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Sobre Euclides, sua Geometria e seus Elementos - parte 1

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Tempo de leitura: 55 minutos.

Apresentamos o Prefácio e parte da Introdução do livro Os Elementos de Euclides, traduzido por Irineu Bicudo, Editora Unesp, 2009.

A parte II pode ser encontrada aqui (em breve) e a parte III aqui (em breve).


Prefácio


É-me forte a impressão de, desde sempre, eu ter querido estudar o grego clássico. Lembro com que sentimento de encanto folheava o caderno que um vizinho me emprestara, contendo as lições de um quase nada daquela língua que ele aprendera quando seminarista. Cursava eu, então, a antiga escola primária. Essa vontade cresceu com as aulas de latim nas quatro séries ginasiais. Em várias épocas, cheguei a comprar gramáticas e livros com textos em grego. Mas a oportunidade (καιρός: “Quando pousa / o pássaro // quando acorda / o espelho // quando amadurece / a hora”) [1] só surgiu, de fato, arrebatadora, no segundo semestre de 1988, na disciplina de Língua Grega, ministrada pelo Professor Dr. Henrique Graciano Murachco, no Programa de Extensão Universitária da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Então, por dez anos, sempre que minhas atividades como professor, vice-diretor e depois diretor do Instituto de Geociências e Exatas da UNESP de Rio Claro e algumas viagens ao exterior me permitiram, participei com dedicação e entusiasmo, nas tardes das sextas-feiras, com um grupo de pessoas de várias procedências profissionais, do que o Professor Henrique chamava de “Oficina de Tradução”. Ali vertemos para o português longas passagens de Homero, Heródoto, Píndaro, Sófocles, Platão, Xenofonte, Aristóteles. O meu envolvimento com as letras aumentava com o tempo, e a consequência disso foram os múltiplos e honrosos convites, sempre aceitos, para participar de bancas examinadoras de concurso para ingresso de professor, de teses de doutoramento, de concurso de livre-docência e de dois concursos de professor titular, todos do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da velha universidade.

O livro que ora dou a público é o fruto amadurecido, desde então, pelos

longos anos de aprendizagem. Com ele viso, evidentemente, aos estudantes de Matemática e aos professores dessa ciência. Incluo no público-alvo também as pessoas cultas em geral que se interessem pelas conquistas gregas na Antiguidade, os estudantes de Filosofia e os de Letras Clássicas (grego), cujo curso, do meu ponto de vista, deixa aberta uma imensa lacuna no conhecimento da cultura grega ao não estudar obras matemáticas e hipocráticas, grandiosos monumentos daquela civilização.

Proclus, para mostrar a excelência do trabalho de Euclides, descreve algumas qualidades que um trabalho desse tipo deva ter, e que o de Euclides, de fato, tem.

Assim, diz:

É preciso a obra que tal desembaraçar-se de todo o supérfluo – pois isso é um obstáculo à instrução [2];

muita preocupação (deve) ter sido efetivada relativa a clarezas e, ao mesmo tempo, a concisões – pois os contrários dessas turvam a nossa inteligência [3].

De fato, a prática de Euclides frequentemente contempla a concisão – por exemplo, em lugar de “o quadrado sobre a AB (isto é, de lado AB)” diz, na maioria das vezes, “o sobre a AB”; e, “o pelas AB, CD”, em lugar de “o retângulo contido pelas AB, CD (ou seja, de lados AB, CD)”; “cortar em duas” sempre significa “cortar em duas partes iguais (isto é, bissectar)” etc. Mas se, por um lado, a concisão leva, entre outras coisas, a esse encurtamento das expressões, que mantive na tradução em respeito ao estilo euclidiano, ao contrário do que faz a recente versão francesa que se farta de palavras ausentes no grego, por outro lado, a clareza não abandona o leitor atencioso que logo se habituará com essas particularidades.

Chamo a atenção para o fato de, em grego, o termo “lado” (πλευρά) ser feminino e assim só esse gênero aparecer ao referir-se o texto a “o lado AB do triângulo...” ou a “a reta (ou seja, segmento) AB do triângulo...”. Então, a tradução usa, nesses casos, indiferentemente, os artigos masculino ou feminino.

Previno, por fim, a quem possa interessar, que é preciso fôlego para acompanhar muitíssimas das demonstrações que aqui se encontram, e determinação. Garanto, no entanto, que, vencida a inércia, ultrapassado o obstáculo, alcançado o objetivo com a compreensão do resultado, cabe a recompensa de ter mergulhado no próprio processo do que denominamos “pensar” e de haver podido apreendê-lo em toda a sua abrangência. Mais: brotará disso a convicção de que, se com Homero a língua grega alcançou a perfeição, atinge com Euclides a precisão. E o método formular, que consiste em usar um conjunto de frases fixas que cobrem muitas ideias e situações comuns, poderoso auxílio à memória em um tempo de cultura e de ensino eminentemente orais, serve para aproximar o geômetra do poeta e então mostrar que perfeição e precisão podem ser faces da mesma medalha.

Agradeço à minha esposa, Elizabeth Christina Plombon, que digitou com carinho e cuidado todo o trabalho, confeccionando-lhe as, muitas vezes, complicadas figuras, e sendo de importante ajuda nas revisões; ao Prof. Dr. Henrique Murachco, pelo ensino e a amizade, e ao Prof. Dr. José Rodrigues Seabra Filho, docente de latim da USP, e companheiro daquelas sextas-feiras, por ter conferido comigo a tradução que fiz do Prefácio Latino de Stamatis. 

Sou o único responsável por todas as traduções do grego e do latim, e por quase todas as do inglês, francês, alemão e italiano.

Pois, tendo aprendido algo, jamais neguei, fazendo o conhecimento ser como uma descoberta minha; mas louvo como sábio o que me instruiu, tornando públicas as coisas que aprendi com ele.

Platão, Hippias Menor, 372 c5-8 [4]

P.S.: (i) Conforme salienta Kirk (The Songs of Homer [5]: “Finally that perennial problem, the spelling of Greek names.” [6]), a solução que adotei, nem sempre com sucesso, foi a de preservar as formas usuais em português dos mais conhecidos, e prover para os outros a latinizada, como, de hábito, praticam-na os de língua inglesa.

(ii) O uso de colchetes na tradução reproduz o que se encontra no texto grego e, ali, indica o que Heiberg julga ter sido inserido por terceiros no escrito de Euclides.

(iii) Ensina Said Ali na sua Gramática (p.171-2):

Nos enunciados de caráter condicional, em que a hipótese é um fato inexistente cuja realização não se espera ou não parece provável, emprega-se o imperfeito do conjuntivo para esta hipótese condicionante, e o futuro do pretérito para a oração principal.

Na linguagem familiar costuma-se substituir o futuro do pretérito pela forma do imperfeito do indicativo. É substituição permitida em linguagem literária (grifo meu):

“Se Deus nos deixara tentar mais do que podem as nossas forças, então tínhamos justa causa de recusar as tentações.” (Vieira)

Por isso, apoiado na autoridade de um Vieira, vali-me dessa forma na tradução, por exemplo, das Proposições I.19, I.25 etc., ficando assim rente ao original.

Irineu Bicudo


Notas:

[1] FONTELA, O. Poesia Reunida. São Paulo: 7 Letras/CosacNaify, 2006 [1969/1996].

[2] δεῖ δὲ τὴν τοιαύτην πραγματεία πᾶν μὲν ἀπεσκευάσθαι τὸ περιττόν ὲμπόδιον γὰπ τοῦτο πρὸς τὴν μάθησιν

[3] σαφανείας δ'ἂμα καὶ συντομίας πολλὴν πεποιῆσθαι πρόνοιαν τὰ γὰρ ἐπιθολοῖ τὴν διάνοιαν ἠμῶν.

[4] οὺ γὰρ πώποτε ἒξαρνος ἐγενόμην μαθών τι, ὲμαυτοῦ ποιούμενος τὸ μὰθνμα εῖναι ὠς εὔρημα. ὰλλ'ὲγκωμιάζω τὸν διδάξαντά με ώς σοφὸν ὂντα, ὰποφαίνων ἂ ἔμαθον παρ'αὐτου.

[5] Os poemas de Homero, Prefácio.

[6] [“Finalmente, aquele problema constante, a grafia dos nomes gregos”].


Introdução


Sinto-me compelido ao trabalho literário: (...) pelo meu
não reconhecimento da fronteira realidade-irrealidade;
(...) pelo meu amor platônico às matemáticas; (...) 
porque através do lirismo propendo à geometria.

Murilo Mendes

Sinopse

No prefácio do seu livro Euclid. The Creation of Mathematics [1], o matemático alemão Benno Artmann escreve:

Este livro é para todos os amantes da matemática. É uma tentativa de entender a natureza da matemática do ponto de vista da sua fonte antiga mais importante.

Mesmo que o material coberto por Euclides possa ser considerado elementar na sua maior parte, o modo como ele o apresenta estabeleceu o padrão por mais de dois mil anos. Conhecer os Elementos de Euclides pode ser da mesma importância para o matemático hoje que o conhecimento da arquitetura grega para um arquiteto.

É claro que nenhum arquiteto contemporâneo construirá um templo dórico, muito menos organizará um local de construção como os antigos o faziam. Mas, para o treino do julgamento estético de um arquiteto, um conhecimento da herança grega é indispensável. Concordo com Peter Hilton quando diz que a matemática genuína constitui uma das mais finas expressões do espírito humano, e posso acrescentar que aqui, como em tantos outros casos, aprendemos dos gregos aquela linguagem de expressão.

Enquanto apresenta a geometria e a aritmética, Euclides ensina-nos aspectos essenciais da matemática em um sentido muito mais geral. Exibe o fundamento axiomático de uma teoria matemática e o seu desenvolvimento consciente rumo à solução de um problema específico. Vemos como a abstração trabalha e impõe a apresentação estritamente dedutiva de uma teoria.

Aprendemos o que são definições criativas e como uma compreensão conceitual leva à classificação dos objetos relevantes. Euclides criou o famoso

algoritmo que leva o seu nome para a solução de problemas específicos na aritmética e mostrou-nos como dominar o infinito nas suas várias manifestações.

