Apresentamos um trecho do livro Republica, de Platão, com tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, Editora Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. Contextualizando, no Livro VI, Sócrates e Glauco conversam sobre a ideia do bem.
LIVRO VI - [509d - 511e]
- SÓCRATES: Imagina então - comecei eu - que, conforme dissemos, eles [41] são dois e que reinam, um na espécie e no mundo inteligível, o outro no visível. Não digo «no céu», não vás tu julgar que estou a fazer etimologias com o nome [42]. Compreendeste, pois, estas duas espécies, o visível e o inteligível?
- GLÁUCON: Compreendi.
- Supõe então uma linha em duas partes desiguais; corta novamente cada um dos segmentos segundo a mesma proporção, o da espécie visível e o da inteligível; e obterás, no mundo visível, segundo a sua claridade ou obscuridade relativa, uma secção, a das imagens. Chamo imagens, em primeiro lugar, às sombras; seguidamente, aos reflexos nas águas, e àqueles que se formam em todos os corpos compactos, lisos e brilhantes, e a tudo o mais que for do mesmo género, se estas a entender-me.
- Entendo, sim.
- Supõe agora a outra secção, da qual esta era imagem, a que nos abrange a nós, seres vivos, e a todas as plantas e toda a espécie de artefactos.
- Suponho.
- Acaso consentirias em aceitar que o visível se divide no que é verdadeiro e no que não o é, e que, tal como a opinião está para o saber, assim está a imagem para o modelo?
- Aceito perfeitamente.
- Examina agora de que maneira se deve cortar a secção do inteligível.
- Como?
- Na parte anterior, a alma, servindo-se, como se fossem imagens, dos objectos que então eram imitados, é forçada a investigar a partir de hipóteses, sem poder caminhar para o princípio, mas para a conclusão; ao passo que, na outra parte, a que conduz ao princípio absoluto, parte da hipótese, e, dispensando as imagens que havia no outro, faz caminho só com o auxilio das ideias.
- Não percebi bem o que estiveste a dizer.
- Vamos lá outra vez - disse eu - que compreenderás melhor o que afirmei anteriormente. Suponho que sabes que aqueles que se ocupam da geometria, da aritmética e ciências desse género, admitem o par e o ímpar, as figuras três espécies de ângulos, e outras doutrinas irmãs destas, segundo o campo de cada um. Estas coisas dão-nas por sabidas, e, quando as usam como hipóteses, não acham que ainda seja necessário prestar contas disto a si mesmos nem aos outros, uma vez que são evidentes para todos. E, partindo daí e analisando todas as fases, e tirando as consequências, atingem o ponto a cuja investigação se tinham abalançado.
- Isso, sei-o perfeitamente.
- Logo, sabes também que se servem de figuras visíveis e estabelecem acerca delas os seus raciocínios, sem contudo pensarem neles, mas naquilo com que se parecem; fazem os seus raciocínios por causa do quadrado em si ou da diagonal em si, mas não daquela cuja imagem traçaram, e do mesmo modo quanto às restantes figuras. Aquilo que eles modelam ou desenham, de que existem as sombras e os reflexos na água, servem-se disso como se fossem imagens, procurando ver o que não pode avistar-se, senão pelo pensamento.
- Falas verdade.
- Portanto, era isto o que eu queria dizer com a classe do inteligível, que a alma é obrigada a servir-se de hipóteses ao procurar investigá-la, sem ir ao princípio, pois não pode elevar-se acima das hipóteses, mas utilizando como imagens os próprios originais dos quais eram feitas as imagens pelos objectos da secção inferior, pois esses também, em comparação com as sombras, eram considerados e apreciados como mais claros.
- Compreendo que te referes ao que se passa na geometria e nas ciências afins dessa.
- Aprende então o que quero dizer com o outro segmento do inteligível, daquele que o raciocínio atinge pelo poder da dialéctica, fazendo das hipóteses não princípios, mas hipóteses de facto, uma espécie de degraus e de pontos de apoio, para ir até àquilo que não admite hipóteses, que é o princípio de tudo, atingido o qual desce, fixando-se em todas as consequências que daí decorrem, até chegar à conclusão, sem se servir em nada de qualquer dado sensível, mas passando das ideias umas às outras, e terminando em ideias.
- Compreendo, mas não o bastante - pois me parece que é uma tarefa cerrada, essa de que falas - que queres determinar que é mais claro o conhecimento do ser e do inteligível adquirido pela ciência da dialéctica do que pelas chamadas ciências, cujos princípios são hipóteses; os que as estudam são forçados a fazê-lo, pelo pensamento, e não pelos sentidos; no entanto, pelo facto de as examinarem sem subir até ao princípio, mas a partir de hipóteses, parece-te que não têm a inteligência desses factos, embora eles sejam inteligíveis com um primeiro princípio. Parece-me que chamas entendimento [43], e não inteligência, o modo de pensar dos geómetras e de outros cientistas, como se o entendimento fosse algo de intermédio entre a opinião e a inteligência.
- Apreendeste perfeitamente a questão - observei eu -. Pega agora nas quatro operações da alma e aplica-as aos quatro segmentos: no mais elevado, a inteligência, no segundo, o entendimento; ao terceiro entrega a fé, e ao último a suposição, e coloca-os por ordem, atribuindo-lhes o mesmo grau de clareza que os seus respectivos objectos têm de verdade.
- Compreendo - disse ele -; concorda, e vou ordená-los como dizes.
LIVRO VII - [522c - 531c]
[...]
- Vamos! - prossegui eu -. Se de nada mais podemos lançar mão, fora estas, tomemos uma daquelas ciências que abrangem tudo.
- Qual?
- Por exemplo, aquela ciência comum, da qual se utilizam todas as artes, todos os modos de pensar, todas as ciências - e também aquela que é preciso aprender entre as primeiras.
- Qual?
- Aquela modesta ciência - prossegui eu - que distingue o um do dois e do três. Refiro-me, em resumo, à ciência dos números e do cálculo. Ou não é ela de tal modo que toda a arte e ciência é forçada a ter parte nela?
- Sim, e muito.
- Até a arte da guerra?
- É absolutamente forçoso.
- Realmente, é um general muito cómico, aquele Agamémnon que Palamedes está sempre a mostrar-nos nas tragédias [9]. Ou não reparaste que Palamedes, dizendo-se o inventor do número, pretende ter distribuído os postos do acampamento em Ílion e ter contado os navios e tudo o mais, como se antes estivessem por contar, e como se Agamémnon não soubesse sequer, ao que parece, quantos pés tinha, uma vez que não sabia contar? E agora que espécie de general achas que ele era?
- Um general esquisito, se na verdade era assim.
- Logo, que outra ciência havemos de considerar necessária a um guerreiro, como a de poder calcular e contar?
- Essa mais do que todas, se quiser compreender alguma coisa de táctica, e mais ainda, se quiser ser um homem.
- Pensas desta ciência o mesmo que eu?
- O quê?
- Pode muito bem ser uma daquelas ciências que procuramos, e que conduzem naturalmente à inteligência, mas de que ninguém se serve correctamente, apesar de ela nos elevar perfeitamente até ao Ser.
- Que queres dizer?
- Tentarei mostrar qual a minha opinião. Examina comigo as coisas, que eu vou, pelo meu lado, distinguir como úteis para o que pretendemos, ou não, e aprova ou desaprova, a fim de vermos mais claramente se é como eu conjecturo.
- Mostra lá.
- Mostrarei que, se reparares bem, nas sensações, há objectos que não convidam o espírito à reflexão, como se ficassem suficientemente avaliados pelos sentidos, ao passo que outros obrigam de toda a maneira a reflectir, como se a sensação não produzisse nada de são.
- Ora nós dissemos que também a vista via a grandeza e a pequenez, não como coisas separadas, mas misturadas. Não é assim?
- É.
- E, para clarificar o assunta, o entendimento é forçado
a ver a grandeza e a pequenez, não misturadas, mas distintas, ao invés da visão.
- É verdade.
- Não é daí que, pela primeira vez, nos surge a ideia de indagar que coisa é a grandeza e a pequenez?
- Absolutamente.
- E foi assim que designámos o inteligível e o visível.
- Exactamente.
- Ora era isso mesmo que eu há pouco tentava dizer, que certos objectos convidam à reflexão, e outros não, colocando entre os primeiros os que recaem sobre a sensação acompanhada de impressões apostas; ao passo que os que não estavam nessas condições, os colocava entre os que não despertam o entendimento.
- Já compreendo, e parece-me que é assim.
- Ora pois! O número e a unidade, a qual dos dois te parece que pertencem?
- Não atinjo.
- Mas raciocina por analogia com o que dissemos anteriormente. Se a unidade é suficientemente vista tal como é, ou é apreendida por meio de qualquer outro sentido, não nos levaria até à essência, tal como dissemos a propósito do dedo. Mas, se na visão da unidade há sempre ao mesmo tempo uma certa contradição, de tal modo que não parece mais unidade que o seu inverso, será portanto já necessário quem julgue a questão, e em tal situação a alma seria forçada a uma posição de embaraço e a procurar, pondo em acção dentro de si o entendimento, a indagar o que será a unidade em si, e assim é que a apreensão intelectual da unidade pode pertencer ao número das que incitam e voltam o espírito para a contemplação do Ser.
- Ora a verdade é que a apreensão visual da unidade não pertence menos a esse número, pois vemos simultaneamente a mesma coisa como unidade e como ilimitada em multiplicidade.
- Mas se é assim com o numero - prossegui eu - também com todos os números se dá o mesmo.
- Como não havia de ser?
- Mas realmente o cálculo e a aritmética são totalmente consagradas ao número?
- Totalmente.
- Essas ciências parecem, certamente, conduzir à verdade.
- Acima de tudo.
- São, portanto, ao que parece, daquelas ciências que procuramos. Com efeito, é forçoso que o guerreiro as aprenda, por causa da táctica, e o filosofo, para atingir a essência, emergindo do mundo da geração, sem o que jamais se tornará proficiente na arte de calcular.
- É verdade.
- Ora dá-se o caso de o nosso guardião ser guerreiro e filósofo.
- Sem dúvida.
- Seria, portanto, conveniente, ó Gláucon, que se determinasse por lei este aprendizado e que se convencessem os cidadãos, que hão-de participar dos postos governativos, a dedicarem-se ao cálculo ·e a aplicarem-se a ele, não superficialmente, mas até chegarem à contemplação da natureza dos números unicamente pelo pensamento, não cuidando deles por amor à compra e venda, como os comerciantes ou retalhista, mas por causa da e facilitar a passagem da própria alma da mutabilidade à verdade e à essência.
- Dizes muito bem.
- Ora depois de falar da ciência de calcular, agora é que eu compreendo como é bela e útil de tantas maneiras ao nosso propósito, desde que uma pessoa a cultive por amor do saber, e não para a traficância.
- De que maneiras?
- É o facto de, como agora mesmo dizíamos, elevar poderosamente a alma para o alto e forçá-la a discorrer sobre os números em si, sem aceitar jamais que alguém introduza nos seus raciocínios números que tenham corpos visíveis ou palpáveis. Deves saber que os que são peritos nestes e assuntos, se alguém tentar, na discussão, dividir a unidade em si, fazem troça e não lhe dão aceitação. Mas, se a dividires, eles multiplicam-na [11] com receio de que a unidade não pareça una, mas um composto de muitas partes.
- Dizes a verdade.
- E que te parece, ó Gláucon, se alguém lhes perguntasse: «Meus caros amigos, a respeito de que números é que estais a discutir, entre os quais estão as unidades, tal como vós entendeis que existem, cada qual absolutamente igual às outras, e sem diferir em nada, nem conter qualquer parte em si?» Que te parece que eles responderiam?
- Acho que diriam que falavam de números que se situam apenas na região do entendimento, e que não é possível manusear de nenhum outro modo.
- Vês então, meu caro amigo, que é natural que esta ciência nos seja realmente indispensável, uma vez que se torna claro que obriga a alma a servir-se da em si para chegar à verdade pura?
- De facto, actua fortemente nesse sentido.
- Pois então! Já observaste que os que nasceram para o cálculo nasceram prontos, por assim dizer, para todas as ciências, e que os espíritos lentos, se forem instruídos e exercitados nele, ainda que não lhes sirva para mais nada, de qualquer maneira lucram todos em ganhar maior agudeza de espírito?
- Assim é.
- Além disso, segundo julgo, não seria fácil encontrar muitas ciências que proporcionem maior esforço na sua aprendizagem e na sua prática.
- Pois não.
- Por todos estes motivos, não devemos abandonar esta ciência, mas sim formar no seu estudo os melhores engenhos.
- Concordo - respondeu ele.
- Fiquemos, portanto, com esta ciência. Vejamos se uma que lhe é afim porventura nos convém.
- Qual? Ou é à geometria que te referes?
- A essa mesma - respondi eu.
- Na medida em que se aplica às questões de guerra, é evidente que nos convém. Efectivamente, para formar um acampamento, para conquistar uma região, para cerrar ou dispor as fileiras e quantas evoluções fazem os exércitos nas próprias batalhas ou em marcha, há uma diferença entre quem é geómetra e quem o não é.
