome a essa expressão matemática de equação. Eu tenho sinais de desigualdade, menor ($<$) e maior ($>$). Quando uma relação matemática possui esses sinais, nós damos o nome a essa expressão de inequação, porque expressam desigualdades. Uma desigualdade implica que os números comparados ou um é menor do que outro, ou um é maior do que o outro. Acho que isso é uma das coisas mais importantes a serem ditas a partir das Categorias de Aristóteles. 

É sempre importante relembrar que, quando Aristóteles escreve as Categorias (na verdade, são notas de aula, por isso que a tradução é difícil). Existem diversas interpretações das Categorias e os materiais que nós temos traduzidos e vertido ao português não são muito bons. Eu estou sendo sincero com vocês. O ideal é que vocês aprendam grego e leiam direto para não ter que fazer esse esforço de ter que interpretar a visão do tradutor. Nas Categorias, Aristóteles coloca a quantidade como a segunda categoria. Primeiro a substância, depois a quantidade e depois a qualidade. No entanto, na altura de sua vida, quando ele está escrevendo a Metafísica, ele coloca a qualidade em primazia, porque a qualidade é informada pela forma do ente (do σύνολον), enquanto que a quantidade pela matéria. Aristóteles dá primazia quase sempre para a forma que é o princípio de comunicação do ato daquele ente. Por que isso? Em Aristóteles, temos a quantidade discreta e contínua, mas entre as duas, qual é mais quantidade, caracteristicamente quantidade? É a quantidade continua. A quantidade contínua é mais quantidade do que a quantidade discreta, mas no sentido (é claro que isso é uma figura de linguagem) mais caracteristicamente quantidade.

A nossa realidade física é fundamentalmente contínua. No entanto, como havia colocado o Pablo anteriormente, nós temos unidades que são os átomos. Até hoje em dia, nós imaginamos que os átomos são coisas discretas, mas isso não faz o menor sentido. Na visão de Demócrito e Leucipo, que foram os primeiros a propor a teoria atômica, eles imaginavam que realmente era uma unidade indivisível. Átomos (ἄτομος) . O prefixo “a” é negação e “tomos” vem de parte: sem parte, indivisível. Isso foi encontrado alguma vez, de verdade? Verificamos isso experimentalmente? Não. O que dá a entender, de acordo com os estudos mais avançados, é que cada vez mais há mais partes, que há mais subpartículas. Cada vez mais se estuda, cada vez mais que se divide os átomos, encontramos mais e mais partes. Isso deixa os físicos doidos. Porque daí não conseguem compor o modelo padrão do átomo, da teoria atômica. A realidade, pelo menos, o espaço, nós sabemos que ele é contínuo. Todos os entes contidos no espaço também são contínuos, caracteristicamente contínuos. Os entes contados, as quantidades discretas são arbitrárias. Quem define a unidade é uma arbitrariedade humana. Eu tenho que escolher uma unidade de contagem. A quantidade discreta é mais artificial, por assim dizer, do que a quantidade contínua. Por isso que se dá primazia à caracterização da quantidade, pela quantidade contínua.

Agora vamos à pergunta que foi nos passada. A pergunta é seguinte: o conjunto dos naturais e dos reais possui infinitos elementos, mas a cardinalidade dos naturais é menor que a dos reais, porque não é possível preencher o corpo dos reais com uma bijeção do domínio dos naturais, dando certa ideia de que aquele ser “menos denso” que esse?

É uma excelente pergunta. Estudamos essa questão em Análise. O conjunto dos naturais, que são os números que naturalmente são produzidos pela contagem, é potencialmente infinito. Então eu posso contar, em matemática, indefinidamente. No entanto, na reta real entre o número $1$ e o número $2$, por ser o número real, eu tenho infinitos números. Melhor colocado: tenho potencialmente infinitos números. Significa, como [colocado] nessa pergunta, parece que o [conjunto dos] números reais é mais denso devido a bijeção. Eu posso estabelecer uma bijeção entre reais, entre intervalos dentro dos números reais, mas nenhum entre [intervalos de números] reais e naturais. Isso acontece porque existem em Matemática diferentes tipos de infinitos. Para isso, usamos a primeira letra do alfabeto hebraico. Para os números naturais, usa-se $\aleph_1$ [álefe 1], para os números reais, usa-se $\aleph_3$ [álefe 3]. Esse álefe é o conceito que nós atribuímos a esses conjuntos numéricos, para “estabelecer” quão infinitos eles são, que tipo de infinitude estamos tratando. Aqui é a infinitude matemática. Cuidado com isso. Acho que está respondida a pergunta.

Interlocutor: Importante falar que na Suma Teológica, São Tomás se pergunta se mesmo um corpo infinitamente extenso seria comparável à infinitude de Deus. É óbvio que não, porque mesmo se existisse um corpo infinitamente extenso, ele só pode ser infinitamente extenso se houver uma contagem de suas partes. Em certo momento, para algo ser três, precisou ser um e adicionou um e chegou a dois, adicionou outro e chegou a três. Enquanto Deus é simultaneamente todas suas partes, simultaneamente todas suas qualidades, melhor dizendo. Então essa é a maior diferença entre o infinito da Matemática, das quantidades e o infinito da Teologia: Deus é simultaneamente as perfeições, enquanto na quantidade há sucessão das perfeições. 

