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S. Agostinho e os Matemáticos

Santo Agostinho disputando com os hereges, por Vergós Family

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Tempo de leitura: 27 minutos.

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Santo Agostinho e os matemáticos: uma polêmica sobre os astros [1], por Joel Gracioso [2]

Resumo: Durante um período da sua vida, Agostinho envolveu-se com a ciência ou a arte de estudar a influência exercida pelos astros na vida do homem, da sociedade e da própria natureza: a assim denominada astrologia.

No presente artigo pretendemos analisar as razões e os pressupostos que levaram Santo Agostinho a ser um grande crítico dessas práticas.

Palavras-chave: Agostinho, astrologia, matemáticos, providência, destino.

ABSTRACT: During a certain period of his life, St. Augustine get involved with that science, or art, which study the influence of the stars over human life, society, and even nature: i.e., the so-called astrology.

In this paper, we seek to consider the reasons and motives which made the saint bishop of Hippo to become a severe critic of these practices.

KEY-WORDS: Augustine, Astrology, Mathematicians, Providence, Destiny.


Durante um período da sua vida [3], Agostinho envolveu-se com a ciência ou a arte de estudar a influência exercida pelos astros na vida do homem, da sociedade e da própria natureza: a assim denominada astrologia.

Na sua época, os astrólogos ou matemáticos eram vistos como sábios cuja sabedoria estava fundamentada em tratados científicos de origem grega [4]. Transmitiam, assim, com essa imagem de seriedade, certa confiança às pessoas. Eram denominados, também, “homens do horóscopo”, pois explicitavam as influências dos astros sobre o dia do nascimento das pessoas [5].

Segundo Hamman:

[...] é incontestável a influência do zodíaco sobre as antigas gerações. Um epitáfio cristão de uma criança precisa que ela nasceu na quarta hora da noite, no dia de Saturno, sendo, portanto do signo de Capricórnio, o que lhe pressagiava uma morte prematura. Havia calendários, também chamados “listas egípcias”, que eram ao mesmo tempo científicos e religiosos. O homem de negócio ou da terra consultava-os como se fossem um Evangelho, até mesmo para saber se podia se aproximar de sua mulher [6].

Para os astrólogos, a precisão dos ciclos naturais e a sua regularidade indicavam uma presença divina na esfera celeste, enquanto os deuses estavam encarnados em planetas, constelações e astros fixos. Esses, os astros, eram seres pessoais dotados de emoções e atitudes, amando-se ou odiando-se, unindo-se ou em conflito, acarretando conseqüências para a vida humana e todo o cosmos. O sol e a lua tinham uma função predominante, chamando a atenção principalmente pelos eclipses [7].

Em Confissões VII, 6, 8 Agostinho analisa a problemática da astrologia, expondo como resistia obstinadamente aos argumentos de Vindiciano e Nebrídio que procuravam apontar as incongruências dessa técnica de adivinhação. Tentavam mostrar que não há a arte de prever o futuro, mas apenas a obra do acaso, esclarecendo que os astrólogos acertam algumas previsões não devido a uma suposta técnica que conseguiria analisar a posição dos astros e sua influência e determinação sobre os atos humanos, mas apenas por coincidência, por não se calarem. Mas Agostinho ainda não se havia convencido desta tese.

Contudo, a partir de um encontro com um amigo, chamado Firmino [8], que tinha o costume de consultar os astros, o bispo de Hipona conhece um relato que o ajudará a superar as dúvidas sobre a incoerência ou não da astrologia.

Firmino expõe a Agostinho que seu pai e um amigo interessavam-se muito pela técnica dos astrólogos, procurando sempre conhecer mais sobre esse pensamento. A tal ponto chegava o interesse e a aceitação, que observavam o momento do nascimento dos animais domésticos e o relacionavam com a posição dos astros, com o intuito de recolher fatos e argumentos a favor desse pensamento.

Quando a mãe de Firmino ficou grávida dele, uma empregada daquele amigo de seu pai também engravidou. Ora, o pai e o amigo procuraram calcular e registrar tudo, os dias, as horas e tudo o mais, até a ocorrência dos partos, com o objetivo de comprovar a influência dos astros na vida dos homens. Dando a luz as duas ao mesmo tempo, e procurando serem exatos o máximo possível, não perceberam a menor diferença na posição dos astros nem a menor diferença no tempo sendo, portanto, obrigados a compor o mesmo horóscopo para os dois bebês.

Ora, sendo as duas crianças do mesmo horóscopo, deveriam possuir o mesmo futuro. Porém, não foi isso que aconteceu. Firmino, proveniente de família rica, continuou rico e famoso. E o outro, originário de família pobre e escravo, continuou tendo de servir seus patrões.

A partir dessa constatação, Agostinho afasta-se da astrologia, entendendo que, para o horóscopo de alguém ser eficiente, não basta levar em consideração apenas a posição dos astros na hora do nascimento, mas é preciso também relevar fatores familiares, sociais e educacionais, pois, caso contrário, não se acerta o prognóstico. Contudo, a inclusão desses novos elementos não se coaduna com o pensamento dos astrólogos. Logo, a arte de prever o futuro defendida por eles e a racionalidade do mundo apresentada pela sua doutrina, segundo Agostinho, não se sustentam, mas mostram apenas que quando acertam, o fazem por acaso e não por eficiência e coerência de sua técnica e pensamento.

Entretanto, segundo Agostinho, poderiam eles objetar que esse relato baseia-se em fatos imprecisos ou que Firmino teria sido levado ao erro pelo pai. Como inviabilizar tais objeções? O autor das Confissões recorre ao argumento dos gêmeos [9], pois esses ao nascerem, devido ao breve intervalo de tempo entre um e outro, não permitem que se observem alguns detalhes, como os segundos, que seriam importantes para a composição dos horóscopos e previsões. Sendo assim, fica faltando uma certa exatidão aos vaticínios.

Agostinho cita como exemplo o caso bíblico de Esaú e Jacó, que deveriam possuir os mesmos horóscopos, pois apresentavam os mesmos sinais astrais e, por conseguinte, deveriam ter o mesmo futuro. Todavia, não foi isso que ocorreu. Assim, segundo o hiponense, ou o astrólogo efetuava previsões falsas ou, no caso de estar prevendo corretamente, deveria ter prognosticado fins diferentes, apesar dos dados astrológicos serem iguais. Dessa maneira, mais uma vez, Agostinho conclui: é pelo acaso e não pela sua arte que, às vezes, os astrólogos acertam e dizem a verdade. De fato, não são os astros que regem a realidade, mas a providência de Deus, que é imperscrutável ao homem.

Entretanto, qual o lugar e importância, no interior do pensamento agostiniano, da crítica efetiva à astrologia? Se a técnica e o conhecimento dos astrólogos fascinavam tanto Agostinho na sua juventude, por que ele abandonou essa ciência ou arte e transformou-se num crítico feroz?

Na questão 45 do Livro sobre oitenta e três questões diversas (De diversis quaestionibus octoginta tribus), Agostinho inicia o texto apresentando a quem se referiam os antigos quando usavam o termo matemáticos: homens “que investigavam no movimento do céu e dos astros os números dos tempos” [10].

Por essa definição, notamos que os astrólogos eram estudiosos que valorizavam a ciência da terra e do céu, dos números e da temporalidade, procurando obter o conhecimento sobre o cosmos e o seu funcionamento a partir da análise do movimento celeste e da observação sensível. Essa atividade efetuada por eles, capacitava-os a conhecer os segredos da criação, a ordem presente no mundo, a beleza do cosmos e sua regularidade etc.

Ora, a primeira crítica direcionada aos matemáticos por Agostinho refere-se justamente ao conhecimento obtido por eles e sua utilidade. Conhecendo tão bem a criação, não quiseram reconhecer o criador como a felicidade almejada e, além disso, não tiveram humildade suficiente para reconhecer o verdadeiro caminho que é a palavra divina, o verbo de Deus, pelo qual tudo foi criado, pois, movidos pelo orgulho, buscavam no exterior e não no interior, no exame de si mesmo, a ciência necessária para obter a beatitude. Para o hiponense, mais vale uma alma que tem consciência de sua fraqueza e miséria do que aquela que investiga afoita o curso dos astros, pois o conhecimento de si lhe possibilitará a aquisição da humildade e, para, assim descobrir o verdadeiro caminho para o bem supremo [11].

Dessa maneira, o saber obtido por eles torna-se algo estéril e inútil, pois, segundo Agostinho, no processo de retorno a Deus, que vai do visível ao invisível, a alma começa contemplando a beleza das coisas visíveis, reconhece a sua própria superioridade em comparação com essas coisas, mas também admite, devido à sua mutabilidade, que há algo acima dela mesma, a verdade imutável, e fixando-se nela, torna-se feliz [12], porque encontra o criador e senhor de todas as coisas e o verdadeiro caminho da felicidade que é o seu Verbo.

Vemos, assim que, para o bispo de Hipona, o estudo e a análise da criação só são válidos na medida em que a contemplação da beleza das criaturas e o conhecimento delas nos admoestam, nos estimulam para o plano da interioridade e da humildade, pois é aí que o homem encontra o que ele tanto busca. O homem feliz é aquele que possui a Deus e não aquele que possui conhecimentos sobre os astros e o firmamento, mas não está unido ao seu criador.

Num segundo momento, Agostinho apresenta e analisa uma outra figura dos matemáticos, que é mais própria de seu tempo, homens que “querem fazer nossas ações dependerem dos corpos celestes, nos vender às estrelas e receber de nós o preço desta venda” [13].

De acordo com essa concepção, o pensamento e a técnica dos matemáticos parecem anular o livre-arbítrio humano, pois as atitudes e as escolhas do homem estariam submetidas aos astros. Agostinho salienta que o problema está precisamente na valorização excessiva das constelações, do firmamento. Primeiramente, porque os astrólogos, por meio do cálculo e da observação do movimento celeste, distinguem os diversos tipos de constelações, a estrutura do zodíaco (os graus, a divisão das horas em minutos etc.), porém, apesar de toda essa técnica, falham exatamente num ponto fundamental para eles: achar nos astros a mínima divisão do tempo [14], pois somente assim poderiam calcular com exatidão e enunciar a influência das constelações no momento da geração e, por conseguinte, em toda a vida da pessoa.