- Ora a verdade é, que, para esse efeito, bastaria uma reduzida parte de geometria e cálculo. É preciso examinar se a parte central e mais adiantada tende para aquele objectivo, de fazer ver mais facilmente a ideia do bem. Ora tende para aí tudo o que força a alma a volta-se para aquele lugar onde se encontra o mais feliz de todos os seres, o que ela de toda a maneira tem de contemplar.
- Está certo o que dizes.
- Portanto, se o que ela obriga a contemplar é a essência, convém-nos; se é o mutável, não nos convém.
- Assim o declaramos.
- O certo é que - prossegui eu - mesmo aqueles que têm pouca prática da geometria não nos regatearão um ponto, a saber, que a natureza dessa ciência está em rigorosa contradição com o que acerca dela afirmam os que a exercitam.
- Como assim?
- Fazem para aí afirmações bem ridículas e forçadas. É que é como praticantes e para efeitos práticos que fazem todas as suas afirmações, referindo-se nas suas proclamações a quadraturas, construções e adições e operações no género, ao passo que toda esta ciência é cultivada tendo em vista o saber.
- Absolutamente.
- Não devemos ainda concordar no seguinte?
- Em quê?
- Que se tem em vista o conhecimento do que existe sempre, e não do que a certa altura se gera ou se destrói.
- É fácil de concordar - respondeu ele - uma vez que a geometria é o conhecimento do que existe sempre.
- Portanto, meu caro, serviria para atrair a alma para a verdade e produzir o pensamento filosófico, que leva a começar a voltar o espírito para as alturas e não cá para baixo, como agora fazemos, sem dever.
- É muito capaz de o fazer.
- Portanto, prescreveremos afincadamente aos habitantes do nosso belo Estado que não deixem, de modo algum, a geometria. Além disso, os seus efeitos acessórios não são pequenos.
- Quais? - perguntou ele.
- Aqueles que tu disseste: os que dizem respeito à guerra, e, em especial, a todas as modo que se apreendem melhor. De qualquer modo, sabemos que aquele que estudou geometria difere totalmente de quem não a estudou.
- Totalmente, por Zeus!
- Vamos então propor esta ciência em segundo lugar aos jovens?
- Vamos.
- Ora bem. E vamos pôr a astronomia em terceiro lugar? Ou não te parece?
- Parece-me, sem dúvida, porquanto convém não só à agricultura e à navegação, mas não menos à arte militar, uma perfeita compreensão das estações, meses e anos.
- Divertes-me, por pareceres receoso da maioria, não vá afigurar-se-lhes que estás a prescrever estudos inúteis. Mas eles não são de âmbito modesto, embora seja difícil de acreditar que nestas ciências se purifica e reaviva um órgão da alma de cada um que fora corrupto e cego pelas restantes ocupações, e cuja salvação importa mais do que a de mil órgãos da visão, porquanto só através dele se avista a verdade. Aqueles que entendem do mesmo modo não terão dificuldade em declarar que pensas bem, mas aqueles que não têm qualquer compreensão do assunto é natural que julguem que não vale nada o que dizes. Na verdade, não vêem nestas ciências nenhuma outra utilidade digna de apreço. Repara, pois, de uma vez para sempre, com qual destes partidos vais discutir. Ou não te diriges aos outros, e fazes os teus raciocínios sobretudo para ti mesmo, sem, todavia, negares a outrem qualquer vantagem que deles possa auferir.
- É essa a minha escolha: falar, perguntar e responder sobretudo para mim mesmo.
- Vamos então tornar atrás, pois ainda agora não pegámos como deve ser na ciência a seguir à geometria.
- Pegar, como?
- Depois da superfície, pegámos nos sólidos em movimento, antes de nos ocuparmos deles em si. Ora o que está certo é que, após a segunda dimensão, se trate da terceira, que é a dos cubos e a que possui profundidade.
- É isso, mas tal ciência parece que ainda não foi descoberta [12].
- Os motivos são duplos: porque nenhum Estado presta honra a estes estudos, a investigação é débil, devido à sua dificuldade; e os investigadores precisam de um director, sem o qual não farão descobertas. Primeiro que tudo, é difícil encontra-lo; depois, no caso de aparecer, tal como as coisas estão agora, não lhe obedeceriam os que se dedicam a tais investigações, devido à sua arrogância. Mas se o Estado inteiro cooperasse com o director, honrando os seus trabalhos, eles obedecer-lhes-iam, e as investigações, seguidas e vigorosas, chegariam a resultados evidentes. Pois mesmo agora, apesar de desprezados e amesquinhados pela maioria, sem que formem ideia, os que tal investigam, da sua utilidade, mesmo assim, apesar de tudo isto, encontram-se em grande pujança, devida ao seu fascínio, e não admira nada que surjam à luz.
- São realmente estudos fascinantes e superiores. Mas explica-me mais claramente o que há pouco dizias. Colocavas primeiro o estudo das superfícies, a geometria?
- Colocava.
- Depois, punhas, a seguir a essa, primeiro a astronomia, depois, voltaste atrás.
- É que, com a pressa de percorrer rapidamente todas as ciências, em vez disso afrouxo [13]. Com efeito, a seguir fica o estudo metódico da dimensão da profundidade, mas como é estudada de uma forma ridícula, passei-a adiante, pondo após a geometria a astronomia, por ser o movimento das profundidades.
- Dizes bem.
- Ponhamos então em quarto lugar a astronomia, partindo do princípio de que a ciência que agora deixamos de lado existira, se a cidade o deixar.
- É natural - replicou ele -. Há momentos, ó Sócrates, censuraste-me a propósito de ter elogiado grosseiramente a astronomia; agora vou elogia-la segundo a tua maneira. Julgo evidente para toda a gente que essa ciência força todas as almas a olhar para cima e as conduz das coisas terrenas às celestes.
- Talvez seja evidente para toda a gente, excepto para mim; pois a mim não me parece tal.
- Como assim?
- Tal como a tratam actualmente os que quereriam elevar-nos até à filosofia, fazem-na olhar muito para baixo.
- Que queres dizer?
É de uma generosa audácia, me parece, a tua maneira de abordar o estudo das coisas celestes. Arriscas-te, na verdade, a supor que, se alguém estivesse a observar os ornatos do tecto, olhando para cima, e apreendesse qualquer coisa, tal pessoa estava a fazer essa contemplação com o pensamento, e não com os olhos. Talvez tu suponhas muito bem, e eu seja um simplório. Mas eu, por mim, não posso pensar em nenhum outro estudo que faça a alma olhar para cima, senão o que diz respeito ao Ser e ao invisível. Mas se uma pessoa empreender o estudo de qualquer coisa de sensível, quer esteja de boca aberta, a olhar para cima, quer de boca fechada, a olhar para baixo, jamais direi que ela tenha conhecimento - pois a ciência não tem nada a ver com tais processos - nem que a sua alma olha não para cima, mas para baixo, ainda que estude nadando de costas, na terra ou no mar [14].
- Tenho o que mereço, e tens razão em me censurar. Mas como é que tu dizes que era precisa aprender astronomia diferentemente do que agora se aprende, se quiseres sabê-la de maneira a ser útil ao nosso plano?
- Do seguinte modo - expliquei eu -. Estes ornamentos que há no céu, na medida em que estão incrustados no visível, devíamos realmente considerá-los o mais belo e perfeito de tudo o que é visível, mas muito inferiores aos verdadeiros - muito inferiores aos movimentos pelos quais a velocidade essencial e a lentidão essencial, em número verdadeiro, e em todas as formas verdadeiras, se movem em relação urna à outra, e com isso fazem mover aquilo que nelas é essencial: são os verdadeiros ornamentos, que se apreendem pelo raciocínio e pela inteligência, mas não pela vista. Ou pensas outra coisa?
- De modo nenhum.
- Devemos servir-nos, portanto, dos ornamentos celestes, como exemplos, para o estudo das coisas invisíveis, tal como se alguém encontrasse desenhos feitos por Dédalo [15] ou qualquer outro artista ou pintor, delineados e elaborados de forma excepcional. Ao ver essas obras, um conhecedor da geometria pensaria que eram uma maravilha de factura, mas que seria ridículo examiná-las a séria, para apreender nelas a verdade referente às relações de igualdade, duplicação ou qualquer outra proporção.
- Como não haveria de ser ridículo?
- Mas o verdadeiro astrónomo - prossegui eu - não achas que pensará da mesma maneira ao olhar para os movimentos dos astros? E que há-de entender que da maneira mais bela por que podiam ser executados, assim foi que o demiurgo [16] do céu o formou, a este e a tudo o que ele contém. Mas, quanta à proporção entre a noite e o dia, e entre estes e o mês, e entre o mês e o ano, e entre os outros astros e estes [17], e uns com os outros, não achas que ele considerará absurdo que alguém julgue que são sempre assim, e nunca conhecem nenhum desvio, apesar de serem corpóreos e visíveis, e que procure de toda a maneira apreender a verdade deles?
- Ao ouvir-te, parece-me que sim.
- É com problemas, portanto, que nos dedicaremos à astronomia, tal como à geometria; e dispensaremos o que há no céu, se quisermos realmente tratar de astronomia, tornando útil, de inútil que era, a parte naturalmente inteligente da alma.
- Realmente é um trabalho complicado, em relação ao que têm agora, esse que tu prescreves aos astrónomos.
- Penso que faremos prescrições para as outras ciências no mesmo estilo, se de alguma coisa servirmos como legisladores. Mas tens a lembrar alguma ciência que nos convenha?
- Não tenho - disse ele -, pelo menos, por agora.
- Contudo, o movimento não oferece uma só forma, mas várias, ao que suponho. Enumerá-las todas é coisa que talvez um sábio possa fazer. Mas as que nos são visíveis, são duas.
- Quais?
- Além desta de que falei, há uma que lhe equivale.
- Qual?
- É provável que, assim como os olhos foram moldados para a astronomia, os ouvidos foram formados para o movimento harmónico e as próprias ciências são irmãs uma como afirmam os Pitagóricos e nós, ó Gláucon,
concordamos. Ou não será assim?
- É - respondeu ele.
- Ora, como a empresa é vasta, perguntar-lhes-emos o seu parecer sobre estas matérias e outras ainda além destas. Mas em todas as circunstâncias manteremos o nosso princípio.
- Qual?
- Que não tentem jamais que os nossos educandos aprendam qualquer estudo imperfeito e que não vá dar ao ponto onde tudo deve dar, como dizíamos há pouco a propósito da astronomia. Ou não sabes que fazem outro tanto com a harmonia? Efectivamente, ao medirem os acordes harmónicos e sons uns com os outros, produzem um labor improfícuo, tal como os astrónomos.
- Pelos deuses! É ridículo, sem dúvida, falar de não sei que intervalos mínimos [18] e apurarem os ouvidos, como se fosse para captar a voz dos vizinhos; uns afirmam ouvir no meio dos sons um outro, e que é esse o menor intervalo, que deve servir de medida; os outros sustentam que é igual aos que já soaram, e ambos colocam os ouvidos à frente do espírito.
- Referes-te àqueles honrados músicos que perseguem e torturam as cordas, retorcendo-as nas cavilhas. Mas não vá a minha metáfora tomar-se um tanto maçadora, se insista nas pancadas dadas com o plectro, e nas acusações contra as cordas, ou porque se recusam ou porque exageram - acabo com ela e declaro que não é desses que eu falo, mas daqueles que há momentos dissemos que havíamos de interrogar sobre a harmonia. É que fazem o mesmo que os que se dedicam à astronomia. Com efeito, eles procuram os números nos acordes que escutam, mas não se elevam até ao problema de observar quais são os números harmónicas e quais o não são, e por que razão diferem.
- Tarefa divina, essa que tu dizes.
- Útil certamente, para a procura do belo e do bom, mas inútil, se se levar a cabo com outra fim.
- É natural.
Notas:
Livro VI
[41] Entenda-se: o Sol e a Ideia do Bem.
[42] Se chamasse ao Sol «rei do céu» βασιλεὐς οὐρανοῦ, pareceria sugerir o parentesco entre οὐρανος («céu») e όρατός («visível»), género de etimologia popular que provavelmente era corrente no tempo de Platão (e que, de resto, não destoaria de muitas outras que o filósofo aceitou no Crátilo).
[43] Esta definição de διάνοια, que é da autoria de Platão, parece querer sugerir, como nota Adam, uma suposta etimologia que tirasse de διά («entre») o sentido de «entre νοῦς («inteligência») e δόξα («opinião»)».
Livro VII
[9] Palamedes, herói da guerra de Tróia, inventor dos números e do jogo do xadrez, que desmascarara o expediente de Ulisses, de simular a loucura para não ter de acompanhar a expedição, e por isso sofrera a vingança do herói, que, acusando-o de suborno por parte de Príamo, causara a sua lapidação, foi figura frequentemente tratada na tragédia. Tanto Ésquilo, como Sófocles e Eurípedes compuseram um drama intitulado Palamedes, embora nenhum dos três se tenha conservado. É curioso que Ésquilo, no Prometeu Agrilhoado, atribui a invenção do número ao Titã.