Um dos poderes maiores do pensamento científico é a habilidade de desvelar verdades que são visíveis somente “aos olhos da mente”, como diz Platão, e de desenvolver modos e meios de lidar com elas. É isso que Euclides faz no caso das magnitudes irracionais ou incomensuráveis. E, finalmente, nos Elementos encontramos tantas amostras de bela matemática que são facilmente acessíveis e que podem ser minuciosamente estudadas por qualquer um que possua um treino mínimo em matemática.

Vendo tais fenômenos gerais do pensamento matemático que são tão válidos hoje quanto o foram no tempo dos antigos gregos, não podemos deixar de concordar com o filósofo Immanuel Kant, que escreveu em 1783, na introdução à sua filosofia sob o título “Afinal, é a metafísica possível?”: “Não há absolutamente livro na metafísica como temos na matemática. Se quiserdes conhecer o que é a matemática, basta olhardes os Elementos de Euclides.”

Benno Artmann ofereceu-nos, na passagem que acabamos de enunciar, um voo panorâmico da famosa obra do geômetra grego. Mas, do alto, os montes pouco se destacam, fios de água parecem os rios, a vegetação é apenas uma cobertura verde. Há mister de viajar por terra.

A citação de Kant faz eco ao fato de, até o final do século XIX, ser Euclides sinônimo de geometria, daquela geometria de régua e compasso. Assim, a história dos Elementos confunde-se, em larga escala, com a história da matemática grega. Mas a história de um domínio tão relevante do pensamento humano dificilmente se desvincularia da história mesma do homem. Hajamos, pois, por bem começar a nossa história, a nossa expedição terrestre, pelo era uma vez na antiga Grécia.


Era uma vez


Estranho animal é este bicho homem (...)

José Saramago

Certamente, é um assunto admiravelmente vão, variado
e inconstante o homem. É difícil fundar nele julgamento
firme e uniforme.

Michel de Montaigne

Sustentam muitos pensadores ser o homem uma estranha criatura. De fato oscila, constantemente, entre o passado, que deseja conhecer, e o imperscrutável futuro, incapaz de aceitar que a vida de todos os dias retoma, invariavelmente, a cada dia, o seu dia.

A memória prende-o ao que foi; o desejo, ao que será.

Como antecipar o que ainda não é equivale a chorar antes do tempo, e como o que há de ser virá, claro, na madrugada, com os seus raios, deixemos de lado o porvir, que a si próprio se basta, pois os invisíveis dedos das coisas e dos atos idos, próximos e longínquos, tecem, no tear do Fado, o manto que nos vestirá para sempre.

Somos o que os séculos nos fizeram!

O que somos de razão e vontade, o que somos de pensamento e ação, o que somos de sensibilidade e frieza, de trabalho e lazer, de descrença e esperança, o que somos de bílis e coração é terem existido outros, é terem traçado rumos, e terem aberto estradas, é terem apontado caminhos!

Eis nossos predecessores!

Para entendermos a nós próprios é preciso entendê-los. E os predecessores dos predecessores; e assim por diante, continuando essa busca, pois é sem fundo o poço do passado da espécie humana, essa essência enigmática, cujo mistério “inclui o nosso próprio mistério e é o alfa e o ômega de todas as nossas questões, emprestando um imediatismo candente a tudo o que dizemos e um significado a todo o nosso esforço”[2].

Consultemos, pois, os velhos registros, leiamos as obras de antanho que chegaram até nós, procuremos em alfarrábios o que pareça haver de nós nos que vieram antes, e, assim, começaremos a compreender o que pensávamos saber: quem somos, o que nos é possível conhecer, que estrelas e que sóis poderemos acrescentar ao universo herdado.

Em nosso caso de povo ocidental e no que tange à ciência da nossa predileção, a busca conduz-nos ao era uma vez.

Era uma vez, acima de todas, em que “os atributos da juventude humana tornam-se os atributos de um povo, as características de uma civilização” e em que

um sopro de encantadora adolescência passou roçando pelo rosto de uma raça. Quando a Grécia nasceu, os deuses presentearam-na com o segredo da sua imorredoura juventude. A Grécia é a alma jovem. “Aquele que, em Delfos, contempla a densa multidão de jônios”, diz um dos hinos homéricos, “imagina que eles jamais haverão de envelhecer” [3].

Michelet comparou a atividade da alma helênica a um jogo festivo, em torno de que se reúnem e sorriem todas as nações do mundo. Mas, desse jogo de crianças, nas praias do arquipélago e à sombra das oliveiras da Jônia, nasceram a Arte, a Filosofia, a livre reflexão, “a curiosidade da investigação, a consciência da dignidade humana, todos esses estímulos que ainda são a nossa inspiração e orgulho”, e a Matemática.

Era uma vez a origem do pensamento ocidental. A Filosofia e a Matemática, no período mais pujante daquele distante passado, falam o grego clássico.


O grego clássico


A língua grega é um dos ramos mais importantes do grupo linguístico chamado indo-europeu. A sua origem remonta ao “indo-europeu primitivo”. O que possui em palavras e formas de flexão é herança, na sua maior parte, de um tempo que precede a sua existência separada.

Os traços característicos, no entanto, que dão ao grego a sua peculiaridade frente às outras línguas suas irmãs, surgiram, manifestadamente, só depois do desmembramento da primitiva comunidade de povos, e é provável que esse ajuste tenha tido lugar já em solo grego.

A ideia de um “grego primitivo” homogêneo, isto é, com uma verdadeira unidade, é problemática.

O que podemos dizer é que, no momento em que a encontramos nos documentos autênticos, a língua grega está dividida em certo número de dialetos falados, classificáveis comodamente em quatro grupos: o jônio, o árcade-cipriota, o eólio e os diferentes falares chamados comumente dórios.

E. Ragon ensina-nos que, à exceção do árcade-cipriota, cada um desses grupos desenvolveu uma língua literária, cuja tonalidade morfológica varia com a data dos autores e com o gênero literário adotado.

O primeiro daqueles dialetos, o jônio, falado na Ásia Menor, tem por marca evitar as contrações e foi empregado pelos prosadores Heródoto e Hipócrates. Mas, misturado a elementos eólios, serve ao ápice da perfeição, sendo o pano de fundo dos poemas homéricos que influenciaram a língua de todos os poetas da Grécia.

O pouco que resta do eólio é o que conhecemos das odes de Alceu e da grande Safo.

O dialeto dório, de sons graves e musicais, está gravado no bronze eterno dos poemas de Píndaro e de Teócrito.

Por fim, o grego clássico ou o dialeto ático, um ramo privilegiado do jônio. É o falado na áurea época de Atenas, os séculos V e IV a.C. Torna-se com Ésquilo, Sófocles e Eurípides a linguagem dos deuses e dos heróis; com Aristófanes é o idioma da sabedoria que zomba da sapiência; é história com Tucídides; defesa pública e exortação, com Isócrates, Ésquines e Demóstenes; memória e ensinamento com Xenofonte; e, acima de tudo, Verdade e Beleza, com Platão.

Para ter acesso a toda essa cultura grega, da qual a matemática é uma das importantes partes, o vestíbulo do conhecimento autêntico, há mister de aprender-lhe a língua. Como substituto dessa insubstituível necessidade, a tradução.


Princípios de fé desta tradução


Há, por certo, imensa gama de concepções a respeito do que deva ser o traduzir. No que tange à versão de uma obra científica, parece haver acordo em que a precisão não deva ser sacrificada no altar da sutileza. Parodiando Novalis, quanto mais precisa, mais verdadeira.

De um modo grosseiro, poderíamos classificar os tipos de tradução como traduções à francesa e traduções à alemã.

O ideal das primeiras encontra expressão na passagem: “Se há algum mérito em traduzir, só pode ser o de aperfeiçoar, se possível, o seu original, de embelezá-lo, de apropriar-se dele, dar-lhe um ar nacional e naturalizar, de certa maneira, essa planta estrangeira”.

A meta das segundas está refletida nas seguintes críticas de Schlegel e de Goethe àquelas do primeiro grupo. Schlegel: “(...) é como se eles desejassem que cada estrangeiro, no país deles, se comportasse e se vestisse segundo os seus costumes, o que os leva a nunca conhecerem realmente um estrangeiro”. Goethe: “O francês, assim como adapta à sua garganta as palavras estrangeiras, faz o mesmo com os sentimentos, os pensamentos e até os objetos; exige a qualquer preço, para cada fruto estrangeiro, um equivalente que tenha crescido no seu próprio território”.

Evidentemente, esse modo de agrupar nada tem a ver com a nacionalidade do tradutor, mas com a sua maneira de trabalhar. Freud, por exemplo, traduzia “à francesa”, pois, segundo Jones, na sua biografia do pai da psicanálise, este “em vez de transcrever laboriosamente, a partir da língua estrangeira, idiotismos e todo o resto, lia um trecho, fechava o livro e perguntava-se como um escritor alemão teria vestido os mesmos pensamentos”.

Chateaubriand, o célebre escritor francês, mantém, sem reservas, o ponto de vista contrário, na sua tradução de Milton:

Se eu quisesse ter feito apenas uma tradução elegante do Paraíso perdido, talvez se considere que tenho suficiente conhecimento da arte para que não me fosse impossível atingir a altura de uma tradução dessa natureza; mas o que empreendi foi uma tradução literal, em toda força do termo, uma tradução que uma criança e um poeta poderão acompanhar no texto, linha por linha, palavra por palavra, como um dicionário aberto sob os seus olhos.

Por entendermos que a tradução de um texto antigo, de uma tradição com pensamentos próprios e próprios modos de expressão é um ato de reverência e entrega, adotamos, como Chateaubriand, uma versão literal, “em toda a força do termo”, esperando acordar no leitor a curiosidade que o conduza a acompanhar a tradução contra o original, “linha por linha, palavra por palavra”. Sendo o grego uma língua sintética e o português, uma analítica, é fácil dar-se conta do grau de afastamento das suas sintaxes. Por isso, por permanecermos o mais possível ligado ao original, prevenimos poder o leitor estranhar algumas vezes o resultado alcançado.