Através do exemplo dos gêmeos, que já analisamos anteriormente, o hiponense questiona a legitimidade da tese dos matemáticos e a maneira como eles entendem a ordem e a racionalidade do cosmos. Se foram concebidos sob a mesma constelação, qual a causa de tantas diferenças entre eles nas atitudes, inclinações e fatos da vida? Não possuem o mesmo horóscopo e não devem possuir as mesmas previsões e realizações? [15] Contudo, não é isso que se observa.

Para Agostinho, o caso dos gêmeos coloca em dúvida a eficácia da técnica dominada pelos astrólogos, pois exige deles justamente o que não podem oferecer, a divisão dos minutos. Logo, podem possuir uma técnica que possibilita calcular o curso do tempo e prever o retorno regular das constelações, mas não de adivinhar tudo o que acontece com alguém, nem de prever ou determinar as escolhas boas ou más que serão feitas [16].

Todavia, muitas vezes, como lembra Agostinho, as previsões feitas por intermédio dos astrólogos se realizam. Como entender tal fato? O problema é que as pessoas esquecem rapidamente as previsões não realizadas e aquelas que se concretizam, acertam não por causa de um cálculo exato e fatal, mas sim por puro acaso. Dito de outro modo, da mesma forma que um poema contém versos que falam do futuro e por acaso alguns se realizam, assim também uma predição pronuncia algo sobre o futuro de alguém e por acaso se realiza. Em outros termos, parece que para Agostinho, tanto num caso como no outro, descobriu-se antecipadamente os fatos, não graças a um cálculo preciso, mas sim por puro acaso [17].

Entretanto, descobrir algo por acaso seria uma prova de que a realidade, o cosmos, a vida humana é governada por ele? Para responder a essa questão, é necessário, anteriormente, explicitar o que é o acaso. Na Cidade de Deus, Agostinho define o acaso como o que não tem causa ou, se a tem, não procede de alguma ordem racional [18].

Nota-se que, para ele, o acaso nega e impossibilita a existência de uma racionalidade no mundo e na vida, estando mais relacionado ao fortuito e ao caos do que ao cosmos, isto é, com a desordem do que com a ordem.

Isso, assim nos parece, constitui um problema para o autor das Confissões, pois o que ele tanto almejava era exatamente conhecer essa racionalidade ou a lógica do mundo, não sendo sem razão sua atração pela astrologia. Se a abandonou, foi porque viu incongruências na racionalidade do mundo defendida por ela, que não conseguia, por exemplo, dar uma razão para a existência do mal no mundo, assim como o dualismo gnóstico.

Agostinho não concorda que o fim das coisas e a vida do próprio homem sejam uma pura obra do acaso, isto é, que a realidade seja regida por algo irracional ou desordenado, e, por isso, continua a procurar uma explicação racional mais satisfatória sobre o mundo, sua maneira de ser.

Mas então o que governa o mundo e todas as coisas? Segundo Agostinho, a providência divina, que não deixa nada escapar de suas leis, desde as pedras e animais até o homem e os anjos [19].

Ora, em que consiste a providência divina?

De acordo com A. Rascol, Agostinho não formulou uma definição da providência, mas a nomeava constantemente, oferecendo assim, elementos que nos ajudam a compreender o que ele entendia por esse termo. Podemos, dessa maneira, defini-la como “o atributo divino pelo qual a Trindade dirige a ação que exerce sobre toda a criação e que tem por fim a constituição definitiva da Cidade de Deus” [20].

Nessa noção encontramos, primeiramente, a idéia de que a providência é um predicado divino, e como em Deus seus predicados não são distintos de sua substância, pois o ser dele é simples, então a providência é Deus mesmo agindo no mundo e não algo distinto dele do qual ele participasse ou apenas fizesse uso.

Em segundo lugar, vemos que Deus não é apenas transcendente, mas também presente, pois relaciona-se com sua criação e a influencia em todos os sentidos, por exemplo, na hierarquia que há no mundo, nos acontecimentos pessoais e sociais etc., por meio de uma ação direcionada, isto é, ordenada, coordenadora, harmoniosa, e não caótica.

Em terceiro lugar, notamos que a ação de Deus é teleológica e não aleatória e casual, ou seja, possui uma finalidade que é a edificação da Cidade de Deus.

Por fim, percebemos que, para Agostinho, o mundo contém uma racionalidade, cuja origem está numa ação divina livre e direcionada, que é constante. Assim, quando contemplamos o cosmos, principalmente no seu aspecto global, vemos a sua beleza e harmonia; tudo está disposto com medida, forma e ordem, que organizam a estrutura do mundo e das coisas. Algo que não possui medida, forma e ordem, é um puro nada [21].

Entretanto, a providência também não anularia o livre-arbítrio da vontade no homem como o fatalismo dos astrólogos? Para responder a essa questão, voltemos um pouco sobre ao pensamento dos matemáticos e o problema do fatalismo.

Segundo Agostinho, a fatalidade é, na opinião de alguns, aquilo que ocorre por necessidade de uma determinada ordem, prescindindo da vontade de Deus e dos homens [22]. Ora, se essa definição é verdadeira, a anulação da vontade e do seu livre-arbítrio (não só do homem, mas também a de Deus) é apenas conseqüência de um pensamento coerente, pois se há uma instância reguladora, direcionadora e necessária da realidade dentro da própria criação, totalmente independente, então não há como afirmá-la.

Apesar disso, algumas pessoas relacionam ou atribuem a ação providencial à fatalidade, pois entendem que essa nada mais é do que a própria vontade de Deus e seu poder [23]. De acordo com o bispo de Hipona, esse é um procedimento arriscado, pois os homens geralmente entendem por esse termo, em continuidade com o exposto anteriormente, a influência determinante dos astros sobre a geração e o nascimento das pessoas, devendo-se, portanto, efetuar-se uma mudança de vocabulário [24].

Isto posto, vemos que há três maneiras de se considerar a fatalidade. Em primeiro lugar, como aquilo que acontece inevitavelmente, devido a determinada ordem, independentemente da vontade divina ou humana; em segundo lugar, como algo que se confunde com a providência, devendo-se corrigir os termos utilizados; e em terceiro, semelhante ao primeiro, como a influência determinante que a posição das constelações exerce sobre a vida humana, mas com a diferença que, no primeiro caso, tudo ocorre não dependendo em nada da vontade divina ou humana, enquanto no terceiro os astros podem ou não depender da vontade de Deus.

Agostinho entende [25], como já vimos, que a segunda maneira de abordar a questão deve ser corrigida apenas nos seus termos, pois a providência constitui as coisas, mas não de uma maneira fatal e, por isso, detém-se mais em analisar as outras formas, principalmente a terceira.

Segundo ele, dentre os matemáticos, há aqueles que compreendem que os astros interferem nas atitudes e escolhas dos homens, no que acontece de bom e de mal etc., independente da vontade de Deus. Esses não devem nem ser ouvidos, pois a atitude deles leva simplesmente à supressão de qualquer tipo de culto a uma divindade distinta das constelações. Contudo, aqueles que estabelecem e reconhecem uma dependência da posição dos astros para com a vontade de Deus também são condenáveis, e por duas razões.

A primeira delas é o fato de entenderem que é na dimensão das constelações que se estabelecem os crimes que vão ocorrer necessariamente, isto é, a causa dos crimes estaria nos astros pois esses determinam tudo, logo, o homem não pode ser responsabilizado pelos seus crimes. Esse pensamento inviabiliza qualquer tipo de julgamento sobre os atos humanos que poderia ser feito por Deus pois, se os astros determinam tudo, como alguém pode ser recompensado ou punido por um bem ou um mal que não escolheu? [26] Além disso, a culpa cairia sobre Deus, pois ele é o criador dos astros e, por conseguinte, eles só poderiam receber esse poder dele.

A segundo razão está no fato de se dizer que as constelações não fazem sua vontade, mas cumprem aquilo que Deus determinou o que significa afirmar que Deus governa e estabelece tudo por meio dos astros, sendo esses apenas um meio de a vontade e a providência divina se manifestarem. A princípio, isso não parece ser um problema, mas há uma dificuldade, que se encontra na continuação da idéia de fatalidade e negação da vontade e do seu livre-arbítrio. Assim, segundo o bispo de Hipona, se não foi digno pensar e aceitar tal pensamento referente às constelações o será para Deus? [27] Ademais, as conseqüências são as mesmas.

Entretanto, a questão da fatalidade ainda não está encerrada, pois há uma quarta concepção que a relaciona não com os astros, mas com a sucessão de causas que remontam a Deus. Dessa maneira, ela é vista como a conexão e série de todas as causas que determinam o nosso fazer, dependendo da vontade e do poder de Deus [28].

Ora, de acordo com essa definição, quando observamos o mundo, encontramos, aí, uma ordem e um encadeamento de causas que remontam, em última instância, ao criador, o grande ordenador. Dessa maneira, pelo fato de tudo ter uma causa e as causas, num certo sentido, começarem em Deus, a fatalidade, no dizer de alguns, será a própria vontade de Deus, seu domínio universal, pois tudo ocorre conforme o estabelecido por sua vontade. Ora, isso significa colocar Deus como a causa de todo tipo de malefício presente no mundo.

Assim, finalizando essa exposição da análise agostiniana das diferentes concepções filosóficas e cosmológicas que se fundamentavam numa doutrina do fatalismo, percebe-se que o bispo de Hipona não identifica, em nenhuma delas, qualquer relação com a Providência. A Providência, como se disse acima, não nega a vontade e seu livre-arbítrio, mas dispõe tudo de forma ordenada, a fim de que o desígnio de Deus se realize.

Dessa maneira, podemos nos perguntar: será que a vontade humana existe mesmo estando sujeita a alguma necessidade?

A resposta de Agostinho seria sim [29], pois se entendermos por necessidade aquilo que não se encontra em nosso poder, mas que ocorre ainda assim, isso não anula a vontade nem nega a sua existência, porque, quando quero algo, é preciso que haja a vontade e, quando não quero também é preciso, pois, caso contrário, não quereria, ou seja, o próprio ato de não querer seria uma evidência da sua existência.

O que é preciso, conforme o autor das Confissões é distinguir entre a capacidade de querer (vontade) e a capacidade de realizar o que se quer (poder). Nem sempre a vontade “pode” e, assim, fica sujeita à dependência para com algo maior que ela, mas nem por isso deixa de ser o que é [30].

Pode-se concluir, portanto, que, para Agostinho, a Providência Divina não possui nenhuma relação com as concepções de fatalismo apresentadas. Ela nada mais é do que o próprio Deus agindo, para, por meio dessa ação, governar ordenadamente o cosmos, imprimindo uma racionalidade e uma dinâmica à realidade que não exclui a vontade humana nem a presença do mal no mundo. Diferentemente pensavam os matemáticos, que, conforme Agostinho, queriam, com suas práticas, apenas justificar o pecado [31], e inocentar o homem [32].