[11] Entenda-se que multiplicam logo a unidade pelo mesmo factor por que foi dividida.
[12] Trata-se da estereometria, criação, pelo menos em grande parte, de Teeteto, mas que só recebeu nome, como observa Adam, a partir de Aristóteles (An. Post. II. 13. 78b 38).
O mais famoso problema de estereometria era o da duplicação do cubo, também conhecido por «problema de Delos». Ter-se-ia originado, segundo uma das versões transmitidas por Eratóstenes, num oráculo dado aos habitantes daquela ilha, de que, para se verem livres da peste, tinham de duplicar as dimensões do altar, que era de forma cúbica. Consultados a este propósito os geómetras da Academia, Arquitas de Tarento encontrou uma solução, e Eudoxo de Cnidos outra. Vide M. R. Cohen-I. E. Drabkin, A Source Book in Greek Science, Harvard University Press, 1958, pp. 62-66, e O. Bekker, Das mathematische Denken der Antike, Göttingen, 1957, pp. 75-80.
[13] Trocadilho sobre o provérbio grego σπεῦδε βραδἐως (em latim: festina lente), equivalente ao nosso «devagar se vai ao longe».
[14] Todas estas alusões um tanto humorísticas parecem visar o episódio de As Nuvens de Aristófanes, em que Sócrates entra em cena suspenso numa cesta, para observar mais de perto os fenómenos celestes.
[15] Segundo a tradição, as estatuas de Dédalo moviam-se, o que está de acordo com o «exemplo» das revoluções celestes escolhido.
[16] Empregámos a palavra grega que figura também no Timeu, para designar o construtor do mundo.
[17] Entenda-se: o Sol e a Lua, causadores das variações do dia, noite, mês e ano.
[18] Para definir o que seja πυκνώματα, termo da linguagem musical, Adam cita Aristóxeno, Baquio e, entre os modernos, Schneider, que interpreta que «haec ipsa πυκνά vel alia parva et tamen composita intervalla» se chamam assim «propter sonorum in augusto spatio quasi confertorum frequentiam». Veja-se ainda M. L. West, Ancient Greek Music, Oxford, 1992, p. 162
É com grande alegria que apresentamos uma tradução do Prólogo e da Introdução do livro La Filosofía de las Matemáticas en Santo Tomás, em traduzimos como A Filosofia da Matemática em Santo Tomás. Este livro foi escrito por José Alvarez Laso, C. M. F., Professor de Filosofia no Colégio Claretiano de Santa Cruz Zinacantepec. Foi publicado pelo Editorial Jus, México, 1952. Primeiramente quero agradecer a minha esposa pela tradução e revisão do texto em espanhol. As demais traduções são nossa. Futuramente teremos mais novidades deste livro. Aguardem!
PRÓLOGO
Antes de entrar no assunto, convém citar aqui algumas advertências. E, primeiramente, para que ninguém ache que minha tese é um de tantos esforços para atribuir a Santo Tomás, sete séculos antes, o que agora dizemos, hei de explicar
A ocasião deste tema. Muitos matemáticos modernos e não poucos filósofos de todo tipo de escolas prestam grande atenção aos problemas filosóficos que a Matemática oferece, agrupados sob a denominação comum de Filosofia da Matemática.
Basta ler as últimas páginas da monografia de W. Dubislav, A filosofia da Matemática na Atualidade [Die Philosopie der Mathematik in der Gegenwart] (Berlín, 1932), para se convencer disso.
Por outro lado, os escolásticos, esquecendo o exemplo dos grandes Mestres (veja a Conclusão), pouco ou nada fizeram neste campo estritamente metafísico.
É, pois, este terreno como diz o P. Hoenen, Um campo de pesquisa para Escolástica (O Escolástico Moderno 12 [A field of research for Scholasticism (The Modern Schoolman 12)] [Nov. 1934] 15-18).
Objeto desta pesquisa. Não é minha intenção propor uma filosofia da Matemática segundo a doutrina escolástica. Meu trabalho será mais modesto: colaborar com meu grãozinho de areia para este ideal preparando a história destes problemas na escolástica.
Autor escolhido. E para sintetizar, na medida do possível, esta história, escolhi como autor central Santo Tomás de Aquino, que representa melhor que nenhum outro a doutrina escolástica. Ele reuniu toda a ciência anterior e dele derivam mais ou menos todos os Escolásticos posteriores. Por isso, creio que as
Fontes principais deste trabalho devem ser os Comentários do Angélico aos livros do Estagirita [Aristóteles]. Assim, poderemos estudar paralelamente o pensamento do Filósofo e de seu melhor intérprete. Uma consequência prática é a maneira de citar ambas as referências o mais preciso possível. Somente os que quiseram consultar alguma vez o pensamento de Santo Tomás com os outros Comentadores antigos e modernos, verão a utilidade destas citações.
Características do meu trabalho. Assim, pois, meu trabalho é primariamente histórico. Apresentar as soluções que Santo Tomás deu aos problemas que oferecia a matemática de seu século.
Em segundo lugar, meu trabalho deve ser crítico. Em dois sentidos: primeiro em relação aos problemas que o próprio Santo Tomás se propunha: estão plenamente resolvidos?; logo, em relação aos problemas de agora, as soluções tomistas podem ser aplicadas a eles?
Método seguido. Eu segui o método histórico e documental, pesquisando o que de fato disse Santo Tomás. Método diametralmente oposto ao que segue D. García em seu artigo De metaphysica multitudinis ordinatione (Div. Thom. Plac. 31 [1928] 83-109; 607-638). [Sobre a metafísica da ordem do número].
Uso dos idiomas. O método documental exige a menor intervenção possível do pesquisador nos textos. Por isso, embora o texto da dissertação esteja na minha língua materna [espanhol], as citações estão sempre nos idiomas dos respectivos autores.
É lamentável ter que dizer, mas é um fato, cito autores em nove línguas diferentes e nenhum em espanhol.
Para maior comodidade, o índice de referências está em latim.
Divisão da tese. Fiz um esquema quase a priori sobre os problemas filosóficos que a Matemática oferece para ordenar, segundo ele, os materiais que estivesse recolhendo, mas logo tive a sorte de encontrar um belo texto de Santo Tomás que me deu uma magnífica divisão da matéria, segundo exponho no primeiro capítulo.
A bibliografia que aparece nas páginas seguintes compreende, sistematicamente catalogados, todos e apenas os livros e artigos empregados para compor a dissertação.
Fruto da minha pesquisa. Creio que o mérito principal do meu trabalho está em ter encontrado em Santo Tomás um esboço de Filosofia da Matemática, que é necessário desenhar e colorir com muito cuidado para poder apresentá-lo diante do público de nossos dias.
Defeitos da minha dissertação. Certamente, terão muitos a serem delatados ao principiante. Mas, há três que eu mesmo vejo e que quero confessar aqui.
Facilmente se nota que os últimos capítulos estão menos trabalhados, embora em parte se deva ao fato de que são menos filosóficos.
Logo, teria que ler de novo todos os textos, para referendar mais a doutrina. Conheço mais textos dos que aparecem usados na dissertação como facilmente poderá constatar quem tivesse paciência para comparar o texto com o Apêndice. Talvez, em algum momento, teria que corrigir alguma frase ou polir alguma expressão, como tive que fazer em relação ao número. Na primeira redação, atribuía a Santo Tomás uma doutrina errônea sobre o objeto da aritmética, que depois tive a satisfação de constatar que era apenas de João de Santo Tomás e de outros que o copiavam (veja a nota 29 do cap. III).
Por fim, em relação à matemática moderna, é vasta e tão variada a literatura, que não sei se terei escolhido sempre o que é típico e característico.
Devo manifestar minha sincera gratidão e reconhecimento ao R. P. Pedro Hoenen, S.J., sob cuja amável e sábia direção trabalhei.
Devo recordar aqui a memória do falecido R. P. L. W. Keeler (que Deus o tenha), que tanto me ajudou na leitura dos Manuscritos. Que o bom Deus, para cuja maior glória trabalhávamos juntos na Biblioteca Vaticana, lhe tenha agraciado no céu por sua extrema bondade para comigo.
México, D. F., 13 de abril de 1952, solenidade de Páscoa.
INTRODUÇÃO
A MATEMÁTICA EM SANTO TOMÁS
Santo Tomás estudou a Aritmética e a Geometria com as demais disciplinas do Quadrivium na Universidade de Nápoles [1] nos anos de 1236 a 1239 [2].
Tão bem diligente sairia destas aulas, à medida que se abundam em suas obras filosóficas e teológicas as alusões à Matemática [3].
Não é minha intenção estudar esta introdução um ponto [4], que não tem nenhum interesse nem para a Matemática nem para a História [5].
Só quero registrar os dados necessários para demonstrar que Santo Tomás poderia refletir sobre a Matemática.
Conhecia bem [6] Euclides [7]. Poucas vezes cita [8] a aritmética de Boécio [9]; mas todos sabem que os livros VII-IX de Euclides são pura aritmética.
Sabido é também o lugar que ocupa a Matemática na classificação geral das ciências que faz Santo Tomás [10].
Quero encerrar esta breve nota com uma frase do grande historiador da Matemática M. Cantor, que demonstra o grande afeto e admiração que professava por Tomás de Aquino: “O matemático chama-os (Alberto Magno e Tomás de Aquino) com pesar de amigos da sua ciência” (Vorlesungen über Geschichte der Mathematik [Lições sobre a história da matemática], Leipzig, Teubner, 1892, vol. II, p. 86).
Notas:
[1] Veja os parágrafos em que os três primeiros biógrafos de Santo Tomás falam de seus estudos em Nápoles:
“O pai enviou seu filho a Nápoles para que ele pudesse ser completamente educado em gramática, dialética e retórica. Pois quando ele logo deixou Martinho, seu tutor de gramática, ele foi entregue ao seu professor Pedro, o Ibérico, que, tendo-o instruído em ciências lógicas e naturais”. Calo P., Vita S. Thomae A., ed. Prümmer, p. 20.
“Assim, seguindo o conselho dos pais, o menino foi enviado para Nápoles e aprendeu gramática e lógica com o Mestre Martinho, e ciências naturais com o Mestre Pedro da Ibéria.”. Tocco G., Historia B. Thomae de Aq., ed. Prümmer, p. 70.
“Em pouco tempo, portanto, quando ele fez grande progresso em gramática, lógica e filosofia natural...”. Guidonis B., Legenda Sancti Thomae de Aq., ed. Prummer, p. 70.
[2] El P. Prümmer (Chronología vitae S. Thomae Aq., en Xenia Thomistica) atribui o ano 1235 como o primeiro ano de sua estadia em Nápoles. P. Walz (Delineatio vitae S. Thomae de Aquino, Romae, Angelico, 1927, p. 16) coloca "anno 1236 vel 1239".
[3] Veja o índice dos lugares em que Santo Tomás fala de Matemática, posto como Apêndice desta dissertação.
[4] Do ponto de vista sistemático, H. Meyer estudou este ponto em vários artigos de Philosophisches Jahrbuch publicados à parte depois. Sobre a Matemática, trata o volume 47 (1934) nas páginas 441-464.
[5] Talvez, o nome de Santo Tomás deva figurar na história da Matemática outro conceito. Veja, de fato, o que diz Timerding (Die Verbreitung mathematisches Wissens und mathematischer Auffassung, Leipzig, Teubner, 1914 [A disseminação do conhecimento matemático e da compreensão matemática]):
“Além da já mencionada tradução de Euclides por Campanus, devem ser mencionadas as traduções que, segundo consta, foram feitas por Guilherme de Mörbecke da Catóptrica de Heron e dos escritos arquimedianos a pedido de Tomás de Aquino (1274)”. Zeuthen (Die Mathematik in Altertum und im Mittelalter, Leipzig, Teubner, 1912 [A Matemática na Antiguidade e na Idade Média]), atribui este mérito a Witelo. Veja Cantor, Vorlesunger über Geschichte der Mathematik, Leipzig, Teubner, 1892, Vol. II, p. 89.
[6] Veja, por exemplo, estes textos:
Explica o nome Elemento
III Met. 1.8, n. 424.
“ “ “
V Met. 1.4, n. 801.
Cita o livro I de Euclides
III De An. 1.1, n. 577.
III
II De cae 1.26. n. 6.
IV
De mem 1.7, n. 392
X
I An. Pos. 1.4, n. 13
[7] Segundo Montucla (Histoire des Mathématiques, Paris, 1758, I, p. 213), só no século XIII começaram os latinos a conhecer Euclides no mesmo texto.
[8] Veja, por exemplo:
De pot. q. 3, a. 16 sed contra 4.
I Sent. d. 24; q. 1 ob. 2.
De Trin. q. 1. a. 4 ad 2.
q. 4 á. 1 arg. 1.