Usamos como texto grego a edição de Heiberg-Stamatis, da Editora Teubner, de Leipzig, 1969-1977.


O texto grego e a Ecdótica


O que significa falar do texto grego dos Elementos de Euclides? Qual o sentido de se mencionar a edição de Heiberg-Stamatis?

Tendo essa obra sido escrita por volta do final do século IV a.C., é difícil que se possa imaginar ter chegado até nós o manuscrito do seu autor, o chamado manuscrito autógrafo. De fato, não possuímos tais manuscritos dos autores clássicos – gregos e latinos. O tempo, esse “deus atroz que os próprios filhos devora sempre”[4], é a correnteza que leva os dias, os homens, os saberes. Mas a obra de valor a tudo afronta e na placa da memória “grava seu ser / durando nela” [5]. Se não temos os originais, possuímos cópias. Infelizmente, o que nelas reluz é só imitação do ouro. De fato, “os deuses vendem quando dão” [6], pois quem diz cópia, diz erro. Para agravar a situação, relativamente aos Elementos, os manuscritos mais antigos sobreviventes distam séculos de Euclides.

Como o arqueólogo tenta, a partir de pequenas peças de evidência, reconstruir a vida e a cultura de povos antigos, o filólogo, voltado à Ecdótica, trata de, com apoio nos manuscritos, trazer à luz, por reconstituição, aquele original, o texto autógrafo, o arquétipo de que os que temos são cópias. O assim idealmente produzido, com todo o aparato da crítica textual ou Ecdótica (do verbo grego ἐκδίδωμι “publicar”), é referido como o texto crítico da obra em questão.

Como é produzido o texto crítico?

É preciso lembrar, primeiramente, que muitos autores clássicos chegaram até os dias de hoje em manuscritos em pergaminho ou em papel, que raramente são anteriores ao século IX, e frequentemente são até do século XVI. Alguns trabalhos foram preservados em um único manuscrito, outros, em centenas. Muitos manuscritos clássicos estão agora em bibliotecas europeias ou em coleções de museus, alguns também em monastérios, particularmente da Grécia, e alguns pertencendo a particulares; há-os ainda em lugares como Istambul ou Jerusalém, ou em bibliotecas americanas. Entre as maiores coleções, é lídimo mencionar aquelas da Biblioteca do Vaticano, de especial importância no nosso caso – em virtude do manuscrito Gr. 190 –, da Ambrosiana em Milão, da Marciana em Veneza, da Österreichische Nationalbibliothek em Viena, da Bibliothèque Nationale em Paris e do British Museum em Londres.

De volta, então, à edição crítica de um texto da Antiguidade. Para levá-la a termo, há duas etapas a cumprir:

(i) A da fixação do texto, isto é, o seu preparo segundo as normas da crítica textual;

(ii) A da apresentação do texto, a sua organização técnica, contemplando, em geral, os seguintes elementos elucidativos: história dos manuscritos usados, informações sobre os critérios adotados, aparato crítico (certamente o elemento mais importante) etc., tendo em vista a sua publicação.

Quanto a autores gregos e romanos, existem editoras que se notabilizam pela publicação das suas edições críticas, como a Editora Teubner (Teubner Verlag) de Leipzig, com a sua Bibliotheca Scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana, por certo a mais importante e abrangente, a Editora da Universidade de Oxford, com a sua Scriptorum Classicorum Oxoniensis, a Société D’Édition “Les Belles Lettres”, Paris, e a sua Collection des Universités de France, sob os auspícios da Association Guillaume Budé e a Harvard University Press com a Loeb Classical Library.

No que segue, visamos a dar uma pálida ideia da complexidade envolvida nos dois passos acima mencionados.


A fixação do texto


Observada a doutrina de Karl Lachmann, o fundador da moderna crítica textual, a fixação do texto passa por uma série de operações agrupadas em três fases, a saber, recensio (do verbo latino recensere: “fazer uma revisão”), estemática (de stemma codicum: “a árvore genealógica dos códices” – essa fase é referida por Lachmann como originem detegere: “descobrir a origem, revelar a ascendência”) e emendatio (de emendere: “emendar, corrigir”).

A recensio consiste na pesquisa e coleta de todo o material existente de uma obra. Isso constitui a sua tradição, que pode ser direta – formada pelos seus manuscritos – ou indireta, compreendendo as fontes, as traduções, as citações, os comentários, as glosas e as paráfrases, as alusões e as imitações, vale dizer, tudo o que circula à volta da obra, que é dela sem ser ela própria.

Reconhecidos os testemunhos obtidos, passa-se à collatio codicum, a “comparação dos manuscritos”. Faz-se o cotejo de tudo o que se possua da tradição direta contra um manuscrito mais completo ou que pareça bom, denominado o exemplar de colação. Dessa operação resultará o expurgo dos testemunhos inúteis, a eliminatio codicum descriptorum, rejeição das cópias coincidentes, de acordo com a máxima filológica frustra fit per plura quod fieri potest per pauciora (“é feito inutilmente por meio de muitos o que pode ser feito por meio de poucos”). Existindo o modelo, rejeita-se a sua cópia. Com essa eliminação termina a primeira fase.

A análise acurada dos manuscritos – principalmente o confronto dos chamados lugares ou pontos críticos e o exame sistemático dos chamados erros comuns – possibilita estabelecer tanto a dependência entre os manuscritos quanto a afinidade ou parentesco entre eles. Aqui a hipótese tomada é “pouco, simples e razoável”. Se o mesmo erro ocorrer em dois manuscritos, é razoável considerar não terem surgido independentemente, a menos que esteja envolvido um engano muito simples e natural. Depois, supõe-se que o copista não corrija o trabalho do seu predecessor. Uma consequência disso, em conjunção com a propensão dos seres humanos de cometerem erros – “os deuses vendem quando dão” [7] – é que os textos se tornem mais e mais corrompidos com as sucessivas cópias. O que resulta dessas hipóteses de trabalho é o estabelecimento da árvore genealógica dos códices, stemma codicum, depois de arrolados os elementos da tradição em famílias, cada uma formada segundo os pontos críticos comuns, e de construídos, caso necessário, os cabíveis subarquétipos (os “pais das famílias”) e o arquétipo ou codex interpositus (“o pai de todos”), aquele que se interpõe entre o original e as cópias da tradição, e que tomará o papel do original perdido “em negro vaso / de água do esquecimento”. O sistema assinala a dependência e também a contaminação que pode existir entre exemplares de famílias distintas. Assim a estemática é feita.

A reconstituição de uma obra clássica finda com a emendatio, a parada mais importante nessa verdadeira via crucis, pois, de novo, vale o postulado da tradição manuscrita: “quem diz cópia, diz erro”. O exame de qualquer cópia (manuscrito apógrafo) revela o seu caráter contingente: passagens mal transcritas, obscuras, com interpolações, discrepâncias gramaticais e estilísticas com o que se conhece do autor, e muitos outros problemas. Grande desafio ao filólogo-editor no seu afã de restabelecer, ou ao menos aproximar-se o mais possível do que fora um dia a obra original.

Diante do erro, o editor procede segundo as condições da tradição manuscrita, empregando a bateria do seu conhecimento geral, daquele da obra e da época em que floresceu o seu autor e também da sua intuição divinatória, e isso é, a mais das vezes, um trabalho de gigante. Prezemos, pois, e muito, os filólogos-editores dos textos da Antiguidade.

Se a correção dos erros for possibilitada pelos próprios manuscritos e pelo que os demais testemunhos coletados oferecem, tem-se a denominada emendatio ope codicum, “correção com a ajuda dos manuscritos”. Caso tal auxílio não seja suficiente à consecução da tarefa, há o editor de recorrer à sua intuição e aos seus saberes, e ter-se-á a dita emendatio ope ingenii ou emendatio ope conjecturae ou ainda divinatio ou crítica conjectural.

Está, pois, dada conta da (i) fixação do texto.


A apresentação do texto


Na (ii) apresentação do texto reconstituído, o arquétipo do qual todos os manuscritos são cópias, vale ressaltar o aparato crítico, isto é, as variantes encontradas, dispostas no pé de cada página, com a indicação dos manuscritos em que figuram. Com isso, o editor oferece a oportunidade de o leitor fazer a sua própria escolha da expressão que deva estar em determinado ponto do texto, com um possível significado novo para a passagem que a contenha.

A fim de que se avalie a importância da edição crítica com o seu respectivo aparato para quem se interessa pela Antiguidade e tencione estudar as próprias obras em grego (ou em latim), transcrevemos um trecho do início do livro Textual Criticism and Editorial Technique, de M. L.West [8], helenista e editor de clássicos:

Edward Fraenkel, na sua introdução aos Ausgewählte Kleine Schriften [9], de [Friedrich] Leo conta a seguinte experiência traumática que teve quando jovem estudante:

“Eu tinha, por aquele tempo, lido a maior parte de Aristófanes e comecei a falar com demasiado entusiasmo sobre isso a Leo e a crescer em eloquência sobre a magia dessa poesia, a beleza das odes corais, e assim por diante. Leo deixou-me falar, talvez por dez minutos, sem mostrar qualquer sinal de desaprovação ou impaciência. Quando terminei, perguntou: ‘Em que edição você leu Aristófanes?’ Pensei: ele não estava ouvindo? O que a sua questão tinha a ver com o que eu lhe dissera? Depois de uma agitada hesitação de momento, respondi: ‘A Teubner.’ Leo: ‘Oh, você leu Aristófanes sem um aparato crítico.’ Disse-o bem calmamente, sem qualquer aspereza, sem nem um traço de sarcasmo, apenas sinceramente surpreso que fosse possível a um jovem tolerantemente inteligente fazer tal coisa. Olhei para o gramado próximo e tive uma única, irresistível sensação: νῦν μοι χάνοι εὐρεῖα χθῶν (‘agora que a terra se entreabra para mim’, Ilíada 4,182). Posteriormente, pareceu-me que naquele momento entendi o significado real da sabedoria.”

(...)