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGOSTINHO, A. A Cidade de Deus (contra os pagãos), Parte I. Trad. br. de Oscar Paes Leme. Petrópolis: Vozes, 1990.

______________. A Cidade de Deus (contra os pagãos), Parte II. Trad. br. de Oscar Paes Leme. Petrópolis: Vozes, 1990.

______________. A Trindade. Trad. Portuguesa de Arnaldo do Espírito Santo, Domingos Lucas Dias, João Beato, e Maria Cristina de Castro-Maia de Souza Pimentel. Coimbra: Paulinas, 2007.

______________. Comentário ao Salmos. Trad. br. Monjas beneditinas. São Paulo: Paulus, 1997.Vols. 1, 2 e 3.

______________. Confissões. Trad. Portuguesa de Arnaldo do Espírito Santo, Domingos Lucas Dias, João Beato, e Maria Cristina de Castro-Maia de Souza Pimentel. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004.

______________. De la natureza del bien contra los Maniqueos. In: Obras completas San Agustín. Traducción de Mateo Lanseros. Madrid: BAC, 1951, vol. 3.

_____________. Les Confessions. Trad. de E. Tréhorel e G. Bouissou. Bibliotèque Augustinienne, Paris: Desclée, 1992, vols. 13 e 14.

______________. Les quatre-vingt-trois questions diverses. Trad. de Péronne, Écalle, Vincent, Charpentier e Barreau. Paris: Librairie de Louis Vivès, 1873.

Bruning, B. De l’astrologie à la grâce. In Collectanea Augustiniana, Mélanges T.J. van Bavel. Leuven: Institut Historique Augustinien, Augustiniana 40-41, pp. 575-643.

Hamman, A. Santo Agostinho e seu tempo. São Paulo: Paulinas, 1989.

Rascol, A. La providence selon Saint Augustin. In: Dict. de Théologie Catolique. Paris: Letouzey et Ané, 1936, v. XIII 1, cols. 961- 984.


Notas:

[1] Texto publicado na Revista Omnia Lumina, v. 02, p. 41-54, 2011.

[2] Professor da Faculdade de São Bento de São Paulo.

[3] Cf. Confissões, IV , 3, 4.

[4] Cf. Hamman, A. Santo Agostinho e seu tempo, Paulinas, 1989, p. 148.

[5] Cf. Idem, Ibidem, pp. 148 - 149.

[6] Cf. Idem, Ibidem.

[7[ Cf. Bruning, B. De l’astrologie à la grace, pp. 582 e 583.

[8] Cf. Confissões. VII , 6, 8 e 9.

[9] Ibidem, VII , 6, 10.

[10] De diversis quaestionibus 83, q. 45, 1: qui temporum numeros motu coeli ac siderum pervestigarunt". Texto segundo a edição dos beneditinos da Congregação de S. Mauro, Paris, 1873. Tradução francesa de Péronne, Vincent ,Écalle, Charpentier e Barreau, Librarie de Louis Vivés, T. XXI, p. 22.

[11] Cf. Trindade IV, Prólogo.

[12] Cf De diversis quaestionibus 83 , q. 45, 2

[13] Ibidem, q. 45, 2 : "vendere stellis, volentes actus nostros corporibus coelestibus subdere, et nos ipsumque pretium, quo vendimur, a nobis accipere." p. 23.

[14] Ibidem. Conferir também Conf. VII, 6, 10.

[15] Cf. Ibidem.

[16] Cf. Bruning, ob. cit. p.596.

[17] Cf. De div. Quaest. 83, q. 45, 2.

[18] A Cidade de Deus, V, I. Tradução de Oscar Paes Leme, Vozes, 1990, p. 190

[19] Cf. Ibidem, V, XI.

[20] Rascol, A. La providence selon Saint Augustin. In: Dict. de Théol. Cathol., c. 962.

[21] Cf. De natura boni, III.

[22] Cf. Cid. de Deus V, I.

[23] Cf. Ibidem.

[24] Cf. Ibidem.

[25] Cf. Ibidem.

[26] Cf. Ibidem.

[27] Cf. Ibidem.

[28] Cf. Ibidem, V , 8.

[29] Cf. Ibidem, V, 10, 1.

[30] Cf. Ibidem.

[31] Cf. Comentários aos Salmos, 140, 9. Paulus, pp. 923- 925.

[32] Cf. Conf. IV, 3, 4.

***

Leia mais em Santo Agostinho e a Educação

Leia mais em O Cristianismo e a Educação Clássica - parte 1



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Sobre Euclides, sua Geometria e seus Elementos - parte 1

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Tempo de leitura: 55 minutos.

Apresentamos o Prefácio e parte da Introdução do livro Os Elementos de Euclides, traduzido por Irineu Bicudo, Editora Unesp, 2009.

A parte II pode ser encontrada aqui (em breve) e a parte III aqui (em breve).


Prefácio


É-me forte a impressão de, desde sempre, eu ter querido estudar o grego clássico. Lembro com que sentimento de encanto folheava o caderno que um vizinho me emprestara, contendo as lições de um quase nada daquela língua que ele aprendera quando seminarista. Cursava eu, então, a antiga escola primária. Essa vontade cresceu com as aulas de latim nas quatro séries ginasiais. Em várias épocas, cheguei a comprar gramáticas e livros com textos em grego. Mas a oportunidade (καιρός: “Quando pousa / o pássaro // quando acorda / o espelho // quando amadurece / a hora”) [1] só surgiu, de fato, arrebatadora, no segundo semestre de 1988, na disciplina de Língua Grega, ministrada pelo Professor Dr. Henrique Graciano Murachco, no Programa de Extensão Universitária da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Então, por dez anos, sempre que minhas atividades como professor, vice-diretor e depois diretor do Instituto de Geociências e Exatas da UNESP de Rio Claro e algumas viagens ao exterior me permitiram, participei com dedicação e entusiasmo, nas tardes das sextas-feiras, com um grupo de pessoas de várias procedências profissionais, do que o Professor Henrique chamava de “Oficina de Tradução”. Ali vertemos para o português longas passagens de Homero, Heródoto, Píndaro, Sófocles, Platão, Xenofonte, Aristóteles. O meu envolvimento com as letras aumentava com o tempo, e a consequência disso foram os múltiplos e honrosos convites, sempre aceitos, para participar de bancas examinadoras de concurso para ingresso de professor, de teses de doutoramento, de concurso de livre-docência e de dois concursos de professor titular, todos do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da velha universidade.

O livro que ora dou a público é o fruto amadurecido, desde então, pelos

longos anos de aprendizagem. Com ele viso, evidentemente, aos estudantes de Matemática e aos professores dessa ciência. Incluo no público-alvo também as pessoas cultas em geral que se interessem pelas conquistas gregas na Antiguidade, os estudantes de Filosofia e os de Letras Clássicas (grego), cujo curso, do meu ponto de vista, deixa aberta uma imensa lacuna no conhecimento da cultura grega ao não estudar obras matemáticas e hipocráticas, grandiosos monumentos daquela civilização.

Proclus, para mostrar a excelência do trabalho de Euclides, descreve algumas qualidades que um trabalho desse tipo deva ter, e que o de Euclides, de fato, tem.

Assim, diz:

É preciso a obra que tal desembaraçar-se de todo o supérfluo – pois isso é um obstáculo à instrução [2];

muita preocupação (deve) ter sido efetivada relativa a clarezas e, ao mesmo tempo, a concisões – pois os contrários dessas turvam a nossa inteligência [3].

De fato, a prática de Euclides frequentemente contempla a concisão – por exemplo, em lugar de “o quadrado sobre a AB (isto é, de lado AB)” diz, na maioria das vezes, “o sobre a AB”; e, “o pelas AB, CD”, em lugar de “o retângulo contido pelas AB, CD (ou seja, de lados AB, CD)”; “cortar em duas” sempre significa “cortar em duas partes iguais (isto é, bissectar)” etc. Mas se, por um lado, a concisão leva, entre outras coisas, a esse encurtamento das expressões, que mantive na tradução em respeito ao estilo euclidiano, ao contrário do que faz a recente versão francesa que se farta de palavras ausentes no grego, por outro lado, a clareza não abandona o leitor atencioso que logo se habituará com essas particularidades.

Chamo a atenção para o fato de, em grego, o termo “lado” (πλευρά) ser feminino e assim só esse gênero aparecer ao referir-se o texto a “o lado AB do triângulo...” ou a “a reta (ou seja, segmento) AB do triângulo...”. Então, a tradução usa, nesses casos, indiferentemente, os artigos masculino ou feminino.

Previno, por fim, a quem possa interessar, que é preciso fôlego para acompanhar muitíssimas das demonstrações que aqui se encontram, e determinação. Garanto, no entanto, que, vencida a inércia, ultrapassado o obstáculo, alcançado o objetivo com a compreensão do resultado, cabe a recompensa de ter mergulhado no próprio processo do que denominamos “pensar” e de haver podido apreendê-lo em toda a sua abrangência. Mais: brotará disso a convicção de que, se com Homero a língua grega alcançou a perfeição, atinge com Euclides a precisão. E o método formular, que consiste em usar um conjunto de frases fixas que cobrem muitas ideias e situações comuns, poderoso auxílio à memória em um tempo de cultura e de ensino eminentemente orais, serve para aproximar o geômetra do poeta e então mostrar que perfeição e precisão podem ser faces da mesma medalha.

Agradeço à minha esposa, Elizabeth Christina Plombon, que digitou com carinho e cuidado todo o trabalho, confeccionando-lhe as, muitas vezes, complicadas figuras, e sendo de importante ajuda nas revisões; ao Prof. Dr. Henrique Murachco, pelo ensino e a amizade, e ao Prof. Dr. José Rodrigues Seabra Filho, docente de latim da USP, e companheiro daquelas sextas-feiras, por ter conferido comigo a tradução que fiz do Prefácio Latino de Stamatis. 

Sou o único responsável por todas as traduções do grego e do latim, e por quase todas as do inglês, francês, alemão e italiano.

Pois, tendo aprendido algo, jamais neguei, fazendo o conhecimento ser como uma descoberta minha; mas louvo como sábio o que me instruiu, tornando públicas as coisas que aprendi com ele.