[9] Veja o juízo que faz Montucla (vol. I, p. 492), das obras matemáticas de Boécio:
“Sua aritmética e geometria são, estritamente falando, apenas traduções livres do primeiro (Nicômaco) e do último (Euclides), onde ele preservou para nós muitas características interessantes da história dessas ciências”.
[10] Veja, por exemplo, no recente livro de H. Meyer, Thomas von Aquino, Bonn, 1938, p. 399-407.
Detalhe da Aritmética e da Geometria em As sete virtudes e as sete artes liberais, Francesco Stefano Pesellino, 1450
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Apresentamos os capítulos 7 e 8 do livro As sete artes liberais: um estudo sobre a cultura medieval, Paul Abelson. Editora Kírion, 2019.
CAPÍTULO VII
Aritmética
A
CARÁTER GERAL DO QUADRIVIUM
Se é inquestionável que o trivium — gramática, retórica e lógica — ocupava a maior parte do tempo dedicado ao estudo das sete artes liberais, a tradicional opinião de que “a verdadeira educação secular da idade das trevas foi o trivium”, sendo as disciplinas do quadrivium, ou matemáticas, raramente estudadas, está longe de ser historicamente correta [1]. Tal aԂrmação não se poderia fazer nem mesmo com respeito à era das universidades, quando a lógica e a filosofia foram sabidamente os estudos essenciais. O equívoco, entretanto, é bastante compreensível; as reais dimensões do conhecimento matemático anterior ao século XII eram tão reduzidas, que até pouco tempo atrás foram praticamente desconsideradas. Historiadores das ciências matemáticas consideraram esse período “estéril”. Chegou-se a afirmar que a mente medieval sequer tivesse aptidão para o estudo da matemática [2].
Mas a ausência de trabalho criativo durante uma boa parte da nossa época não implica necessariamente a falta de instrução na disciplina. Muito pelo contrário, no caso.
Tomando a questão de todos os pontos de vista, parece que evidências permitem uma única conclusão: as disciplinas do quadrivium foram amplamente estudadas no curso de toda a Idade Média. Em primeiro lugar, as experiências pessoais que ilustram o estudo das sete artes liberais incluem, invariavelmente, tanto as disciplinas do trivium como as do quadrivium [3]. O exame dos fatos relativos à posição da Igreja revela que sínodo após sínodo, desde os dias de Carlos Magno, fizeram do cômputo eclesiástico e da música obrigações para o clero. É certo que na Inglaterra, para citar um único exemplo, entre o século VIII e a conquista normanda, não se ordenou um só sacerdote incapaz de calcular a data da Páscoa e depois explicá-lo ao modo de Beda, o Venerável [4]. É ponto pacífico que a Igreja tivesse interesse em ao menos três disciplinas do quadrivium: aritmética, astronomia e música. Daí que não devamos esperar hostilidades à instrução do quadrivium nas escolas medievais.
Ademais, examinando o estado geral das escolas européias entre o período carolíngio e o renascimento intelectual do século XIII, facilmente identificamos um interesse contínuo pela matemática em todas as escolas monásticas e catedrais. Isso vale para as escolas de Fulda, Heresfeld, Reichenau, São Galo, Augsburg, Mainz, Hildesheim, Espira, Colônia, Stavelot, Münster, Verdun, Corvey, Ratisbona, Saint-Emmeran, Passau, Ranshofen, Klosterburg, Reichersburg, Wessobrunn, Metten, Benediktbeuern, Polling, Niederaltaich, Kremsmünster, Saint-Florian, Admont e muitos outros centros educacionais do Sacro Império Romano-Germânico. Interesse ainda maior nota-se em diversas instituições na França e nos Países Baixos, tais como as de Reims, Liège, Lobach, entre outras [5]. Constatamos também que os grandes professores do período foram quase todos conhecidos por aulas de matemática e suas contribuições a essa ciência. A título de ilustração, podemos citar os nomes de Rábano Mauro, Érico e Remígio de Auxerre, os três Notkers, Radberto, Ermenrico, Heilpric, Tatto, Hermano Contracto, Guilherme de Hirsau, Heraldo de Landsberg, Odão de Cluny, Gerberto (mais tarde Papa Silvestre II), Enguelberto de Liège, Bispo Gilberto de Lisieux, Odão de Tournai, Abbo de Fleury, Hucbald, Otlo, Conrado de Nuremberg (irmão do famoso Anselmo), Sigfrido e Reginbald. Estudos demonstram que todos eles tinham aptidão matemática, lecionavam matemática e, na maioria dos casos, produziram obras de mérito nas áreas do quadrivium [6]. A falta de valor cientíԂco na maior parte desses tratados explica o desinteresse em publicar a grande quantidade de manuscritos que se encontram pelas bibliotecas da Europa [7]. Mesmo incompleta, porém, a relação dos livros-texto do quadrivium sugere a contento que essas disciplinas foram bastante estudadas.
Muito se fala, de modo geral, sobre o fato de o conhecimento matemático ter sido próximo do insignificante até o século XII [8]. Apesar disso, o exame mais ligeiro dos livros-texto realmente utilizados nessa época derrubaria a afirmação de que somente as mais elementares proposições da geometria, o método para o calcular a Páscoa e o uso do ábaco fossem o objeto da atenção dos matemáticos. É preciso precaver-se contra aquilatar as realizações da Idade Média desde o ponto de vista do nosso tempo, em que os lugares-comuns da matemática são projeções, cálculo infinitesimal e teorias da composição.
Nos capítulos seguintes, dedicados às disciplinas do quadrivium, tentaremos defender as seguintes teses:
1. Consideradas as dimensões do conhecimento matemático à disposição na Europa no período em questão, as proporções do conhecimento transmitido ao estudante do quadrivium eram relativamente grandes. Isso não quer dizer que os professores medievais soubessem muito de matemática, mas sim que as escolas cumpriam a sua missão, transmitindo às futuras gerações todo o conhecimento matemático que possuíam, e que o aluno era obrigado a apropriar-se desse conhecimento antes de passar ao estudo avançado da filosofia.
2. O padrão da educação matemática nas grandes escolas na Idade Média era muito alto. Embora não haja evidências de trabalho criativo nos primeiros séculos, os últimos indicam progresso na assimilação de novos materiais [9].
3. A quantidade e o caráter da instrução matemática na Idade Média andaram pari passu com o avanço do conhecimento matemático nas várias disciplinas.
4. Mesmo depois do século XIII, quando, já na universidade, o quadrivium fundiu-se ao programa geral da filosofia, os estudos matemáticos passavam longe do descaso. Mesmo sob o domínio dos escolásticos, a quantidade de instrução matemática acompanhou o passo do gradual avanço das ciências [10].
B
A EXTENSÃO DO CONHECIMENTO
O conhecimento aritmético da Idade Média pode ser classificado em três períodos. No primeiro, que termina com o século X, a Europa sabia pouquíssimo do tipo de aritmética tão cultivado pelos gregos na dita era alexandrina. Sabia-se, basicamente, o que consta nos manuais do neopitagórico Nicômaco, composto no final do século [11]. Nesse período, o estudo da aritmética limitava-se ao cômputo eclesiástico, no âmbito da prática, e às propriedades numéricas, no âmbito teórico. O ábaco romano era o rude instrumento das operações numéricas, e utilizavam-se os algarismos romanos [12].
No segundo período, entre o final do século X e o final do século XII, nota-se um avanço considerável. O emprego do ábaco modificado por Gerberto difundiu-se; a divisão complementar e o cálculo por colunas, métodos que em muito superavam a dactilonomia da era anterior, eram comuns [13]. Progresso ainda maior há no terceiro período, também chamado de época algorística, durante os anos finais da Idade Média. Os algarismos arábicos e o zero entraram em uso quando boa parte da antiga matemática grega foi recobrada por meio de traduções do árabe [14]. Ainda que cada período tenha o seu método próprio, sua porção de conhecimento e a sua amplitude em termos de instrução matemática, não é de supor que se possam traçar quaisquer linhas definitivas entre eles. Veremos a seguir que essas linhas sobrepõem-se umas às outras e que as obras didáticas características de uma época anterior continuaram a ser usadas em certa medida [15].
PRIMEIRO PERÍODO
CARÁTER GERAL
A aritmética, nesta fase, é essencialmente a arte do cálculo. Dedica-se quase que exclusivamente ao cômputo da Páscoa — tanto assim que as palavras “computus” e “arithmetica” tornaram-se sinônimos —, mas não se pode sustentar que lhe escapasse por completo o tratamento das propriedades e das relações numéricas. Com efeito, os elementos místicos e simbólicos são muito presentes na aritmética teórica; e isso graças a Nicômaco, cujo livro foi a fonte de Boécio e dos cristãos — Isidoro de Sevilha, Alcuíno, Rábano Mauro, entre outros — ter-se enveredado por esse tipo de especulação. O método era rude; raramente empregava-se o ábaco, e a pesada notação romana tornava quase impossível o cálculo com números grandes. Na verdade, não há registro autêntico de operações realizadas para além dos três dígitos [16]. As frações romanas, sempre que empregadas, necessitavam do auxílio de tábuas especiais, baseadas no “sistema do meio”. Se os livros-texto de uso corrente provam alguma coisa, o conjunto de conhecimentos matemáticos possuído pela Europa Ocidental durante esse período era mesmo pequeno — ao ponto de dar às redescobertas e traduções posteriores, nomeadamente da escola alexandrina de matemática, a aparência de um acréscimo inteiramente novo [17].
OBRAS DIDÁTICAS
Por estranho que pareça, os livros-texto do período não tratam de métodos de operação. Os poucos casos em que isso acontece, e incidentalmente, sugerem intenso trabalho mental e de dactilonômico [18]. Os textos seguintes figuram entre os mais usados:
1. O capítulo sobre aritmética em De nuptiis Philologiae et Mercurii, de Marciano Capela, é nada mais que um resumo sumaríssimo da aritmética de Nicômaco. Além da introdução alegórica, o texto traz material sobre as propriedades e o significado místico dos números em consonância às noções pitagóricas. O texto deve a sua popularidade ao fato de constar como capítulo num bom livro-texto sobre sete artes liberais [19].
2. De intitutione arithmetica libri duo, de Boécio, foi a fonte de conhecimento aritmético da Idade Média por cerca de dois séculos, mesmo após a introdução do sistema hindu de notação e cálculo. Resumida, comentada e editada inúmeras vezes, chegou a passar pelo prelo até o século XVI [20]. Quais são, afinal, os conteúdos dessa obra notável?
O exame das suas 80 colunas e 100 diagramas surpreende pela ausência de uma única regra de operação; tudo o que se vê é uma interminável classificação das propriedades numéricas — triangulares, perfeitos, excessivos, defectivos etc. Verifica-se uma variedade de números pares e ímpares, bem como o tratamento de proporções e progressões. O conteúdo da obra parece indicar que o texto de Boécio não se destinava ao uso dos alunos, mas à orientação do professor. Ademais, constitui-se numa introdução adequada à interpretação mística dos números bíblicos, da qual não raro deduziam-se lições de moral [21].
3. O breve De arithmetica de Cassiodoro é, na melhor das hipóteses, um condensado da obra de Boécio. Nada de novo é apresentado. Quatro diagramas classificam as propriedades numéricas, e cada tipo tem a sua definição e ilustração. A obra nada informa a respeito de métodos práticos [22].
O breve capítulo de Isidoro de Sevilha segue as mesmas linhas que o de Cassiodoro. Trata-se de uma classificação quádrupla dos números, baseada nas suas propriedades e relações. O autor inclui alguns absurdos a respeito da nomenclatura latina e certos arroubos sobre a importância dos números [23]. Também nesta obra, buscamos em vão por uma única sentença acerca dos métodos e das regras das operações.
5. De temporum ratione, do Venerável Beda, é o primeiro texto do período a tocar o aspecto prático do cálculo — a obra trata do cômputo eclesiástico. Não surpreende, portanto, que ele tenha servido de modelo para os séculos seguintes [24].
6. O Liber de ratione computi, do mesmo autor, é de caráter similar, porém de forma mais condensada [25].
7. Também De cursu et saltu lunae ac bissexto, de Alcuíno, é uma obra sobre o cômputo eclesiástico. O seu conteúdo, no entanto, é mais astronômico do que aritmético [26].
8. O Liber de computo, de Rábano Mauro, é talvez o mais completo e mais característico livro-texto do período em questão. Os 96 capítulos abordam em detalhe, mas concisamente, todo o conhecimento necessário no tocante ao cômputo da Páscoa. É claro que se apresenta a classificação multiforme das propriedades e relações numéricas, mas isso em menos que uma coluna. O restante da obra é dedicado ao sistema grego de notação, às divisões do tempo, aos calendários grego e romano, aos nomes dos planetas, a fatos sobre a Lua, a solstícios, equinócios, epactae e outros fenômenos astronômicos envolvidos no estudo do cômputo. Os ciclos lunares e o método de cálculo da Páscoa são explicados conforme o plano de Beda. Como é de esperar, a seção mais importante da obra inteira dedica-se ao cômputo eclesiástico [27]. É significativo que haja, logo na introdução, um capítulo sobre dactilonomia e os símbolos romanos. Mais significativa, porém, é a omissão das regras para as quatro operações. Assim, parece que o cálculo se fizesse principalmente de cabeça, talvez com a ajuda de um sistema elaborado de dactilonomia, e que as quatro operações elementares, com números inteiros, fossem pré-requisito para o estudo do cômputo. Sob todos os aspectos, pode-se tomar a obra de Rábano Mauro como representativa do conhecimento e do ensino aritmético do período. A grande influência do “praeceptor Germaniae” sugere por si só o amplo uso da sua obra, e numerosos livros-texto sobre o cômputo, anônimos ou não, basearam-se no seu tratado [28].