Professor: Exatamente. Essa questão também nos induz a falar sobre a questão do universo. O universo não pode ser infinito, do ponto de vista espacial. Isso é impossível pela Física moderna e é conhecido astronomicamente, porque as galáxias estão se afastando. Nós temos notícia experimental de que o universo está se expandindo. Se o universo é infinito, ele não aumenta: é uma contradição lógica. Se você olhar para o céu e ver o espaço, o universo físico está se expandindo e ao mesmo tempo você afirma que ele é infinito, tem que escolher [entre as duas condições]. Muitos físicos caem nisso, porque não pensaram direito sobre isso. O universo que é todo o espaço é finito. No entanto, [o universo] é imenso. O que significa imenso? Analisando a palavra imenso é não mensurado, “menso” é mensuração e “i” negação no português, imenso é sem medida. Porque todas as medidas são feitas dentro do universo. Não tem como sair fora do universo para medir ele. Isso implica em duas coisas: que o universo não pode ser medido de fora e que o universo não tem formato. Não tem formato geométrico, ele não é um cubo, ele não é uma esfera.

Interlocutor: Como diz o professor Nougué: a figura do universo é não ter figura.

Professor: Exatamente porque ele é imenso. Não faz sentido atribuir mensidão ao universo. Isso implica em uma terceira coisa que quase não é falada. O universo é auto-contido espacialmente. O que é auto-contido? Ele não tem um limite, tipo uma parede. Daqui para cá é o nada, daqui pra lá é o universo. Não dá pra fazer isso. O universo é auto-contido. Ele não tem um limite, no sentido de fora dele. Isso é um conceito difícil de ver e difícil de enxergar.

Esses são os três atributos fundamentais do universo. O universo é finito quantitativamente. Ele se apresenta para nós como infinito potencial. Parece que é potencialmente infinito, mas não é. Ele é finito de fato, e tem uma extensão dada. Tem o número que representa a sua extensão. Esse é o ponto. Existe esse número. Nós conhecemos ele? Não, mas ele existe. Então ele é finito.  Ele é imenso, não tem medida e não tem formato ou figura. O termo também usado é figura, como o Carlos Nougué usa. Em consequência de não ter figura e não ter formato, ele é auto-contido. As suas localizações são todas conectadas. 

Uma coisa importante de notar sobre essa questão das quantidades, é que o próprio espaço, visto como conjunto de τοποσ, de τοποι, é contínuo. Ele não é discreto. Então a natureza quantitativa das coisas é fundamentalmente contínua, como havia dito anteriormente.

É sempre importante ressaltar que Aristóteles diz que a Matemática não serve como ferramenta para a Física. A Física tem que usar outros métodos. Por que ele faz isso? Por que ele considera a Matemática uma ciência, um conhecimento que trabalha com quantidades bem conhecidas. Por que ele exclui a questão, por exemplo, da probabilidade. A probabilidade é uma quantidade também. Ela se caracteriza por ser uma quantidade. Como ele desconsidera a probabilidade, a questão de usar a Matemática dentro da Física é excluída.

No entanto, com a Física moderna, com a ciência moderna, tem a exclusão das outras categorias. Não importa mais a qualidade. Todas as qualidades que nós temos são reflexos da quantidade. Todas as relações, todo o tempo, espaço, lugar, posse. Então, dentro da mentalidade moderna, nós temos só quantidade. Essa é uma das pedras fundamentais do materialismo filosófico. Nem a substância eles consideram. 

Interlocutor: Já começa com Descartes, ele que dividiu as coisas entre res extensa e res cogitans, como se o seu mundo concreto fosse só extensidão, só quantidade contínua, do ponto de vista do Descartes.

Professor: É claro que isso é uma loucura. Você tem a substância que existe em si. Os predicamentos ocorrem sobre a substância. Então isso é uma inversão. É claro que a ciência moderna permitiu certos conhecimentos. Só que eles são metafisicamente limitados. Quando ouvimos aquela frase: “o ser humano é poeira estelar”. Você está vendo o ser humano em termos de sua extensão. Compare a minha massa com a massa de uma estrela. Claro que vai ver uma diferença gigantesca. Mas por que eles pensam assim? Porque eles estão considerando, às vezes sem saber, que o tudo o que existe é a quantidade. É claro que vai sair uma afirmação dessa. “O ser humano é poeira de estrelas”. Claro, você está reduzindo o ser humano às suas quantidades e às suas extensões mensuráveis ainda.

Essa é a mentalidade que nós devemos primeiro entender e como é que ela funciona para saber responder essa gente. O Carl Sagan tem uma visão materialista das coisas. Mas se nós pudéssemos falar com ele: “Escuta, por que o senhor afirmou isso? O senhor afirmou isso porque o senhor pegou o ser humano e reduziu ele a suas quantidades. O Senhor pegou as estrelas e reduziu elas a suas quantidades. Aí você comparou essas quantidades. A massa do ser humano é muito menor que a massa da estrela. E disso, você tira esse bordão que nós somos poeira estelar”. Ele não nota quando ele faz isso, ele não sabe disso. 