Platão, Hippias Menor, 372 c5-8 [4]

P.S.: (i) Conforme salienta Kirk (The Songs of Homer [5]: “Finally that perennial problem, the spelling of Greek names.” [6]), a solução que adotei, nem sempre com sucesso, foi a de preservar as formas usuais em português dos mais conhecidos, e prover para os outros a latinizada, como, de hábito, praticam-na os de língua inglesa.

(ii) O uso de colchetes na tradução reproduz o que se encontra no texto grego e, ali, indica o que Heiberg julga ter sido inserido por terceiros no escrito de Euclides.

(iii) Ensina Said Ali na sua Gramática (p.171-2):

Nos enunciados de caráter condicional, em que a hipótese é um fato inexistente cuja realização não se espera ou não parece provável, emprega-se o imperfeito do conjuntivo para esta hipótese condicionante, e o futuro do pretérito para a oração principal.

Na linguagem familiar costuma-se substituir o futuro do pretérito pela forma do imperfeito do indicativo. É substituição permitida em linguagem literária (grifo meu):

“Se Deus nos deixara tentar mais do que podem as nossas forças, então tínhamos justa causa de recusar as tentações.” (Vieira)

Por isso, apoiado na autoridade de um Vieira, vali-me dessa forma na tradução, por exemplo, das Proposições I.19, I.25 etc., ficando assim rente ao original.

Irineu Bicudo


Notas:

[1] FONTELA, O. Poesia Reunida. São Paulo: 7 Letras/CosacNaify, 2006 [1969/1996].

[2] δεῖ δὲ τὴν τοιαύτην πραγματεία πᾶν μὲν ἀπεσκευάσθαι τὸ περιττόν ὲμπόδιον γὰπ τοῦτο πρὸς τὴν μάθησιν

[3] σαφανείας δ'ἂμα καὶ συντομίας πολλὴν πεποιῆσθαι πρόνοιαν τὰ γὰρ ἐπιθολοῖ τὴν διάνοιαν ἠμῶν.

[4] οὺ γὰρ πώποτε ἒξαρνος ἐγενόμην μαθών τι, ὲμαυτοῦ ποιούμενος τὸ μὰθνμα εῖναι ὠς εὔρημα. ὰλλ'ὲγκωμιάζω τὸν διδάξαντά με ώς σοφὸν ὂντα, ὰποφαίνων ἂ ἔμαθον παρ'αὐτου.

[5] Os poemas de Homero, Prefácio.

[6] [“Finalmente, aquele problema constante, a grafia dos nomes gregos”].


Introdução


Sinto-me compelido ao trabalho literário: (...) pelo meu
não reconhecimento da fronteira realidade-irrealidade;
(...) pelo meu amor platônico às matemáticas; (...) 
porque através do lirismo propendo à geometria.

Murilo Mendes

Sinopse

No prefácio do seu livro Euclid. The Creation of Mathematics [1], o matemático alemão Benno Artmann escreve:

Este livro é para todos os amantes da matemática. É uma tentativa de entender a natureza da matemática do ponto de vista da sua fonte antiga mais importante.

Mesmo que o material coberto por Euclides possa ser considerado elementar na sua maior parte, o modo como ele o apresenta estabeleceu o padrão por mais de dois mil anos. Conhecer os Elementos de Euclides pode ser da mesma importância para o matemático hoje que o conhecimento da arquitetura grega para um arquiteto.

É claro que nenhum arquiteto contemporâneo construirá um templo dórico, muito menos organizará um local de construção como os antigos o faziam. Mas, para o treino do julgamento estético de um arquiteto, um conhecimento da herança grega é indispensável. Concordo com Peter Hilton quando diz que a matemática genuína constitui uma das mais finas expressões do espírito humano, e posso acrescentar que aqui, como em tantos outros casos, aprendemos dos gregos aquela linguagem de expressão.

Enquanto apresenta a geometria e a aritmética, Euclides ensina-nos aspectos essenciais da matemática em um sentido muito mais geral. Exibe o fundamento axiomático de uma teoria matemática e o seu desenvolvimento consciente rumo à solução de um problema específico. Vemos como a abstração trabalha e impõe a apresentação estritamente dedutiva de uma teoria.

Aprendemos o que são definições criativas e como uma compreensão conceitual leva à classificação dos objetos relevantes. Euclides criou o famoso

algoritmo que leva o seu nome para a solução de problemas específicos na aritmética e mostrou-nos como dominar o infinito nas suas várias manifestações.

Um dos poderes maiores do pensamento científico é a habilidade de desvelar verdades que são visíveis somente “aos olhos da mente”, como diz Platão, e de desenvolver modos e meios de lidar com elas. É isso que Euclides faz no caso das magnitudes irracionais ou incomensuráveis. E, finalmente, nos Elementos encontramos tantas amostras de bela matemática que são facilmente acessíveis e que podem ser minuciosamente estudadas por qualquer um que possua um treino mínimo em matemática.

Vendo tais fenômenos gerais do pensamento matemático que são tão válidos hoje quanto o foram no tempo dos antigos gregos, não podemos deixar de concordar com o filósofo Immanuel Kant, que escreveu em 1783, na introdução à sua filosofia sob o título “Afinal, é a metafísica possível?”: “Não há absolutamente livro na metafísica como temos na matemática. Se quiserdes conhecer o que é a matemática, basta olhardes os Elementos de Euclides.”

Benno Artmann ofereceu-nos, na passagem que acabamos de enunciar, um voo panorâmico da famosa obra do geômetra grego. Mas, do alto, os montes pouco se destacam, fios de água parecem os rios, a vegetação é apenas uma cobertura verde. Há mister de viajar por terra.

A citação de Kant faz eco ao fato de, até o final do século XIX, ser Euclides sinônimo de geometria, daquela geometria de régua e compasso. Assim, a história dos Elementos confunde-se, em larga escala, com a história da matemática grega. Mas a história de um domínio tão relevante do pensamento humano dificilmente se desvincularia da história mesma do homem. Hajamos, pois, por bem começar a nossa história, a nossa expedição terrestre, pelo era uma vez na antiga Grécia.


Era uma vez


Estranho animal é este bicho homem (...)

José Saramago

Certamente, é um assunto admiravelmente vão, variado
e inconstante o homem. É difícil fundar nele julgamento
firme e uniforme.

Michel de Montaigne

Sustentam muitos pensadores ser o homem uma estranha criatura. De fato oscila, constantemente, entre o passado, que deseja conhecer, e o imperscrutável futuro, incapaz de aceitar que a vida de todos os dias retoma, invariavelmente, a cada dia, o seu dia.

A memória prende-o ao que foi; o desejo, ao que será.

Como antecipar o que ainda não é equivale a chorar antes do tempo, e como o que há de ser virá, claro, na madrugada, com os seus raios, deixemos de lado o porvir, que a si próprio se basta, pois os invisíveis dedos das coisas e dos atos idos, próximos e longínquos, tecem, no tear do Fado, o manto que nos vestirá para sempre.

Somos o que os séculos nos fizeram!

O que somos de razão e vontade, o que somos de pensamento e ação, o que somos de sensibilidade e frieza, de trabalho e lazer, de descrença e esperança, o que somos de bílis e coração é terem existido outros, é terem traçado rumos, e terem aberto estradas, é terem apontado caminhos!

Eis nossos predecessores!

Para entendermos a nós próprios é preciso entendê-los. E os predecessores dos predecessores; e assim por diante, continuando essa busca, pois é sem fundo o poço do passado da espécie humana, essa essência enigmática, cujo mistério “inclui o nosso próprio mistério e é o alfa e o ômega de todas as nossas questões, emprestando um imediatismo candente a tudo o que dizemos e um significado a todo o nosso esforço”[2].

Consultemos, pois, os velhos registros, leiamos as obras de antanho que chegaram até nós, procuremos em alfarrábios o que pareça haver de nós nos que vieram antes, e, assim, começaremos a compreender o que pensávamos saber: quem somos, o que nos é possível conhecer, que estrelas e que sóis poderemos acrescentar ao universo herdado.

Em nosso caso de povo ocidental e no que tange à ciência da nossa predileção, a busca conduz-nos ao era uma vez.

Era uma vez, acima de todas, em que “os atributos da juventude humana tornam-se os atributos de um povo, as características de uma civilização” e em que

um sopro de encantadora adolescência passou roçando pelo rosto de uma raça. Quando a Grécia nasceu, os deuses presentearam-na com o segredo da sua imorredoura juventude. A Grécia é a alma jovem. “Aquele que, em Delfos, contempla a densa multidão de jônios”, diz um dos hinos homéricos, “imagina que eles jamais haverão de envelhecer” [3].

Michelet comparou a atividade da alma helênica a um jogo festivo, em torno de que se reúnem e sorriem todas as nações do mundo. Mas, desse jogo de crianças, nas praias do arquipélago e à sombra das oliveiras da Jônia, nasceram a Arte, a Filosofia, a livre reflexão, “a curiosidade da investigação, a consciência da dignidade humana, todos esses estímulos que ainda são a nossa inspiração e orgulho”, e a Matemática.

Era uma vez a origem do pensamento ocidental. A Filosofia e a Matemática, no período mais pujante daquele distante passado, falam o grego clássico.


O grego clássico


A língua grega é um dos ramos mais importantes do grupo linguístico chamado indo-europeu. A sua origem remonta ao “indo-europeu primitivo”. O que possui em palavras e formas de flexão é herança, na sua maior parte, de um tempo que precede a sua existência separada.

Os traços característicos, no entanto, que dão ao grego a sua peculiaridade frente às outras línguas suas irmãs, surgiram, manifestadamente, só depois do desmembramento da primitiva comunidade de povos, e é provável que esse ajuste tenha tido lugar já em solo grego.

A ideia de um “grego primitivo” homogêneo, isto é, com uma verdadeira unidade, é problemática.

O que podemos dizer é que, no momento em que a encontramos nos documentos autênticos, a língua grega está dividida em certo número de dialetos falados, classificáveis comodamente em quatro grupos: o jônio, o árcade-cipriota, o eólio e os diferentes falares chamados comumente dórios.

E. Ragon ensina-nos que, à exceção do árcade-cipriota, cada um desses grupos desenvolveu uma língua literária, cuja tonalidade morfológica varia com a data dos autores e com o gênero literário adotado.

O primeiro daqueles dialetos, o jônio, falado na Ásia Menor, tem por marca evitar as contrações e foi empregado pelos prosadores Heródoto e Hipócrates. Mas, misturado a elementos eólios, serve ao ápice da perfeição, sendo o pano de fundo dos poemas homéricos que influenciaram a língua de todos os poetas da Grécia.