Segue que qualquer um que queira fazer sério uso de textos antigos deve prestar atenção às incertezas da transmissão; mesmo a beleza das odes corais que ele admira tanto pode confirmar-se haver nelas uma mistura de conjecturas editoriais, e se ele não estiver interessado na autenticidade e confiança de pormenores, poderá ser um amante verdadeiro da beleza, porém não um sério estudante da Antiguidade.


A edição crítica dos Elementos


Théon de Alexandria, pai de Hypatia – a primeira mulher a ter o nome preservado pela história da matemática –, foi um eminente e influente estudioso do século IV. No seu Comentário ao tratado astronômico de Cláudio Ptolomeu de Alexandria, conhecido como Almageste (do árabe almajistí, adaptação de al, o artigo definido árabe, e do adjetivo superlativo grego μεγίστη (entenda-se μεγίστη σύνταξις), isto é, “a maior composição”, “o maior tratado sistemático”), escreve a certa altura: “Mas que setores em círculos iguais estão entre si como os ângulos sobre que se apoiam foi provado por mim na minha edição dos Elementos, no final do sexto livro”.

Sabemos então, da própria pena do comentarista, ter ele editado a obra de Euclides, com a adicional informação de ser da sua lavra a segunda parte da “Proposição XXXIII” do Livro VI, como encontrada em quase todos os manuscritos remanescentes. Daí provirem tais manuscritos daquela edição de Théon. Aliás, a maior parte deles traz no seu título ou a frase ἐκ τῆς Θέωνος ἐκδόσεως (“da edição de Théon”) ou ἀπὸ συνουσιῶν τοῦ Θέωνος (“das aulas de Théon” ou “dos ensinamentos de Théon”).

Desse modo, qualquer edição dos Elementos feita anteriormente a 1814 era baseada numa família de manuscritos cujo arquétipo era o texto dado à luz por Théon.

Para conta do que então ocorreu, fazendo toda a diferença, mudando o rumo da história das edições dos Elementos, citamos, por extenso, um trecho do prefácio de François Peyrard ao seu trabalho Les œuvres D’Euclide, traduites littéralement, d’après un manuscript grec très-ancien, resté inconu jusqu’a nos jours [10], Paris, 1819:

No prefácio da minha tradução dos Livros I, II, III, IV, V, VI, XI e XII dos Elementos de Euclides, que apareceu em 1804, e que eu fizera segundo a edição de Oxford, propus-me o compromisso de publicar as traduções completas de Euclides, de Arquimedes e de Apolônio. A minha tradução das Obras de Arquimedes apareceu em 1808. Antes de dar à impressão a minha tradução das Obras de Euclides, quis consultar os manuscritos da Biblioteca do Rei. Esses manuscritos, vinte e três em número, foram-me confiados, e não tardei a me aperceber que esses manuscritos preenchiam lacunas, restabeleciam passagens alteradas que se encontram na edição da Basileia e naquela de Oxford, cujo texto grego é apenas uma cópia frequentemente infiel, como provei na sequência do prefácio do terceiro volume do meu Euclides em três línguas. A maior parte desses manuscritos rejeita uma multidão de superficialidades que mãos ignaras tinham introduzido no texto, e que se encontra em grande parte nos textos das edições da Basileia e de Oxford.

Todos esses manuscritos, exceto o n.190, são, com pequena diferença, conformes uns aos outros, salvo os erros dos copistas e as superficialidades de que acabo de falar.

O manuscrito 190 traz todos os caracteres do nono século, ou pelo menos do começo do décimo, enquanto que os outros são-lhe posteriores de quatro, de cinco, e mesmo de seis séculos.

Esse manuscrito, cujos caracteres são da maior beleza, e sem ligaduras, restabelece lacunas e passagens alteradas, o que teria sido impossível de restabelecer com a ajuda dos outros manuscritos. Encontra-se nele uma multidão de lições que merecem, quase sem exceção, a preferência às lições dos outros manuscritos.

O manuscrito 190, que permanecera desconhecido até os nossos dias, pertencia à Biblioteca do Vaticano. Foi enviado de Roma a Paris por Monge e Bertholet, quando o exército francês tornou-se senhor daquela cidade.

Na segunda invasão dos exércitos coligados, a França viu-se obrigada a restituir todos os objetos de arte que haviam sido recolhidos aos povos vencidos. Por solicitação do Governo Francês, o Santo Padre houve por bem ter a bondade de deixar-me às mãos esse precioso manuscrito até a completa publicação do meu Euclides.

Tendo, então, à minha disposição esse manuscrito, como todos aqueles da Biblioteca do Rei, determinei-me a dar uma edição grega, latina e francesa das Obras de Euclides. O primeiro volume apareceu em 1814, o segundo em 1816, e o terceiro em 1818.

O manuscrito Gr. 190 da Biblioteca do Vaticano, denominado P por Heiberg, em homenagem ao padre Peyrard, o seu descobridor, não pertence, pois, à família theonina, e serviu como exemplar de colação para a edição crítica do filólogo dinamarquês, aquela que permanece aceita até hoje. A história das edições críticas dos Elementos assinala a seguinte sequência:

− A editio princips, “primeira edição”, Basileia, 1533, a cargo de Simon Grynaeus, baseada em dois manuscritos – Venetus Marcianus 301 e Paris Gr. 2343 – do século XVI, que estão entre os piores existentes. Essa edição servia de fundamento para;

− A de Oxford, Euclidis quae supersunt omnia. Ex recensione Davidis Gregorii M. D. Astronomiae Professoris Saviliani et R. S. S. Oxoniae, et Theatro Sheldiano. An. Dom. MDCCIII. Para levar a cabo o seu trabalho, Gregory consultou somente os manuscritos legados à Universidade por Sir Henry Savile, nos lugares em que o texto da Basileia diferia da excelente tradução latina de Commandinus (1572). Essa célebre edição das obras de Euclides é a única completa antes da de Heiberg e Menge;

− A de Peyrard, na trilíngue acima citada, na qual usou P somente para corrigir a da Basileia;

− A de E. F. August (1826-9), que segue P mais de perto, tendo também usado o manuscrito Vienense Gr. 103.

De Morgan recomenda vivamente o alcançado por August: “Ao estudioso que queira uma edição dos Elementos, devemos decididamente recomendar esta, por unir tudo o que foi feito para o texto do maior trabalho de Euclides”.

Tendo assim alcançado a sua hora fugaz de celebridade, esta edição acaba por cumprir o vaticínio do célebre historiador francês da matemática, Paul Tannery, em uma carta a Heiberg: “todos os trabalhos de erudição são em grande parte destinados a perecer para serem substituídos por outros”. Pois, coube precisamente a este sancionar aquela predição;

− A edição de Heiberg, baseada em P e nos melhores manuscritos theoninos, e considerando também outras fontes como Herão e Proclus, tornou-se o novo e definitivo texto grego dos Elementos;

− Por fim, a edição elaborada por E. S. Stamatis não lança no limbo das coisas ultrapassadas aquela do sábio dinamarquês, um trabalho de erudição que insiste em não perecer. Para dar fé do que dizemos, traduzimos do latim boa parte da adição ao prefácio (additamentum praefationis) de Heiberg, escrito por Stamatis ao texto crítico por ele dado a público.

Nenhum dentre os homens versados em geometria antiga existe que não julgue ser necessária agora uma nova edição dos Elementos, de Euclides. De fato, os exemplares da notável edição Heiberguiana há muito foram vendidos, além disso os estudos referentes aos Elementos em nossos dias desenvolveram-se grandemente. Por esse motivo, tendo sido convidado por um estimadíssimo livreiro, por exortação do Instituto de Ciência da Antiguidade Greco-Romana, que foi fundado por decisão da Academia Alemã de Ciências de Berlim, para que eu cuidasse de nova edição dos Elementos de Euclides acolhi essa ocupação com o coração gratíssimo. Realmente, sei que muitos admiradores da ciência matemática, que sabem grego, desejam conhecer o texto euclidiano.

Agradou-me muito o plano do estimadíssimo livreiro que me persuadiu a que eu omitisse a tradução latina que Heiberg preparara para a sua edição pelo que a nova edição saísse à luz mais curta. De fato, é evidente os versados na língua grega não terem muita necessidade da tradução latina. Pois que assim seja, o plano da nova edição foi organizado assim como é indicado abaixo [11]:

Para o texto do primeiro volume, considerei as coisas que deviam ser antecipadas, que foram ensinadas sobre os Elementos e sobre a vida de Euclides e sobre os princípios e os primórdios da geometria (Textui primo voluminis praemittenda, quae de Elementis et de vita Euclidis et de principiis primordiisque geometriae tradita sunt, existimavi).

[Realmente, no HOC VOLVMINE CONTINENTVR, lê-se o seguinte:

Testimonia:

De Euclides elementorum et vitae memoria

De principiorum geometriae memoria]

Acrescentei imediatamente três índices (annexui continuo tres indices).

Em terceiro lugar, ajuntei uma sinopse, em que as notabilíssimas edições dos Elementos de Euclides são recordadas (tertio loco conspectum, in quo praestantissimae Euclidis Elementorum editiones, adiunxi).

(De fato, Stamatis adicionou o seguinte:

CONSPECTVS EDITIONVM

Recensio antiquior quam editio Theonis Alexandrini

Theon Alexandrinus Alexandriae circa 370 p.Chr.

Simon Grynaeus Basileae 1530 (editio 2: 1533 apud Ioan.

Hervagium (“Hervagiana”), ed.3: 1537,

ed.4: 1539, ed.5: 1546, ed.6: 1558

Angelus Caianus Romae 1545 (sine demonstr.)

I.Camerarius Lipsiae 1549

I. Scheybl Basileae 1550 (1-6)

S.T. Gracilis Lutetiae 1558, 1573, 1598

C. Dasypodius Argentorati 1564

I. Sthen Vitebergae 1564

M. Steinmetz Lipsiae 1577 (cum demonstr.)

Dav. Gregorius Oxonii 1703

Fr. Peyrard Parisii 1814-18

I.G. Camerer et C.Fr. Hauber Berolini 1824-25 (1-6)

G.C. Neide Halis Saxonum 1825 (1-6, 11,12)

E.F. August Berolini 1826-29

I.L. Heiberg Lipsiae 1883-88

E.S. Stamatis Athenis 1952-57.

