Manuscrito do século XV mostrando Ocidental e pensador Árabe praticando geometria juntos.
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Concluímos com a apresentação da Introdução do livro Os Elementos de Euclides, traduzido por Irineu Bicudo, Editora Unesp, 2009.
A parte I pode ser encontrada AQUI e a parte IIaqui.
Os comentaristas gregos dos Elementos
Na Antiguidade e na Idade Média, o modo de abordagem de uma obra e do seu ensino era o Comentário. De fato, um comentário ou exposição do pensamento de algum autor era um dos métodos básicos de ensino nas escolas medievais. E o comentário como instrumento pedagógico por excelência foi herdado tanto dos padres da Igreja quanto dos escritores árabes, e essas duas fontes têm a mesma origem: os escritos literários e científicos do último período do pensamento grego. Duas bicas, mas uma só água. Era esse, também, o modo de enriquecer o conhecimento pela confluência de vários saberes.
No Ocidente, o comentário tomou várias formas. A maneira especial, empregada, por exemplo, por Boécio nas suas exposições das Categorias e do De interpretatione de Aristóteles consiste em proceder sistematicamente por partes, tomando, de cada vez, uma pequena porção do texto original em tradução (latina, no caso) e explicando-lhe o conteúdo de modo mais simples. É, aproximadamente, como o faz Proclus no seu Comentário ao livro I dos elementos. Depois de um longo Prólogo em duas partes, trata pormenorizada e separadamente das “Definições”, dos “Postulados”, dos “Axiomas” (“Noções Comuns”, como está nos Elementos) e das “Proposições”, uma a uma. Proclus é o grande escoliasta dessa obra de Euclides. Poder-se-ia dizer que ele está para este como Alexandre de Aphrodisia, para Aristóteles. Alexandre era conhecido como “o Comentarista” entre os escoliastas gregos do estagirita; Proclus bem poderia ter esse epíteto no tocante a Euclides.
Antes dele, no entanto, houve outros tantos. Ele próprio diz (p.84, 11-18) que não procederá no seu texto como muitos deles, dando lemas, casos etc.,
pois estamos saciados dessas coisas e raramente trataremos delas.
Mas, quantas têm teorias mais importantes e contribuem para a filosofia como um todo, dessas faremos a menção guiadora, emulando os pitagóricos para os quais estava à mão também esta alegoria “uma figura e um passo, não uma figura e três óbulos”, mostrando, portanto, como é preciso perseguir aquela geometria... [77]
Em um outro lugar (p.200.10):
Voltemos à explicação das coisas demonstradas pelo autor dos Elementos, coletando, por um lado, as mais exatas das escritas sobre elas pelos antigos, cortando-lhes a ilimitada loquacidade, dando, por outro lado, as mais sistemáticas e portadoras dos métodos científicos [78].
Proclus não nomeia os seus predecessores nessa lida, mas parece certo que os mais importantes tenham sido Herão, Porfírio e Pappus. Posterior a Proclus, aparece também Simplício.
Herão de Alexandria
Proclus faz alusão a esse comentarista em seis passagens. A primeira delas a propósito da Mechanica que Herão escrevera, e as cinco restantes por conta dos Elementos de Euclides. Ei-las:
41.8-10:
(...)
[a arte que faz instrumentos] (...), como então também Arquimedes é dito ter construído instrumentos aptos a repelir ataque dos que se fazem hostis a Siracusa, e arte de fazer prodígios, umas executadas habilmente pelos ventos, como elaboraram tanto Ctesibius quanto Herão, outras, pelos pesos (...) [79]
196.15-17:
E certamente também nem é preciso reduzir o número deles [isto é, dos axiomas/noções comuns] ao menor, como faz Herão que expõe somente três (...) [80]
305.21-25:
[Falando sobre o enunciado da “Proposição XVI” do Livro I dos Elementos.]
Os que fabricaram antes, de modo negligente, esse enunciado, sem o “tendo sido prolongado um lado”, forneceram ocasião igualmente tanto a alguns outros, mas também a Felipe, diz o mecânico/engenheiro Herão, para acusação [81].
323.5-9:
Mas é preciso também descrever as outras demonstrações do proposto teorema, quantas os à volta [isto é, os discípulos] de Herão e de Porfírio expuseram da reta não prolongada, a qual fez o autor dos Elementos [82].
346.12-15:
A demonstração que tal é a de Menelau, ao passo que Herão, o mecânico/engenheiro, do mesmo modo prova a mesma coisa não por impossível [83].
429.9-15:
Mas, sendo a demonstração do autor dos Elementos evidente, penso nada supérfluo ser necessário acrescentar, mas serem suficientes as coisas escritas, mesmo porque quantos acrescentarem algo mais, como os discípulos de Herão e de Pappus, foram forçados a tomar além disso alguma coisa das mostradas no sexto [livro], em razão de nada importante [84].
As datas tocantes a Herão são motivo de controvérsia. Indiretamente, tem sido posto no século I.
Que tenha escrito um comentário sobre os Elementos pode ser inferido do que aparece nas passagens citadas de Proclus, mas mostra-se bem certo pelas referências a ele feitas por escritores árabes. No Kitab al – Fihrist (A lista das ciências) está que “Herão escreveu um comentário sobre esse livro [Os elementos], a fim de explicar os pontos obscuros”.
O comentário propriamente dito não parece conter muitas coisas que possam ser consideradas de relevância. Há algumas notas gerais, como a que indica o fato de ele não aceitar mais do que três axiomas/noções comuns, já vista acima. Há a exploração de casos particulares de certas proposições euclidianas, motivados por diferentes maneiras de desenhar as figuras. Há demonstrações alternativas, umas dadas sem figura, de modo “puramente algébrico”, outras para “sanar” o motivo de uma objeção a alguma construção de Euclides, e ainda outras tentando evitar a redução ao absurdo usada na prova original. Há o acréscimo de certas recíprocas de proposições dos Elementos e igualmente umas adições e algumas extensões de proposições. E não há nada mais.
Eis o que foi Herão como comentarista dos Elementos.
Porfírio
O neoplatônico Porfírio, discípulo de Plotino, revisor e editor da obra deste, parece ter escrito um comentário sobre os Elementos. Isso é deduzido do que se acha em Proclus, que o dá como fazendo observações a respeito das proposições I.14 e I.16 e sobre demonstrações alternativas às proposições I.18 e I.20.
Aqui, a possibilidade é que o trabalho de Porfírio tenha sido usado por Pappus ao escrever o seu próprio comentário, e deste tenha se valido Proclus para as suas referências.
Seja como for, dada a evidente vocação pedagógica demonstrada por Porfírio – basta ver a sua Εἰσαγωγή (Introdução), epístola dirigida ao seu discípulo Chrisaorius e que, tendo sido traduzida para o latim por Boécio, serviu por toda a Idade Média e na Renascença como a mais importante introdução à Lógica de Aristóteles – pode-se concluir que o seu interesse pelos Elementos tinha apoio menos em um desejo de contribuir com novos resultados e mais no de manter a precisão da linguagem matemática, levando os seus leitores a entendê-la.
Pappus
Existem em Proclus poucas alusões a Pappus. Há, no entanto, outra evidência de ter ele escrito um comentário sobre os Elementos. Um escoliasta sobre as definições dos Data escreve: “como diz Pappus no começo do seu comentário do Livro X de Euclides” (conforme a edição dos Data por Menge, p.262).
Assevera-se também no Fihrist que Pappus compusera um comentário sobre o Livro X dos Elementos em duas partes. De fato, restam-nos fragmentos do seu trabalho em um manuscrito – Paris n.952.2 – descrito por Woepcke nas Mémoires présentés à L’Academie des Sciences [85], 1856, v.XIV, p.658-719.
Ainda Eutocius, na sua nota sobre o Περὶ σφαίρας καὶ κυλίνδρου, I.13, (Sobre a esfera e o cilindro), de Arquimedes, afirma:
Como, de fato, inscrever no círculo dado um polígono semelhante ao inscrito em um outro é evidente, e foi mencionado também por Pappus no comentário dos Elementos [86].
O objeto da observação estaria, provavelmente, no comentário do Livro XII.
Passemos aos extratos de Proclus em que Pappus figura:
Sobre o quarto postulado [87] (“e serem todos os ângulos retos iguais entre si”) lê-se:
189.12-15:
Pappus estabeleceu-nos corretamente que a recíproca não mais é verdadeira, o ser, de todo ângulo, o ângulo igual ao reto, reto [88].
E ao tratar dos axiomas/noções comuns:
197.6-10:
E, com esses axiomas, Pappus diz registrar ao mesmo tempo que também, se desiguais sejam adicionados a iguais, o excesso entre os totais é igual ao entre os adicionados, e inversamente, caso iguais sejam adicionados a desiguais, o excesso entre os totais é igual ao entre os do princípio [89].
Mas Proclus prossegue:
198.3-15:
Essas coisas, de fato, seguem dos axiomas mencionados antes e, com razão, são omitidas na maioria das cópias, e quantas outras dessas ele [isto é, Pappus] acrescenta são antecipadas pelas definições e seguem daquelas; por exemplo, que todas as porções do plano e da reta ajustam-se umas às outras – pois as coisas estendidas ao extremo têm uma natureza que tal – e que um ponto divide uma linha, e uma linha, uma superfície, e uma superfície, um sólido – pois todas são divididas por essas, pelas quais são limitadas imediatamente – e que o ilimitado nas magnitudes existe tanto pelo acréscimo quanto pela destruição, mas cada uma em potência; pois toda coisa contínua é divisível e pode crescer ilimitadamente [90].
249.20-21:
[A propósito da “Proposição I.5”]
E ainda Pappus demonstra de modo curto, tendo necessitado de nenhuma adição, assim: (...) [91]
E a referência em 429.9-15, já posta acima sob a rubrica Herão de Alexandria.
Além dessas menções, Heath propõe ser razoável concordar com Van Pesch (De Procli fontibus, p.134 e ss.) que afiança Proclus valer-se, sem mencionar a autoridade, do comentário de Pappus em vários outros passos do seu próprio comentário.
Proclus
Como já foi mencionado, o Comentário de Proclus sobre o Livro I dos Elementos é uma das duas principais fontes de informação sobre a história da geometria grega que possuímos, a outra sendo a Coleção de Pappus. O Comentário visa mais à geometria elementar, a da régua e do compasso, ao passo que a Coleção volta-se para a geometria avançada. A importância dessas duas obras repousa no fato de não terem sobrevivido os trabalhos originais dos predecessores de Euclides, Arquimedes e Apolônio.
Proclus viveu no século V (410 a 485), tendo assim escoado um tempo suficiente para que a tradição relativa aos geômetras pré-euclidianos se tornasse obscura e falha. Daí fazer muito sentido a investigação, realizada por alguns pioneiros da história da matemática nos últimos cem anos, das fontes utilizadas no seu trabalho; pois são menos confiáveis aquelas que mais se afastam do tempo dos fatos relatados.
Proclus iniciou a sua educação em Alexandria, sendo orientado na filosofia de Aristóteles por Olympiodorus, este também um escoliasta do estagirita, e na matemática por um tal Herão, que não deve ser confundido com o mechanicus Herão. Vai depois para Atenas, onde é instruído por Plutarco e por Syrianus na filosofia neoplatônica, à qual se dedicou profundamente, a ponto de, sendo um discípulo de rápida aprendizagem, tornar-se-lhe um dos máximos expoentes e ser alçado, depois da morte do seu mestre Syrianus, a chefe da escola neoplatônica de Atenas. Proeminente no alcance do seu saber, foi chamado por Zeller na sua Die Philosophie der Griechen, “Der Gelehrte, dem kein Feld damaligen Wissens verschlossen ist” (“o erudito, para quem nenhum campo de conhecimento daquele tempo está fechado”). Foi matemático e poeta, devoto adorador de divindades gregas e orientais, mente tranquila em um mundo de grandes convulsões.
