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Este é um blog sobre Matemática em geral, com ênfase no período clássico-medieval, também sobre as Artes liberais (Trivium e Quadrivium), so...

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O papel das matemáticas na educação, segundo Platão

Platão na Escola de
Atenas por Rapael Sanzio

Texto retirado de MARROU, Henri-Irénée. História da Educação na Antigüidade. 4ª Impressão, São Paulo, Editora Pedagógica Universitária Ltda. e Editora da Universidade de São Paulo, 1973. (Esta obra foi reeditada pelas Edições Kírion em 2017)

Mas, na μονσική (música) Platão introduz, de modo bastante inesperado (84), uma terceira ordem de estudos, ou, pelo menos, amplia-lhe o papel em tal medida que o edifício inteiro de educação se vê assim renovado: trata-se das matemáticas. Elas não são mais, para ele, como o eram para seus antecessores (Hípias, por exemplo), um campo reservado ao grau superior do ensino: devem encontrar lugar em todos os níveis, começando pelo mais elementar.

Sem dúvida, desde a sua criação, a escola secundária teve de incluir um estudo elementar dos números: contar um, dois, três... (85), aprender a série dos inteiros e, provavelmente, as frações duodecimais empregadas na metrologia grega, isto fazia parte do aprendizado da língua e da vida. Mas Platão vai muito mais longe: ao estudo propriamente dito dos números, que constitui, para os gregos, objeto próprio da aritmética, ele junta a λογιστική (86), isto é, a prática dos exercícios de cálculos (λογισμοί) ligados a problemas concretos, extraídos da vida e dos negócios: algo equivalente, segundo se pode conjecturar [15], aos problemas de "lucro" e de "torneiras", com que afligimos nossas crianças. Paralelamente, ele concede um lugar, na geometria, a aplicações numéricas simples: medidas de comprimento, superfície e volumes (87), e, em relação à astronomia, no mínimo de conhecimento suposto pelo uso do calendário (88).

Eis aí uma inovação de imenso alcance pedagógico. Trata-se, conforme que nos assegura Platão (89), de uma imitação das práticas egípcias (que ele pode ter efetivamente conhecido, se não diretamente ao menos por intermédio do matemático Eudóxio de Cnidos, seu discípulo, que havia feito um estágio de estudos no Egito (90)): com efeito, tais problemas figuravam no programa das escolas de escribas, como a descoberta de papiros matemáticos nos permitiu verificar [16].

Todas as crianças devem, portanto, estudar matemática, pelo menos nesse grau elementar: serão introduzidas nesse estudo desde o início (91), conservando-se em tais exercícios o atrativo de um jogo (92); terão eles, como objetivo imediato, a aplicação à vida prática, à arte militar (93), ao comércio (94), à agricultura ou à navegação (95). Não é permitido, a ninguém, ignorar este mínimo, ao menos se quer fazer-se merecedor do nome de homem (96) e não do de porco de engorda (97).

Mas, e eis aqui o essencial, o papel das matemáticas não se limita a este equipamento técnico: estes primeiros exercícios, por mais práticos que seja, possuem já uma virtude formadora mais profunda (98). Recolhendo e desenvolvendo a herança de Hípias, Platão proclama a eminente virtude educativa das matemáticas: nenhum objeto de estudo, afirma ele (99), a possui em tão alto grau; elas servem para despertar o espírito, fazem-no adquirir desembaraço, memória e vivacidade.

Todos tiram delas proveito: esses exercícios de cálculo aplicado revelam os espíritos bem dotados e desenvolvem lhes a natural disposição para entrarem em qualquer espécie de estudo; mas os espíritos de início inertes, mais lentos, por meio deles despertam, com o tempo, de sua sonolência, aguçam-se e tornaram-se mais aptos a aprenderem do que o eram por natureza (100). Observação original e profunda: à diferença de muitos de seus sucessores (antigos e modernos), para os quais somente as letras tem valor universal e as matemáticas são reservadas aos felizes que, "tendo a bossa", podem "mordê-las", Platão professa que estas ciências se dirigem a todos, porque exercitam apenas a razão, faculdade comum a todos os homens.

Ainda que neste escalão elementar -- pois somente um pequeno número de espíritos de escol poderão levar as matemáticas até o fim (101), pequeno grupo esse que será necessário selecionar com cuidado (102) --, salientemos aqui o aparecimento, na história da pedagogia, desta noção de seleção, que ficou na base do nosso regime de exames e concurso. No pensamento de Platão, são precisamente as matemáticas que servem para por à prova as "melhores naturezas (103)", os espíritos aptos a tornarem-se um dia dignos da filosofia (104): nelas revelarão sua facilidade em aprender, sua penetração, sua memória, sua capacidade de envidar um esforço constante, que não se deixa enfadar pela aridez destes pesados  estudos (105). Ao mesmo tempo que selecionam os futuros trabalhos; assim, o elemento essencial de sua "educação preparatória", (προπαιδεία) é constituído pelas matemáticas (106).