Além desses livros-texto, em que se revelam as características atribuídas ao período, há ainda, da mesma época, outras obras excepcionais sobre a aritmética. A sua existência e o seu emprego, todavia, de modo algum debilitam as nossas conclusões sobre o caráter geral da instrução aritmética nessa fase inicial da Idade Média [29].
Sobre os métodos de divisão e as frações, são de particular interesse os seguintes e breves escritos, erroneamente atribuídos a Beda:
De numerorum divisione libellus.
De loquela per gestum digitorum et temporum ratione libellus.
De unciarum ratione [30].
A origem desses tratados não pode ser rastreada para além do século X [31]. Supõe-se, por conseguinte, que eles indiquem um lento progresso do conhecimento aritmético. De todo modo, esse mesmo material serviria de base para as realizações de Gerberto.
SEGUNDO PERÍODO
CARÁTER GERAL
O ponto de partida para rastrear o progresso do estudo aritmético nesse período pode ser encontrado nas marcantes realizações matemáticas de Gerberto. O valor exato das suas contribuições à aritmética ainda é uma questão em aberto. Alguns lhe atribuem a introdução do cálculo por colunas na Europa Ocidental [32]; outros lhe atribuem, também, a introdução do sistema arábico de notação [33]. Por outro lado, Cantor, o Nestor dos historiadores da matemática, sustenta que Gerberto não tivesse familiaridade alguma com o sistema arábico [34].
Todos, porém, concordam nos seguintes pontos: (1) Gerberto e seus discípulos, nomeadamente Bernelinus, incrementaram o ábaco e estenderam a sua utilização com a introdução de apices diferenciados no topo de coluna; (2) Gerberto e seus discípulos não se utilizaram do zero; (3) encontramos no livro de Gerberto a primeira obra sobre o método de cálculo com o ábaco; (4) Gerberto, que foi o primeiro a empregar o método da divisão complementar, tornou possível a realização das quatro operações no ábaco. Para os fins da nossa investigação, ainda outro fato sobre Gerberto é pertinente: ele ensinou as disciplinas do quadrivium com notável sucesso na escola de Reims entre 972 e 982, e um registro completo dos seus métodos ainda existe [35].
As duas obras de Gerberto, Regulae de abaci numerorum rationibus e o fragmentário De numerorum abaci rationibus, podem ser tomadas como representativas do que fosse um livro-texto de aritmética entre o século X e o início do século XIII. O exame desses tratados [36] revela que os processos empregados em adição, subtração e multiplicação são muito parecidos com os métodos modernos, enquanto o processo de divisão — tema da segunda obra, que é a menor — difere por completo. Comparados ao sistema arábico, os métodos de divisão de Gerberto foram considerados, não impropriamente, “quase tão complicados quanto o engenho humano seria capaz de fazê-los”. Confirma essa opinião o nome “divisio ferrea”, que passou a acompanhar os métodos de Gerberto após a introdução do sistema hindu, chamado, por sua vez, de “divisio aurea” [37].
Nos dias de Gerberto, de um modo geral, quem escrevia sobre a aritmética era conhecido por “abacista”. A introdução dos métodos hindus, por inԅuência dos árabes, veio a restringir esse termo àqueles apegados aos métodos antigos, a saber: (1) a utilização do ábaco; (2) a notação romana; (3) as frações duodecimais; (4) a ausência do zero; (5) a incapacidade de extrair-se a raiz quadrada [38]. Os melhores métodos dos algoristas, como os autores do período seguinte eram chamados, não necessariamente suplantaram a obra dos abacistas. Houve, de fato, uma competição entre a escola abacista — por vezes chamada, erroneamente, escola boeciana — e a nova escola, dita arábica.
A intrínseca superioridade do novo sistema não causou de imediato o desaparecimento dos livros-texto baseados no antigo. Assim como as obras aritméticas de Boécio foram impressas até o século XVI, também edições dos antigos abacistas continuaram em uso muito para além do triunfo dos alegoristas [39].
LIVROS-TEXTO
Passando aos livros-texto do período, encontramos, com efeito, diversas impressões. Contudo, apenas os mais típicos, aqueles mais celebrados no seu tempo, pedem aqui ser mencionados.
1. Hermano Contracto, monge e professor em Reichenau na primeira metade do século XI, é o autor de um Liber de abaco. O tratado é mais breve do que as obras de Gerberto e confessadamente baseado nelas mesmas [40].
2. Rodolfo de Laon compôs tratado similar no século XII [41].
3. João de Garlandia, autor de um tratado sobre o cômputo, compôs também um livro-texto sobre o ábaco. É significativo que o mesmo autor tenha preparado as duas obras; isso mostra que o escopo da aritmética houvera-se ampliado, causando a separação total entre o cômputo eclesiástico e a aritmética propriamente dita [42].
TERCEIRO PERÍODO
CARÁTER GERAL DO CONHECIMENTO MATEMÁTICO
O exame do terceiro período, o algorístico, traz-nos até o meio da era das universidades. Embora o quadrivium estivesse fundido no programa geral oferecido sob o auspício das faculdades, a aritmética, tanto teórico como prática, foi mais estudada nesse do que no período anterior. Isso, claro, graças aos avanços do conhecimento na matéria.
As características da aritmética algorística eram: (1) o uso do sistema hindu-arábico de notação; (2) o sistema de valor local; (3) o uso do zero; (4) a dispensa total do ábaco; (5) o uso combinado de símbolos e números — na verdade, uma combinação de álgebra e aritmética, na acepções atuais dos termos —; (6) a introdução, na Europa Ocidental, de vastíssimo material aritmético do Oriente, proporcionada por traduções latinas de fontes árabes. A tendência geral foi abordar a aritmética pelos lados prático e cientíԂco, mas nem por isso os aspectos místicos da disciplina, tão populares em outros períodos, foram negligenciados de algum modo. O tratamento fantástico das propriedades numéricas continuou bastante comum [43].
Desse modo, o começo do século XIII é marcado pela introdução do sistema arábico de notação e pela sua adoção, no lugar da notação romana e do ábaco. Essa revolução fundamental deu-se gradualmente. A transição entre o período do ábaco e era do algarismo remonta às traduções da aritmética hindu-arábica feitas pelos seguintes e prestigiados matemáticos do século XII:
Adelardo de Bath, que escreveu Regulae abaci às voltas de 1130. A ele também se atribui o manuscrito de Cambridge intitulado Algorithm de numero indorum [44].
Abraham Ibn Ezra, cujo tratado sobre a aritmética data de inícios do século XII [45].
João de Sevilha, que compôs o seu Algorismus às voltas de 1140 [46].
Geraldo de Cremona, que preparou um Algorismus na segunda metade do século XII [47].
O anônimo que, às voltas de 1200, compôs um breve tratado sobre os algarismos no sul da Alemanha [48].
Essas obras de transição, conquanto escritas anteriormente à ascensão das universidades, durante o declínio das escolas monásticas e catedrais, se estabelecem a seqüência histórica neste estudo particular, não se podem tomar como livros-texto característicos do período. Não precisamos, portanto, demorarmo-nos sobre eles, que serviram tão-somente a um propósito admirável: apresentar o sistema hindu-arábico aos matemáticos da Europa, pavimentando o caminho para trabalhos posteriores.
É verdade, entretanto, que os primeiros anos do século XIII foram realmente decisivos na história dos estudos aritméticos e matemáticos. Isso porque inauguraram um fluxo constante, e que perpassou todo o restante do século, de traduções e adaptações de livros árabes e gregos [49]. No campo da aritmética, a introdução desse novo conhecimento produziu dois efeitos diversos: (1) sua utilização e extensão na aplicação ao comércio; e (2) a adoção do sistema arábico de notação nos estudos acadêmicos da matemática. O primeiro resultou num extraordinário desenvolvimento dos aspectos práticos da aritmética e de partes da álgebra nos centros comerciais de Itália, Inglaterra e Alemanha durantes os três séculos posteriores [50]. O principal representante dessa tendência foi Leonardo de Pisa, que era filho de um mercador. O seu volumoso Liber abaci, composto em 1202, apresentou ao mundo uma quantidade de conhecimento prático e teórico que ainda hoje pode ser considerada admirável [51]. Não obstante, a influência desse livro sobre as universidades não foi perceptível nem mesmo na Itália, seu país [52]. Nesse contexto, podemos nomear outro notável: o dominicano Jordano de Nemi, cujos esforços para tornar acessível a ciência aritmética às tradicionais escolas medievais comparam-se aos de Leonardo para popularizar a descoberta entre os mercadores europeus [53]. Dele interessam-nos Algorithmus demonstratus, breve tratado sobre o cálculo [54]; Arithmetica demonstrata, sobre a teoria dos números [55]; e De numeris datis, sobre a álgebra [56]. O seu caráter abstrativo, científico, assenta no emprego de símbolos gerais. Excluindo-se de partida todos as aplicações comerciais, temos, nesses tratados, o material perfeitamente adequado para o estudo acadêmico da disciplina [57].
ESCOPO
A pergunta sugere-se a si mesma: quanto desse material era de fato empregado no ensino da aritmética? O exame dos registros da instrução nas universidades deve dar-nos a resposta.
Passando a esses registros, deparamos as seguintes condições: em Paris, dava-se pouca atenção à matemática. Os pré-requisitos para o mestrado, em 1366, ditam vagamente “que o estudante compareça a seminários sobre alguma obra matemática” [58] De todo modo, o fato de Sacrobosco ter lecionado matemática na Universidade de Paris antes de 1255, considerando-se que o mesmo fora autor de um algorismo baseado em Jordano, permite supor que, antes de 1366, tenha-se estudado ali ao menos o material contido na aritmética de Jordano.
Em Bolonha, onde cultivava-se a matemática muito mais do que em Paris, houve na faculdade de artes uma cadeira de aritmética. Previa-se, deԂnitivamente, um curso sobre “algorismi de minutiis et integris”, material do Algorithmus demonstratus de Jordano [59].
Os estatutos da Universidade de Praga para o ano 1367 requerem, para a conclusão do mestrado, um curso sobre “algorismus”. O conteúdo, segundo uma escala de conferências para o mesmo ano, devia-se aprender em até três semanas, donde ser claro que a disposição inicial referia-se ao estudo de obras tais como a de Sacrobosco, ou seja, dos elementos práticos da aritmética [60]. Na mesma universidade, encontramos “o estudo da aritmética” entre os pré-requisitos para o mestrado; outros registros indicam que ali se estudavam “algorismus” e “arithmetica accurata”. Aqui, obviamente, distingue-se entre os elementos práticos e teóricos da aritmética [61].
A Universidade de Viena, durante toda a Idade Média, foi tão reconhecida pelo estudo da matemática quanto a de Paris pelo estudo da ԂlosoԂa; chegou, inclusive, a abrigar disputações sobre a matéria. E enquanto os dados sobre o ensino da aritmética em Viena não representam a situação que, como vimos, era comum a tantas outras universidades, as informações de que dispomos a esse respeito, quando alinhadas a outras evidências, são, de fato, reveladoras. A agenda de seminários para 1391–1399 mostra que ali se abordavam: (1) “algorismus de integris”; (2) “algorismo de minutiis”; (3) “computus physicus”; (4) “frações astronômicas”; (5) “arithmetica et proportiones”; e (6) “arithmetica” [62]. À luz do cuidado que ali se tomou para evitar a competição, duplicando-se os seminários, podemos supor que esses cursos tratassem de aritmética e álgebra elementar e teórica — justamente o tema da obra de Jordano.
A mesma distinção entre algorismus e arithmetica, isto é, entre os elementos práticos e teóricos da aritmética, é também enfatizada em registros do século XV. Ao que parece, havia níveis de remuneração para diferentes tipos de professores de aritmética. Os seminários de “arithmetica” valiam o dobro dos seminários de “algorismus”, se bem que o número de sessões fosse o mesmo para ambas as disciplinas. Também parece significativo que o honorário correspondente aos seminários de aritmética fosse igual à remuneração pelo mesmo número de aulas sobre uma matéria aparentada à matemática teórica: a música [63].
Em Leipzig, filha de Praga, prevaleciam as mesmas condições [64].
Mais significativo, talvez, seja o fato de a Universidade de Colônia, fundada 1389 sobre as mesmas bases da Universidade de Paris, ter disposto para o mestrado, em 1398, os mesmos pré-requisitos adotados em Viena [65].