O pouco que resta do eólio é o que conhecemos das odes de Alceu e da grande Safo.

O dialeto dório, de sons graves e musicais, está gravado no bronze eterno dos poemas de Píndaro e de Teócrito.

Por fim, o grego clássico ou o dialeto ático, um ramo privilegiado do jônio. É o falado na áurea época de Atenas, os séculos V e IV a.C. Torna-se com Ésquilo, Sófocles e Eurípides a linguagem dos deuses e dos heróis; com Aristófanes é o idioma da sabedoria que zomba da sapiência; é história com Tucídides; defesa pública e exortação, com Isócrates, Ésquines e Demóstenes; memória e ensinamento com Xenofonte; e, acima de tudo, Verdade e Beleza, com Platão.

Para ter acesso a toda essa cultura grega, da qual a matemática é uma das importantes partes, o vestíbulo do conhecimento autêntico, há mister de aprender-lhe a língua. Como substituto dessa insubstituível necessidade, a tradução.


Princípios de fé desta tradução


Há, por certo, imensa gama de concepções a respeito do que deva ser o traduzir. No que tange à versão de uma obra científica, parece haver acordo em que a precisão não deva ser sacrificada no altar da sutileza. Parodiando Novalis, quanto mais precisa, mais verdadeira.

De um modo grosseiro, poderíamos classificar os tipos de tradução como traduções à francesa e traduções à alemã.

O ideal das primeiras encontra expressão na passagem: “Se há algum mérito em traduzir, só pode ser o de aperfeiçoar, se possível, o seu original, de embelezá-lo, de apropriar-se dele, dar-lhe um ar nacional e naturalizar, de certa maneira, essa planta estrangeira”.

A meta das segundas está refletida nas seguintes críticas de Schlegel e de Goethe àquelas do primeiro grupo. Schlegel: “(...) é como se eles desejassem que cada estrangeiro, no país deles, se comportasse e se vestisse segundo os seus costumes, o que os leva a nunca conhecerem realmente um estrangeiro”. Goethe: “O francês, assim como adapta à sua garganta as palavras estrangeiras, faz o mesmo com os sentimentos, os pensamentos e até os objetos; exige a qualquer preço, para cada fruto estrangeiro, um equivalente que tenha crescido no seu próprio território”.

Evidentemente, esse modo de agrupar nada tem a ver com a nacionalidade do tradutor, mas com a sua maneira de trabalhar. Freud, por exemplo, traduzia “à francesa”, pois, segundo Jones, na sua biografia do pai da psicanálise, este “em vez de transcrever laboriosamente, a partir da língua estrangeira, idiotismos e todo o resto, lia um trecho, fechava o livro e perguntava-se como um escritor alemão teria vestido os mesmos pensamentos”.

Chateaubriand, o célebre escritor francês, mantém, sem reservas, o ponto de vista contrário, na sua tradução de Milton:

Se eu quisesse ter feito apenas uma tradução elegante do Paraíso perdido, talvez se considere que tenho suficiente conhecimento da arte para que não me fosse impossível atingir a altura de uma tradução dessa natureza; mas o que empreendi foi uma tradução literal, em toda força do termo, uma tradução que uma criança e um poeta poderão acompanhar no texto, linha por linha, palavra por palavra, como um dicionário aberto sob os seus olhos.

Por entendermos que a tradução de um texto antigo, de uma tradição com pensamentos próprios e próprios modos de expressão é um ato de reverência e entrega, adotamos, como Chateaubriand, uma versão literal, “em toda a força do termo”, esperando acordar no leitor a curiosidade que o conduza a acompanhar a tradução contra o original, “linha por linha, palavra por palavra”. Sendo o grego uma língua sintética e o português, uma analítica, é fácil dar-se conta do grau de afastamento das suas sintaxes. Por isso, por permanecermos o mais possível ligado ao original, prevenimos poder o leitor estranhar algumas vezes o resultado alcançado.

Usamos como texto grego a edição de Heiberg-Stamatis, da Editora Teubner, de Leipzig, 1969-1977.


O texto grego e a Ecdótica


O que significa falar do texto grego dos Elementos de Euclides? Qual o sentido de se mencionar a edição de Heiberg-Stamatis?

Tendo essa obra sido escrita por volta do final do século IV a.C., é difícil que se possa imaginar ter chegado até nós o manuscrito do seu autor, o chamado manuscrito autógrafo. De fato, não possuímos tais manuscritos dos autores clássicos – gregos e latinos. O tempo, esse “deus atroz que os próprios filhos devora sempre”[4], é a correnteza que leva os dias, os homens, os saberes. Mas a obra de valor a tudo afronta e na placa da memória “grava seu ser / durando nela” [5]. Se não temos os originais, possuímos cópias. Infelizmente, o que nelas reluz é só imitação do ouro. De fato, “os deuses vendem quando dão” [6], pois quem diz cópia, diz erro. Para agravar a situação, relativamente aos Elementos, os manuscritos mais antigos sobreviventes distam séculos de Euclides.

Como o arqueólogo tenta, a partir de pequenas peças de evidência, reconstruir a vida e a cultura de povos antigos, o filólogo, voltado à Ecdótica, trata de, com apoio nos manuscritos, trazer à luz, por reconstituição, aquele original, o texto autógrafo, o arquétipo de que os que temos são cópias. O assim idealmente produzido, com todo o aparato da crítica textual ou Ecdótica (do verbo grego ἐκδίδωμι “publicar”), é referido como o texto crítico da obra em questão.

Como é produzido o texto crítico?

É preciso lembrar, primeiramente, que muitos autores clássicos chegaram até os dias de hoje em manuscritos em pergaminho ou em papel, que raramente são anteriores ao século IX, e frequentemente são até do século XVI. Alguns trabalhos foram preservados em um único manuscrito, outros, em centenas. Muitos manuscritos clássicos estão agora em bibliotecas europeias ou em coleções de museus, alguns também em monastérios, particularmente da Grécia, e alguns pertencendo a particulares; há-os ainda em lugares como Istambul ou Jerusalém, ou em bibliotecas americanas. Entre as maiores coleções, é lídimo mencionar aquelas da Biblioteca do Vaticano, de especial importância no nosso caso – em virtude do manuscrito Gr. 190 –, da Ambrosiana em Milão, da Marciana em Veneza, da Österreichische Nationalbibliothek em Viena, da Bibliothèque Nationale em Paris e do British Museum em Londres.

De volta, então, à edição crítica de um texto da Antiguidade. Para levá-la a termo, há duas etapas a cumprir:

(i) A da fixação do texto, isto é, o seu preparo segundo as normas da crítica textual;

(ii) A da apresentação do texto, a sua organização técnica, contemplando, em geral, os seguintes elementos elucidativos: história dos manuscritos usados, informações sobre os critérios adotados, aparato crítico (certamente o elemento mais importante) etc., tendo em vista a sua publicação.

Quanto a autores gregos e romanos, existem editoras que se notabilizam pela publicação das suas edições críticas, como a Editora Teubner (Teubner Verlag) de Leipzig, com a sua Bibliotheca Scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana, por certo a mais importante e abrangente, a Editora da Universidade de Oxford, com a sua Scriptorum Classicorum Oxoniensis, a Société D’Édition “Les Belles Lettres”, Paris, e a sua Collection des Universités de France, sob os auspícios da Association Guillaume Budé e a Harvard University Press com a Loeb Classical Library.

No que segue, visamos a dar uma pálida ideia da complexidade envolvida nos dois passos acima mencionados.


A fixação do texto


Observada a doutrina de Karl Lachmann, o fundador da moderna crítica textual, a fixação do texto passa por uma série de operações agrupadas em três fases, a saber, recensio (do verbo latino recensere: “fazer uma revisão”), estemática (de stemma codicum: “a árvore genealógica dos códices” – essa fase é referida por Lachmann como originem detegere: “descobrir a origem, revelar a ascendência”) e emendatio (de emendere: “emendar, corrigir”).

A recensio consiste na pesquisa e coleta de todo o material existente de uma obra. Isso constitui a sua tradição, que pode ser direta – formada pelos seus manuscritos – ou indireta, compreendendo as fontes, as traduções, as citações, os comentários, as glosas e as paráfrases, as alusões e as imitações, vale dizer, tudo o que circula à volta da obra, que é dela sem ser ela própria.

Reconhecidos os testemunhos obtidos, passa-se à collatio codicum, a “comparação dos manuscritos”. Faz-se o cotejo de tudo o que se possua da tradição direta contra um manuscrito mais completo ou que pareça bom, denominado o exemplar de colação. Dessa operação resultará o expurgo dos testemunhos inúteis, a eliminatio codicum descriptorum, rejeição das cópias coincidentes, de acordo com a máxima filológica frustra fit per plura quod fieri potest per pauciora (“é feito inutilmente por meio de muitos o que pode ser feito por meio de poucos”). Existindo o modelo, rejeita-se a sua cópia. Com essa eliminação termina a primeira fase.

A análise acurada dos manuscritos – principalmente o confronto dos chamados lugares ou pontos críticos e o exame sistemático dos chamados erros comuns – possibilita estabelecer tanto a dependência entre os manuscritos quanto a afinidade ou parentesco entre eles. Aqui a hipótese tomada é “pouco, simples e razoável”. Se o mesmo erro ocorrer em dois manuscritos, é razoável considerar não terem surgido independentemente, a menos que esteja envolvido um engano muito simples e natural. Depois, supõe-se que o copista não corrija o trabalho do seu predecessor. Uma consequência disso, em conjunção com a propensão dos seres humanos de cometerem erros – “os deuses vendem quando dão” [7] – é que os textos se tornem mais e mais corrompidos com as sucessivas cópias. O que resulta dessas hipóteses de trabalho é o estabelecimento da árvore genealógica dos códices, stemma codicum, depois de arrolados os elementos da tradição em famílias, cada uma formada segundo os pontos críticos comuns, e de construídos, caso necessário, os cabíveis subarquétipos (os “pais das famílias”) e o arquétipo ou codex interpositus (“o pai de todos”), aquele que se interpõe entre o original e as cópias da tradição, e que tomará o papel do original perdido “em negro vaso / de água do esquecimento”. O sistema assinala a dependência e também a contaminação que pode existir entre exemplares de famílias distintas. Assim a estemática é feita.