Na qualidade de neoplatônico, uma das suas doutrinas fundamentais sustentava que um nível mais baixo da realidade é, de algum modo, uma “imagem” [92] do mais alto. Uma aplicação dessa ideia encontra abrigo no Comentário e, pode-se dizer, constitui a base da sua filosofia da matemática. Para ele, a matemática reflete a natureza do mundo espiritual, e este pode ser compreendido estudando-se as figuras geométricas. Em poucas palavras, entendia a matemática como via de acesso às mais altas regiões do espírito, representadas pela filosofia; daí, ser inferior a esta. Isso está expresso no seguinte excerto, em que Proclus se refere a Platão:
31.11-22:
E dividindo, por sua vez, essa ciência, que distinguimos das artes, ele quer uma ser não hipotética, a outra partida de hipótese, e a não hipotética estar apta a conhecer a universalidade das coisas, subindo até o Bem e a causa mais alta de todas as coisas, e fazendo do Bem o fim da ascensão, enquanto a que tendo se colocado à frente princípios determinados, valendo-se desses demonstrar as suas consequências, indo não para um princípio mas para um fim. E assim, então, ele diz a matemática, como a que se serve de hipóteses, ser deixada para trás pela ciência não hipotética e acabada [vale dizer, a dialética platônica] [93].
Sabemos que na escola neoplatônica, segundo o preceito exposto na República, os jovens estudantes deveriam ser instruídos na matemática e era missão do chefe da escola ensiná-la. Eis a origem do seu comentário – o ensino dessa ciência. Além disso, em um ponto da obra torna-se evidente que os seus ouvintes são principiantes, pois mantém que:
272.7-14:
E outros fizeram a mesma coisa com as quadratrizes de Hippias e Nicomedes, também esses servindo-se de linhas mistas, as quadratrizes. E outros, partindo das hélices arquimedianas cortaram o ângulo retilíneo dado na razão dada; os conceitos das quais coisas sendo difíceis de entender para os iniciantes, deixamo-las presentemente de lado [94].
Há, por outro lado, passagens sobre hélice cilíndrica (104.26-105.2) e sobre concoides e cissoides (113.3-6).
104.26-105.2:
E alguns disputam a respeito dessa divisão e dizem existir não somente duas linhas simples, mas também uma outra, terceira, a traçada em torno da hélice de um cilindro... [95]
113.3-6:
E deve-se submeter as demonstrações das (afirmações) daquele [Geminus] aos amantes do conhecimento, porque ele dá as gerações tanto das linhas espirais quanto das concoides como das cissoides [96].
Por essas e outras, somos levados a concluir que Proclus também tinha em mira um público mais amplo, ou, antes, produzir uma obra de referência.
Ao comentar as proposições euclidianas, o escoliasta segue um plano bem estabelecido:
(i) explica as demonstrações dadas pelo geômetra;
(ii) dá alguns casos diferentes, por questões práticas;
(iii) refuta objeções provenientes de detratores de Euclides a certas proposições. Este item encontra a seguinte justificativa:
375.8-12:
Adicionei explicações relativas a essas coisas pelas importunações sofistas e pelo estado de espírito natural da juventude dos ouvintes. A maioria rejubila-se encontrando paralogismos que tais e introduzindo dificuldades supérfluas aos possuidores do perfeito conhecimento [97].
Uma questão tão natural quanto o respirar para viver é a de saber se o Comentário ao livro I não se estendeu aos demais livros dos Elementos. Alusões ali encontradas mostram que Proclus intentava prosseguir e possuiria notas nesse sentido. No entanto, o último trecho do trabalho parece indicar não ter havido a desejada continuidade:
432.9-19:
E nós, por um lado, caso possamos ir do mesmo modo aos restantes, renderíamos graça aos deuses, caso, por outro lado, outros cuidados nos desviem, demandamos aos amantes da contemplação deste estudo fazer, segundo o mesmo método, também a exegese dos livros seguintes, investigando o absolutamente importante e facilmente divisível, porque ao menos os comentários que agora circulam têm a confusão muita e variada que leva ao mesmo tempo nenhuma explicação às causas nem ao julgamento dialético nem ao estudo filosófico [98].
Ian Mueller (Mathematics and Philosophy in Proclus’ Commentary on Book I of Euclid’s Elements in Proclus, lecteur et interprète des anciens, 310) [99] propõe, o que é evidente, a seguinte divisão do Comentário e uma interessante classificação do seu conteúdo:
A Divisão:
I. Prólogo:
A. Parte I (Matemática em geral);
B. Parte II (Geometria).
II. As definições do Livro I dos Elementos.
III. As asserções do Livro I:
A. Os postulados e axiomas;
B. As proposições.
A Classificação:
(1) Especulação neoplatônico-neopitagórica: os principais exemplos disso são interpretações de conceitos e proposições como imagens de coisas mais elevadas [como já apontamos anteriormente]; um outro exemplo seria a tentativa de relacionar a matemática com os princípios Limitado–Ilimitado.
(2) Discussão menos especulativa, mais analítico-filosófica: a distinção entre a discussão filosófica e a especulação fica, algumas vezes, obscurecida quando tal discussão é feita por causa da especulação ou no contexto de ideias especulativas.
(3) Classificações e pontos semânticos, lógicos ou metodológicos: incluídas nesse item estão explicações de termos ou proposições, aplicações de pontos da lógica, usualmente do trabalho de Aristóteles, análises da estrutura da argumentação euclidiana, definições alternativas, e classificações, usualmente por gênero e espécie, de objetos geométricos.
(4) Raciocínio mais estritamente matemático: isso é usualmente encontrado em demonstrações alternativas, demonstrações de casos não considerados por Euclides, ou em respostas a objeções; em geral, o raciocínio é bem elementar.
(5) Observações históricas; incluo aqui somente observações que parecem não ter outro propósito exceto o de prover informação histórica, em geral, que Oinopides foi o primeiro a provar certa proposição; outras afirmações com um conteúdo histórico, na maioria, apresentações.
Ian Mueller assevera:
(...) há um tipo de divisão óbvia entre (1)-(2) e (3)-(4), e particularmente entre (1), que poderia ser chamado de jambricano e (3)-(4) que poderiam ser chamados porfirianos. Não surpreendentemente, historiadores da filosofia têm se concentrado no material que cai nos itens (1)-(2), ao passo que historiadores da matemática negligenciam-nos amplamente, concentrando-se nas categorias (3)-(4).
Como Simplício em relação à obra de Aristóteles, Proclus também usou, na elaboração do seu Comentário, tudo o que de útil encontrara no que escreveram aqueles que o precederam. Mas vale, com certeza, para ele o que alguém já disse: “Nós nada somos sem o trabalho dos nossos predecessores. (...) E, no entanto, somos mais do que isso.” O escoliasta fez uma compilação, porém uma “no melhor sentido”. Pois achou um enorme bloco de pedra, “tosco, bruto, informe, e depois de desbastar o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão” e começa a dar-lhe vida. Seleciona passos antes desconexos, apara expressões inapropriadas, recorta o que lhe parece bom, e veste-lhes o manto da harmoniosa coerência; “aqui desprega, ali arruga, acolá recama” e, “naquele movimento hierático da clara língua” grega “majestosa, naquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive”, fica pronta a obra que, ao explicar Euclides, preserva-nos muito do que podemos afirmar das conquistas gregas no fecundo campo da matemática.
Simplício
O neoplatônico Simplício (século VI) foi, por longo tempo, considerado importante sobretudo como fonte de fragmentos de outros filósofos. No conjunto das suas obras, de proporção considerável, consistindo exclusivamente em comentários, cita as opiniões de um grande número dos que vieram antes, como anota Michael Chase, na Introdução da sua tradução inglesa do Comentário de Simplício às Categorias de Aristóteles, p.1-4. E tais menções são, com frequência, as únicas coisas que sobreviveram de muitos desses antepassados. O seu papel de preservador dos fragmentos dos pré-socráticos é inestimável e ele deve ser sempre altissimamente tido pela existência de fragmentos de Parmênides, Empédocles, Anaxágoras e Diógenes Apolônio. O seu valor como fonte de peripatéticos como Eudemo de Rodes, Andrônico e Boécio é inexcedível, sendo igualmente o guardião do que se conhece de certos autores pitagóricos e pseudopitagóricos, como Moderatus de Gades e Árquitas, bem como de membros da Academia Tardia e dos chamados platônicos médios. Muito dos comentários perdidos às Categorias, escritos por Porfírio e Jâmbrico, pode ser reconstruído somente pelo uso de Simplício como intermediário.
Um Colóquio Internacional, “Simplicius – Sa vie, son œuvre, sa survie” [100], foi organizado em Paris, de 28 de setembro a 1o de outubro de 1985, tendo a sua ata editada por Ilsetraut Hadot.
Sobre a obra do comentarista, I. Hadot, na sua primeira contribuição àquela publicação, faz saber:
Como o observa H. Gätje no artigo que acabo de citar [H. Gätje, Simplikios in Der Arabischen Überlieferung [101], in Der Islan, 59 (1982)], a literatura árabe guardou os traços da personalidade sábia de Simplício que nos permaneceriam desconhecidos se levássemos em consideração apenas as obras gregas que os acasos da transmissão manuscrita nos conservaram.
Mais uma vez apoiada no trabalho de Gätje, observa (p.36):
O mesmo Fihrist de Al-Nadim, do qual já falamos no tangente ao resumo sobre o comentário de Simplício ao De anima [de Aristóteles], atesta igualmente a existência do comentário às Categorias, como mais tarde Al-Qifti, que retoma em regra geral o material que se encontra em Al-Nadim com alguns acréscimos, omissões e variantes. Mas sobre os outros comentários de Simplício sobre Aristóteles, as fontes bibliográficas árabes calam-se. Em compensação [e eis o que nos interessa], nos dois autores árabes, Simplício é nomeado, na qualidade de matemático e astrônomo, como tendo escrito um comentário sobre o primeiro livro dos Elementos de Euclides. Al-Qifti ajunta nesse contexto (...) que Simplício fundara uma escola e que teve alunos que foram chamados segundo o seu nome. A. I. Sabra, no seu artigo “Simplicius’ Proof of Euclid’s Parallels Postulate [Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, 32 (1969), p.1-24], reuniu, além dos extratos citados desse comentário por al-Nayrizi [matemático que viveu no século IX] em árabe, no seu próprio comentário sobre os Elementos de Euclides, um extrato contido em uma carta de Alam al-Din Qaysar ibn Abi ’L-Qasim a Nasir al-Din al-Tusi e, além disso, um texto contido no manuscrito árabe, Bodleianus Thurston 3, fol. 148. O comentário de al-Nayrizi será conhecido no Ocidente pela tradução de Geraldo de Cremona. Simplício é aí citado sob o nome de Sambelichos. A tradição grega não nos permite, senão indiretamente, concluir sobre as qualidades de matemático de Simplício. (...) Em primeiro lugar, o Fahrist faz indiscutivelmente a ligação entre o filósofo e o matemático, e, por outro lado, sabemos que cada filósofo neoplatônico era matemático ao mesmo tempo que filósofo. (...)
Acrescentemos, nesse contexto, ainda um pormenor interessante. Em um dos fragmentos textuais do comentário de Simplício sobre o primeiro livro dos Elementos de Euclides, relatados por al-Nayrizi, Simplício fala do seu “sahib”, nomeado Aghanis e cita uma demonstração matemática dele. Qual pode ser o termo grego subjacente? A. I. Sabra traduz por “our associate”, o que pode eventualmente fazer pensar em um professor associado na escola que, segundo al-Nadim, Simplício havia dirigido. Pode tratar-se talvez também de uma tradução árabe do termo grego ἑταῖρος que, no uso que dele fazem os neoplatônicos, designa um companheiro de estudos admitido no estreito círculo dos verdadeiros adeptos da filosofia neoplatônica.
De fato, Simplício dá, verbatim, em uma longa passagem colocada por al-Nayrizi depois da “Proposição XXIX” do Livro I dos Elementos, uma tentativa de Aghanis, que virá erroneamente a ser confundido com Geminus, de demonstrar o postulado das paralelas. Começa, realmente, com uma definição de paralela que concorda com a versão de Geminus sobre elas, como está em Proclus:
177.21-23:
E das [linhas] que se mantêm separadas por distância sempre igual, as retas que nunca tornam menor a entre elas em um plano são paralelas [102].
E está intimamente conectada com a definição dada por Posidonius em Proclus:
176.6-10:
E Posidonius diz: paralelas são as que nem convergem nem divergem em um plano, mas as que têm iguais todas as perpendiculares traçadas dos pontos de uma até a outra [103].