Daí o programa e o espírito bem definido, segundo o qual seu estudo deve ser conduzido: deve-se lembrar que o livro VII da República, consagrado a estas ciências, se abre com o mito da Caverna (107); as matemáticas são o principal instrumento da "conversão" da alma, desta correção interior pela qual ela desperta à plena luz e se torna capaz de contemplar não mais "as sombras dos objetos reais", mas "a própria realidade (108)".

Para obter-se tal benefício, urge orientar o estudo de maneira que elas levem o espírito a libertar-se do sensível, a conceber e a pensar o Inteligível, única realidade verdadeira, única verdade absoluta. Desde cedo, esta orientação filosófica deve penetrar no ensino: Platão (109) não quer que os problemas elementares de cálculo se atenham às aplicações práticas (venda, compra...), mas -- como, a crer nele, os jogos educativos dos egípcios (110) -- considera que se devem encaminhar para um grau superior de abstração: noções de par e ímpar, de proporcionalidade. A "logística" deve ser apenas uma introdução à "aritmética" propriamente dita, que é a ciência teórica do número, e esta, por sua vez, deve culminar numa tomada de consciência da realidade inteligível. Desta pedagogia, dá-nos Platão um notável exemplo: parte ela da consideração de dados elementares (os três primeiros números) e daí se eleva a considerações sobre as noções abstratas de unidade e de grandeza, aptas a "facilitar à alma a passagem do mundo do devir ao da verdade e da essência (111)".

O programa será, como o era em Hípias, aquele mesmo, já tradicional, do Quadrivium pitagórico: aritmética (112), geometria (113), astronomia (114), acústica (115); preocupado em incorporar ao ensino os resultados das mais recentes conquistas da ciência, Platão completa-o simplesmente, juntando, à geometria plana, a geometria no espaço, que acabava de ser criada pelo grande matemático Teeteto e para o progresso da qual a Academia, na pessoa de Eudóxio, contribuirá ativamente. Todavia, importa-lhe bem mais depurar a concepção que cumpre fazer destas ciências: elas devem eliminar todo resíduo de experiência sensível, tornarem-se puramente racionais, direi mesmo apriorísticas.

Seja, por exemplo, o caso da astronomia [17]: deve ser ela uma ciência matemática, não uma ciência de observação. Para Platão, o céu estrelado, no esplendor e na regularidade de seus movimentos ordenados, é ainda, apenas, uma imagem sensível: ele é, para o verdadeiro astrônomo, o mesmo que uma figura geométrica, fosse este desenhado com o maior rigor aparente pelo artista mais hábil, é para o verdadeiro geômetra: é-lhe totalmente inútil, pois ele opera abstratamente, sobre a figura inteligível (116). A astronomia platônica é uma combinação de movimentos circulares e uniformes, que pretende não apenas, como a interpreta de maneira ainda demasiado empírica Simplício (117), "salvar as aparências" (isto é, dar contas dos fenômenos observados), mas, na verdade, reencontrar os próprios cálculos de que se serviu o Demiurgo para organizar o mundo.

Transcendendo as preocupações utilitárias, Platão confia às matemáticas um papel antes de tudo propedêutico: elas deve, não mobiliar a memória com conhecimento úteis, mas formar uma "teste bien faicte", ou seja, um espírito capaz de receber a verdade inteligível, no sentido em que a geometria fala de um arco "capaz" de um ângulo dado. Não se poderia salientar demasiadamente o imenso alcance histórico desta doutrina, que marca uma data capital na história da pedagogia: Platão introduz aqui nada menos que a noção ideal e o programa específico daquilo que propriamente se deve chamar de ensino secundário.