A reconstituição de uma obra clássica finda com a emendatio, a parada mais importante nessa verdadeira via crucis, pois, de novo, vale o postulado da tradição manuscrita: “quem diz cópia, diz erro”. O exame de qualquer cópia (manuscrito apógrafo) revela o seu caráter contingente: passagens mal transcritas, obscuras, com interpolações, discrepâncias gramaticais e estilísticas com o que se conhece do autor, e muitos outros problemas. Grande desafio ao filólogo-editor no seu afã de restabelecer, ou ao menos aproximar-se o mais possível do que fora um dia a obra original.

Diante do erro, o editor procede segundo as condições da tradição manuscrita, empregando a bateria do seu conhecimento geral, daquele da obra e da época em que floresceu o seu autor e também da sua intuição divinatória, e isso é, a mais das vezes, um trabalho de gigante. Prezemos, pois, e muito, os filólogos-editores dos textos da Antiguidade.

Se a correção dos erros for possibilitada pelos próprios manuscritos e pelo que os demais testemunhos coletados oferecem, tem-se a denominada emendatio ope codicum, “correção com a ajuda dos manuscritos”. Caso tal auxílio não seja suficiente à consecução da tarefa, há o editor de recorrer à sua intuição e aos seus saberes, e ter-se-á a dita emendatio ope ingenii ou emendatio ope conjecturae ou ainda divinatio ou crítica conjectural.

Está, pois, dada conta da (i) fixação do texto.


A apresentação do texto


Na (ii) apresentação do texto reconstituído, o arquétipo do qual todos os manuscritos são cópias, vale ressaltar o aparato crítico, isto é, as variantes encontradas, dispostas no pé de cada página, com a indicação dos manuscritos em que figuram. Com isso, o editor oferece a oportunidade de o leitor fazer a sua própria escolha da expressão que deva estar em determinado ponto do texto, com um possível significado novo para a passagem que a contenha.

A fim de que se avalie a importância da edição crítica com o seu respectivo aparato para quem se interessa pela Antiguidade e tencione estudar as próprias obras em grego (ou em latim), transcrevemos um trecho do início do livro Textual Criticism and Editorial Technique, de M. L.West [8], helenista e editor de clássicos:

Edward Fraenkel, na sua introdução aos Ausgewählte Kleine Schriften [9], de [Friedrich] Leo conta a seguinte experiência traumática que teve quando jovem estudante:

“Eu tinha, por aquele tempo, lido a maior parte de Aristófanes e comecei a falar com demasiado entusiasmo sobre isso a Leo e a crescer em eloquência sobre a magia dessa poesia, a beleza das odes corais, e assim por diante. Leo deixou-me falar, talvez por dez minutos, sem mostrar qualquer sinal de desaprovação ou impaciência. Quando terminei, perguntou: ‘Em que edição você leu Aristófanes?’ Pensei: ele não estava ouvindo? O que a sua questão tinha a ver com o que eu lhe dissera? Depois de uma agitada hesitação de momento, respondi: ‘A Teubner.’ Leo: ‘Oh, você leu Aristófanes sem um aparato crítico.’ Disse-o bem calmamente, sem qualquer aspereza, sem nem um traço de sarcasmo, apenas sinceramente surpreso que fosse possível a um jovem tolerantemente inteligente fazer tal coisa. Olhei para o gramado próximo e tive uma única, irresistível sensação: νῦν μοι χάνοι εὐρεῖα χθῶν (‘agora que a terra se entreabra para mim’, Ilíada 4,182). Posteriormente, pareceu-me que naquele momento entendi o significado real da sabedoria.”

(...)

Segue que qualquer um que queira fazer sério uso de textos antigos deve prestar atenção às incertezas da transmissão; mesmo a beleza das odes corais que ele admira tanto pode confirmar-se haver nelas uma mistura de conjecturas editoriais, e se ele não estiver interessado na autenticidade e confiança de pormenores, poderá ser um amante verdadeiro da beleza, porém não um sério estudante da Antiguidade.


A edição crítica dos Elementos


Théon de Alexandria, pai de Hypatia – a primeira mulher a ter o nome preservado pela história da matemática –, foi um eminente e influente estudioso do século IV. No seu Comentário ao tratado astronômico de Cláudio Ptolomeu de Alexandria, conhecido como Almageste (do árabe almajistí, adaptação de al, o artigo definido árabe, e do adjetivo superlativo grego μεγίστη (entenda-se μεγίστη σύνταξις), isto é, “a maior composição”, “o maior tratado sistemático”), escreve a certa altura: “Mas que setores em círculos iguais estão entre si como os ângulos sobre que se apoiam foi provado por mim na minha edição dos Elementos, no final do sexto livro”.

Sabemos então, da própria pena do comentarista, ter ele editado a obra de Euclides, com a adicional informação de ser da sua lavra a segunda parte da “Proposição XXXIII” do Livro VI, como encontrada em quase todos os manuscritos remanescentes. Daí provirem tais manuscritos daquela edição de Théon. Aliás, a maior parte deles traz no seu título ou a frase ἐκ τῆς Θέωνος ἐκδόσεως (“da edição de Théon”) ou ἀπὸ συνουσιῶν τοῦ Θέωνος (“das aulas de Théon” ou “dos ensinamentos de Théon”).

Desse modo, qualquer edição dos Elementos feita anteriormente a 1814 era baseada numa família de manuscritos cujo arquétipo era o texto dado à luz por Théon.

Para conta do que então ocorreu, fazendo toda a diferença, mudando o rumo da história das edições dos Elementos, citamos, por extenso, um trecho do prefácio de François Peyrard ao seu trabalho Les œuvres D’Euclide, traduites littéralement, d’après un manuscript grec très-ancien, resté inconu jusqu’a nos jours [10], Paris, 1819:

No prefácio da minha tradução dos Livros I, II, III, IV, V, VI, XI e XII dos Elementos de Euclides, que apareceu em 1804, e que eu fizera segundo a edição de Oxford, propus-me o compromisso de publicar as traduções completas de Euclides, de Arquimedes e de Apolônio. A minha tradução das Obras de Arquimedes apareceu em 1808. Antes de dar à impressão a minha tradução das Obras de Euclides, quis consultar os manuscritos da Biblioteca do Rei. Esses manuscritos, vinte e três em número, foram-me confiados, e não tardei a me aperceber que esses manuscritos preenchiam lacunas, restabeleciam passagens alteradas que se encontram na edição da Basileia e naquela de Oxford, cujo texto grego é apenas uma cópia frequentemente infiel, como provei na sequência do prefácio do terceiro volume do meu Euclides em três línguas. A maior parte desses manuscritos rejeita uma multidão de superficialidades que mãos ignaras tinham introduzido no texto, e que se encontra em grande parte nos textos das edições da Basileia e de Oxford.

Todos esses manuscritos, exceto o n.190, são, com pequena diferença, conformes uns aos outros, salvo os erros dos copistas e as superficialidades de que acabo de falar.

O manuscrito 190 traz todos os caracteres do nono século, ou pelo menos do começo do décimo, enquanto que os outros são-lhe posteriores de quatro, de cinco, e mesmo de seis séculos.

Esse manuscrito, cujos caracteres são da maior beleza, e sem ligaduras, restabelece lacunas e passagens alteradas, o que teria sido impossível de restabelecer com a ajuda dos outros manuscritos. Encontra-se nele uma multidão de lições que merecem, quase sem exceção, a preferência às lições dos outros manuscritos.

O manuscrito 190, que permanecera desconhecido até os nossos dias, pertencia à Biblioteca do Vaticano. Foi enviado de Roma a Paris por Monge e Bertholet, quando o exército francês tornou-se senhor daquela cidade.

Na segunda invasão dos exércitos coligados, a França viu-se obrigada a restituir todos os objetos de arte que haviam sido recolhidos aos povos vencidos. Por solicitação do Governo Francês, o Santo Padre houve por bem ter a bondade de deixar-me às mãos esse precioso manuscrito até a completa publicação do meu Euclides.

Tendo, então, à minha disposição esse manuscrito, como todos aqueles da Biblioteca do Rei, determinei-me a dar uma edição grega, latina e francesa das Obras de Euclides. O primeiro volume apareceu em 1814, o segundo em 1816, e o terceiro em 1818.

O manuscrito Gr. 190 da Biblioteca do Vaticano, denominado P por Heiberg, em homenagem ao padre Peyrard, o seu descobridor, não pertence, pois, à família theonina, e serviu como exemplar de colação para a edição crítica do filólogo dinamarquês, aquela que permanece aceita até hoje. A história das edições críticas dos Elementos assinala a seguinte sequência:

− A editio princips, “primeira edição”, Basileia, 1533, a cargo de Simon Grynaeus, baseada em dois manuscritos – Venetus Marcianus 301 e Paris Gr. 2343 – do século XVI, que estão entre os piores existentes. Essa edição servia de fundamento para;

− A de Oxford, Euclidis quae supersunt omnia. Ex recensione Davidis Gregorii M. D. Astronomiae Professoris Saviliani et R. S. S. Oxoniae, et Theatro Sheldiano. An. Dom. MDCCIII. Para levar a cabo o seu trabalho, Gregory consultou somente os manuscritos legados à Universidade por Sir Henry Savile, nos lugares em que o texto da Basileia diferia da excelente tradução latina de Commandinus (1572). Essa célebre edição das obras de Euclides é a única completa antes da de Heiberg e Menge;

− A de Peyrard, na trilíngue acima citada, na qual usou P somente para corrigir a da Basileia;

− A de E. F. August (1826-9), que segue P mais de perto, tendo também usado o manuscrito Vienense Gr. 103.

De Morgan recomenda vivamente o alcançado por August: “Ao estudioso que queira uma edição dos Elementos, devemos decididamente recomendar esta, por unir tudo o que foi feito para o texto do maior trabalho de Euclides”.

Tendo assim alcançado a sua hora fugaz de celebridade, esta edição acaba por cumprir o vaticínio do célebre historiador francês da matemática, Paul Tannery, em uma carta a Heiberg: “todos os trabalhos de erudição são em grande parte destinados a perecer para serem substituídos por outros”. Pois, coube precisamente a este sancionar aquela predição;

− A edição de Heiberg, baseada em P e nos melhores manuscritos theoninos, e considerando também outras fontes como Herão e Proclus, tornou-se o novo e definitivo texto grego dos Elementos;

− Por fim, a edição elaborada por E. S. Stamatis não lança no limbo das coisas ultrapassadas aquela do sábio dinamarquês, um trabalho de erudição que insiste em não perecer. Para dar fé do que dizemos, traduzimos do latim boa parte da adição ao prefácio (additamentum praefationis) de Heiberg, escrito por Stamatis ao texto crítico por ele dado a público.