Interlocutor: É algo poeticamente algo tão pobre. Se for comparar isso com nosso próprio linguajar cristão: “o homem é o pó da terra”. Tem uma mística, um valor poético muito diferente. 

Professor: É porque ele usa a palavra estrela. Nessa tentativa de ser humilde, na verdade, ele está colocando que ele conhece as estrelas. É isso que está por detrás dessa mentalidade materialista quando se arrisca a produzir esses adágios. Só sai coisa ridícula e totalmente desvirtuosa, fora do padrão, desequilibrado. 

Então é importante que conheçamos bem a quantidade, porque a nossa formação escolar é muito fraca nisso. Os professores só ensinam as técnicas de resolução de problemas matemáticos. Nunca nenhum professor me falou que há uma quantidade. Uma vez eu perguntei para um matemático: “o que é a quantidade?” Ele falou que nunca viu isso em nenhum livro. “Que teoria é essa?” Não é nenhuma teoria. Isso é uma coisa com uma categoria muito básica. E aquilo nunca tinha passado pela cabeça dele.

Interlocutor: É o fundamento do que ele faz.

Professor: Eu pensei: “isso é a Matemática, é o ens quantum, é o sujeito da ciência matemática!” O pessoal da universidade, de exatas, têm boa formação porque eles têm boas técnicas nesse sentido. Técnicas, computacionais, teoréticas, lógicas, mas eles mesmos não sabem muito da natureza daquilo que eles estão tratando. Esse é o ponto. Nós devemos estar formados, preparados para isso, para quando encontrarmos um desse, podermos fazer as perguntas certas e darmos as respostas certas também. Eu sei que entre nós, que temos uma formação um pouco mais tomista, tem pouca gente que trabalha com o conhecimento da categoria quantidade e com a própria Matemática. 

Hoje a Matemática está muito desenvolvida. Só que é uma Matemática descolada no seu fundamento. Ela tem a sua conexão com o fundamento que é o ens quantum, mas cada vez mais ela se tornou descolada desse fundamento. Em Matemática, nós temos os constructos, por exemplo, estudamos em álgebra: anéis, grupos, corpos, álgebra mesmo, que são conjuntos estruturados como operações. 

Interlocutor: Professor, antes de entrar em álgebra, eu gostaria de fazer uma pergunta que cai em meus interesses. Eu não sei exatamente qual seria o conceito estrito de álgebra, mas o fato é que mesmo eu trabalhando em pesquisa linguística, tenho de usar algo que eles chamam de álgebra. Tenho de fazer cálculos, seja para mexer em programa de computador, para ele ficar rodando ou para demonstrar alguma coisa. Eles chamam isso de álgebra. O que me parece mesmo eu não tendo nenhum conhecimento técnico aprofundado nisso, é que a álgebra é só uma técnica que pode ser usada em várias ciências. Não é exatamente algo, uma parte da Matemática, mas é uma técnica. Pode ser usado pela Linguística, pela Computação ou pela Matemática. Para o senhor, o que é a álgebra?

Professor: Bom, primeiramente, a Álgebra é uma palavra de origem árabe al-jabr. Que significa a recuperação no sentido de repor um equilíbrio. Esse é o conceito original de Álgebra. A Matemática é dividida em Geometria que vai se aprofundar em Topologia; é dividida em Álgebra, que é um aprofundamento da Aritmética. Primeiro a noção de Álgebra é um aprofundamento da Aritmética. Temos a Análise e temos a Matemática Aplicada. A Álgebra trata de conjuntos estruturados. Esse é o sujeito da ciência Álgebra. E a Álgebra tem suas técnicas.

A palavra álgebra hoje tem conotações que não é a álgebra matemática. Por exemplo, quando você tem que fazer um processo de decisão e você tem um algoritmo. Você pode chamar isso de modo muito aproximado de álgebra. Mas é uma espécie de figura de linguagem. Não é um termo técnico bem definido. Eu vou fazer algo que é uma álgebra dos lugares comuns ou uma álgebra dos topoi. Isso é uma figura de linguagem, porque a álgebra mesmo é a álgebra matemática.

É aquela coisa que falamos na reunião passada da palavra emergência. Hoje em dia, a palavra emergência é usada em diversos contextos que não cabe a ela, porque é um termo bem definido. Isso faz parte de uma língua viva. Esses usos não ortodoxos do conceito principal da palavra. Nesse caso, emergência, e noutro caso, álgebra. Não sei se respondi [sua pergunta].

Por hoje, é isso. É suficiente. Tem bastante coisa.

Obs.: Os grifos e as partes entre colchetes são nossos.

* Quando o professor se refere a corta a reta, ele está se referindo a intersecção desta reta com uma outra, no caso aquela reta pertencente a referida faca. De modo análogo, com o sólido.


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