Fiquemos com as considerações acima, no que tange aos comentaristas, aditando:
Do Comentário
Quando os deuses, do Olimpo, poderosos
Enviam a cristalina chuva
Que caudalosos faz os rios
E viva a terra agradecida,
As gotas dágua suspensas no horizonte
Revelam o mistério da cor branca:
Combinação perfeita, harmoniosa
Das outras sete do arco-íris.
Assim o comentário dos antigos,
Como as gotas da chuva cristalina,
Mostram que os Elementos de Euclides,
Obra hercúlea, valorosa,
São a, dos trabalhos de Eudoxo e Teeteto,
De Teodoro e outros grandes gregos,
Com a pitada de sal
Que faz a vida mais gostosa,
Combinação ousada, majestosa.
A Geometria Grega e os Elementos
Pode-se dizer, parece que sem qualquer sombra de dúvida, que o conhecimento matemático tanto egípcio quanto o babilônico – este, sabemos hoje graças ao trabalho de Otto Neugebauer, bem mais refinado do que aquele – tinha a experiência como critério de verdade.
Os gregos herdaram, assim nos diz a tradição, tal conhecimento. Mas, o que satisfazia egípcios e babilônios não bastou para contentar a exigência grega. Com os matemáticos da Grécia, a razão suplanta a empeiria como critério de verdade e a matemática ganha características de uma ciência dedutiva.
Como sucede com inúmeros fenômenos culturais, as causas dessa transformação por que passou essa área de conhecimento jazem ocultas nas
brumas de um passado remoto. Cada tentativa de reencontrá-las tece-se de conjecturas mais ou menos consubstanciadas nos testemunhos, quase sempre duvidosos, de épocas menos recuadas. No que nos interessa, o historiador assemelha-se a um equilibrista a andar em um fio de aço suspenso entre dois distantes pontos, a uma altura estonteante, sem a rede protetora que lhe amorteça uma possível malfadada queda. Porém, com o desafio lançado, a adrenalina agita o sangue, esporeia os rins, enrijece os músculos, faz pulsar acelerado o coração, incitando a audácia humana: é preciso ousar!
É o que faz Szabó quando explica a referida mudança pelo impacto, na matemática, da filosofia eleática, ou, mais precisamente, da dialética de Zenão.
Ora, se a dialética de Zenão, sendo uma técnica retórica, pode ter sido a causa do princípio da axiomatização, não parece ser o bastante para firmar a axiomatização como um programa a ser levado a cabo. Julgamos lídimo afirmar que para tanto foram necessárias a influência de Platão e a extensão que faz da dialética eleática.
Platão elege a dialética [104], já o vimos, como a mais importante das ciências, a única não-hipotética. Enquanto a matemática tem hipóteses como pontos de partida, indo dessas, em movimento descendente (κάτω), à dedução das suas consequências, a dialética, em movimento ascendente (ἂνω) caminha para o alto, ainda mais alto, até alcançar, se possível, o fundamento incondicional (República, 510.b6-7: “[a alma] indo da hipótese ao princípio não hipotético.” 511.b5 [105]: “fazendo as hipóteses não princípios mas realmente hipóteses” [106]).
Na ordenação das realidades, a trajetória (ascendente e depois descendente, isto é, uma espécie de análise e síntese dos geômetras gregos) não ficaria facilitada, se feita com base em uma axiomatização dessa ciência intermediária entre o sensível e o inteligível? Isso não imporia tal axiomatização como um projeto da Academia, sob a influente autoridade de Platão?
Platão, matemático?
Quem pretenda enfrentar as questões acima terá antes que se haver com esta outra: À parte o estudioso da matemática, o entusiasta por essa ciência, Platão foi também um efetivo matemático, como arrolado entre outros no Sumário de Eudemo? Descobriu ele resultados matemáticos, resolveu complexos problemas, vislumbrou novas teorias, imprimiu, em suma, a sua pegada no fértil solo dessa disciplina?
Aqui a resposta de duas eminentes autoridades:
G. J. Allman (Greek Geometry: from Thales to Euclid [107], p.124):
Deve-se recordar que Platão – que em matemática parece ter sido mais diligente que inventivo (...) De fato, temos somente que comparar a solução atribuída a Platão, para o problema de achar duas médias proporcionais (...) com as soluções altamente racionais para o mesmo problema de Arquitas e Menaechmus, para ver o amplo intervalo entre estes e aquele, de um ponto de vista matemático. (...) É, então, provável que Platão, que, tanto quanto sabemos, nunca resolveu uma questão geométrica (...)
N. Bourbaki (Éléments d’histoire des mathématiques [108], p.12): “Pode-se dizer que Platão era quase obcecado pela matemática; sem ser ele mesmo um inventor nesse domínio (...)”
A próxima questão: Pôde Platão, sem ter sido propriamente um matemático, ter dado uma contribuição importante ao estabelecimento e à estruturação da matemática grega?
Isso abre um amplo campo de debate.
A tradição, concretizada no Sumário de Eudemo, assim como alguns historiadores modernos consideram decisivo o seu papel para o desenvolvimento dessa ciência, mormente no que respeita ao método, à sistematização e aos fundamentos desta, tanto quanto à sua emancipação da experiência. Outros negam-lhe a influência significativa.
Aos exemplos!
B. L. Van der Waerden (Science Awakening [109], p.148):
O período [século de Platão] começa com a morte de Sócrates (399 a.C.) e encerra-se no momento em que Alexandre, o Grande, espalha a semente da cultura helenista sobre o mundo todo da Antiguidade.
Esse período é de decadência política; mas para a filosofia e para as ciências exatas é uma era de florescimento sem precedente. No centro da vida científica encontra-se a personalidade de Platão. Ele guiou e inspirou o trabalho científico dentro e fora da sua Academia. Os grandes matemáticos Teeteto e Eudoxo, e todos os outros enumerados no Catálogo de Proclus, foram seus amigos, seus mestres em matemática e seus discípulos em filosofia. O seu grande aluno, Aristóteles, o professor de Alexandre, o Grande, passou vinte anos da sua vida no glorioso mundo da Academia.
J. A. Gow (A Short History of Greek Mathematics [110], p.175-6):
… Platão foi mais um forjador de matemáticos do que um matemático distinguido por descobertas originais, e as suas contribuições à geometria estão mais na melhora do seu método do que em adições ao seu conteúdo. Foi ele que transformou a lógica intuitiva dos antigos geômetras em um método a ser considerado conscientemente e sem receio. Com ele, aparentemente, começaram aquelas definições dos termos geométricos, aquele enunciado distinto de postulado e axiomas que Euclides adotou. (grifo nosso)
Gino Loria (Storia delle Matematiche [111], p.78): “Mais direta e visível foi a benéfica influência de Platão sobre a Ciência Exata”.
Por outro lado,
Otto Neugebauer (The Exact Sciences in Antiquity [112], p.152):
Parece-me igualmente impossível dar qualquer “explicação” conclusiva para a origem da matemática superior nos séculos V e IV, em Atenas e nas colônias gregas. Do lado negativo, entretanto, penso que é evidente que o papel de Platão foi amplamente exagerado. A sua contribuição direta para o conhecimento matemático foi obviamente nula. Que por um certo período matemáticos da estatura de Eudoxo tenham pertencido ao seu círculo não é prova da influência de Platão na pesquisa matemática. O caráter excessivamente elementar dos exemplos de procedimentos matemáticos citados por Platão e por Aristóteles não dão suporte à hipótese de que Teeteto ou Eudoxo tenham aprendido qualquer coisa com Platão.
Cabe invocar agora o testemunho de Eudemo, no Catálogo dos geômetras, sobre o impulso que o filósofo dera à ciência matemática e, em particular, à geometria, despertando a admiração por esse estudo e orientando discípulos na pesquisa geométrica.
Como Eudemo é um dos observadores mais próximos do tempo de Platão, é razoável darmos-lhe crédito. É possível que ele seja o inspirador das seguintes palavras de J. Cajori, p.26 [113]:
Com Platão como chefe da Escola não nos devemos surpreender que a escola platônica tenha produzido um tão grande número de matemáticos. Platão realizou pouco trabalho realmente original, mas fez aperfeiçoamentos valiosos na lógica e nos métodos empregados. (grifo nosso)
Aceitamos, pois, que, mesmo não sendo efetivamente um “working mathematician”, o filósofo, até pela sua missão de filósofo, contribuiu para o desenvolvimento da matemática grega, em especial da geometria, como esta aparece nos Elementos de Euclides.
Como se organiza a matemática
Comecemos descrevendo, sucintamente, em que consiste, depois de Cauchy, Weierstrass, Bolzano, Dedekind, Cantor, Frege, Hilbert, Bourbaki, e outros grandes do século XIX e XX, uma teoria matemática.
No seu trabalho, o que compete ao matemático é definir os conceitos de que se servirá e demonstrar as propriedades desses conceitos.
Ora, definir um conceito significa explicá-lo em termos de outros conceitos já definidos, e demonstrar uma proposição equivale a argumentar pela sua veracidade, usando as regras de inferência válidas fornecidas pela lógica, com base em proposições anteriormente demonstradas. Assim, um certo conceito $c_0$ é definido recorrendo-se aos conceitos $c_1, c_2, ..., c_k$, todos eles já definidos, tendo tais definições dos $c_1, c_2, ..., c_k$ ocorrido em função de outros conceitos, anteriores na estrutura, “e assim por diante”. De modo análogo, para provarmos uma proposição, utilizamo-nos de proposições anteriormente provadas e que foram provadas com o auxílio de outras já provadas que as antecedem na ordenação da teoria, “e assim por diante”.
Quer na definição de conceitos quer nas demonstrações de propriedades, o problema jaz na frase “e assim por diante”. Como não há, dada a nossa finitude, possibilidade de um retrocesso ad infinitum, é preciso dar uma solução ao “e assim por diante”.
No caso da definição, os dicionários oferecem a solução do “círculo vicioso”: um termo é definido em função de um outro e este outro, em função daquele. É evidente que o matemático não pode aceitar essa situação. A sua solução (de conveniência, é verdade) consiste em tomar alguns conceitos sem definição. Como lembra J. M. C. Duhamel (Des méthodes dans les sciences de raisonnement [114], p.16-7): “É por entendê-lo desse modo que diremos que a definição de uma coisa é a expressão das suas relações com coisas conhecidas. E, por consequência, nem todas as coisas podem ser definidas, pois que, para isso, seria necessário conhecer já as outras.” Assim procedendo, o matemático assume o compromisso de, valendo-se desses conceitos não definidos, que devem ser escolhidos no menor número possível, definir todos os demais conceitos de que deva lançar mão.
No caso da demonstração de propriedades/proposições, uma conduta similar leva-o a acolher umas tantas proposições, no menor número exequível, sem demonstração e procurar provar todas as outras afirmações que venha a fazer a partir daquelas.
Os conceitos não definidos são chamados conceitos ou termos primitivos e todos os outros, conceitos ou termos derivados. As proposições admitidas sem
demonstração são ditas axiomas (hoje não se faz qualquer distinção entre
postulado e axioma), e as demais, demonstradas, teoremas.
Essa estruturação das disciplinas matemáticas em conceitos primitivos e derivados, axiomas e teoremas fornece “a arquitetura” da nossa ciência. E isso é “com pouca corrupção” herança grega. Conforme sustenta Bourbaki (op. cit., p.10): “a noção de demonstração nesses autores [Euclides, Arquimedes, Apolônio] não difere em nada da nossa”.
A matemática grega
Um dos capítulos mais importantes da história cultural, embora pouco conhecido, é a transformação do primitivo conhecimento matemático empírico de egípcios e babilônios na ciência matemática grega, dedutiva, sistemática, baseada em definições e axiomas.
Quem se achegue descuidadamente a essa história terá a impressão de a geometria ter nascido inteiramente radiante da cabeça de Euclides, como Atenas da de Zeus. Tal foi o êxito dos seus Elementos no resumir, corrigir, dar base sólida e ampliar os resultados até então conhecidos que apagou, quase que completamente, os rastros dos que o precederam.