Stamatis indica no pé da página as obras consultadas para a confecção da lista acima. Revive com ela o gosto antigo pelas listas ou catálogo, como o “Catálogo dos navios”, no Segundo Canto da Ilíada, ou o “Catálogo dos geômetras”, do desaparecido livro de História da geometria, de Eudemo, discípulo de Aristóteles, mas preservado por Proclus no seu Comentário ao livro I dos elementos de Euclides.

Chamamos ainda a atenção para o fato de que, ao tecer anteriormente considerações concernentes às edições dos Elementos, consideramos apenas, dentre “as notabilíssimas”, as principais.)

Decidi abordar o que, para o texto, diz respeito aos vestígios da edição de Heiberg. Com efeito, é certo entre todos os homens instruídos ser muito bom o serviço prestado por Heiberg aos Elementos de Euclides. Nem, de fato, depois da sua morte, códices novos, além do que ele examinara, foram comparados nem a nossa colheita de papiros forneceu novas lições. Ora, justamente, terminando a minha edição dos Elementos de Euclides, que foi impressa em Atenas, nos anos 1952-1957, eu próprio reconheci a perfeição e a exatidão da edição Heiberguiana [12].

Fechemos logo, no entanto, as portas do templo em que acabamos de acender as velas no altar da adoração, para que o vento da discordância não as apague todas. Há, no entanto, uma voz que clama na ágora e seria prudente ouvi-la.

O historiador da matemática Wilbur R. Knorr, prematuramente falecido, publicou na revista Centaurus, 38 (1996) um longo trabalho – 69 páginas – com o título “The Wrong Text of Euclid: on Heiberg’s Text and its Alternatives” [13]. Eis o seu resumo:

Em dois artigos publicados em 1881 e 1884, dois jovens acadêmicos, Martin Klamroth e Johan L. Heiberg, engajaram-se em um breve debate sobre as escolhas textuais que deveriam governar a publicação de uma nova edição crítica dos Elementos de Euclides. Esse curto debate parece ter assentado o problema a favor de Heiberg sobre o que deveria ser tomado como o texto definitivo dos Elementos de Euclides. Mas a questão deve ser considerada de novo porque há boas razões para a reivindicação de que Klamroth estava certo, e Heiberg, errado. Se assim for, temos consultado e continuamos a consultar o texto errado para interpretar a tradição euclidiana. A fim de dar substância a essa afirmação, a questão textual debatida por Klamroth e Heiberg é ensaiada de novo, e as razões principais trazidas por Heiberg contra a posição de Klamroth são reconstruídas. Espécimes de três amplas áreas de evidência – estrutural, linguística e técnica – serão considerados. Eles revelam como a tradição medieval do texto advogado por Klamroth exibe superioridade em relação à tradição grega promovida por Heiberg. Uma tal reconstituição dos textos tem o potencial de mudar significantemente nossa compreensão da matemática antiga.

Se Knorr tem ou não razão é difícil de decidir. O peso da tradição é esmagador e o tempo passado entre aquele debate mencionado e hoje ajuda a sedimentar a opinião favorável à escolha de Heiberg.

De um modo ou de outro, a existência de divergência socorre-nos quando nos preparamos para responder às perguntas iniciais: “O que significa falar do texto grego dos Elementos?” e “Qual o sentido de mencionar-se a edição de Heiberg–Stamatis?”; e, com isso, completar o círculo das considerações. A edição de Heiberg–Stamatis do texto grego dos Elementos é o que Heiberg diz, com a confirmação de Stamatis, ser a coisa mais próxima do texto original de Euclides.

[Continua]


Notas:

[1] [Euclides. A criação da matemática].

[2] MANN, T. “José e seus irmãos”. As histórias de Jacó. O jovem José. v.1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1983.

[3] RODO, J. E. Ariel. Campinas: Editora da Unicamp, 1991.

[4] PESSOA, F. Obra poética. Volume único. Rio de Janeiro: Companhia Nova Aguilar, 1965.

[5] Idem, ibidem.

[6] Idem, ibidem.

[7] PESSOA, F., ibidem.

[8] Crítica textual e técnica editorial. Stuttgart: B. G. Teubner, 1973.

[9] [Pequenos escritos escolhidos].

[10] [As obras de Euclides, traduzidas literalmente, com base em um manuscrito grego antiquíssimo, desconhecido até nossos dias].

[11] Nemo ex viris antiquæ geometriae peritis est quin putet nova editione Euclidis Elementorum in praesenti opus esse. Exemplaria enim praeclarae editionis Heibergianae iamdudum divendita sunt, studia autem ad Elementa pertinentia nostra aetate admodum increverunt. Qua de re cum a bibliopola honestissimo, hortatu Instituti scientiae antiquitatis Graecoromanae, quod auctoritate Academiae Scientiarum Germanicae Berlinensis constitutum est, invitatus essem, ut novam Euclidis Elementorum editionem curarem, gratissimo animo hoc negotium suscepi. Nam multos studiosos scientiae mathematicae, qui Graece sciunt, Euclidianum textum desiderare cognovi.

Valde autem mihi consilium bibliopolae honestissimi placuit, qui mihi suasit, ut translationem Latinam qua Heiberg editionem suam instruxerat omitterem, quo nova editio brevior in lucem prodiret. Patet enim linguae Graecae peritos Latina translatione non nimis egere. Quae cum ita sint, ratio novae editionis, ita ut infra indicatur, ordenata est.

[12] Quod ad textum attinet Heibergianae editionis vestigia ingredi statui. Nam inter omnes viros doctos Heiberg optime de Euclidis Elementis meritum esse constat. Neque enim post obitum eius codices novi, praeter quos ille inspexerat, collati sunt, neque seges papyrorum nobis novas lectiones praebuit. Ipse autem editionis Heibergianae perfectionem absolutionemque perspexi, cum meam Euclidis Elementorum editionem, quae annis 1952-1957 Athenis impressa est, absolverem.

[13] [O texto errado de Euclides: sobre o texto de Heiberg e suas alternativas].

[Continua em breve]

***

Leia mais em Elementos de Euclides

Leia mais em Sobre as Geometrias Não-Euclidianas e Não-Arquimédicas



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Filosofia da Matemática em Aristóteles e S. Tomás - Introdução


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Tempo de leitura: 12 minutos.

É com grande alegria que apresentamos uma tradução do Prólogo e da Introdução do livro La Filosofía de las Matemáticas en Santo Tomás, que traduzimos como A Filosofia da Matemática em Santo Tomás. Este livro foi escrito por José Alvarez Laso, C. M. F., Professor de Filosofia no Colégio Claretiano de Santa Cruz Zinacantepec. Foi publicado pelo Editorial Jus, México, 1952. Primeiramente quero agradecer a minha esposa pela tradução e revisão do texto em espanhol. As demais traduções são nossa. Futuramente teremos mais novidades deste livro. Aguardem!

PRÓLOGO 

Antes de entrar no assunto, convém citar aqui algumas advertências. E, primeiramente, para que ninguém ache que minha tese é um de tantos esforços para atribuir a Santo Tomás, sete séculos antes, o que agora dizemos, hei de explicar

A ocasião deste tema. Muitos matemáticos modernos e não poucos filósofos de todo tipo de escolas prestam grande atenção aos problemas filosóficos que a Matemática oferece, agrupados sob a denominação comum de Filosofia da Matemática.
Basta ler as últimas páginas da monografia de W. Dubislav, A filosofia da Matemática na Atualidade [Die Philosopie der Mathematik in der Gegenwart] (Berlín, 1932), para se convencer disso. 
Por outro lado, os escolásticos, esquecendo o exemplo dos grandes Mestres (veja a Conclusão), pouco ou nada fizeram neste campo estritamente metafísico. 
É, pois, este terreno como diz o P. Hoenen, Um campo de pesquisa para Escolástica (O Escolástico Moderno 12 [A field of research for Scholasticism (The Modern Schoolman 12)] [Nov. 1934] 15-18). 

Objeto desta pesquisa. Não é minha intenção propor uma filosofia da Matemática segundo a doutrina escolástica. Meu trabalho será mais modesto: colaborar com meu grãozinho de areia para este ideal preparando a história destes problemas na escolástica. 

Autor escolhido. E para sintetizar, na medida do possível, esta história, escolhi como autor central Santo Tomás de Aquino, que representa melhor que nenhum outro a doutrina escolástica. Ele reuniu toda a ciência anterior e dele derivam mais ou menos todos os Escolásticos posteriores. Por isso, creio que as 
Fontes principais deste trabalho devem ser os Comentários do Angélico aos livros do Estagirita [Aristóteles]. Assim, poderemos estudar paralelamente o pensamento do Filósofo e de seu melhor intérprete. Uma consequência prática é a maneira de citar ambas as referências o mais preciso possível. Somente os que quiseram consultar alguma vez o pensamento de Santo Tomás com os outros Comentadores antigos e modernos, verão a utilidade destas citações. 

Características do meu trabalho. Assim, pois, meu trabalho é primariamente histórico. Apresentar as soluções que Santo Tomás deu aos problemas que oferecia a matemática de seu século.
Em segundo lugar, meu trabalho deve ser crítico. Em dois sentidos: primeiro em relação aos problemas que o próprio Santo Tomás se propunha: estão plenamente resolvidos?; logo, em relação aos problemas de agora, as soluções tomistas podem ser aplicadas a eles? 

Método seguido. Eu segui o método histórico e documental, pesquisando o que de fato disse Santo Tomás. Método diametralmente oposto ao que segue D. García em seu artigo De metaphysica multitudinis ordinatione (Div. Thom. Plac. 31 [1928] 83-109; 607-638). [Sobre a metafísica da ordem do número].

Uso dos idiomas. O método documental exige a menor intervenção possível do pesquisador nos textos. Por isso, embora o texto da dissertação esteja na minha língua materna [espanhol], as citações estão sempre nos idiomas dos respectivos autores. 
É lamentável ter que dizer, mas é um fato, cito autores em nove línguas diferentes e nenhum em espanhol. 
Para maior comodidade, o índice de referências está em latim.