Condições similares existiram em Erfurt, Heidelberg, Oxford, e mesmo em universidades italianas, como as de Pádua e de Pisa, onde a obra de Leonardo não teve influência alguma durante o século XV.
As evidências indicam claramente o escopo da instrução aritmética nas universidades européias. Dado que o material utilizado nesses programas era aparentemente idêntico ao conteúdo dos três livros de Jordano, é-nos permitido inferir que o conhecimento científico sobre a aritmética estava plenamente representado na educação universitária, sendo prevista, para a conclusão do mestrado, a sua quase totalidade.
LIVROS-TEXTO
Determinado o caráter das obras didáticas do período, passamos ao exame dos livros-texto empregados nas universidades.
1. O primeiro em importância, porque o mais usado durante três séculos, foi o do inglês John Hollywood, dito Sacrobosco, cujo Tractatus de arte numerandi, ou Algorismus, foi reimpresso inúmeras vezes e sob diversos títulos [66]. A obra não é senão um excerto do Algorismus demonstratus de Jordano; traz as regras da aritmética sem demonstrações ou ilustrações, e palavra nenhuma sobre as frações. Na verdade, mal passa de uma exposição das nove operações aritméticas tais como explicadas por Jordano — as regras de multiplicação aparecem em verso. O caráter da obra determina prontamente o seu lugar no currículo: serve como um guia, um texto a partir do qual se introduzirem os elementos da aritmética antes de iniciar-se o estudo da aritmética teórica, mais audacioso [67]
2. O que Sacrobosco fez a título de levar o Algorismus de Jordano até as universidades, outros fizeram-no com as suas duas outras obras. Arithmetica speculativa, de Thomas Bradwardinus (1290–1349), cobre toda a aritmética avançada de Jordano [68].
3. Sacrobosco e Bradwardinus foram os adaptadores de Jordano, isto é, da sua aritmética prática e teórica. Do mesmo modo, em meados do século XIV, Nicolau Oresme, que foi aluno e professor da Universidade de Paris, difundiu a aritmética e a álgebra de Jordano, especialmente as partes dedicadas às frações e à álgebra sincopada. Seu Algorismus proportionum [69] baseia-se inconfundivelmente na obra de Jordano. Esse tratado, no entanto, foi mais do que uma simples exposição: o uso de expoentes fracionários marca um avanço de Oresme em relação à sua fonte [70].
4. Jean de Murs, outro matemático francês do mesmo século, trabalhou na simplificação de Boécio e de Jordano, fontes do seu Arithmetica speculativa. A ampla utilização desse livro, um manual padrão de aritmética teórica, é atestada pelo grande número de edições ainda existentes [71].
5. De minutiis physicis, de Johannes von Gmünden, é o típico livro-texto das universidades germânicas do século XV. O autor, docente afamado na Universidade de Viena, foi o primeiro em toda a Europa a ensinar matemática como especialidade — antes do seu tempo, como se sabe, era costume que os professores se revezassem em diferentes disciplinas dentro das suas faculdades. Johann von Gmünden lecionou em Viena, tanto “algorismus de integris” como “algorismus de minutiis”, de 1412 a 1417. Ele empregava textos populares nas suas aulas: sobre aritmética integral, Sacrobosco; sobre frações, algum comentador de Jordano; e sobre frações astronômicas, seu próprio De minutiis physicis [72].
6. O Algorismus “para estudantes” de Johann von Peuerbach foi muito usado na Alemanha pela geração seguinte à de Gmünden. A popularidade desse livro deveu-se ao fato de o autor ter sucedido o mesmo Gmünden na Universidade de Viena. Como livro-texto, o tratado representa um avanço em relação a Sacrobosco, cuja obra Peuerbach almeja suplantar [73].
7. Podemos encerrar o nosso exame com Algorismus de integris, de Prosdocimo de Beldemandi, professor da disciplina na Universidade de Pádua em 1410. Esse texto, em tudo similar ao de Sacrobosco, mostra que as universidades italianas não haviam sofrido qualquer influência de Leonardo de Pisa até meados do século XV. Nesse tempo, ao que parece, elas ainda trilhavam o que se poderia chamar aritmética acadêmica [74].
Com o aumento e o avanço do conhecimento universal em aritmética — termo aplicado à álgebra —, houve uma tendência, já no final do século XV, a retirar-se a aritmética elementar dentre os pré-requisitos para o mestrado. Isso explica a importância de uma nota sobre Heidelberg, de 1443. O estudo do “algorism” e “de proportionibus” é ali posto numa classe de disciplinas eletivas, “quos non oportet scholares formaliter in scolis ratione alicuius gradus audivisse” [75]. Esses seminários, pagos, davam-se, evidentemente, como um curso extra ou auxiliar, para ajudar os alunos a “desenferrujar”. Assim, vê-se que a exigência da aritmética nas universidades aumentara sensivelmente desde o século XIV [76].
Não quisemos, com este capítulo, apenas delinear o caráter e o escopo da instrução aritmética tal como inserida entre as sete artes liberais. Quisemos, também, oferecer ao leitor uma melhor compreensão da natureza das evidências que fundamentaram as nossas visões, expressas, de partida, nos parágrafos introdutórios. Embora a variedade e o caráter alusivo dos dados disponíveis por vezes desafiem a capacidade de análise, fica demonstrada a continuidade histórica do estudo da aritmética no esquema do ensino superior medieval. Não restam dúvidas de que as escolas medievais ensinaram sempre tudo quanto se soubesse de aritmética; de que os professores de aritmética fossem geralmente os grandes matemáticos do seu tempo; de que esse magistério, porque em dia com o progresso do conhecimento, tinha, justamente, um caráter progressivo; de que jamais, nem mesmo nas infecundas gerações que encerram a Idade Média, quando a educação escolástica já sobrevivia à sua utilidade, deixou a aritmética de ser estudada no seio das faculdades medievais.
CAPÍTULO VIII
Geometria
No capítulo anterior, fizemos uma análise detalhada do caráter geral da instrução no quadrivium, especialmente no que se refere à aritmética. As mesmas conclusões, entretanto, aplicam-se à geometria. É de supor que a geometria fosse amplamente ensinada tanto no período pré-universitário como na era das universidades, e que o escopo dessa instrução caminhasse pari passu com os avanços do conhecimento na matéria.
Resta-nos indicar as proporções do conhecimento em geometria disponível a cada período e descrever brevemente as obras didáticas utilizadas. Como no caso da aritmética, distinguem-se três períodos: (1) antes de Gerberto; (2) entre os tempos de Gerberto e o século XIII; (3) entre o século XIII e o humanismo.
PRIMEIRO PERÍODO
Até o final do século X, a era de Gerberto, quase que não existia na Europa Ocidental conhecimento em geometria tal como a define o uso moderno da palavra. Com efeito, parece que o termo se empregava em sentido etimológico, e não no sentido em que os gregos o entendiam. Dada a negligência dos romanos, que apenas cuidavam da sua aplicação prática, a agrimensura, o mais provável é que nenhuma geometria digna do nome de ciência tenha sido transmitida à Idade Média [1]. Disso dão testemunho os livros-texto do tempo de Gerberto. Os mais usados eram os de Marciano Capela, Cassiodoro e Isidoro de Sevilha.
O texto de Capela, de modo geral, é um breve relatório sobre geografia, a localização de sítios históricos e fatos congêneres. Somente no final da obra encontramos algumas definições: linhas, triângulos, quadrângulos, o círculo, a pirâmide, o cone. Nada há nesse texto de geometria propriamente dita, ou mesmo de agrimensura [2]. O capítulo de Cassiodoro não se sai melhor [3], e o mesmo vale para o tratamento de Isidoro de Sevilha [4].
Conquanto esses tenham sido, ao que tudo indica, os únicos livros-texto de geometria à época de Gerberto, é bem verdade que os agrimensores do Império Romano tardio, os gromatici, legaram à Idade Média algum conhecimento sobre estimar-se a área de um triângulo, de um quadrilátero e de círculo [5].
Mas se a ciência da geometria fora negligenciada, a geograԂa e a cosmografia foram introduzidas para suprir a deficiência. O material sobre essas disciplinas era farto, e por isso elas foram muito cultivadas. A maioria dos vinte livros das Etymologiae, de Isidoro de Sevilha, diziam respeito à Naturkunde [6]. De universo, de Rábano Mauro, foi outra compilação do mesmo tipo [7]. Compêndios baseados na geografia de Plínio, entre outros, foram muito numerosos no período, e as referências ao estudo desses obras como parte do quadrivium são bastante comuns [8].
SEGUNDO PERÍODO
Passando ao tempo de Gerberto, deparamos um aumento pequeno, embora relativamente significativo, na quantidade de conhecimento em geometria. Graças à “descoberta” de uma cópia das obras boecianas sobre a geometria, e também do Codex arcerius, um bocado da geometria de Euclides e alguns fragmentos dos gromatici vieram parar nas escolas da cristandade [9]. Todavia, o novo aporte geométrico não teve lá muito valor, nem pela quantidade, nem pela qualidade. As supostas obras de Boécio, as quais Gerberto encontrara [10], consistiam em dois livros: o primeiro, todo ele baseado em Euclides, continha basicamente os enunciados dos livros I e III, inclusive definições, axiomas e scholia; algumas das proposições dos livros III e IV; e as demonstrações completas das três primeiras proposições do livro I, dadas, nas palavras do autor, “ut animus lectoris ad enodatioris intelligentiae accessum quasi quibusdam graditus perducatur”. A segunda obra trazia os cálculos das áreas de figuras geométricas. Esses, segundo Chasles, baseiam-se quase que inteiramente nas obras do gromaticus Frontino [11].
Comparando esse corpo de conhecimento ao texto de Euclides transmitido por Téon, vemos que a geometria de Boécio consiste nas definições euclidianas, na teoria dos triângulos e quadriláteros e em algumas teorias dos círculos e polígonos. Além disso, encontramos as suas próprias demonstrações dos seguintes problemas: (1) a construção de triângulo equilátero, dado o lado; (2) traçar-se, de um ponto dado, uma linha reta de determinado comprimento; e (3) segmentar uma linha menor numa linha maior.
Gerberto, aparentemente, tomou posse de todas as pecinhas de conhecimento geométrico disponíveis, tanto teóricas como práticas, e fez do conjunto delas a base mesma da sua obra [12]. O seu livro-texto não impressionou os estudiosos pela originalidade, e pode-se considerar que ele representa a totalidade da instrução em geometria oferecidas nas escolas até o final do século do século XIII. Em grande medida, esse livro e outras obras de caráter similar logo substituíram a geograԂa e a cosmografia, que, graças à escassez de verdadeira geometria, passaram por esse nome até os dias de Gerberto [13].
TERCEIRO PERÍODO
Como no caso da aritmética, os séculos XII e XIII formam um período de transição. A geometria de Euclides, como é de supor, foi uma das muitas obras matemáticas que alcançaram a Europa Ocidental por meio de traduções de fontes árabes. Naturalmente, esse incremento do conhecimento em geometria logo foi apropriado pelas universidades, que o integraram ao novo curso, ampliado.
Depois dos trabalhos de Adelardo de Bath, que traduziu Euclides do árabe em 1120, e de Geraldo de Cremona, autor de outra tradução [14], datada de 1188, pode-se dizer que a Europa Ocidental fora devidamente apresentada à geometria euclidiana. Foi então que as obras de Boécio e de Gerberto acabaram descartadas pelas universidades, e assim restou, como disciplina do currículo, o lado puramente teórico da ciência.
Temos evidências bastantes de que Euclides, tal como adaptado no De triangulis de Jordano de Nemi, por exemplo, foi ensinado durante toda a Idade Média, até o Renascimento [15]. Quase todas as listas de pré-requisitos para o mestrado incluem cinco ou seis dos seus livros — Bolonha, Praga, Viena, Leipzig, Pádua, Pisa e Colônia, invariavelmente [16]. Mesmo a Universidade de Paris, notoriamente desinteressada da matemática, requereu, na alta Idade Média, os seis livros completos de Euclides — e não apenas os três primeiros, como geralmente se supõe [17]. É certo, por conseguinte, que o candidato a universitário, mirando um diploma nas artes, tivesse o mínimo de conhecimento sobre o texto euclidiano: a teoria dos triângulos e quadriláteros; as várias aplicações da teoria de Pitágoras a um grande número de construções; os teoremas do círculo; os teoremas dos polígonos inscritos e circunscritos; as proporções geométricas; e a similaridade das figuras. Acresça-se a isso tudo a teoria dos números — contida nos livros VII, VIII, IX e X —, que era estudada como parte da aritmética teórica, e então nos veremos forçados a concluir que, como parte quadrivium, transmitia-se um tanto muito mais que considerável da geometria.
Cursos adicionais sobre a teoria das coordenadas foram ministrados nas universidades dos séculos XIV e XV [18]. O ensino avançado da geometria abriu o caminho para geometria analítica de Descartes, no século XVI [19]. Pode-se dizer o mesmo do estudo da perspectiva, que, em algumas universidades, foi tema de cursos ministrados como parte do quadrivium [20].