“Não há, hoje, qualquer dúvida”, salienta Bourbaki (op. cit., p.9), “de que existiu uma matemática pré-helênica bem desenvolvida. Não somente são as noções (já mais abstratas) de número inteiro e de medida de quantidade comumente usadas nos documentos mais antigos que nos chegaram do Egito e da Caldeia, mas a álgebra babilônia, por causa da elegância e segurança dos seus métodos, não deve ser concebida como uma simples coleção de problemas resolvidos por um tatear empírico.”
No entanto, não encontramos, seja nos documentos egípcios seja nos babilônios, que nos chegaram aos milhares, qualquer esboço do que se assemelhe a uma “demonstração”, no sentido formal do conceito. A noção de ciência dedutiva era desconhecida dos povos orientais da Antiguidade. Os seus textos matemáticos mostram-se, em que pese o afirmado por Bourbaki, como uma coletânea de problemas, mais ou menos interessantes, e as suas soluções, em forma de uma receita prescrita, como as indicações das etapas de um ritual oferecido a uma deidade. Nada de definições, nada de axiomas, nada de teoremas! Sobre tais coisas repousa a sombra!
Agora, a questão fundamental.
Ao herdarem esse conhecimento – Heródoto, Aristóteles e Eudemo afiançam-nos ter a geometria sido importada do Egito – por que os gregos não se contentaram com o seu fundamento empírico? Por que substituíram a coleção existente das receitas matemáticas por uma ciência dedutiva sistemática? O que os levou a confiar mais no que podiam demonstrar do que naquilo que podiam “ver” como correto? Por que a transformação no critério de verdade ali usado, trocando a justificativa baseada na experiência por aquela sustentada por razões teóricas?
É na moldagem dessa nova configuração da matemática, julgamos, que foi decisiva a influência de Platão.
A mudança
Tanto no Egito quanto na Mesopotâmia, era a classe sacerdotal a detentora do conhecimento. Ora, os sacerdotes punham-se de intermediários entre a deidade e o povo. Os desígnios da divindade não carecem de explicações; seus desejos devem ser satisfeitos com os rituais que, aplacando-lhe a ira, lhe atrai o beneplácito. É função dos sacerdotes interpretar a vontade dos deuses, guiando o povo nos passos do rito apaziguador.
Procedem do mesmo modo, enunciando as passadas, sem lhes dar justificação, nos seus documentos matemáticos!
Quando tal conhecimento chega à Grécia, por volta do século VI a.C., não encontra ali uma classe sacerdotal. “Foi provavelmente graças aos aqueus”, pondera J. Burnet (Early Greek Philosophy, p.4) [115], “que os gregos nunca tiveram uma classe sacerdotal, e isso pode bem ter tido algo a ver com o aparecimento da ciência livre entre eles.” Além disso, “a visão tradicional de mundo e as costumeiras regras de vida tinham colapsado” (idem, ibidem, p.1), e os mais antigos filósofos especulavam sobre o mundo à sua volta. Essa pesquisa cosmológica deu origem “à ampla divergência entre ciência e senso comum que era, por si só, um problema que demandava solução, e, além disso, forçava os filósofos ao estudo dos meios de defender os seus paradoxos contra os preconceitos da (visão) não científica” (idem, ibidem, p.1). Há, então, que se acrescentar que “a impressão geral que parece resultar dos textos (muitos fragmentários) que possuímos sobre o pensamento filosófico grego do século V a.C. é ser ele dominado por um esforço mais e mais consciente para estender, a todo o campo do pensamento, os procedimentos de articulação do discurso empregados com tanto sucesso pelas retórica e matemática contemporâneas – em outras palavras, para criar a Lógica, no sentido mais geral dessa palavra. O tom dos escritos filosóficos sofrem, nessa época, uma mudança básica: ao passo que, nos séculos VII e VI, os filósofos afirmam ou vaticinam (ou ao menos esboçam vagos raciocínios, fundados sobre igualmente vagas analogias), a partir de Parmênides e, sobretudo, de Zenão, argumentam e procuram resgatar princípios gerais que possam servir de base à sua dialética” (Bourbaki, op. cit., p.11), cuja invenção Aristóteles atribui a Zenão; “é em Parmênides que se encontra a primeira afirmação do princípio do terceiro excluído, e as demonstrações ‘por absurdo’ de Zenão de Elea permaneceram famosas” (idem, ibidem, p.11).
Pois bem, a solução proposta por Sazbó para a origem da matemática dedutiva sistemática grega consiste no impacto, sofrido pela ciência, da filosofia eleática ou, mais precisamente, da sua dialética.
A filosofia eleática, falando perfunctoriamente, foi preparada por Xenófanes, estabelecida por Parmênides, seguida e defendida por Zenão e Melisso, e tem como fundamentos:
(i) a unidade, a imutabilidade e a necessidade do ser – em Teeteto 181 a 6-7, Platão refere-se aos eleatas como οἱ τοῦ ὃλου στασιῶται “os partidários do todo”, e Aristóteles, Metafísica 986b 24, escreve
“[Xenófanes], tendo contemplado o céu todo, disse o um ser deus.” [116].
(ii) a acessibilidade do ser somente ao pensamento racional e a condenação do mundo sensível e do conhecimento sensível como aparência.
Claro está que a aceitação do pressuposto (ii) vai ao encontro da nova visão da matemática.
A conjectura de Szabó
Euclides abre os Elementos arrolando três tipos de princípios matemáticos: definições (ὃροι), postulados (αἰτήματα) e noções comuns (κοιναὶ ἒννοιαι) ou axiomas.
Proclus examina os princípios não provados nos seguintes termos:
75.5-18:
Explicaremos o arranjo todo das proposições nele [o livro dos Elementos] por esta maneira. Por essa ciência, a geometria, ser de hipótese, dizemos, e demonstrar as coisas na sequência a partir dos princípios de partida – pois uma única é a não hipotética, e as outras recebem de junto daquela os princípios – é necessário, de algum modo, o organizador dos elementos na geometria transmitir, por um lado, separadamente os princípios da ciência, e, por outro lado, separadamente as conclusões a partir dos princípios, e não dar uma razão para os princípios, mas para as consequências pelos princípios. Pois, nenhuma ciência demonstra os princípios dela própria, nem faz discurso sobre eles, mas tem-nos como autoconfiáveis, e, para ela, são mais evidentes do que os na sequência. E sabe-os por causa deles próprios, ao passo que as coisas depois dessas, por causa daqueles [117].
As palavras acima são a caixa de ressonância do seguinte trecho da República de Platão.
510. c2-d3:
Penso, pois, saberes que os que se esforçam com a geometria e também com a aritmética e com coisas que tais, tendo suposto tanto o ímpar quanto o par, quanto as figuras e as três espécies de ângulos, e as outras coisas afins a essas, segundo cada pesquisa, como sabedores dessas coisas, tendo-as feito hipóteses, nenhuma razão nem a si próprios nem a outros julgam, então, conveniente dar sobre elas, como evidentes a todos, e, partindo dessas coisas, passando daí através das restantes, terminam, de modo conforme, nisso, no exame do qual começaram [118].
Tais considerações mostram que os matemáticos daquela época, dos quais os maiores estavam, de algum modo, associados à Academia, tinham já uma nova concepção da matemática como uma ciência dedutiva e entendiam a não necessidade de demonstrarem os seus princípios. Deixam igualmente claro que os conceitos arrolados – o ímpar e o par, as figuras e os três tipos de ângulos – são hipóteses dessa ciência, que, por contê-las, é uma ciência hipotética.
Ora, a palavra ὑπόθεσις, “hipótese”, deriva do verbo ὑποτίθημι, “pôr embaixo, supor (sub-pôr)”, e significa aquilo que os participantes de um debate (retórico) concordam em aceitar por base e ponto de partida da argumentação de cada um. Assim, ὑπόθεσις, quer na dialética (retórica) quer na matemática, é um fundamento, um princípio, um ponto de partida aceito e sobre cuja veracidade não se cogita.
Então, segundo Szabó, os matemáticos chegaram à conclusão de que não precisavam (e não podiam) demonstrar os princípios da sua ciência pela prática da dialética. Estariam habituados com o fato de que, quando um dos debatedores queria provar algo para os outros, limitava-se a começar a partir do que tinha sido convencionado verdadeiro por todos os participantes.
Ainda Platão
A mudança resultante de paradigma está intimamente associada ao caráter idealista, antiempírico da filosofia eleática, mas sobretudo da filosofia platônica. Como nota Van der Waerden (op. cit., p.148) a respeito desta:
Verdade que significa as ideias. São as ideias que têm Ser verdadeiro, não as coisas que são observadas pelos sentidos. As ideias podem às vezes ser contempladas, em momentos de Graça, através da reminiscência do tempo em que a alma vivia mais perto de Deus, no reino da verdade; mas isso pode acontecer somente depois de os erros dos sentidos terem sido conquistados pelo pensamento concentrado. O caminho que leva a esse estado é aquele da dialética (...)
Platão incentiva a estruturação dedutiva sistemática da ciência que ele considera propedêutica a mais alta ciência, a dialética.
L. Brunschvicg (Les étapes de la Philosophie Mathématique [119], p.56) pondera:
Separando-se, ao mesmo tempo, dos pitagóricos, que mantinham no mesmo plano ciência e filosofia, e de Sócrates, cuja investigação prudente parece ter-se detido na determinação da hipótese, Platão conduz a filosofia matemática a um caminho todo novo. A matemática situada na região da διάνοια é apenas uma ciência intermediária (Aristóteles, Metafísica 997b2: “as coisas intermediárias, acerca das quais dizem ser a ciência matemática” [120]). A sua verdade reside em uma ciência superior, que está em relação a ela como ela própria em relação à percepção do concreto. A dialética tem por função retomar as hipóteses das técnicas particulares e conduzi-las até o seu princípio (República VII, 533.c6-7: “a investigação dialética só é conduzida por esse modo, eliminando as hipóteses, em direção ao próprio princípio” [121]), toma posse do incondicional; e daí, por uma marcha que é inversa à da análise, forja uma cadeia ininterrupta de ideias (República VI, 511.b3-c2: “Dizendo eu: compreende então a outra seção de inteligível, isso a que a própria razão alcança pelo poder da dialética, fazendo das hipóteses não princípios, mas realmente hipóteses, do mesmo modo que degraus e também trampolins, a fim de que, indo até o não-hipotético no princípio de tudo, tendo-o alcançado, de novo, obtendo as coisas que são obtidas daquele, desça assim para um fim, servindo-se absolutamente de nada sensível, mas das próprias ideias/formas, através delas para elas, e acaba em ideias/formas”.) que, suspensa no princípio absoluto, constituirá um mundo completamente independente do sensível, o mundo da νόησις. A filosofia da matemática de Platão, no seu grau mais alto e sob a sua forma definitiva será então a dialética [122].
Cotejemos o que acabamos de citar com a seguinte passagem do livro Introduction to Mathematical Philosophy, p.1, de Bertrand Russell [123]:
A matemática é um estudo que, quando começamos a partir das suas porções mais familiares, pode ser perseguido em uma de duas direções opostas. A direção mais familiar é construtiva, para complexidade gradualmente crescente: dos inteiros para as frações, números reais, números complexos; da adição e multiplicação para a diferenciação e a integração e para a matemática superior. A outra direção, que é menos familiar, procede, por análise, para a abstração e a simplicidade lógica cada vez maiores; em vez de perguntar o que pode ser definido e deduzido do que é suposto no princípio, perguntamos que ideias e princípios mais gerais podem ser encontrados, em termos dos quais o nosso ponto de partida possa ser definido ou deduzido. É o fato de perseguir essa direção oposta que caracteriza a filosofia matemática como oposta à matemática usual.
Enquanto Zenão toma uma hipótese como uma suposição que se faz para um presente propósito, Platão no Fédon e nos Livros VI e VII da República, como aponta J. Lucas (Plato and the Axiomatic Method [124], p.13),
tenta tornar as suas suposições aquelas que não têm que ser tomadas como certas para o presente caso particular; tenta torná-las aquelas que devem ser aceitas por todos. Essa é a procura do ἀνυπόθετον ἀρχή (“princípio não-hipotético”), o axioma fundamental que não tem que pedir a alguém para aceitá-lo; é algo que deve ser aceito por qualquer um (...) É por essa razão que Platão sugere à consideração o ideal axiomático: que deveríamos tentar e desenvolver o todo da nossa matemática por raciocínio dedutivo, διάνοια, com base em alguns princípios que (erradamente) pensou poderiam ser estabelecidos além de toda questão possível. Platão apresentou o seu programa. Os seus discípulos realizaram-no em grande parte. Temos o resultado final codificado por Euclides.