Divisão da tese. Fiz um esquema quase a priori sobre os problemas filosóficos que a Matemática oferece para ordenar, segundo ele, os materiais que estivesse recolhendo, mas logo tive a sorte de encontrar um belo texto de Santo Tomás que me deu uma magnífica divisão da matéria, segundo exponho no primeiro capítulo. 

A bibliografia que aparece nas páginas seguintes compreende, sistematicamente catalogados, todos e apenas os livros e artigos empregados para compor a dissertação. 

Fruto da minha pesquisa. Creio que o mérito principal do meu trabalho está em ter encontrado em Santo Tomás um esboço de Filosofia da Matemática, que é necessário desenhar e colorir com muito cuidado para poder apresentá-lo diante do público de nossos dias. 

Defeitos da minha dissertação. Certamente, terão muitos a serem delatados ao principiante. Mas, há três que eu mesmo vejo e que quero confessar aqui. 
Facilmente se nota que os últimos capítulos estão menos trabalhados, embora em parte se deva ao fato de que são menos filosóficos. 
Logo, teria que ler de novo todos os textos, para referendar mais a doutrina. Conheço mais textos dos que aparecem usados na dissertação como facilmente poderá constatar quem tivesse paciência para comparar o texto com o Apêndice. Talvez, em algum momento, teria que corrigir alguma frase ou polir alguma expressão, como tive que fazer em relação ao número. Na primeira redação, atribuía a Santo Tomás uma doutrina errônea sobre o objeto da aritmética, que depois tive a satisfação de constatar que era apenas de João de Santo Tomás e de outros que o copiavam (veja a nota 29 do cap. III). 
Por fim, em relação à matemática moderna, é vasta e tão variada a literatura, que não sei se terei escolhido sempre o que é típico e característico.

Devo manifestar minha sincera gratidão e reconhecimento ao R. P. Pedro Hoenen, S.J., sob cuja amável e sábia direção trabalhei. 
Devo recordar aqui a memória do falecido R. P. L. W. Keeler (que Deus o tenha), que tanto me ajudou na leitura dos Manuscritos. Que o bom Deus, para cuja maior glória trabalhávamos juntos na Biblioteca Vaticana, lhe tenha agraciado no céu por sua extrema bondade para comigo. 

México, D. F., 13 de abril de 1952, solenidade de Páscoa. 


INTRODUÇÃO 

A MATEMÁTICA EM SANTO TOMÁS 

Santo Tomás estudou a Aritmética e a Geometria com as demais disciplinas do Quadrivium na Universidade de Nápoles [1] nos anos de 1236 a 1239 [2].
Tão bem diligente sairia destas aulas, à medida que se abundam em suas obras filosóficas e teológicas as alusões à Matemática [3]. 
Não é minha intenção estudar esta introdução um ponto [4], que não tem nenhum interesse nem para a Matemática nem para a História [5]. 
Só quero registrar os dados necessários para demonstrar que Santo Tomás poderia refletir sobre a Matemática. 
Conhecia bem [6] Euclides [7]. Poucas vezes cita [8] a aritmética de Boécio [9]; mas todos sabem que os livros VII-IX de Euclides são pura aritmética. 
Sabido é também o lugar que ocupa a Matemática na classificação geral das ciências que faz Santo Tomás [10]. 
Quero encerrar esta breve nota com uma frase do grande historiador da Matemática M. Cantor, que demonstra o grande afeto e admiração que professava por Tomás de Aquino: “O matemático chama-os (Alberto Magno e Tomás de Aquino) com pesar de amigos da sua ciência” (Vorlesungen über Geschichte der Mathematik [Lições sobre a história da matemática], Leipzig, Teubner, 1892, vol. II, p. 86).

Notas:

[1] Veja os parágrafos em que os três primeiros biógrafos de Santo Tomás falam de seus estudos em Nápoles: 
O pai enviou seu filho a Nápoles para que ele pudesse ser completamente educado em gramática, dialética e retórica. Pois quando ele logo deixou Martinho, seu tutor de gramática, ele foi entregue ao seu professor Pedro, o Ibérico, que, tendo-o instruído em ciências lógicas e naturais”. Calo P., Vita S. Thomae A., ed. Prümmer, p. 20. 
Assim, seguindo o conselho dos pais, o menino foi enviado para Nápoles e aprendeu gramática e lógica com o Mestre Martinho, e ciências naturais com o Mestre Pedro da Ibéria.”. Tocco G., Historia B. Thomae de Aq., ed. Prümmer, p. 70. 
Em pouco tempo, portanto, quando ele fez grande progresso em gramática, lógica e filosofia natural...”. Guidonis B., Legenda Sancti Thomae de Aq., ed. Prummer, p. 70. 

[2] El P. Prümmer (Chronología vitae S. Thomae Aq., en Xenia Thomistica) atribui o ano 1235 como o primeiro ano de sua estadia em Nápoles. P. Walz (Delineatio vitae S. Thomae de Aquino, Romae, Angelico, 1927, p. 16) coloca "anno 1236 vel 1239". 

[3] Veja o índice dos lugares em que Santo Tomás fala de Matemática, posto como Apêndice desta dissertação. 

[4] Do ponto de vista sistemático, H. Meyer estudou este ponto em vários artigos de Philosophisches Jahrbuch publicados à parte depois. Sobre a Matemática, trata o volume 47 (1934) nas páginas 441-464. 

[5] Talvez, o nome de Santo Tomás deva figurar na história da Matemática outro conceito. Veja, de fato, o que diz Timerding (Die Verbreitung mathematisches Wissens und mathematischer Auffassung, Leipzig, Teubner, 1914 [A disseminação do conhecimento matemático e da compreensão matemática]):
Além da já mencionada tradução de Euclides por Campanus, devem ser mencionadas as traduções que, segundo consta, foram feitas por Guilherme de Mörbecke da Catóptrica de Heron e dos escritos arquimedianos a pedido de Tomás de Aquino (1274)”. Zeuthen (Die Mathematik in Altertum und im Mittelalter, Leipzig, Teubner, 1912 [A Matemática na Antiguidade e na Idade Média]), atribui este mérito a Witelo. Veja Cantor, Vorlesunger über Geschichte der Mathematik, Leipzig, Teubner, 1892, Vol. II, p. 89.

[6] Veja, por exemplo, estes textos:

Explica o nome Elemento

III Met. 1.8, n. 424.

  “                “             “

V Met. 1.4, n. 801.

Cita o livro I de Euclides

III De An. 1.1, n. 577.

               III

II De cae 1.26. n. 6. 

                 IV

    De mem 1.7, n. 392

                 X

I An. Pos. 1.4, n. 13



[7] Segundo Montucla (Histoire des Mathématiques, Paris, 1758, I, p. 213), só no século XIII começaram os latinos a conhecer Euclides no mesmo texto.

[8] Veja, por exemplo: 
                    De pot. q. 3, a. 16 sed contra 4. 
                    I Sent. d. 24; q. 1 ob. 2. 
                    De Trin. q. 1. a. 4 ad 2. 
                            q. 4 á. 1 arg. 1. 

[9] Veja o juízo que faz Montucla (vol. I, p. 492), das obras matemáticas de Boécio: 
Sua aritmética e geometria são, estritamente falando, apenas traduções livres do primeiro (Nicômaco) e do último (Euclides), onde ele preservou para nós muitas características interessantes da história dessas ciências”.

[10] Veja, por exemplo, no recente livro de H. Meyer, Thomas von Aquino, Bonn, 1938, p. 399-407. 

***

Leia mais em Filosofia Tomista da Matemática

Leia mais em Aristotelismo e Filosofia da Matemática



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Matemática e Astronomia em Os Lusíadas


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Tempo de leitura: 55 minutos

Apresentamos aqui, trecho retirado do livro Os Lusíadas - vol. II Comentários de Francisco de Sales Lencastre. Editora Concreta, 2018. É importante ler primeiro a Introdução do vol I, onde é apresentado a astronomia clássica [leia aqui Introdução à Astronomia Clássica]. 

Uma observação: além do poema original, Lencastre adicionou, junto a cada estrofe, a versão do mesmo texto em prosa, dispondo-o em ordem sintática regular, para facilitar a compreensão do leitor iniciante e tornar explícitos os recursos da língua genialmente explorados por Camões. Mais do que o poema e sua versão em prosa, foram anexadas ainda diversas notas e longos comentários filológicos, históricos e literários.


A máquina do mundo

Contextualizando, no Canto X, temos Vênus conduzindo todos os marinheiros portugueses e seu capitão Vasco da Gama para a Ilha dos Amores. E lá eles terão um encontro com as ninfas e Vasco da Gama conquistará o amor de Tétis, a ninfa marinha. Após um banquete, Tétis conduzirá Vasco da Gama para contemplar a máquina do mundo, descrito abaixo no Canto X, estâncias de 75 a 90.


75 Despois que a corporal necessidade
Se satisfez do mantimento nobre,
E na harmônica e doce suavidade
Viram os altos feitos, que descobre
Tétis, de graça ornada e gravidade,
Pera que com mais alta glória dobre
As festas deste alegre e claro dia,
Pera o felice Gama assim dizia:

Prosa: Depois de satisfeita a corporal necessidade do [pelo] nobre mantimento (1); depois de terem todos ouvido os altos feitos (2) que a bela ninfa descobrira [vaticinara] na harmônica e doce suavidade da sua voz; Tétis, ornada de graça e gravidade – para dobrar [duplicar] com mais alta glória as festas deste alegre e claro [festivo] dia –, disse assim para o feliz Gama (3):

Notas: (1) “Depois de satisfeita”, etc; acabado o banquete, e saciado o estômago pelas suaves e divinas iguarias da ilha encantada. (2) As proezas que seriam praticadas no Oriente pelos portugueses. (3) “Tétis”, etc; tinha ela dito (IX, 86) que viera àquela ilha descobrir a Vasco da Gama altos segredos. Por intermédio da sereia (X, 10 e sgs.) foram descobertas (vaticinadas) as façanhas futuras dos portugueses na Índia; agora é ela própria que vai descobrir os segredos da esfera universal, “os segredos da unida esfera”, etc., como prometera (cit. est. 86).