Nenhum dentre os homens versados em geometria antiga existe que não julgue ser necessária agora uma nova edição dos Elementos, de Euclides. De fato, os exemplares da notável edição Heiberguiana há muito foram vendidos, além disso os estudos referentes aos Elementos em nossos dias desenvolveram-se grandemente. Por esse motivo, tendo sido convidado por um estimadíssimo livreiro, por exortação do Instituto de Ciência da Antiguidade Greco-Romana, que foi fundado por decisão da Academia Alemã de Ciências de Berlim, para que eu cuidasse de nova edição dos Elementos de Euclides acolhi essa ocupação com o coração gratíssimo. Realmente, sei que muitos admiradores da ciência matemática, que sabem grego, desejam conhecer o texto euclidiano.

Agradou-me muito o plano do estimadíssimo livreiro que me persuadiu a que eu omitisse a tradução latina que Heiberg preparara para a sua edição pelo que a nova edição saísse à luz mais curta. De fato, é evidente os versados na língua grega não terem muita necessidade da tradução latina. Pois que assim seja, o plano da nova edição foi organizado assim como é indicado abaixo [11]:

Para o texto do primeiro volume, considerei as coisas que deviam ser antecipadas, que foram ensinadas sobre os Elementos e sobre a vida de Euclides e sobre os princípios e os primórdios da geometria (Textui primo voluminis praemittenda, quae de Elementis et de vita Euclidis et de principiis primordiisque geometriae tradita sunt, existimavi).

[Realmente, no HOC VOLVMINE CONTINENTVR, lê-se o seguinte:

Testimonia:

De Euclides elementorum et vitae memoria

De principiorum geometriae memoria]

Acrescentei imediatamente três índices (annexui continuo tres indices).

Em terceiro lugar, ajuntei uma sinopse, em que as notabilíssimas edições dos Elementos de Euclides são recordadas (tertio loco conspectum, in quo praestantissimae Euclidis Elementorum editiones, adiunxi).

(De fato, Stamatis adicionou o seguinte:

CONSPECTVS EDITIONVM

Recensio antiquior quam editio Theonis Alexandrini

Theon Alexandrinus Alexandriae circa 370 p.Chr.

Simon Grynaeus Basileae 1530 (editio 2: 1533 apud Ioan.

Hervagium (“Hervagiana”), ed.3: 1537,

ed.4: 1539, ed.5: 1546, ed.6: 1558

Angelus Caianus Romae 1545 (sine demonstr.)

I.Camerarius Lipsiae 1549

I. Scheybl Basileae 1550 (1-6)

S.T. Gracilis Lutetiae 1558, 1573, 1598

C. Dasypodius Argentorati 1564

I. Sthen Vitebergae 1564

M. Steinmetz Lipsiae 1577 (cum demonstr.)

Dav. Gregorius Oxonii 1703

Fr. Peyrard Parisii 1814-18

I.G. Camerer et C.Fr. Hauber Berolini 1824-25 (1-6)

G.C. Neide Halis Saxonum 1825 (1-6, 11,12)

E.F. August Berolini 1826-29

I.L. Heiberg Lipsiae 1883-88

E.S. Stamatis Athenis 1952-57.

Stamatis indica no pé da página as obras consultadas para a confecção da lista acima. Revive com ela o gosto antigo pelas listas ou catálogo, como o “Catálogo dos navios”, no Segundo Canto da Ilíada, ou o “Catálogo dos geômetras”, do desaparecido livro de História da geometria, de Eudemo, discípulo de Aristóteles, mas preservado por Proclus no seu Comentário ao livro I dos elementos de Euclides.

Chamamos ainda a atenção para o fato de que, ao tecer anteriormente considerações concernentes às edições dos Elementos, consideramos apenas, dentre “as notabilíssimas”, as principais.)

Decidi abordar o que, para o texto, diz respeito aos vestígios da edição de Heiberg. Com efeito, é certo entre todos os homens instruídos ser muito bom o serviço prestado por Heiberg aos Elementos de Euclides. Nem, de fato, depois da sua morte, códices novos, além do que ele examinara, foram comparados nem a nossa colheita de papiros forneceu novas lições. Ora, justamente, terminando a minha edição dos Elementos de Euclides, que foi impressa em Atenas, nos anos 1952-1957, eu próprio reconheci a perfeição e a exatidão da edição Heiberguiana [12].

Fechemos logo, no entanto, as portas do templo em que acabamos de acender as velas no altar da adoração, para que o vento da discordância não as apague todas. Há, no entanto, uma voz que clama na ágora e seria prudente ouvi-la.

O historiador da matemática Wilbur R. Knorr, prematuramente falecido, publicou na revista Centaurus, 38 (1996) um longo trabalho – 69 páginas – com o título “The Wrong Text of Euclid: on Heiberg’s Text and its Alternatives” [13]. Eis o seu resumo:

Em dois artigos publicados em 1881 e 1884, dois jovens acadêmicos, Martin Klamroth e Johan L. Heiberg, engajaram-se em um breve debate sobre as escolhas textuais que deveriam governar a publicação de uma nova edição crítica dos Elementos de Euclides. Esse curto debate parece ter assentado o problema a favor de Heiberg sobre o que deveria ser tomado como o texto definitivo dos Elementos de Euclides. Mas a questão deve ser considerada de novo porque há boas razões para a reivindicação de que Klamroth estava certo, e Heiberg, errado. Se assim for, temos consultado e continuamos a consultar o texto errado para interpretar a tradição euclidiana. A fim de dar substância a essa afirmação, a questão textual debatida por Klamroth e Heiberg é ensaiada de novo, e as razões principais trazidas por Heiberg contra a posição de Klamroth são reconstruídas. Espécimes de três amplas áreas de evidência – estrutural, linguística e técnica – serão considerados. Eles revelam como a tradição medieval do texto advogado por Klamroth exibe superioridade em relação à tradição grega promovida por Heiberg. Uma tal reconstituição dos textos tem o potencial de mudar significantemente nossa compreensão da matemática antiga.

Se Knorr tem ou não razão é difícil de decidir. O peso da tradição é esmagador e o tempo passado entre aquele debate mencionado e hoje ajuda a sedimentar a opinião favorável à escolha de Heiberg.

De um modo ou de outro, a existência de divergência socorre-nos quando nos preparamos para responder às perguntas iniciais: “O que significa falar do texto grego dos Elementos?” e “Qual o sentido de mencionar-se a edição de Heiberg–Stamatis?”; e, com isso, completar o círculo das considerações. A edição de Heiberg–Stamatis do texto grego dos Elementos é o que Heiberg diz, com a confirmação de Stamatis, ser a coisa mais próxima do texto original de Euclides.

[Continua]


Notas:

[1] [Euclides. A criação da matemática].

[2] MANN, T. “José e seus irmãos”. As histórias de Jacó. O jovem José. v.1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1983.

[3] RODO, J. E. Ariel. Campinas: Editora da Unicamp, 1991.

[4] PESSOA, F. Obra poética. Volume único. Rio de Janeiro: Companhia Nova Aguilar, 1965.

[5] Idem, ibidem.

[6] Idem, ibidem.

[7] PESSOA, F., ibidem.

[8] Crítica textual e técnica editorial. Stuttgart: B. G. Teubner, 1973.

[9] [Pequenos escritos escolhidos].

[10] [As obras de Euclides, traduzidas literalmente, com base em um manuscrito grego antiquíssimo, desconhecido até nossos dias].

[11] Nemo ex viris antiquæ geometriae peritis est quin putet nova editione Euclidis Elementorum in praesenti opus esse. Exemplaria enim praeclarae editionis Heibergianae iamdudum divendita sunt, studia autem ad Elementa pertinentia nostra aetate admodum increverunt. Qua de re cum a bibliopola honestissimo, hortatu Instituti scientiae antiquitatis Graecoromanae, quod auctoritate Academiae Scientiarum Germanicae Berlinensis constitutum est, invitatus essem, ut novam Euclidis Elementorum editionem curarem, gratissimo animo hoc negotium suscepi. Nam multos studiosos scientiae mathematicae, qui Graece sciunt, Euclidianum textum desiderare cognovi.

Valde autem mihi consilium bibliopolae honestissimi placuit, qui mihi suasit, ut translationem Latinam qua Heiberg editionem suam instruxerat omitterem, quo nova editio brevior in lucem prodiret. Patet enim linguae Graecae peritos Latina translatione non nimis egere. Quae cum ita sint, ratio novae editionis, ita ut infra indicatur, ordenata est.

[12] Quod ad textum attinet Heibergianae editionis vestigia ingredi statui. Nam inter omnes viros doctos Heiberg optime de Euclidis Elementis meritum esse constat. Neque enim post obitum eius codices novi, praeter quos ille inspexerat, collati sunt, neque seges papyrorum nobis novas lectiones praebuit. Ipse autem editionis Heibergianae perfectionem absolutionemque perspexi, cum meam Euclidis Elementorum editionem, quae annis 1952-1957 Athenis impressa est, absolverem.

[13] [O texto errado de Euclides: sobre o texto de Heiberg e suas alternativas].

[Continua em breve]

***

Leia mais em Elementos de Euclides

Leia mais em Sobre as Geometrias Não-Euclidianas e Não-Arquimédicas



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Filosofia da Matemática em Aristóteles e S. Tomás - Introdução


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Tempo de leitura: 12 minutos.

É com grande alegria que apresentamos uma tradução do Prólogo e da Introdução do livro La Filosofía de las Matemáticas en Santo Tomás, que traduzimos como A Filosofia da Matemática em Santo Tomás. Este livro foi escrito por José Alvarez Laso, C. M. F., Professor de Filosofia no Colégio Claretiano de Santa Cruz Zinacantepec. Foi publicado pelo Editorial Jus, México, 1952. Primeiramente quero agradecer a minha esposa pela tradução e revisão do texto em espanhol. As demais traduções são nossa. Futuramente teremos mais novidades deste livro. Aguardem!