Desse modo, sob a influência de Platão, o que nos mostram os Elementos de Euclides é, na expressão de Wordsworth,
An independent world,
Created out of pure intelligence [125].
Feitas tais ponderações, damos o trabalho por findo. Não que tenhamos esgotado tudo. Mas o sol se pôs, e esta é, depois do dia todo de labuta, a hora dos cansaços. Recolhemos as ferramentas como os homens se recolhem na tristeza do moribundo dia, como as flores fecham-se nos campos, e as aves voltam céleres ao ninho.
(Mas quando imergiu a radiante luz do sol
Os que vão descansar vão, cada um, para a sua casa,
Onde para cada um u’a mansão o famoso manco
Hefaístos fez com hábil entendimento.) [126]
(Ilíada, I, 605-8)
Há temas que ficaram intratados; é infinita a arqueologia dos dizeres, mas lembremos aqueles que Camões põe na boca de Vasco da Gama dirigindo-se ao Rei de Melinde (Lusíadas, III, 3-4):
Mandas-me, ó Rei, que conte declarando
De minha gente a grão genealogia;
Não me mandas contar estranha história
Mas mandas-me louvar dos meus a glória.
Que outrem possa louvar esforço alheio,
Coisa é que se costuma e se deseja;
Mas louvar os próprios, arreceio
Que louvor tão suspeito mal me esteja;
E, para dizer tudo, temo e creio
Que qualquer longo tempo curto seja;
Mas, pois o mandas, tudo se te deve;
Irei contra o que devo, e serei breve. (grifo nosso)
Na brevidade das nossas observações, de modo pessoal, abordamos as dificuldades da rememoração do passado, espiamos por cima do muro da filologia, esboçamos o personagem, comentamos-lhe a obra. Subimos ao pico das certezas, poucas, marchamos pela planície das suposições, muitas, pois, afinal, de certezas e suposições é que se tece a história, speculum vitae. É possível que onde viramos à esquerda, outros dobrassem à direita; é possível que gritassem, onde mantivemos obsequioso silêncio; corressem, onde paramos; estacionassem, quem sabe à beira do abismo, quando avançamos; quisessem paz, quando clamamos por guerra; ficassem a pregar, quando saímos a divulgar a boa nova, eles nos paços, nós com os nossos passos – porque pode-se ser tudo isso sem ser nada disso – e, por fim, é possível, diante de tantos contrastes, estarmos falando as mesmas coisas.
Providenciamos mesas, cadeiras, cabides para casacos, recipientes para guarda-chuvas, porcelana, copos, talheres, toalhas de mesa, guardanapos, travessas, réchauds, cafeteiras com torneira. Encomendamos o gelo, colocamos as toalhas e os guardanapos nas mesas, arranjando-os para o jantar. Preparamos o bar, organizamos as bandejas de licores e café, acertamos a disposição dos móveis, dispusemos os descansos para copos onde necessários e arrumamos as flores, tudo conforme O livro completo de etiqueta.
Que quantos são os convidados tantos sejam os convivas e que o que passamos a lhes servir agora lhes agrade o paladar e a alma, assim os deuses nos concedam, do Olimpo, poderosos, ao som da lira de Apolo, acompanhando das Musas o harmonioso canto.
Irineu Bicudo
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Apresentamos o Prefácio e parte da Introdução do livro Os Elementos de Euclides, traduzido por Irineu Bicudo, Editora Unesp, 2009.
A parte II pode ser encontrada aqui (em breve) e a parte III aqui (em breve).
Prefácio
É-me forte a impressão de, desde sempre, eu ter querido estudar o grego clássico. Lembro com que sentimento de encanto folheava o caderno que um vizinho me emprestara, contendo as lições de um quase nada daquela língua que ele aprendera quando seminarista. Cursava eu, então, a antiga escola primária. Essa vontade cresceu com as aulas de latim nas quatro séries ginasiais. Em várias épocas, cheguei a comprar gramáticas e livros com textos em grego. Mas a oportunidade (καιρός: “Quando pousa / o pássaro // quando acorda / o espelho // quando amadurece / a hora”) [1] só surgiu, de fato, arrebatadora, no segundo semestre de 1988, na disciplina de Língua Grega, ministrada pelo Professor Dr. Henrique Graciano Murachco, no Programa de Extensão Universitária da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Então, por dez anos, sempre que minhas atividades como professor, vice-diretor e depois diretor do Instituto de Geociências e Exatas da UNESP de Rio Claro e algumas viagens ao exterior me permitiram, participei com dedicação e entusiasmo, nas tardes das sextas-feiras, com um grupo de pessoas de várias procedências profissionais, do que o Professor Henrique chamava de “Oficina de Tradução”. Ali vertemos para o português longas passagens de Homero, Heródoto, Píndaro, Sófocles, Platão, Xenofonte, Aristóteles. O meu envolvimento com as letras aumentava com o tempo, e a consequência disso foram os múltiplos e honrosos convites, sempre aceitos, para participar de bancas examinadoras de concurso para ingresso de professor, de teses de doutoramento, de concurso de livre-docência e de dois concursos de professor titular, todos do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da velha universidade.
O livro que ora dou a público é o fruto amadurecido, desde então, pelos
longos anos de aprendizagem. Com ele viso, evidentemente, aos estudantes de Matemática e aos professores dessa ciência. Incluo no público-alvo também as pessoas cultas em geral que se interessem pelas conquistas gregas na Antiguidade, os estudantes de Filosofia e os de Letras Clássicas (grego), cujo curso, do meu ponto de vista, deixa aberta uma imensa lacuna no conhecimento da cultura grega ao não estudar obras matemáticas e hipocráticas, grandiosos monumentos daquela civilização.
Proclus, para mostrar a excelência do trabalho de Euclides, descreve algumas qualidades que um trabalho desse tipo deva ter, e que o de Euclides, de fato, tem.
Assim, diz:
É preciso a obra que tal desembaraçar-se de todo o supérfluo – pois isso é um obstáculo à instrução [2];
muita preocupação (deve) ter sido efetivada relativa a clarezas e, ao mesmo tempo, a concisões – pois os contrários dessas turvam a nossa inteligência [3].
De fato, a prática de Euclides frequentemente contempla a concisão – por exemplo, em lugar de “o quadrado sobre a AB (isto é, de lado AB)” diz, na maioria das vezes, “o sobre a AB”; e, “o pelas AB, CD”, em lugar de “o retângulo contido pelas AB, CD (ou seja, de lados AB, CD)”; “cortar em duas” sempre significa “cortar em duas partes iguais (isto é, bissectar)” etc. Mas se, por um lado, a concisão leva, entre outras coisas, a esse encurtamento das expressões, que mantive na tradução em respeito ao estilo euclidiano, ao contrário do que faz a recente versão francesa que se farta de palavras ausentes no grego, por outro lado, a clareza não abandona o leitor atencioso que logo se habituará com essas particularidades.
Chamo a atenção para o fato de, em grego, o termo “lado” (πλευρά) ser feminino e assim só esse gênero aparecer ao referir-se o texto a “o lado AB do triângulo...” ou a “a reta (ou seja, segmento) AB do triângulo...”. Então, a tradução usa, nesses casos, indiferentemente, os artigos masculino ou feminino.
Previno, por fim, a quem possa interessar, que é preciso fôlego para acompanhar muitíssimas das demonstrações que aqui se encontram, e determinação. Garanto, no entanto, que, vencida a inércia, ultrapassado o obstáculo, alcançado o objetivo com a compreensão do resultado, cabe a recompensa de ter mergulhado no próprio processo do que denominamos “pensar” e de haver podido apreendê-lo em toda a sua abrangência. Mais: brotará disso a convicção de que, se com Homero a língua grega alcançou a perfeição, atinge com Euclides a precisão. E o método formular, que consiste em usar um conjunto de frases fixas que cobrem muitas ideias e situações comuns, poderoso auxílio à memória em um tempo de cultura e de ensino eminentemente orais, serve para aproximar o geômetra do poeta e então mostrar que perfeição e precisão podem ser faces da mesma medalha.
Agradeço à minha esposa, Elizabeth Christina Plombon, que digitou com carinho e cuidado todo o trabalho, confeccionando-lhe as, muitas vezes, complicadas figuras, e sendo de importante ajuda nas revisões; ao Prof. Dr. Henrique Murachco, pelo ensino e a amizade, e ao Prof. Dr. José Rodrigues Seabra Filho, docente de latim da USP, e companheiro daquelas sextas-feiras, por ter conferido comigo a tradução que fiz do Prefácio Latino de Stamatis.
Sou o único responsável por todas as traduções do grego e do latim, e por quase todas as do inglês, francês, alemão e italiano.
Pois, tendo aprendido algo, jamais neguei, fazendo o conhecimento ser como uma descoberta minha; mas louvo como sábio o que me instruiu, tornando públicas as coisas que aprendi com ele.
Platão, Hippias Menor, 372 c5-8 [4]
P.S.: (i) Conforme salienta Kirk (The Songs of Homer [5]: “Finally that perennial problem, the spelling of Greek names.” [6]), a solução que adotei, nem sempre com sucesso, foi a de preservar as formas usuais em português dos mais conhecidos, e prover para os outros a latinizada, como, de hábito, praticam-na os de língua inglesa.
(ii) O uso de colchetes na tradução reproduz o que se encontra no texto grego e, ali, indica o que Heiberg julga ter sido inserido por terceiros no escrito de Euclides.
(iii) Ensina Said Ali na sua Gramática (p.171-2):
Nos enunciados de caráter condicional, em que a hipótese é um fato inexistente cuja realização não se espera ou não parece provável, emprega-se o imperfeito do conjuntivo para esta hipótese condicionante, e o futuro do pretérito para a oração principal.
Na linguagem familiar costuma-se substituir o futuro do pretérito pela forma do imperfeito do indicativo. É substituição permitida em linguagem literária (grifo meu):
“Se Deus nos deixara tentar mais do que podem as nossas forças, então tínhamos justa causa de recusar as tentações.” (Vieira)
Por isso, apoiado na autoridade de um Vieira, vali-me dessa forma na tradução, por exemplo, das Proposições I.19, I.25 etc., ficando assim rente ao original.
Irineu Bicudo
Notas:
[1] FONTELA, O. Poesia Reunida. São Paulo: 7 Letras/CosacNaify, 2006 [1969/1996].
[6] [“Finalmente, aquele problema constante, a grafia dos nomes gregos”].
Introdução
Sinto-me compelido ao trabalho literário: (...) pelo meu
não reconhecimento da fronteira realidade-irrealidade;
(...) pelo meu amor platônico às matemáticas; (...)
porque através do lirismo propendo à geometria.
Murilo Mendes
Sinopse
No prefácio do seu livro Euclid. The Creation of Mathematics [1], o matemático alemão Benno Artmann escreve:
Este livro é para todos os amantes da matemática. É uma tentativa de entender a natureza da matemática do ponto de vista da sua fonte antiga mais importante.
Mesmo que o material coberto por Euclides possa ser considerado elementar na sua maior parte, o modo como ele o apresenta estabeleceu o padrão por mais de dois mil anos. Conhecer os Elementos de Euclides pode ser da mesma importância para o matemático hoje que o conhecimento da arquitetura grega para um arquiteto.
É claro que nenhum arquiteto contemporâneo construirá um templo dórico, muito menos organizará um local de construção como os antigos o faziam. Mas, para o treino do julgamento estético de um arquiteto, um conhecimento da herança grega é indispensável. Concordo com Peter Hilton quando diz que a matemática genuína constitui uma das mais finas expressões do espírito humano, e posso acrescentar que aqui, como em tantos outros casos, aprendemos dos gregos aquela linguagem de expressão.