76 “Faz-te mercê, barão, a sapiência
Suprema de, c’os olhos corporais,
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.
Segue-me firme e forte, com prudência,
Por este monte espesso, tu c’os mais.”
Assi lhe diz: e o guia por um mato
Árduo, difícil, duro a humano trato.

A sapiência suprema faz-te mercê, varão, de veres com os olhos corporais o que a ciência vã dos errados [ignorantes] e míseros mortais não pode compreender. Segue-me firme, forte e com prudência, por este monte espesso, tu e os mais.” Assim lhe diz, e guia-o por um mato árduo, difícil, duro [penoso] a humano trato (1).

(1) Revendo o manuscrito do canto x, e quando já estava impresso o primeiro volume do presente estudo, teve o anotador notícia dos preciosos artigos do Sr. Dr. Luciano Pereira da Silva, na Revista da Universidade, intitulados “A Astronomia dos Lusíadas”, e que encerram doutrina transcendente fora do alcance dos leitores desta edição destinada para indoutos. Todavia, desses artigos, que já constituem centenas de páginas, serão aqui transcritos (e de uma separata com que fomos favorecidos) alguns excertos, e com a devida vênia, quando acessíveis a esses leitores, pois só a quem já possua a “suprema ciência” da matemática pura, só ao astrônomo, será dado compreender completamente o profundo estudo do sábio professor da Universidade de Coimbra, na interpretação das estâncias que encerram a descrição da “grande máquina do mundo”.

“No canto X – diz o Sr. Dr. Luciano Pereira da Silva – faz Tétis aos argonautas portugueses uma lição de mecânica celeste, segundo a teoria da escola de Alexandria. 

“O princípio matemático que anima a astronomia grega, dando lugar a observações e cálculos de admirável persistência e sutileza, é a explicação dos movimentos periódicos dos astros, que já aos caldeus e egípcios se mostravam tão complicados nas suas observações da Lua e dos planetas, por uma sobreposição de movimentos circulares e uniformes.”

Em comentário à presente estância e à seguinte, lê-se, na “Astronomia dos Lusíadas”:

“Neste monte espesso, de mato árduo difícil a humano trato, por onde é preciso seguir firme e forte com prudência, está bem simbolizado todo esse longo trabalho de pacientes observações e laboriosos cálculos, todo esse dispêndio de engenho de tantos homens de superior capacidade em procura das leis que regem o movimento dos astros. E a teoria a que se chegou, dum subido valor, não só pelo trabalho que custou como pelos benefícios que dela se colhem, é o erguido cume, esmaltado de rubis e esmeraldas, chão divino, donde é permitido, através do modelo criado, abranger a complicada variedade dos fenômenos astronômicos, prevê-los em cálculos prévios nas preciosas tábuas bem conhecidas dos navegadores portugueses” (p. 53).


77 Não andam muito, que no erguido cume
Se acharam, onde um campo se esmaltava
De esmeraldas, rubis tais que presume
A vista que divino chão pisava.
Aqui um globo vem no ar, que o lume
Claríssimo por ele penetrava,
De modo que o seu centro está evidente,
Como a sua superfície, claramente.

Não tendo andado muito, Tétis e Vasco da Gama acharam-se no erguido cume, onde um campo [uma planície] se esmaltava [estava esmaltada] de esmeraldas (1) e rubis (2), tais que a vista presumia pisar (3) chão divino [olhar para chão divino]. Vem no ar [aparece no ar] um globo, pelo qual (4) penetrava claríssimo lume [luz], de modo que o seu centro, assim como a sua superfície, estavam claramente evidentes.

(1) Pedra preciosa de cor verde. (2) Pedra preciosa de cor vermelha. (3) “A vista presumia pisar”; metalepse: quem olhava para o chão presumia pisar, etc. (4) “Que… por ele” = pelo qual; cf. Fontes dos Lusíadas, pp. 380, 494 e 573.

Em “A Astronomia dos Lusíadas”, citada nas notas precedentes, lê-se (p. 54):

“Sabélico mostra-nos o imperador Carlos V passando os seus dias no mosteiro de S. Justo, longe dos negócios e bulício do mundo, encantado com o instrumento admirável onde o insigne matemático Leonelo incluíra uma representação completa das esferas celestes e dos astros com seus movimentos, juntando também o movimento perpétuo da oitava esfera. Nunca se ouvira falar duma máquina assim nos séculos passados.

“Este movimento perpétuo da oitava esfera é o movimento de trepidação, que lhe é próprio. Podia assim ver-se neste aparelho o curso ordenado das estrelas em torno dos ‘axes’ da oitava esfera, os pontos equinociais médios, pólos do movimento de trepidação, a que Camões se refere na est. 87

“Deste famoso aparelho de Leonelo devia Camões ter tido conhecimento. Teria ele visto algum modelo semelhante?”

Cf. na Introdução do Vol. I a “oitava esfera”, p. 23 e sgs. Disponível aqui: Introdução à Astronomia Clássica.


78 Qual a matéria seja não se enxerga,
Mas enxerga-se bem que está composto
De vários orbes, que a divina verga
Compôs, e um centro a todos só tem posto.
Volvendo, ora se abaixe, agora se erga,
Nunca s’ergue, ou se abaixa, e um mesmo rosto
Por toda a parte tem, e em toda a parte
Começa e acaba enfim, por divina arte:

Qual seja a matéria do globo (verso 5 da estância precedente) não se enxerga (1); mas enxerga-se bem que está composto de vários orbes, que a divina verga (2) compôs e que, a todos, pôs um centro só. Esse globo, volvendo, ora se abaixe ora se erga, nunca se ergue ou se abaixa e tem um mesmo rosto por toda a parte; e enfim, por divina arte, começa e acaba em toda a parte.

(1) Não se percebe. (2) “Verga divina”, o poder de Deus; “verga” = vara, símbolo da autoridade.

Na recitação do verso 5 não se faça pausa nas vírgulas:

Vol-ven- | do o-ra | se a-bai- | xe a-go- | ra se er- | ga

1       2       3        4      5       6       7       8       9      10

Comentário de “A Astronomia dos Lusíadas” aos primeiros quatro versos (p. 55): “Não se enxerga a matéria que compõe a parte celestial, porque a quinta essência [*] não pode ser apreendida pelos sentidos, vendo-se através dela a Terra no centro. Mas enxerga-se bem que está composta de vários orbes concêntricos à Terra; quer dizer, neste globo transparente podem distinguir-se os contornos aparentes das onze esferas e, portanto, uma série de círculos concêntricos (…) [que representam] as sete esferas planetárias, desde a Lua até a de Saturno, o Firmamento, o Céu Áqueo ou cristalino, o Primeiro Móbil e finalmente o Empíreo”.

[*] “Junto da região dos elementos, está logo a região celestial lúcida; e, pelo seu ser imutável, é livre de toda mudança. Tem contínuo movimento circular, e chamaram-lhe os filósofos Quinta Essência”, in: João de Sacrobosco, Tratado da Esfera, trad. Pedro Nunes, coment. Marcos Monteiro, Porto Alegre, Editora Concreta, 2018, pp. 45–7.

Sobre os versos 3 e 4: “Nestes versos os orbes são ‘todos’ concêntricos ao mundo” (Op. cit., p. 15).

Sobre os versos 5–8 (p. 40): “Na definição de Euclides, a que se chamava a definição ‘causal’, a esfera é uma superfície de revolução gerada pelo movimento duma circunferência em torno do diâmetro; cada ponto da curva generatriz descreve um círculo cujo plano é perpendicular ao eixo da revolução.

“No primeiro verso [o 5º da estância] está resumida a definição de Euclides. A palavra ‘volvendo’ indica que a esfera é uma superfície de revolução; não se refere ao movimento da esfera, porque a superfície externa do globo pertence ao undécimo céu, ao Empíreo imóvel. A esfera, ‘volvendo’, isto é, curvando-se em torno do eixo do mundo em círculos paralelos, ora se ergue, ora se abaixa em relação a um plano horizontal.

“No segundo verso [o 6º da estância] está resumida a definição de Teodósio. A esfera não se ergue nem se abaixa relativamente ao seu centro. E Tétis pode bem mostrar no globo a propriedade da eqüidistância, porque, sendo ele transparente, o seu centro, onde se vê a Terra, está evidente, como a sua superfície, claramente (p. 40).

“O mundo arquetípico é pois, em última análise, o próprio Deus. Que as propriedades da esfera refletem os atributos divinos, di-lo o poeta na expressão ‘por divina arte’, com que terminou a est. 78, e no verso ‘qual enfim o arquétipo que o criou’ da estância imediata.

“Mas a geometria esférica não desvenda afinal, de modo satisfatório, o divino mistério, pois que (p. 47): ‘(…) o que é Deus ninguém o entende/ Que a tanto o engenho humano não se estende.’

“Já vimos no capítulo anterior (p. 40 supra) que no primeiro verso [1º da 2ª quadra] se exprime que a esfera é uma superfície de revolução, podendo supor-se gerada pelo movimento duma semicircunferência em torno da linha dos pólos, subindo e descendo relativamente ao horizonte. No segundo verso [da 2ª quadra] está expressa a propriedade da eqüidistância ao centro, não subindo, nem descendo a superfície esférica em relação a este ponto; e ‘um mesmo rosto’ traduz a propriedade da esfera ser uma superfície de curvatura constante. Enfim, começando e acabando em qualquer ponto, não tem princípio nem fim determinado, unindo-se o princípio com o fim, por divina arte, isto é, segundo o divino exemplar. Esta semelhança com Deus é completada na estância seguinte (p. 56).”