Que os gregos apresentados à Europa Ocidental por influência dos árabes estimularam inclusive especulações originais, isso vê-se pelas obras de Leonardo de Pisa (Practica geometria, 1220), Jordano de Nemi (De triangulis, c. 1237), ӷomas Bradwardinus (Geometria speculativa, c. 1327) e Nicolau Oresme (Tractatus de latitudine forarum), às quais ainda hoje atribui-se mérito científico [21]. É decerto verdade que essas obras, por marcantes que sejam de um afastamento em relação aos gregos, não encontraram o seu caminho até o currículo medieval [22]. Mas essa falta de assimilação, esse deixar passar novas idéias, se presta a evidência do interesse superԂcial pela instrução matemática [23].
Mesmo nos nossos dias, depois de cinco séculos de fenomenal desenvolvimento nos estudos da geometria, o valor exato da obra de Euclides como livro-texto continua a ser uma questão em aberto [24]. Com isso em mente, não parece razoável esperar que as universidades medievais — instituições de uma era que louvava a tradição — estivessem mais dispostas a se desfazer de Euclides do que hoje estão as nossas escolas.
Notas:
CAPÍTULO VII
[1] Rashdall, Universities in the Middle Ages, vol. I, p. 35. Laurie, Rise and Constitution of the Early Universities, pp. 61 e ss. Ambos partilham dessa visão tradicional.
[2] Hankel, Geschichte der Mathematik, pp. 304–59, esp. pp. 334, 358.
[3] Por exemplo: vida de São Cristóvão, por Walter de Speyer; vida de São Wolfgang, por Otlo de Saint-Emmeran; vida de Santo Adalberto, por Bruno de Querfurt. Cf. Specht, op. cit., pp. 89–149, esp. 127 e ss.
[4] Günther, Geschichte des mathematischen Unterrichts im deutschen Mittelalter, p. 14.
[5] Specht, op. cit., pp. 297–394; Wattenbach, Deutschlands Geschichtsquellen im M. A., 7ª ed., pp. 241–487, passim. V. Ziegelbauer, Historia Rei. Lit. O. S. B., I, passim.
[6] Cantor, Vorlesungen über Gcschichte der Mathematik, vol. I, pp. 771–97; Günther, op. cit., pp. 39–61, onde há referências especíԂcas à atividade matemática de cada uma das escolas e pessoas mencionadas. Para listas de obras congêneres, v. Ziegelbauer, op. cit., vol. IV, 304-411.
[7] O Codex Vaticanus 3896 contém nada menos que 26 tratados sobre aritmética em manuscritos; cf. Günther, op. cit., p. 67.
[8] V. Hankel, op. cit., p. 334.
[9] Günther, op. cit., pp. 81–121, 146–207.
[10] O descaso tradicionalmente atribuído à Idade Média com relação à matemática baseia-se numa suposição equivocada: que o desinteresse de Paris, mãe das universidades, fosse partilhado pelo período como um todo. Objete-se, no entanto, que a Universidade de Viena deu muitíssimo valor às disciplinas matemáticas. Na verdade, o que se dava na maioria das universidades medievais era justamente um meio-termo entre os extremos — Paris e Viena —, de maneira que elas ofereciam uma carga razoável de instrução matemática. Cf. Rashdall, op. cit., vol. I, pp. 440–43; Günther, op. cit., pp. 2017 e ss.
[11] Foi por meio de Boécio, tradutor e adaptador do texto, que essa forma particular de aritmética tornou-se conhecida como boeciana. Texto de Nicômaco na edição R. Hoche, Leipzig (1866). Para uma análise de Nicômaco, v. Gow, Short History of Greek Mathematics, pp. 89–95.
[12] Cf. Ball, History of Mathematics, p. 137.
[13] H. Weissenborn, Gerbert-Beiträge zur Keniniss der Mathematik des Mittelalters (Berlim, 1888), pp. 208–51. Cajori, History of Mathematics, pp. 114 e ss.
[14] Günther, op. cit., vol. I, pp. 797–809. A palavra “algoritmo” é derivada de Al-Khwarizmi, nome do primeiro e mais importante matemático árabe conhecido na Europa.
[15] Existe ainda um Computus datado de 1395. Trata-se de uma interessante coleção de textos medievais sobre aritmética, pertencente ao Sr. George Plimpton, de Nova York.
[16] Hankel, op. cit., pp. 309 e ss.
[17] Cf. Günther, op. cit., pp. 64–78.
[18] Na obra de Alcuíno sobre o cômputo, De cursu et saltu lunae ac bissexto (PL 101, cols. 979 e ss.), multiplica-se CCXXXV por IV:
CC x IV — DCC
XXX x IV — CXX
V x IV — XX
DCCCCXL
Para um exemplo similar (6144: 15), v. Pseudo-Beda, De argumentis lunae, PL 90, col. 719.
[19] Eyssenhardt (ed.), livro VII, pp. 254–96. Para um exemplo mais completo das interpretações metafísicas de Capela, v. Gow. op. cit., pp. 69. e ss.
[20] V. Morgan, Arithmetical Books, pp. 3, 4, 10, 11, 13. Referências aos livros de Boécio impressos em Paris e em Viena, o último datado de 1521. De arithmetica libri duo (PL 63, cols. 1079–1168).
[21] Cf. Günther, op. cit., pp. 82 e ss. Texto em PL 63, cols. 1079–1166 (ed. Friedlein, 1867). Para um caso divertido de interpretação dos números, v. Rábano Mauro, De institutione clericorum, PL 107, col. 400, onde se explica o sentido místico no número 40.
[22] De artibus, PL 70, cols. 1204–8.
[23] “Tolle numerum rebus omnibus et omnia pereunt. Adime saeculo computum et cuncta ignorantia caeca complectitur nee differi potest a ceteris animalibus qui calculi nesciunt rationem” (Etymol. lib. XX, livro II, cap. 4). Texto completo em PL, 82, cols. 154–63.
[24] PL 90, cols. 294–578. À parte glosas e scholia, restam cerca de 80 colunas de texto — tamanho moderado.
[25] Ibid., cols. 579–606.
[26] PL 101, cols. 679–1002.
[27] PL 107, cols. 669–727. Como essa era a parte essencial de todos os livros-texto do período, cabe fazer uma breve exposição do problema implicado no cômputo eclesiástico. O objetivo do cômputo era determinar a data do primeiro domingo seguido à primeira meia-lua depois do equinócio da primavera. Resolvia-se o problema encontrando o chamado “número áureo” e as “letras dominicais”, indicações, com o que se determinavam as posições e relações nas tábuas do ciclo metônico. Ser capaz de fazê-lo implicava conhecer: (1) o equinócio da primavera; (2) o dia da primeira lua cheia; e (3) o ajuste necessário às tábuas do ciclo metônico. Desde os tempos do abade Dionísio Exíguo (c. 525), resolveram-se os problemas astronômicos e elaboraram-se sucessivas tábuas entre o mesmo Dionísio, o abade Félix de Cyrilla, Isidoro de Sevilha e o Venerável Beda. Com o auxílio de duas regras para as operações e o uso das tábuas referidas, a data da Páscoa podia ser prontamente determinada. As regras eram: (1) para encontrar o número áureo, some-se 1 ao numeral do ano — na tábua — e divida-se a somatória por 19; o resto será o número áureo, e, não havendo resto, o número áureo é 19. (2) “Para encontrar a letra dominical, some-se ao numeral do ano o quociente da sua própria divisão por 4; some-se a isso mais 4; divida-se por 7 a somatória, e o seu resto, subtraia-o de 7. O resto determinará o lugar das letras na tábua”. A partir dessas respostas, determinava-se a data da Páscoa com facilidade. As exigências de conhecimento aritmético aos alunos que intentavam simplesmente resolver esse problema não eram lá muito grandes, mas é certo que, depois do renascimento carolíngio, todo e cada sacerdote que estudasse as artes liberais seria capaz de entender não somente os métodos, mas também os princípios por trás dessas operações, o que implica, além de bom raciocínio matemático, um tanto não desconsiderável conhecimento aritmético e a astronômico. V. Smith & Chietham, Dictionary of Christian Antiquities, entrada “Páscoa”; F. J. Brockman, “Die Christliche Oesterrechnung”, em Systeme der Chronologie, pp. 53–83. Para uma versão modernamente simplificada do cômputo da Páscoa, v. Ball, Mathematical Recreations and Problems, p. 238; Cantor, op. cit., vol. I, pp. 532 e ss; p. 780.
[28] Günther, op. cit., p. 66. Entre os professores medievais que basearam as suas obras sobre o cômputo inteiramente em Rábano Mauro, são dignos de nota, porque demonstram a amplitude da sua influência: Heilpric, monge de São Galo; Hermano Contracto, Guilherme de Hirsau, Notquero Labéu e João de Garlandia. Note-se, porém, que as suas obras, conquanto escritas antes de Gerberto, e por isso mesmo pertencentes, em princípio, ao segundo período da nossa classiԂcação, não podem ser tomadas como índices dos métodos que então se utilizavam. Quando foram compostas, o estudo do cômputo já se havia tornado simplesmente o estudo técnico para o cálculo da Páscoa; já não signiԂcava, como no tempo de Rábano Mauro, o estudo da aritmética.
[29] Assim, “Prepositiones (arithmeticae) Alcuini ad acuendos juvenis”, coleção de problemas difíceis corretamente atribuída ao famoso professor, se é de especial interesse sob certos pontos de vista, não pode, entretanto, ser tomada como indicativo de que comumente se estudassem tais problemas naquela época. O fato de Gerberto os conhecer ao final do século X é igualmente inconclusivo no que diz respeito à sua aplicação em sala de aula, haja vista que Gerberto foi o gênio matemático do seu tempo. Esses problemas pertencem à mesma classe dos jogos matemáticos que eram conhecidos de tão poucos. Texto em PL 101, col. 1143. Cf. Hankel, op. cit., p. 310, nota. Referências completas aos jogos matemáticos medievais em Günther, op. cit., p. 88, nota 1.
[30] PL 90, cols. 682–709. V. Karl Werner, Beda der Ehrwilrdige und seine Zeit (Viena, 1875), pp. 107 e ss., citado em Günther, op. cit., p. 5.
[31] Hankel, op. cit., pp. 307–10.
[32] Nagl, “Gerbert und die Rechenkunst des 10 ten Jahrhunderts”, em Sitzungsberichte der Hist. Philol. Class, der Kais. Akad. der Wiss, vol. CXVI, pp. 861–922; Friedlein, “Das Rechnen mit Columnen vor dem 10 tem Jahrhundert”, em Zeitschrijt fur Math. u. Phys., vol. IX, pp. 297–330, esp. pp. 320 e ss.
[33] Weissenborn, Gerbert-Beiträge sur Kenntniss der Maihematik des Mittelalters, pp. 209–239, esp. 233.
[34] Cantor, Vorlesungen, vol. I, pp. 797 e ss, onde resumem-se os pontos históricos da controvérsia.
[35] Richer, Hist. Lib., MGH-SS 3, pp. 618 e ss.
[36] Últimas edições críticas em Bubnov, Gerberti opera Mathematica (Berlim, 1899). Pode-se inferir a extensão da influência dessas obras pela vasto número de manuscritos ainda existentes, os quais são enumerados pelo editor (op. cit., pp. 17–111, passim).
[37] Cajori, History of Mathematics, p. 117. O seu caráter mecânico revela-se em algumas regras que Gerberto nos oferece: (1) o uso da multiplicação restringia-se o quanto possível, e jamais deveria pedir a multiplicação de um número de dois dígitos por outro; (2) tinha-se de evitar a subtração e, na medida do possível, substituí-la pela adição; (3) as operações tinham todas de proceder mecanicamente, sem espaço para juízos. V. Hankel, op. cit., pp. 319 e ss, onde há exemplos concretos de divisão por esse método. A ilustração mais complicada é dada em Friedlein, Die Zahlzeichen und das elementar Rechenen der Griechen und Römer und des Christlichen Abendlandes nom 7 ten bis 13 ten Jahrhundert, pp. 109–34.
[38] Cajori, op. cit., p. 119.
[39] Cf. Günther, op. cit., pp. 99–110. Cantor, Mathematische Beiträge zum Kulturleben der Völker, pp. 330–40.
[40] Boncompagni, Bulletino di Bibliografia e di storia delle scienze matematiche e fisiche, vol. X, pp. 643–47. Parte de uma coleção de sete textos sobre o ábaco (loc. cit., 595–647). Dois textos similares, do século XII, constam em op. cit., vol. XV, 135–62. Sobre outros abacistas do período, v. Cantor, op, cit., vol. I, pp. 831–36.
[41] Hist. lit. de la France, VII, pp. 89 e ss. Texto e crítica em Nagl, Suplemento a Zeit. für Math. u. Phys., vol. XXXIV, pp. 129–46, 161–70.