Enquanto apresenta a geometria e a aritmética, Euclides ensina-nos aspectos essenciais da matemática em um sentido muito mais geral. Exibe o fundamento axiomático de uma teoria matemática e o seu desenvolvimento consciente rumo à solução de um problema específico. Vemos como a abstração trabalha e impõe a apresentação estritamente dedutiva de uma teoria.
Aprendemos o que são definições criativas e como uma compreensão conceitual leva à classificação dos objetos relevantes. Euclides criou o famoso
algoritmo que leva o seu nome para a solução de problemas específicos na aritmética e mostrou-nos como dominar o infinito nas suas várias manifestações.
Um dos poderes maiores do pensamento científico é a habilidade de desvelar verdades que são visíveis somente “aos olhos da mente”, como diz Platão, e de desenvolver modos e meios de lidar com elas. É isso que Euclides faz no caso das magnitudes irracionais ou incomensuráveis. E, finalmente, nos Elementos encontramos tantas amostras de bela matemática que são facilmente acessíveis e que podem ser minuciosamente estudadas por qualquer um que possua um treino mínimo em matemática.
Vendo tais fenômenos gerais do pensamento matemático que são tão válidos hoje quanto o foram no tempo dos antigos gregos, não podemos deixar de concordar com o filósofo Immanuel Kant, que escreveu em 1783, na introdução à sua filosofia sob o título “Afinal, é a metafísica possível?”: “Não há absolutamente livro na metafísica como temos na matemática. Se quiserdes conhecer o que é a matemática, basta olhardes os Elementos de Euclides.”
Benno Artmann ofereceu-nos, na passagem que acabamos de enunciar, um voo panorâmico da famosa obra do geômetra grego. Mas, do alto, os montes pouco se destacam, fios de água parecem os rios, a vegetação é apenas uma cobertura verde. Há mister de viajar por terra.
A citação de Kant faz eco ao fato de, até o final do século XIX, ser Euclides sinônimo de geometria, daquela geometria de régua e compasso. Assim, a história dos Elementos confunde-se, em larga escala, com a história da matemática grega. Mas a história de um domínio tão relevante do pensamento humano dificilmente se desvincularia da história mesma do homem. Hajamos, pois, por bem começar a nossa história, a nossa expedição terrestre, pelo era uma vez na antiga Grécia.
Era uma vez
Estranho animal é este bicho homem (...)
José Saramago
Certamente, é um assunto admiravelmente vão, variado
e inconstante o homem. É difícil fundar nele julgamento
firme e uniforme.
Michel de Montaigne
Sustentam muitos pensadores ser o homem uma estranha criatura. De fato oscila, constantemente, entre o passado, que deseja conhecer, e o imperscrutável futuro, incapaz de aceitar que a vida de todos os dias retoma, invariavelmente, a cada dia, o seu dia.
A memória prende-o ao que foi; o desejo, ao que será.
Como antecipar o que ainda não é equivale a chorar antes do tempo, e como o que há de ser virá, claro, na madrugada, com os seus raios, deixemos de lado o porvir, que a si próprio se basta, pois os invisíveis dedos das coisas e dos atos idos, próximos e longínquos, tecem, no tear do Fado, o manto que nos vestirá para sempre.
Somos o que os séculos nos fizeram!
O que somos de razão e vontade, o que somos de pensamento e ação, o que somos de sensibilidade e frieza, de trabalho e lazer, de descrença e esperança, o que somos de bílis e coração é terem existido outros, é terem traçado rumos, e terem aberto estradas, é terem apontado caminhos!
Eis nossos predecessores!
Para entendermos a nós próprios é preciso entendê-los. E os predecessores dos predecessores; e assim por diante, continuando essa busca, pois é sem fundo o poço do passado da espécie humana, essa essência enigmática, cujo mistério “inclui o nosso próprio mistério e é o alfa e o ômega de todas as nossas questões, emprestando um imediatismo candente a tudo o que dizemos e um significado a todo o nosso esforço”[2].
Consultemos, pois, os velhos registros, leiamos as obras de antanho que chegaram até nós, procuremos em alfarrábios o que pareça haver de nós nos que vieram antes, e, assim, começaremos a compreender o que pensávamos saber: quem somos, o que nos é possível conhecer, que estrelas e que sóis poderemos acrescentar ao universo herdado.
Em nosso caso de povo ocidental e no que tange à ciência da nossa predileção, a busca conduz-nos ao era uma vez.
Era uma vez, acima de todas, em que “os atributos da juventude humana tornam-se os atributos de um povo, as características de uma civilização” e em que
um sopro de encantadora adolescência passou roçando pelo rosto de uma raça. Quando a Grécia nasceu, os deuses presentearam-na com o segredo da sua imorredoura juventude. A Grécia é a alma jovem. “Aquele que, em Delfos, contempla a densa multidão de jônios”, diz um dos hinos homéricos, “imagina que eles jamais haverão de envelhecer” [3].
Michelet comparou a atividade da alma helênica a um jogo festivo, em torno de que se reúnem e sorriem todas as nações do mundo. Mas, desse jogo de crianças, nas praias do arquipélago e à sombra das oliveiras da Jônia, nasceram a Arte, a Filosofia, a livre reflexão, “a curiosidade da investigação, a consciência da dignidade humana, todos esses estímulos que ainda são a nossa inspiração e orgulho”, e a Matemática.
Era uma vez a origem do pensamento ocidental. A Filosofia e a Matemática, no período mais pujante daquele distante passado, falam o grego clássico.
O grego clássico
A língua grega é um dos ramos mais importantes do grupo linguístico chamado indo-europeu. A sua origem remonta ao “indo-europeu primitivo”. O que possui em palavras e formas de flexão é herança, na sua maior parte, de um tempo que precede a sua existência separada.
Os traços característicos, no entanto, que dão ao grego a sua peculiaridade frente às outras línguas suas irmãs, surgiram, manifestadamente, só depois do desmembramento da primitiva comunidade de povos, e é provável que esse ajuste tenha tido lugar já em solo grego.
A ideia de um “grego primitivo” homogêneo, isto é, com uma verdadeira unidade, é problemática.
O que podemos dizer é que, no momento em que a encontramos nos documentos autênticos, a língua grega está dividida em certo número de dialetos falados, classificáveis comodamente em quatro grupos: o jônio, o árcade-cipriota, o eólio e os diferentes falares chamados comumente dórios.
E. Ragon ensina-nos que, à exceção do árcade-cipriota, cada um desses grupos desenvolveu uma língua literária, cuja tonalidade morfológica varia com a data dos autores e com o gênero literário adotado.
O primeiro daqueles dialetos, o jônio, falado na Ásia Menor, tem por marca evitar as contrações e foi empregado pelos prosadores Heródoto e Hipócrates. Mas, misturado a elementos eólios, serve ao ápice da perfeição, sendo o pano de fundo dos poemas homéricos que influenciaram a língua de todos os poetas da Grécia.
O pouco que resta do eólio é o que conhecemos das odes de Alceu e da grande Safo.
O dialeto dório, de sons graves e musicais, está gravado no bronze eterno dos poemas de Píndaro e de Teócrito.
Por fim, o grego clássico ou o dialeto ático, um ramo privilegiado do jônio. É o falado na áurea época de Atenas, os séculos V e IV a.C. Torna-se com Ésquilo, Sófocles e Eurípides a linguagem dos deuses e dos heróis; com Aristófanes é o idioma da sabedoria que zomba da sapiência; é história com Tucídides; defesa pública e exortação, com Isócrates, Ésquines e Demóstenes; memória e ensinamento com Xenofonte; e, acima de tudo, Verdade e Beleza, com Platão.
Para ter acesso a toda essa cultura grega, da qual a matemática é uma das importantes partes, o vestíbulo do conhecimento autêntico, há mister de aprender-lhe a língua. Como substituto dessa insubstituível necessidade, a tradução.
Princípios de fé desta tradução
Há, por certo, imensa gama de concepções a respeito do que deva ser o traduzir. No que tange à versão de uma obra científica, parece haver acordo em que a precisão não deva ser sacrificada no altar da sutileza. Parodiando Novalis, quanto mais precisa, mais verdadeira.
De um modo grosseiro, poderíamos classificar os tipos de tradução como traduções à francesa e traduções à alemã.
O ideal das primeiras encontra expressão na passagem: “Se há algum mérito em traduzir, só pode ser o de aperfeiçoar, se possível, o seu original, de embelezá-lo, de apropriar-se dele, dar-lhe um ar nacional e naturalizar, de certa maneira, essa planta estrangeira”.
A meta das segundas está refletida nas seguintes críticas de Schlegel e de Goethe àquelas do primeiro grupo. Schlegel: “(...) é como se eles desejassem que cada estrangeiro, no país deles, se comportasse e se vestisse segundo os seus costumes, o que os leva a nunca conhecerem realmente um estrangeiro”. Goethe: “O francês, assim como adapta à sua garganta as palavras estrangeiras, faz o mesmo com os sentimentos, os pensamentos e até os objetos; exige a qualquer preço, para cada fruto estrangeiro, um equivalente que tenha crescido no seu próprio território”.
Evidentemente, esse modo de agrupar nada tem a ver com a nacionalidade do tradutor, mas com a sua maneira de trabalhar. Freud, por exemplo, traduzia “à francesa”, pois, segundo Jones, na sua biografia do pai da psicanálise, este “em vez de transcrever laboriosamente, a partir da língua estrangeira, idiotismos e todo o resto, lia um trecho, fechava o livro e perguntava-se como um escritor alemão teria vestido os mesmos pensamentos”.
Chateaubriand, o célebre escritor francês, mantém, sem reservas, o ponto de vista contrário, na sua tradução de Milton:
Se eu quisesse ter feito apenas uma tradução elegante do Paraíso perdido, talvez se considere que tenho suficiente conhecimento da arte para que não me fosse impossível atingir a altura de uma tradução dessa natureza; mas o que empreendi foi uma tradução literal, em toda força do termo, uma tradução que uma criança e um poeta poderão acompanhar no texto, linha por linha, palavra por palavra, como um dicionário aberto sob os seus olhos.
Por entendermos que a tradução de um texto antigo, de uma tradição com pensamentos próprios e próprios modos de expressão é um ato de reverência e entrega, adotamos, como Chateaubriand, uma versão literal, “em toda a força do termo”, esperando acordar no leitor a curiosidade que o conduza a acompanhar a tradução contra o original, “linha por linha, palavra por palavra”. Sendo o grego uma língua sintética e o português, uma analítica, é fácil dar-se conta do grau de afastamento das suas sintaxes. Por isso, por permanecermos o mais possível ligado ao original, prevenimos poder o leitor estranhar algumas vezes o resultado alcançado.
Usamos como texto grego a edição de Heiberg-Stamatis, da Editora Teubner, de Leipzig, 1969-1977.
O texto grego e a Ecdótica
O que significa falar do texto grego dos Elementos de Euclides? Qual o sentido de se mencionar a edição de Heiberg-Stamatis?
Tendo essa obra sido escrita por volta do final do século IV a.C., é difícil que se possa imaginar ter chegado até nós o manuscrito do seu autor, o chamado manuscrito autógrafo. De fato, não possuímos tais manuscritos dos autores clássicos – gregos e latinos. O tempo, esse “deus atroz que os próprios filhos devora sempre”[4], é a correnteza que leva os dias, os homens, os saberes. Mas a obra de valor a tudo afronta e na placa da memória “grava seu ser / durando nela” [5]. Se não temos os originais, possuímos cópias. Infelizmente, o que nelas reluz é só imitação do ouro. De fato, “os deuses vendem quando dão” [6], pois quem diz cópia, diz erro. Para agravar a situação, relativamente aos Elementos, os manuscritos mais antigos sobreviventes distam séculos de Euclides.
Como o arqueólogo tenta, a partir de pequenas peças de evidência, reconstruir a vida e a cultura de povos antigos, o filólogo, voltado à Ecdótica, trata de, com apoio nos manuscritos, trazer à luz, por reconstituição, aquele original, o texto autógrafo, o arquétipo de que os que temos são cópias. O assim idealmente produzido, com todo o aparato da crítica textual ou Ecdótica (do verbo grego ἐκδίδωμι “publicar”), é referido como o texto crítico da obra em questão.
Como é produzido o texto crítico?