Ele se opõe, bem conscientemente, ao otimismo ingênuo, ou interessado, dos seus predecessores, os Sofistas, os quais, seguros de si, franqueavam o acesso de mais alta cultura "ao primeiro que chega" (ό τυχών) (118), sem levar em conta suas aptidões nem sua formação preliminar: o insucesso de tais tentativas, insucesso que, como o deplora Platão, acabou por refletir-se na filosofia (119), prova suficientemente seu erro. É necessário, ao mesmo tempo, experimentar e preparar os candidatos a filósofos: Platão é o primeiro a estabelecer e justificar esta exigência, que se imporá doravante ao educador. O que permanecerá de peculiar a seu próprio plano de estudos é o lugar eminente que nele cabe às matemáticas; como vimos, ele não negligencia a contribuição propedêutica da educação literária, artística e física: elas tem seu papel, imprimindo à personalidade, no seu todo, certa harmonia, certa eurritmia; não obstante, esse papel nada tem de comparável, em fecundidade, ao das ciências exatas, primeiro gênero acessível de conhecimento verdadeiro, iniciação direta à alta cultura filosófica, a qual se estriba, como o sabemos, na busca da Verdade racional.

Referências:

(84) PLATÃO, A República, VII, 721c s.; As Leis, V, 747b; VII, 809c.
(85) A República, VII, 522c.
(86) Idem, 522e; 525a; As Leis, VII, 809c; 817e.
(87) As Leis, 818e; 819cd.
(88) Idem, 809cd.
(89) Idem, VII, 819bc.
(90) DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas dos Filósofos, VIII, 87.
(91) PLATÃO, A República, VII, 536d.
(92) Idem, 537a; cf. As Leis, VII, 819b.
(93) A República, VII, 522ce; 525b; 526d.
(94) Cf. Idem, 525c.
(95) Idem, 527d.
(96) Idem, 522e.
(97) As Leis, VII, 819d.
(98) Idem, 818c.
(99) Idem, V, 747b.
(100) A República, VII, 526b.
(101) As Leis, VII, 818a.
(102) A República, VII, 503e-504a.
(103) Idem, 526c.
(104) Idem, 503e-504a.
(105) Idem, 535cd.
(106) Idem, 536d.
(107) Idem, 514a s.
(108) Idem, 521c; 532bc.
(109) Idem, 525cd.
(110) As Leis, VII, 181bc.
(111) A República, VII, 525c.
(112) Idem, 521c s.
(113) Idem, 526c s.
(114) Idem, 527c s.
(115) Idem, 530d.
(116) Idem. 529de.
(117) SIMPLÍCIO, Comentário ao "Do Céu" de Aristóteles, II, 12, 488; 493
(118) PLATÃO, A República, VII, 539d.
(119) Idem, 535c; 536b.

Notas complementares:

[15] Os problemas de aritmética elementar: Platão apenas os assinala num palavra: το λογισóν (Rsp., VII, 522c.), λογιστική (525a), λογισμοί (Leg., VII, 809 c, 817 e). De maneira um pouco mais precisa, nas Leg., VII, 819 c, descreve ele os jogos aritméticos que afirma em uso nas escolas egípcias e que dirigindo-se no sentido da aritmética pura, exigem as "aplicações das operações aritméticas indispensáveis", τάς τῶν άναγκαíων άριθμῶν χρήσεις.

Nas Leg., VII, 809 c, associa ele o estudo do cálculo ao conjunto dos conhecimentos cujas aquisição é necessária com vistas à guerra, aos negócios domésticos, à administração da cidade. Este caráter prático e concreto aparece mais nitidamente e contrario nas passagens em que Platão, definindo a orientação abstrata, científica e desinteressada, que convém dar à sua propedêutica matemática, a opõe ao uso exotérico geralmente aceito (em que ele próprio admite no primeiro grau, elementar, para a massa: Leg., VII, 818 a): entre os aprendizes-filósofos, a aritmética pura não servirá, como entre os negociantes e comerciantes, para cálculo de venda e compra (Rsp., VII, 525 c), não introduzirá em seus raciocínios, números representativos dos objetos visíveis ou materiais (525 e), eliminará o que de iliberal e cúpido nestas aplicações (Leg., VII, 147 b).

[16] Papiros matemáticos egípcios: A. REY, La Science dans l'antiquité (I), la Science orientale avant les Grecs, Paris, 1930, ps. 201, 287.

[17] Concepção racional, geométrica, da astronomia platônica: cf. com as páginas clássicas de P. DUHEM, Le Système du monde, Histoire des doctrines cosmologiques de Platon à Copernic, t. I, Paris, 1913, ps. 94-95; t. II, ps. 59 segs. (bibliografia anterior, p. 67, n. 1), A. RIVAUD, Le Système astronomique de Platon, Revue d'Histoire de la Philosophie, II (1928), ps. 1-26. Pode-se aproximar-lhe, utilmente, a concepção, não menos apriorística, da acústica: A. RIVAUD, Platon et la Musique, mesma Revue, III (1929), ps. 1-30.


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