[42] Boncompagni, X, 593–607. Sobre outros abacistas do século XII, v. Cantor, op. cit., pp. 843–48; Günther, op. cit., pp. 92–106.
[43] Cantor, Beiträge, p. 338; Cajori, op. cit., p. 119.
[44] Textos, Boncompagni, Bullettino, vol. XIV, pp. 91–134; Boncompagni, Trattati di aritmetica, pp. 1–23. Fragmento da sua obra sobre multiplicação e divisão em Zeit. für. Math. u. Phys., XXV, Suplemento, pp. 132–39.
[45] Crítica da obra em Steinschneider, Zeit. für. Math., vol. XXV, suplemento, pp. 59–128.
[46] Boncompagni, Trattati d’aritmetica pp. 25–136.
[47] Cantor, op. cit., vol. I, p. 853.
[48] Texto e crítica em Cantor, Zeitsch. f. Math. u. Phys., X, pp. 1–16. Encontra-se um texto similar, composto no mesmo século e procedente de monastério próximo de Ratisbona, em Curtze (ed.), Zeitsch., XLIII, Suplemento, pp. 1–23. A existência desses manuscritos mostra que, mesmo nos dias de declínio, algumas escolas monásticas mantiveram-se atualizadas com o estado da arte em aritmética.
[49] Wüstenfeld, “Die Übersetzungen arabischer Werke in das Lateinische seit dem 11 ten J. H”. Abhand. König. Gesel. d. Wiss. zu Göttingen, vol. XXI, passim., esp. pp. 20–38; 50–96.
[50] Günther, op. cit., pp. 131–41; Cantor, Vorlesungen, vol. II, pp. 110, 216 e ss.; F. Unger, Die Methodik der practischen Arithmetik, pp. 1–33.
[51] Cantor, op. cit., vol. II, pp. 3–35.
[52] Ibid., 167, 205.
[53] Cantor, op. cit., vol. II, p. 86, localizou manuscritos de Jordano em Basiléia, Cambridge, Dresden, Erfurt, Munique, Oxford, Paris, Roma, Thorn, Veneza, Viena e em diversos pontos no Sul da Alemanha.
[54] Impresso em 1534. Por muito tempo essa obra foi erroneamente atribuída a Regiomantus. Cf. Cantor, op. cit., vol. II, pp. 49–61; Morgan, op. cit., p. 16.
[55] Impresso em 1514. Cf. Morgan, op. cit., p. 10; Cantor, loc. cit.
[56] A melhor edição é a de Treutlein, em Zeit. für Math. u. Phys. XXXVI, Suplemento, pp. 127–66.
[57] A primeira obra mencionada é um breve tratado de aritmética prática. Em cerca de 57 páginas, explica o sistema arábico de notação e os métodos de operação, entre os quais o autor inclui nove: numeratio, additio, subtractio, duplicatio, multiplicatio, mediatio, divisio, progressio e radicum extractio. O caráter representativo desse livro ajudou na sua classificação, que tantas vezes observamos em livros populares de aritmética por toda a Europa. Espaço considerável, algo em torno de dois quintos da obra, é dedicado ao tratamento de dois tipos de frações, as “minutiae philosophicae” ou “minutiae physicae”, isto é, as frações astronômicas, e as “minutiae vulgares”, ou frações comuns. No que toca às primeiras, o texto é bastante completo; há inclusive algumas páginas sobre proporção. A segunda obra é de um caráter todo outro. Os 10 primeiros livros tratam sucessivamente de propriedades numéricas, relações, números primos e perfeitos, números poligonais, sólidos, redundantes, proporções e outras classiԂcações igualmente reԂnadas. Aqui, mais uma vez, os números são tratados da mesma forma que na obra de Boécio. Todavia, como observado por Cantor (op. cit., vol. II, pp. 61 e ss), a obra tem um valor cientíԂco diferenciado, na medida em que é o primeiro livro a empregar, em vez de números concretos, letras como símbolos gerais. A terceira obra consiste em quatro livros de problemas algébricos e aritméticos, cujas resoluções envolvem, além do estudo das proporções, equações simples e quadráticas com uma ou mais variáveis.
[58] Rashdall, op. cit., vol. I, p. 437, nota 1.
[59] Rashdall, op. cit., p. 249.
[60] Cantor, op. cit., vol. II, p. 140.
[61] Mon. Uni. Prag., I, 1, pp. 56, 77 (citado Rashdall, p. 442, nota 3).
[62] Compilado por Günther, op. cit., p. 209, de Aschbach, Geschichte der Wiener Universität im ersten Jahrhundert ihres Bestehens. V. ibid., I, pp. 137–68, passim.
[63] Günther, op. cit., pp. 210–11; Cantor, op. cit., vol. II, pp. 140, 174 e ss.
[64] Günther, op. cit., p. 215. Cf. Hankel, op. cit., p. 357. Em Leipzig, podia-se “ouvir” o algorismo de qualquer bacharelando, mas o mesmo não se dava com nenhuma outra matéria. V. “Tabula pro gradu Baccalauriatus”, em Zarncke “Die Urkündlichen Quellen zur Geschichte der Univ. Leipzig”, Abhandl. der Kön. Sachs. Gesell. der Wiss. Phil. Hist. Class., vol. II, p. 862. Esse fato reforça o argumento de que a instrução no algorismus fosse apenas uma disciplina elementar.
[65] V. De Bianco, “Statua Facultatis Artium”, em Die Alte Uni. Köln, anexo II, pp. 438–43. Cf. Hankel, op. cit., p. 357; Cantor, op. cit., vol. II, p. 442.
[66] Impresso pela primeira vez em Paris, 1496. Entre outros títulos, passou também por Opusculum de praxi numerorum quod algorismum vocant (Paris, 1511) e Algorismus domini Joannes de Sacrobosco (Veneza, 1523). Cf. Morgan, op. cit., pp. 13–4; Günther, op. cit., pp. 176 e ss. Manuscrito-cópia X510 H74, pp. 211–22, Library of Columbia University, Nova York.
[67] Tal se evidencia na existência de comentários a obra de Sacrobosco, dentre os quais um da autoria de Petrus de Dacia é descrito por Cantor (op. cit., vol. II, p. 90) e Günther (op. cit., p. 167, nota 2).
[68] Impressão em Paris e Viena em 1495 e 1502, respectivamente. Cf. Cantor, vol. II, p. 113; Morgan, op. cit., p. 11. O tratado sobre proporções, resumido por Alberto da Saxônia no final do século XIV, foi usado como livro-texto na maioria das universidades. A obra de Jordano era muito difícil, por causa da sua notação simbólica. Cf. Rashdall, op. cit., vol. I, p. 442, nota 3.
[69] Edição crítica em Zeitsch. für Math. u. Phys., XIII, Suplemento, pp. 65–73. Breve resumo das obras de Oresme Curtze, Die mathematischen Schriften des Nicolas Oresmus. O grande número de manuscritos ainda existentes comprova a sua ampla utilização. Como a obra de Bradwardinus, foi certamente livro-texto nas universidades germânicas.
[70] Os três livros da obra são organizados logicamente: o primeiro trata das definições de frações em que todas as regras se apresentam em termos simbólicos; o segundo oferece exemplos concretos e problemas para a aplicação das regras; e o terceiro lida com proporções geométricas. A similaridade essencial entre essa obra o Tractatus de proportionibus de Bradwardinus revela que ambos os autores se utilizaram, e de maneira idêntica, da mesma fonte: Jordano. Cf. Cantor, op. cit., vol. II, p. 137.
[71] Günther, op. cit., p. 183, nota 1. Cf. Morgan, op. cit., pp. 3, 11.
[72] Impresso em 1515. Cf. Morgan, op. cit., p. 11. Cantor, Vorlesungen, vol. II, p. 177; Günther, pp. 232 e ss.
[73] Impresso em 1492 como Opus algorithms jucundissimum. Sobre outras edições, v. Günther, op. cit., p. 237; Morgan, op. cit., p. 11.
[74] Publicada em 1483 e 1540, em Pádua. V. Favaro, em Bulletino, Boncompagni, t. XII, p. 60.
[75] Citado em Rashdall, op. cit., vol. I, p. 440, nota 3.
[76] No começo do século XVI, era costume publicar tratados aritméticos que reunissem todos esses textos. Para uma descrição de alguns desses, v. Morgan, op. cit., pp. 10–1.
CAPÍTULO VIII
[1] Cantor, Vorlesungen, vol. I, p. 522. Mais detalhes em Cantor, Die römischen Agrimensoren und ihre Stellung in der Geschichte der Feldmesskunst. Leipzig, 1875.
[2] De nuptiis, Eyssenhardt (ed.), pp. 194–254.
[3] PL 70, 1212–16.
[4] PL 82, 161–3.
[5] Cf. Hankel, op. cit., pp. 312 e ss; Günther, op. cit., p. 14.
[6] Günther, loc. cit.
[7] De universo libri vigintiduo, PL 111, cols. 9–612 passim, esp. livros VI–X.
[8] V. Pez, Thes. 3, III, 630; Specht, 143–49.
[9] Cf. Specht, loc. cit.; Günther, op. cit., pp. 73 e ss., 115 e ss.
[10] A geometria de Boécio por anos constituiu uma Streitfrage entre os historiadores da matemática. O fato de o uso de apices, do ábaco e da multiplicação por colunas ser explicado entre o primeiro e o segundo livros no manuscrito mais antigo, que data do século XI, principiou a controvérsia em torno da origem do ábaco e da introdução do que podemos chamar notação hindu-arábica. Nessa controvérsia, os principais historiadores da matemática, Kastner, Chasles, Martin, Friedlein, Weissenborn e Cantor, entre outros, tomaram lados diferentes — alguns chegando ao ponto de negar a Boécio a autoria dos livros sobre geometria. O peso da autoridade (Cantor, Vorlesungen, vol. I, 540–51) parece confirmar que Boécio foi o autor da geometria contida nesses manuscritos. Naquilo que diz respeito a todos, porém, todos concordam: sendo ou não sendo de Boécio a autoria dos originais, é certo que esses livros-texto não foram usados nos dias de Gerberto. Texto de Boécio em PL 63, cols. 1037–64.
[11] Chasles, Geschichte der Geometrie, trad. Sohncke, p. 524. O último cotejo das fontes de Boécio consta em Weissenborn, Zeit. f. Math,u. Phys. vol. XXIV (1879), e sustenta a opinião de que Boécio lançara mão de um excerto de Euclides, e não do original.
[12] Bubnov, Gerberti opera mathematica, pp. 48–97.
[13] Cf. Günther, op. cit., pp. 115 e ss; Cantor, op. cit., I, 809–824; Gow, op. cit., pp. 205–6.
[14] Cf. Jourdain, Recherches sur les traductions latines d’Aristote, 1ª ed. (Paris: 1819), p. 100; Hankel, op. cit., p. 335. Cf. Weissenbom, in Zeit. f. Math. u. Phys. vol. XXV, suplemento, pp. 141–66. Essa obra passou pelo século como uma tradução original de Campano, e foi a primeira das edições latinas de Euclides, publicada em 1482. Referências a Geraldo em Ball, op. cit., p. 172.
[15] Sobre o texto de Jordano de Nemi, v. Curtze (ed.), ӷorn: 1887. Cf. Cantor, op. cit., I, pp. 670, 852, notas 1 e 2.
[16] Cf. Rashdall, op. cit., I, pp. 250, 442; Hankel, op. cit., pp. 356 e ss.; Günther, op. cit., pp. 199, 209 e ss., 215, 217, 281. É incorreta a aԂrmação de Compayré (Abelard and the Origin, and Early History of Universities, p. 182), de que apenas o Euclides de Boécio foi ensinado nas universidades. Os estatutos de Viena para o ano de 1389, aos quais nos referimos e citamos, dizem claramente: “cinco livros de Euclides”. É óbvio que isso não pode significar a geometria de Boécio, que tinha apenas dois livros. V. Kollar, Statua Universitatis, Vieniensis, I, p. 237, citado em Mullinger, The University of Cambridge, p. 351.
[17] Kastner, Geschichte der Mathematik, I, p. 260.
[18] Essa disciplina foi desenvolvida por Nicolau Oresme em Tractatus de latitudinibus formarum e Tractatus de uniformitate et deformitate intensionum.
[19] Cf. Tropfke, Geschichte der Elementar-Mathematik, II, pp. 407 e ss. Günther, op. cit., pp. 181, 199, 210, 211.
[20] Günther, loc. cit.
[21] Cantor, Vorlesungen, vol. II, pp. 35–40, 73–86, 113–118, 128–137. Cf. Curtze em Zeitsch. f. Math. u. Phys. XIII, suplemento pp. 79–104.
[22] Günther, op. cit., p. 162; Cajori, op. cit., p. 134.
[23] Isso é contestado por Hankel, op. cit., p. 349; e Compayré, op. cit., p. 182.
[24] Cf. Smith, Teaching of Elementary Mathematics, p. 229, nota 1 e 2; Ball, History of Mathematics, pp. 56–64