É preciso lembrar, primeiramente, que muitos autores clássicos chegaram até os dias de hoje em manuscritos em pergaminho ou em papel, que raramente são anteriores ao século IX, e frequentemente são até do século XVI. Alguns trabalhos foram preservados em um único manuscrito, outros, em centenas. Muitos manuscritos clássicos estão agora em bibliotecas europeias ou em coleções de museus, alguns também em monastérios, particularmente da Grécia, e alguns pertencendo a particulares; há-os ainda em lugares como Istambul ou Jerusalém, ou em bibliotecas americanas. Entre as maiores coleções, é lídimo mencionar aquelas da Biblioteca do Vaticano, de especial importância no nosso caso – em virtude do manuscrito Gr. 190 –, da Ambrosiana em Milão, da Marciana em Veneza, da Österreichische Nationalbibliothek em Viena, da Bibliothèque Nationale em Paris e do British Museum em Londres.
De volta, então, à edição crítica de um texto da Antiguidade. Para levá-la a termo, há duas etapas a cumprir:
(i) A da fixação do texto, isto é, o seu preparo segundo as normas da crítica textual;
(ii) A da apresentação do texto, a sua organização técnica, contemplando, em geral, os seguintes elementos elucidativos: história dos manuscritos usados, informações sobre os critérios adotados, aparato crítico (certamente o elemento mais importante) etc., tendo em vista a sua publicação.
Quanto a autores gregos e romanos, existem editoras que se notabilizam pela publicação das suas edições críticas, como a Editora Teubner (Teubner Verlag) de Leipzig, com a sua Bibliotheca Scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana, por certo a mais importante e abrangente, a Editora da Universidade de Oxford, com a sua Scriptorum Classicorum Oxoniensis, a Société D’Édition “Les Belles Lettres”, Paris, e a sua Collection des Universités de France, sob os auspícios da Association Guillaume Budé e a Harvard University Press com a Loeb Classical Library.
No que segue, visamos a dar uma pálida ideia da complexidade envolvida nos dois passos acima mencionados.
A fixação do texto
Observada a doutrina de Karl Lachmann, o fundador da moderna crítica textual, a fixação do texto passa por uma série de operações agrupadas em três fases, a saber, recensio (do verbo latino recensere: “fazer uma revisão”), estemática (de stemma codicum: “a árvore genealógica dos códices” – essa fase é referida por Lachmann como originem detegere: “descobrir a origem, revelar a ascendência”) e emendatio (de emendere: “emendar, corrigir”).
A recensio consiste na pesquisa e coleta de todo o material existente de uma obra. Isso constitui a sua tradição, que pode ser direta – formada pelos seus manuscritos – ou indireta, compreendendo as fontes, as traduções, as citações, os comentários, as glosas e as paráfrases, as alusões e as imitações, vale dizer, tudo o que circula à volta da obra, que é dela sem ser ela própria.
Reconhecidos os testemunhos obtidos, passa-se à collatio codicum, a “comparação dos manuscritos”. Faz-se o cotejo de tudo o que se possua da tradição direta contra um manuscrito mais completo ou que pareça bom, denominado o exemplar de colação. Dessa operação resultará o expurgo dos testemunhos inúteis, a eliminatio codicum descriptorum, rejeição das cópias coincidentes, de acordo com a máxima filológica frustra fit per plura quod fieri potest per pauciora (“é feito inutilmente por meio de muitos o que pode ser feito por meio de poucos”). Existindo o modelo, rejeita-se a sua cópia. Com essa eliminação termina a primeira fase.
A análise acurada dos manuscritos – principalmente o confronto dos chamados lugares ou pontos críticos e o exame sistemático dos chamados erros comuns – possibilita estabelecer tanto a dependência entre os manuscritos quanto a afinidade ou parentesco entre eles. Aqui a hipótese tomada é “pouco, simples e razoável”. Se o mesmo erro ocorrer em dois manuscritos, é razoável considerar não terem surgido independentemente, a menos que esteja envolvido um engano muito simples e natural. Depois, supõe-se que o copista não corrija o trabalho do seu predecessor. Uma consequência disso, em conjunção com a propensão dos seres humanos de cometerem erros – “os deuses vendem quando dão” [7] – é que os textos se tornem mais e mais corrompidos com as sucessivas cópias. O que resulta dessas hipóteses de trabalho é o estabelecimento da árvore genealógica dos códices, stemma codicum, depois de arrolados os elementos da tradição em famílias, cada uma formada segundo os pontos críticos comuns, e de construídos, caso necessário, os cabíveis subarquétipos (os “pais das famílias”) e o arquétipo ou codex interpositus (“o pai de todos”), aquele que se interpõe entre o original e as cópias da tradição, e que tomará o papel do original perdido “em negro vaso / de água do esquecimento”. O sistema assinala a dependência e também a contaminação que pode existir entre exemplares de famílias distintas. Assim a estemática é feita.
A reconstituição de uma obra clássica finda com a emendatio, a parada mais importante nessa verdadeira via crucis, pois, de novo, vale o postulado da tradição manuscrita: “quem diz cópia, diz erro”. O exame de qualquer cópia (manuscrito apógrafo) revela o seu caráter contingente: passagens mal transcritas, obscuras, com interpolações, discrepâncias gramaticais e estilísticas com o que se conhece do autor, e muitos outros problemas. Grande desafio ao filólogo-editor no seu afã de restabelecer, ou ao menos aproximar-se o mais possível do que fora um dia a obra original.
Diante do erro, o editor procede segundo as condições da tradição manuscrita, empregando a bateria do seu conhecimento geral, daquele da obra e da época em que floresceu o seu autor e também da sua intuição divinatória, e isso é, a mais das vezes, um trabalho de gigante. Prezemos, pois, e muito, os filólogos-editores dos textos da Antiguidade.
Se a correção dos erros for possibilitada pelos próprios manuscritos e pelo que os demais testemunhos coletados oferecem, tem-se a denominada emendatio ope codicum, “correção com a ajuda dos manuscritos”. Caso tal auxílio não seja suficiente à consecução da tarefa, há o editor de recorrer à sua intuição e aos seus saberes, e ter-se-á a dita emendatio ope ingenii ou emendatio ope conjecturae ou ainda divinatio ou crítica conjectural.
Está, pois, dada conta da (i) fixação do texto.
A apresentação do texto
Na (ii) apresentação do texto reconstituído, o arquétipo do qual todos os manuscritos são cópias, vale ressaltar o aparato crítico, isto é, as variantes encontradas, dispostas no pé de cada página, com a indicação dos manuscritos em que figuram. Com isso, o editor oferece a oportunidade de o leitor fazer a sua própria escolha da expressão que deva estar em determinado ponto do texto, com um possível significado novo para a passagem que a contenha.
A fim de que se avalie a importância da edição crítica com o seu respectivo aparato para quem se interessa pela Antiguidade e tencione estudar as próprias obras em grego (ou em latim), transcrevemos um trecho do início do livro Textual Criticism and Editorial Technique, de M. L.West [8], helenista e editor de clássicos:
Edward Fraenkel, na sua introdução aos Ausgewählte Kleine Schriften [9], de [Friedrich] Leo conta a seguinte experiência traumática que teve quando jovem estudante:
“Eu tinha, por aquele tempo, lido a maior parte de Aristófanes e comecei a falar com demasiado entusiasmo sobre isso a Leo e a crescer em eloquência sobre a magia dessa poesia, a beleza das odes corais, e assim por diante. Leo deixou-me falar, talvez por dez minutos, sem mostrar qualquer sinal de desaprovação ou impaciência. Quando terminei, perguntou: ‘Em que edição você leu Aristófanes?’ Pensei: ele não estava ouvindo? O que a sua questão tinha a ver com o que eu lhe dissera? Depois de uma agitada hesitação de momento, respondi: ‘A Teubner.’ Leo: ‘Oh, você leu Aristófanes sem um aparato crítico.’ Disse-o bem calmamente, sem qualquer aspereza, sem nem um traço de sarcasmo, apenas sinceramente surpreso que fosse possível a um jovem tolerantemente inteligente fazer tal coisa. Olhei para o gramado próximo e tive uma única, irresistível sensação: νῦν μοι χάνοι εὐρεῖα χθῶν (‘agora que a terra se entreabra para mim’, Ilíada 4,182). Posteriormente, pareceu-me que naquele momento entendi o significado real da sabedoria.”
(...)
Segue que qualquer um que queira fazer sério uso de textos antigos deve prestar atenção às incertezas da transmissão; mesmo a beleza das odes corais que ele admira tanto pode confirmar-se haver nelas uma mistura de conjecturas editoriais, e se ele não estiver interessado na autenticidade e confiança de pormenores, poderá ser um amante verdadeiro da beleza, porém não um sério estudante da Antiguidade.
A edição crítica dos Elementos
Théon de Alexandria, pai de Hypatia – a primeira mulher a ter o nome preservado pela história da matemática –, foi um eminente e influente estudioso do século IV. No seu Comentário ao tratado astronômico de Cláudio Ptolomeu de Alexandria, conhecido como Almageste (do árabe almajistí, adaptação de al, o artigo definido árabe, e do adjetivo superlativo grego μεγίστη (entenda-se μεγίστη σύνταξις), isto é, “a maior composição”, “o maior tratado sistemático”), escreve a certa altura: “Mas que setores em círculos iguais estão entre si como os ângulos sobre que se apoiam foi provado por mim na minha edição dos Elementos, no final do sexto livro”.
Sabemos então, da própria pena do comentarista, ter ele editado a obra de Euclides, com a adicional informação de ser da sua lavra a segunda parte da “Proposição XXXIII” do Livro VI, como encontrada em quase todos os manuscritos remanescentes. Daí provirem tais manuscritos daquela edição de Théon. Aliás, a maior parte deles traz no seu título ou a frase ἐκ τῆς Θέωνος ἐκδόσεως (“da edição de Théon”) ou ἀπὸ συνουσιῶν τοῦ Θέωνος (“das aulas de Théon” ou “dos ensinamentos de Théon”).
Desse modo, qualquer edição dos Elementos feita anteriormente a 1814 era baseada numa família de manuscritos cujo arquétipo era o texto dado à luz por Théon.
Para conta do que então ocorreu, fazendo toda a diferença, mudando o rumo da história das edições dos Elementos, citamos, por extenso, um trecho do prefácio de François Peyrard ao seu trabalho Les œuvres D’Euclide, traduites littéralement, d’après un manuscript grec très-ancien, resté inconu jusqu’a nos jours [10], Paris, 1819:
No prefácio da minha tradução dos Livros I, II, III, IV, V, VI, XI e XII dos Elementos de Euclides, que apareceu em 1804, e que eu fizera segundo a edição de Oxford, propus-me o compromisso de publicar as traduções completas de Euclides, de Arquimedes e de Apolônio. A minha tradução das Obras de Arquimedes apareceu em 1808. Antes de dar à impressão a minha tradução das Obras de Euclides, quis consultar os manuscritos da Biblioteca do Rei. Esses manuscritos, vinte e três em número, foram-me confiados, e não tardei a me aperceber que esses manuscritos preenchiam lacunas, restabeleciam passagens alteradas que se encontram na edição da Basileia e naquela de Oxford, cujo texto grego é apenas uma cópia frequentemente infiel, como provei na sequência do prefácio do terceiro volume do meu Euclides em três línguas. A maior parte desses manuscritos rejeita uma multidão de superficialidades que mãos ignaras tinham introduzido no texto, e que se encontra em grande parte nos textos das edições da Basileia e de Oxford.
Todos esses manuscritos, exceto o n.190, são, com pequena diferença, conformes uns aos outros, salvo os erros dos copistas e as superficialidades de que acabo de falar.
O manuscrito 190 traz todos os caracteres do nono século, ou pelo menos do começo do décimo, enquanto que os outros são-lhe posteriores de quatro, de cinco, e mesmo de seis séculos.
Esse manuscrito, cujos caracteres são da maior beleza, e sem ligaduras, restabelece lacunas e passagens alteradas, o que teria sido impossível de restabelecer com a ajuda dos outros manuscritos. Encontra-se nele uma multidão de lições que merecem, quase sem exceção, a preferência às lições dos outros manuscritos.
O manuscrito 190, que permanecera desconhecido até os nossos dias, pertencia à Biblioteca do Vaticano. Foi enviado de Roma a Paris por Monge e Bertholet, quando o exército francês tornou-se senhor daquela cidade.