PRÓLOGO 

Antes de entrar no assunto, convém citar aqui algumas advertências. E, primeiramente, para que ninguém ache que minha tese é um de tantos esforços para atribuir a Santo Tomás, sete séculos antes, o que agora dizemos, hei de explicar

A ocasião deste tema. Muitos matemáticos modernos e não poucos filósofos de todo tipo de escolas prestam grande atenção aos problemas filosóficos que a Matemática oferece, agrupados sob a denominação comum de Filosofia da Matemática.
Basta ler as últimas páginas da monografia de W. Dubislav, A filosofia da Matemática na Atualidade [Die Philosopie der Mathematik in der Gegenwart] (Berlín, 1932), para se convencer disso. 
Por outro lado, os escolásticos, esquecendo o exemplo dos grandes Mestres (veja a Conclusão), pouco ou nada fizeram neste campo estritamente metafísico. 
É, pois, este terreno como diz o P. Hoenen, Um campo de pesquisa para Escolástica (O Escolástico Moderno 12 [A field of research for Scholasticism (The Modern Schoolman 12)] [Nov. 1934] 15-18). 

Objeto desta pesquisa. Não é minha intenção propor uma filosofia da Matemática segundo a doutrina escolástica. Meu trabalho será mais modesto: colaborar com meu grãozinho de areia para este ideal preparando a história destes problemas na escolástica. 

Autor escolhido. E para sintetizar, na medida do possível, esta história, escolhi como autor central Santo Tomás de Aquino, que representa melhor que nenhum outro a doutrina escolástica. Ele reuniu toda a ciência anterior e dele derivam mais ou menos todos os Escolásticos posteriores. Por isso, creio que as 
Fontes principais deste trabalho devem ser os Comentários do Angélico aos livros do Estagirita [Aristóteles]. Assim, poderemos estudar paralelamente o pensamento do Filósofo e de seu melhor intérprete. Uma consequência prática é a maneira de citar ambas as referências o mais preciso possível. Somente os que quiseram consultar alguma vez o pensamento de Santo Tomás com os outros Comentadores antigos e modernos, verão a utilidade destas citações. 

Características do meu trabalho. Assim, pois, meu trabalho é primariamente histórico. Apresentar as soluções que Santo Tomás deu aos problemas que oferecia a matemática de seu século.
Em segundo lugar, meu trabalho deve ser crítico. Em dois sentidos: primeiro em relação aos problemas que o próprio Santo Tomás se propunha: estão plenamente resolvidos?; logo, em relação aos problemas de agora, as soluções tomistas podem ser aplicadas a eles? 

Método seguido. Eu segui o método histórico e documental, pesquisando o que de fato disse Santo Tomás. Método diametralmente oposto ao que segue D. García em seu artigo De metaphysica multitudinis ordinatione (Div. Thom. Plac. 31 [1928] 83-109; 607-638). [Sobre a metafísica da ordem do número].

Uso dos idiomas. O método documental exige a menor intervenção possível do pesquisador nos textos. Por isso, embora o texto da dissertação esteja na minha língua materna [espanhol], as citações estão sempre nos idiomas dos respectivos autores. 
É lamentável ter que dizer, mas é um fato, cito autores em nove línguas diferentes e nenhum em espanhol. 
Para maior comodidade, o índice de referências está em latim.


Divisão da tese. Fiz um esquema quase a priori sobre os problemas filosóficos que a Matemática oferece para ordenar, segundo ele, os materiais que estivesse recolhendo, mas logo tive a sorte de encontrar um belo texto de Santo Tomás que me deu uma magnífica divisão da matéria, segundo exponho no primeiro capítulo. 

A bibliografia que aparece nas páginas seguintes compreende, sistematicamente catalogados, todos e apenas os livros e artigos empregados para compor a dissertação. 

Fruto da minha pesquisa. Creio que o mérito principal do meu trabalho está em ter encontrado em Santo Tomás um esboço de Filosofia da Matemática, que é necessário desenhar e colorir com muito cuidado para poder apresentá-lo diante do público de nossos dias. 

Defeitos da minha dissertação. Certamente, terão muitos a serem delatados ao principiante. Mas, há três que eu mesmo vejo e que quero confessar aqui. 
Facilmente se nota que os últimos capítulos estão menos trabalhados, embora em parte se deva ao fato de que são menos filosóficos. 
Logo, teria que ler de novo todos os textos, para referendar mais a doutrina. Conheço mais textos dos que aparecem usados na dissertação como facilmente poderá constatar quem tivesse paciência para comparar o texto com o Apêndice. Talvez, em algum momento, teria que corrigir alguma frase ou polir alguma expressão, como tive que fazer em relação ao número. Na primeira redação, atribuía a Santo Tomás uma doutrina errônea sobre o objeto da aritmética, que depois tive a satisfação de constatar que era apenas de João de Santo Tomás e de outros que o copiavam (veja a nota 29 do cap. III). 
Por fim, em relação à matemática moderna, é vasta e tão variada a literatura, que não sei se terei escolhido sempre o que é típico e característico.

Devo manifestar minha sincera gratidão e reconhecimento ao R. P. Pedro Hoenen, S.J., sob cuja amável e sábia direção trabalhei. 
Devo recordar aqui a memória do falecido R. P. L. W. Keeler (que Deus o tenha), que tanto me ajudou na leitura dos Manuscritos. Que o bom Deus, para cuja maior glória trabalhávamos juntos na Biblioteca Vaticana, lhe tenha agraciado no céu por sua extrema bondade para comigo. 

México, D. F., 13 de abril de 1952, solenidade de Páscoa. 


INTRODUÇÃO 

A MATEMÁTICA EM SANTO TOMÁS 

Santo Tomás estudou a Aritmética e a Geometria com as demais disciplinas do Quadrivium na Universidade de Nápoles [1] nos anos de 1236 a 1239 [2].
Tão bem diligente sairia destas aulas, à medida que se abundam em suas obras filosóficas e teológicas as alusões à Matemática [3]. 
Não é minha intenção estudar esta introdução um ponto [4], que não tem nenhum interesse nem para a Matemática nem para a História [5]. 
Só quero registrar os dados necessários para demonstrar que Santo Tomás poderia refletir sobre a Matemática. 
Conhecia bem [6] Euclides [7]. Poucas vezes cita [8] a aritmética de Boécio [9]; mas todos sabem que os livros VII-IX de Euclides são pura aritmética. 
Sabido é também o lugar que ocupa a Matemática na classificação geral das ciências que faz Santo Tomás [10]. 
Quero encerrar esta breve nota com uma frase do grande historiador da Matemática M. Cantor, que demonstra o grande afeto e admiração que professava por Tomás de Aquino: “O matemático chama-os (Alberto Magno e Tomás de Aquino) com pesar de amigos da sua ciência” (Vorlesungen über Geschichte der Mathematik [Lições sobre a história da matemática], Leipzig, Teubner, 1892, vol. II, p. 86).

Notas:

[1] Veja os parágrafos em que os três primeiros biógrafos de Santo Tomás falam de seus estudos em Nápoles: 
O pai enviou seu filho a Nápoles para que ele pudesse ser completamente educado em gramática, dialética e retórica. Pois quando ele logo deixou Martinho, seu tutor de gramática, ele foi entregue ao seu professor Pedro, o Ibérico, que, tendo-o instruído em ciências lógicas e naturais”. Calo P., Vita S. Thomae A., ed. Prümmer, p. 20. 
Assim, seguindo o conselho dos pais, o menino foi enviado para Nápoles e aprendeu gramática e lógica com o Mestre Martinho, e ciências naturais com o Mestre Pedro da Ibéria.”. Tocco G., Historia B. Thomae de Aq., ed. Prümmer, p. 70. 
Em pouco tempo, portanto, quando ele fez grande progresso em gramática, lógica e filosofia natural...”. Guidonis B., Legenda Sancti Thomae de Aq., ed. Prummer, p. 70. 

[2] El P. Prümmer (Chronología vitae S. Thomae Aq., en Xenia Thomistica) atribui o ano 1235 como o primeiro ano de sua estadia em Nápoles. P. Walz (Delineatio vitae S. Thomae de Aquino, Romae, Angelico, 1927, p. 16) coloca "anno 1236 vel 1239". 

[3] Veja o índice dos lugares em que Santo Tomás fala de Matemática, posto como Apêndice desta dissertação. 

[4] Do ponto de vista sistemático, H. Meyer estudou este ponto em vários artigos de Philosophisches Jahrbuch publicados à parte depois. Sobre a Matemática, trata o volume 47 (1934) nas páginas 441-464. 

[5] Talvez, o nome de Santo Tomás deva figurar na história da Matemática outro conceito. Veja, de fato, o que diz Timerding (Die Verbreitung mathematisches Wissens und mathematischer Auffassung, Leipzig, Teubner, 1914 [A disseminação do conhecimento matemático e da compreensão matemática]):
Além da já mencionada tradução de Euclides por Campanus, devem ser mencionadas as traduções que, segundo consta, foram feitas por Guilherme de Mörbecke da Catóptrica de Heron e dos escritos arquimedianos a pedido de Tomás de Aquino (1274)”. Zeuthen (Die Mathematik in Altertum und im Mittelalter, Leipzig, Teubner, 1912 [A Matemática na Antiguidade e na Idade Média]), atribui este mérito a Witelo. Veja Cantor, Vorlesunger über Geschichte der Mathematik, Leipzig, Teubner, 1892, Vol. II, p. 89.

[6] Veja, por exemplo, estes textos:

Explica o nome Elemento

III Met. 1.8, n. 424.

  “                “             “

V Met. 1.4, n. 801.

Cita o livro I de Euclides

III De An. 1.1, n. 577.

               III

II De cae 1.26. n. 6. 

                 IV

    De mem 1.7, n. 392

                 X

I An. Pos. 1.4, n. 13



[7] Segundo Montucla (Histoire des Mathématiques, Paris, 1758, I, p. 213), só no século XIII começaram os latinos a conhecer Euclides no mesmo texto.

[8] Veja, por exemplo: 
                    De pot. q. 3, a. 16 sed contra 4. 
                    I Sent. d. 24; q. 1 ob. 2. 
                    De Trin. q. 1. a. 4 ad 2. 
                            q. 4 á. 1 arg. 1. 

[9] Veja o juízo que faz Montucla (vol. I, p. 492), das obras matemáticas de Boécio: 
Sua aritmética e geometria são, estritamente falando, apenas traduções livres do primeiro (Nicômaco) e do último (Euclides), onde ele preservou para nós muitas características interessantes da história dessas ciências”.

[10] Veja, por exemplo, no recente livro de H. Meyer, Thomas von Aquino, Bonn, 1938, p. 399-407. 

***

Leia mais em Filosofia Tomista da Matemática

Leia mais em Aristotelismo e Filosofia da Matemática



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