Na segunda invasão dos exércitos coligados, a França viu-se obrigada a restituir todos os objetos de arte que haviam sido recolhidos aos povos vencidos. Por solicitação do Governo Francês, o Santo Padre houve por bem ter a bondade de deixar-me às mãos esse precioso manuscrito até a completa publicação do meu Euclides.
Tendo, então, à minha disposição esse manuscrito, como todos aqueles da Biblioteca do Rei, determinei-me a dar uma edição grega, latina e francesa das Obras de Euclides. O primeiro volume apareceu em 1814, o segundo em 1816, e o terceiro em 1818.
O manuscrito Gr. 190 da Biblioteca do Vaticano, denominado P por Heiberg, em homenagem ao padre Peyrard, o seu descobridor, não pertence, pois, à família theonina, e serviu como exemplar de colação para a edição crítica do filólogo dinamarquês, aquela que permanece aceita até hoje. A história das edições críticas dos Elementos assinala a seguinte sequência:
− A editio princips, “primeira edição”, Basileia, 1533, a cargo de Simon Grynaeus, baseada em dois manuscritos – Venetus Marcianus 301 e Paris Gr. 2343 – do século XVI, que estão entre os piores existentes. Essa edição servia de fundamento para;
− A de Oxford, Euclidis quae supersunt omnia. Ex recensione Davidis Gregorii M. D. Astronomiae Professoris Saviliani et R. S. S. Oxoniae, et Theatro Sheldiano. An. Dom. MDCCIII. Para levar a cabo o seu trabalho, Gregory consultou somente os manuscritos legados à Universidade por Sir Henry Savile, nos lugares em que o texto da Basileia diferia da excelente tradução latina de Commandinus (1572). Essa célebre edição das obras de Euclides é a única completa antes da de Heiberg e Menge;
− A de Peyrard, na trilíngue acima citada, na qual usou P somente para corrigir a da Basileia;
− A de E. F. August (1826-9), que segue P mais de perto, tendo também usado o manuscrito Vienense Gr. 103.
De Morgan recomenda vivamente o alcançado por August: “Ao estudioso que queira uma edição dos Elementos, devemos decididamente recomendar esta, por unir tudo o que foi feito para o texto do maior trabalho de Euclides”.
Tendo assim alcançado a sua hora fugaz de celebridade, esta edição acaba por cumprir o vaticínio do célebre historiador francês da matemática, Paul Tannery, em uma carta a Heiberg: “todos os trabalhos de erudição são em grande parte destinados a perecer para serem substituídos por outros”. Pois, coube precisamente a este sancionar aquela predição;
− A edição de Heiberg, baseada em P e nos melhores manuscritos theoninos, e considerando também outras fontes como Herão e Proclus, tornou-se o novo e definitivo texto grego dos Elementos;
− Por fim, a edição elaborada por E. S. Stamatis não lança no limbo das coisas ultrapassadas aquela do sábio dinamarquês, um trabalho de erudição que insiste em não perecer. Para dar fé do que dizemos, traduzimos do latim boa parte da adição ao prefácio (additamentum praefationis) de Heiberg, escrito por Stamatis ao texto crítico por ele dado a público.
Nenhum dentre os homens versados em geometria antiga existe que não julgue ser necessária agora uma nova edição dos Elementos, de Euclides. De fato, os exemplares da notável edição Heiberguiana há muito foram vendidos, além disso os estudos referentes aos Elementos em nossos dias desenvolveram-se grandemente. Por esse motivo, tendo sido convidado por um estimadíssimo livreiro, por exortação do Instituto de Ciência da Antiguidade Greco-Romana, que foi fundado por decisão da Academia Alemã de Ciências de Berlim, para que eu cuidasse de nova edição dos Elementos de Euclides acolhi essa ocupação com o coração gratíssimo. Realmente, sei que muitos admiradores da ciência matemática, que sabem grego, desejam conhecer o texto euclidiano.
Agradou-me muito o plano do estimadíssimo livreiro que me persuadiu a que eu omitisse a tradução latina que Heiberg preparara para a sua edição pelo que a nova edição saísse à luz mais curta. De fato, é evidente os versados na língua grega não terem muita necessidade da tradução latina. Pois que assim seja, o plano da nova edição foi organizado assim como é indicado abaixo [11]:
Para o texto do primeiro volume, considerei as coisas que deviam ser antecipadas, que foram ensinadas sobre os Elementos e sobre a vida de Euclides e sobre os princípios e os primórdios da geometria (Textui primo voluminis praemittenda, quae de Elementis et de vita Euclidis et de principiis primordiisque geometriae tradita sunt, existimavi).
[Realmente, no HOC VOLVMINE CONTINENTVR, lê-se o seguinte:
Testimonia:
De Euclides elementorum et vitae memoria
De principiorum geometriae memoria]
Acrescentei imediatamente três índices (annexui continuo tres indices).
Em terceiro lugar, ajuntei uma sinopse, em que as notabilíssimas edições dos Elementos de Euclides são recordadas (tertio loco conspectum, in quo praestantissimae Euclidis Elementorum editiones, adiunxi).
(De fato, Stamatis adicionou o seguinte:
CONSPECTVS EDITIONVM
Recensio antiquior quam editio Theonis Alexandrini
Theon Alexandrinus Alexandriae circa 370 p.Chr.
Simon Grynaeus Basileae 1530 (editio 2: 1533 apud Ioan.
Hervagium (“Hervagiana”), ed.3: 1537,
ed.4: 1539, ed.5: 1546, ed.6: 1558
Angelus Caianus Romae 1545 (sine demonstr.)
I.Camerarius Lipsiae 1549
I. Scheybl Basileae 1550 (1-6)
S.T. Gracilis Lutetiae 1558, 1573, 1598
C. Dasypodius Argentorati 1564
I. Sthen Vitebergae 1564
M. Steinmetz Lipsiae 1577 (cum demonstr.)
Dav. Gregorius Oxonii 1703
Fr. Peyrard Parisii 1814-18
I.G. Camerer et C.Fr. Hauber Berolini 1824-25 (1-6)
G.C. Neide Halis Saxonum 1825 (1-6, 11,12)
E.F. August Berolini 1826-29
I.L. Heiberg Lipsiae 1883-88
E.S. Stamatis Athenis 1952-57.
Stamatis indica no pé da página as obras consultadas para a confecção da lista acima. Revive com ela o gosto antigo pelas listas ou catálogo, como o “Catálogo dos navios”, no Segundo Canto da Ilíada, ou o “Catálogo dos geômetras”, do desaparecido livro de História da geometria, de Eudemo, discípulo de Aristóteles, mas preservado por Proclus no seu Comentário ao livro I dos elementos de Euclides.
Chamamos ainda a atenção para o fato de que, ao tecer anteriormente considerações concernentes às edições dos Elementos, consideramos apenas, dentre “as notabilíssimas”, as principais.)
Decidi abordar o que, para o texto, diz respeito aos vestígios da edição de Heiberg. Com efeito, é certo entre todos os homens instruídos ser muito bom o serviço prestado por Heiberg aos Elementos de Euclides. Nem, de fato, depois da sua morte, códices novos, além do que ele examinara, foram comparados nem a nossa colheita de papiros forneceu novas lições. Ora, justamente, terminando a minha edição dos Elementos de Euclides, que foi impressa em Atenas, nos anos 1952-1957, eu próprio reconheci a perfeição e a exatidão da edição Heiberguiana [12].
Fechemos logo, no entanto, as portas do templo em que acabamos de acender as velas no altar da adoração, para que o vento da discordância não as apague todas. Há, no entanto, uma voz que clama na ágora e seria prudente ouvi-la.
O historiador da matemática Wilbur R. Knorr, prematuramente falecido, publicou na revista Centaurus, 38 (1996) um longo trabalho – 69 páginas – com o título “The Wrong Text of Euclid: on Heiberg’s Text and its Alternatives” [13]. Eis o seu resumo:
Em dois artigos publicados em 1881 e 1884, dois jovens acadêmicos, Martin Klamroth e Johan L. Heiberg, engajaram-se em um breve debate sobre as escolhas textuais que deveriam governar a publicação de uma nova edição crítica dos Elementos de Euclides. Esse curto debate parece ter assentado o problema a favor de Heiberg sobre o que deveria ser tomado como o texto definitivo dos Elementos de Euclides. Mas a questão deve ser considerada de novo porque há boas razões para a reivindicação de que Klamroth estava certo, e Heiberg, errado. Se assim for, temos consultado e continuamos a consultar o texto errado para interpretar a tradição euclidiana. A fim de dar substância a essa afirmação, a questão textual debatida por Klamroth e Heiberg é ensaiada de novo, e as razões principais trazidas por Heiberg contra a posição de Klamroth são reconstruídas. Espécimes de três amplas áreas de evidência – estrutural, linguística e técnica – serão considerados. Eles revelam como a tradição medieval do texto advogado por Klamroth exibe superioridade em relação à tradição grega promovida por Heiberg. Uma tal reconstituição dos textos tem o potencial de mudar significantemente nossa compreensão da matemática antiga.
Se Knorr tem ou não razão é difícil de decidir. O peso da tradição é esmagador e o tempo passado entre aquele debate mencionado e hoje ajuda a sedimentar a opinião favorável à escolha de Heiberg.
De um modo ou de outro, a existência de divergência socorre-nos quando nos preparamos para responder às perguntas iniciais: “O que significa falar do texto grego dos Elementos?” e “Qual o sentido de mencionar-se a edição de Heiberg–Stamatis?”; e, com isso, completar o círculo das considerações. A edição de Heiberg–Stamatis do texto grego dos Elementos é o que Heiberg diz, com a confirmação de Stamatis, ser a coisa mais próxima do texto original de Euclides.
[Continua]
Notas:
[1] [Euclides. A criação da matemática].
[2] MANN, T. “José e seus irmãos”. As histórias de Jacó. O jovem José. v.1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1983.
[3] RODO, J. E. Ariel. Campinas: Editora da Unicamp, 1991.
[4] PESSOA, F. Obra poética. Volume único. Rio de Janeiro: Companhia Nova Aguilar, 1965.
[5] Idem, ibidem.
[6] Idem, ibidem.
[7] PESSOA, F., ibidem.
[8] Crítica textual e técnica editorial. Stuttgart: B. G. Teubner, 1973.
[9] [Pequenos escritos escolhidos].
[10] [As obras de Euclides, traduzidas literalmente, com base em um manuscrito grego antiquíssimo, desconhecido até nossos dias].
[11] Nemo ex viris antiquæ geometriae peritis est quin putet nova editione Euclidis Elementorum in praesenti opus esse. Exemplaria enim praeclarae editionis Heibergianae iamdudum divendita sunt, studia autem ad Elementa pertinentia nostra aetate admodum increverunt. Qua de re cum a bibliopola honestissimo, hortatu Instituti scientiae antiquitatis Graecoromanae, quod auctoritate Academiae Scientiarum Germanicae Berlinensis constitutum est, invitatus essem, ut novam Euclidis Elementorum editionem curarem, gratissimo animo hoc negotium suscepi. Nam multos studiosos scientiae mathematicae, qui Graece sciunt, Euclidianum textum desiderare cognovi.
Valde autem mihi consilium bibliopolae honestissimi placuit, qui mihi suasit, ut translationem Latinam qua Heiberg editionem suam instruxerat omitterem, quo nova editio brevior in lucem prodiret. Patet enim linguae Graecae peritos Latina translatione non nimis egere. Quae cum ita sint, ratio novae editionis, ita ut infra indicatur, ordenata est.
[12] Quod ad textum attinet Heibergianae editionis vestigia ingredi statui. Nam inter omnes viros doctos Heiberg optime de Euclidis Elementis meritum esse constat. Neque enim post obitum eius codices novi, praeter quos ille inspexerat, collati sunt, neque seges papyrorum nobis novas lectiones praebuit. Ipse autem editionis Heibergianae perfectionem absolutionemque perspexi, cum meam Euclidis Elementorum editionem, quae annis 1952-1957 Athenis impressa est, absolverem.
[13] [O texto errado de Euclides: sobre o texto de Heiberg e suas alternativas].