79 Uniforme, perfeito, em si sustido,
Qual enfim o arquétipo que o criou.
Vendo o Gama este globo, comovido,
De espanto e de desejo ali ficou.
Diz-lhe a deusa: “O transunto reduzido
Em pequeno volume aqui te dou
Do mundo aos olhos teus, pera que vejas
Por onde vás e irás, e o que desejas,

O Gama – vendo este globo uniforme, perfeito, sustido em si, enfim qual o Arquétipo (1) que o criou – ficou ali comovido de espanto e de desejo (2). A deusa diz-lhe: “Dou-te aqui aos teus olhos – reduzido em pequeno volume – o transunto (3) do mundo; para que vejas por [para] onde vais (4) e irás, e o que desejas (5).

(1) Modelo superior, Deus. A esfera que se via ali, representando o Universo, tinha as perfeições do Criador. “Sustido em si”, suspenso na atmosfera – se diz do globo terrestre e dos corpos celestes. (2) “Ficou”, etc; tornou-se extático, enlevado, contemplando aquelas perfeições, e desejando saber como se explicariam. (3) Cópia. (4) “Por onde” = para onde (vaticínio de que iria para o Empíreo). (5) Subentende-se: “o que desejas saber”.

“É esta constante curvatura (da esfera) que o poeta exprime, quando diz que o globo ‘um mesmo rosto por toda a parte tem’ e quando lhe chama ‘uniforme’ na est. 79” (Op. cit., p. 41; veja-se a transcrição nas notas da estância precedente).


80 “Vês aqui a grande máquina do mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do saber alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende;
Que a tanto o engenho humano não se estende.

Aqui vês a grande máquina etérea (1) e elementar (2) do mundo, que foi fabricada assim do [pelo] alto e profundo Saber (3), que é [existe] sem princípio e sem meta limitada (4). Quem cerca em redor este globo rotundo e a sua tão limada [lisa] superfície é Deus (5); mas o que é Deus, ninguém o entende, que [pois] tanto não se estende [não chega] o engenho humano (6).

(1) Dos céus. (2) Dos elementos; segundo a astronomia antiga, consideravam-se elementos o ar e o fogo [além do ar e da água], e supunha-se que estes formavam as primeiras camadas celestes em volta da Terra; supondo-se também ser esta o centro do universo; cf. Introdução do Vol. I, pp. 26 e sgs. (3) “Alto e profundo Saber”, a Sabedoria divina, Deus. (4) “Meta limitada”, marco de limite, fim (sem princípio nem fim). (5) “Quem cerca”, etc; era doutrina corrente que o último céu era o Empíreo, superior à esfera em que estavam fixadas as estrelas – segundo o paganismo, era a morada dos deuses; no catolicismo, o lugar dos bem-aventurados, dos santos, o Céu. (6) “O que é Deus”, etc; afirma Faria e Sousa que os dois últimos versos contêm doutrina pregada por S. Paulo, S. Crisóstomo, e outros doutores da Igreja.

Observações de “A Astronomia dos Lusíadas” (pp. 39, 43 e 57) sobre a presente estância:

“A superfície deste rotundo globo, superfície tão ‘limada’, como se diz na est. 80, é uma superfície esférica. Leia-se a definição de esfera com que abre o capítulo I do Tratado da Esfera, de Pedro Nunes.

“No Tratado da Esfera lê-se, na parte do capítulo I, intitulada ‘Da redondeza do céu’ [Ed. Concreta, p. 51]: ‘[Para] Que o céu seja redondo há três razões: semelhança, proveito e necessidade. Pela semelhança se prova o céu ser redondo porque este mundo sensível é feito à semelhança do mundo arquetípico, no qual não há princípio nem fim. E por isso o mundo sensível tem figura redonda, na qual não há princípio nem fim.’

“A máquina do mundo, assim mostrada ao Gama, como transunto reduzido do universo, tal qual o concebia a ciência do tempo, divide-se em duas regiões: etérea e elemental.

“Na tradução de Pedro Nunes [do texto latino de Sacrobosco] lê-se [Ed. Concreta, pp. 43–7]: ‘A universal máquina do mundo se divide em duas partes: celestial e elemental. A parte elemental é sujeita a contínua alteração e divide-se em quatro: Terra, a qual está como centro do mundo, no meio assentada; segue-se logo a Água; e por derredor dela o Ar, e logo o Fogo que chega ao céu da Lua, segundo diz Aristóteles no livro dos meteoros, porque assim os assentou Deus glorioso e alto. E estes quatro são chamados elementos, os quais uns pelos outros se alteram, corrompem e tornam a gerar (…). Junto da região dos elementos, está logo a região celestial lúcida; e, pelo seu ser imutável, é livre de toda mudança. Tem contínuo movimento circular, e chamaram-lhe os filósofos Quinta Essência.’”

Cf. as transcrições de “A Astronomia dos Lusíadas” nas notas à est. 78.

81 “Este orbe, que primeiro vai cercando
Os outros mais pequenos, que em si tem,
Que está com luz tão clara radiando,
Que a vista cega, e a mente vil também,
Empíreo se nomeia, onde logrando
Puras almas estão daquele bem
Tamanho, que ele só se entende e alcança,
De quem não há no mundo semelhança.

Este primeiro orbe (1), que vai cercando os outros mais pequenos nele contidos, e que está radiando com tão clara luz, que cega a vista e também cega a mente vil (2), nomeia-se [chama-se] Empíreo, onde [no qual] as almas puras (3) estão logrando aquele bem tamanho, que só é entendido e alcançado de [por] quem não  [não tem] no mundo bem semelhante.

(1) “Primeiro orbe”, o orbe superior ao oitavo céu e ao primeiro “móbil”; cf. a gravura na Introdução ao vol. I, p. 23. (2) “Está radiando”, etc; a luz que dimana do Empíreo é radiante, mas a vista do corpo humano não tem faculdade para divisá-la, por isso é “cega”. À mente de criaturas vis também não será dado o poder de descortinar essa luz. (3) “As almas puras”, as almas dos entes humanos que foram virtuosos na terra; só essas é que hão-de ver o Empíreo, e nele gozar a bem-aventurança.


82 “Aqui só verdadeiros gloriosos
Divos estão: porque eu, Saturno e Jano,
Júpiter, Juno, fomos fabulosos,
Fingidos de mortal e cego engano.
Só pera fazer versos deleitosos
Servimos; e se mais o trato humano
Nos pode dar, é só que o nome nosso
Nestas estrelas pôs o engenho vosso;

Aqui (1) só estão os verdadeiros divos (2) gloriosos; porque eu, Saturno, Jano, Júpiter e Juno, somos divos fabulosos (3) – fingidos de [por] mortal e cego engano (4). Só servimos para fazer versos deleitosos (5); e, se mais nos pôde dar o trato humano (6), foi só ter o vosso engenho (7) posto o nosso nome nestas estrelas (8).

(1) “Aqui”, neste orbe, que representa o Empíreo. (2) “Verdadeiros divos”, os santos. “Divos” era o termo que entre os pagãos designava os deuses; aqui, tem a significação de “cristãos” que viveram segundo as leis divinas; IX, 90, nota última. (3) “Porque eu”, etc; porque nós, deuses mitológicos, somos uma invenção da fábula. (4) “Fingidos”, etc; foi a imaginação (fingimento) dos mortais (dos homens) que na cegueira do seu erro (engano) nos criou: alusão aos erros do paganismo. (5) “Só servimos”, etc; “a liberdade poética emprega os nossos nomes como ornato literário para se fazerem versos de aprazível leitura”. (6) “Trato humano”, “o tratamento de mais valor que nos dão os homens é o que resulta de ser aplicado o nosso nome às estrelas pelo engenho (invento) dos astrônomos”. (7) “Vosso engenho”; refere-se não propriamente a Vasco da Gama, a quem Tétis está dirigindo a sua fala, mas aos sábios da humanidade, aos astrônomos. (8) “Nestas estrelas”, nos astros que vedes representados nesta “máquina do mundo”.

Note-se que Tétis, deusa mitológica, está falando a um católico, confessando ser falsa a sua divindade, e que tudo é ainda a liberdade poética da invenção fabulosa da Ilha dos Amores, deixando assim o poeta a perceber que os entes mitológicos que figuram no poema designam a Divina Providência.

Nas Fontes dos Lusíadas, p. 71, o Sr. Dr. J. M. Rodrigues justifica essas ficções poéticas como a apologia dos poetas clássicos, feita pelo célebre poeta italiano Boccaccio (1313–1375).

No verso 3, “fabulosos” parece dever interpretar-se no sentido evemerista; IX, 90 e notas (cf. Fontes dos Lusíadas, p. 277 e sgs.).


83 “E também porque a Santa Providência,
Que em Júpiter aqui se representa,
Por espíritos mil que têm prudência,
Governa o mundo todo que sustenta.
Ensina-lo a profética ciência
Em muitos dos exemplos que apresenta:
Os que são bons, guiando favorecem,
Os maus, em quanto podem, nos empecem.

E isto que fica dito é assim mesmo porque (1) a Santa Providência (2) – representada aqui (3) em Júpiter – é quem governa todo o mundo que sustenta, e governa-o por meio de mil espíritos que têm prudência (4). Assim o ensina a ciência profética (5), em muitos exemplos que apresenta: os espíritos que são bons, guiando-nos, favorecem-nos; os espíritos maus, empecem-nos [causam-nos dano] em tudo quanto podem.

(1) Esta conjunção é continuada do “porquê” da estância precedente, verso 2. (2) “Santa Providência”, o Deus verdadeiro. (3) “Aqui”, no Empíreo, representado na “máquina” para a qual Tétis está apontando. (4) “Espíritos que têm prudência”, seres incorpóreos, discretos, reservados, que não se dão a conhecer à humanidade (anjos bons e anjos maus). (5) “Ciência profética”, a Bíblia do Antigo Testamento.

A interpretação da presente estância é ainda assunto de diversas opiniões. Cf. Fontes dos Lusíadas, pp. 277–9.


84 “Quer logo aqui a pintura, que varia,
Agora deleitando, ora ensinando,
Dar-lhe nomes que a antiga poesia
A seus deuses já dera, fabulando:
Que os anjos de celeste companhia
‘Deuses’ o sacro verso está chamando;
Nem nega que esse nome preminente
Também aos maus se dá, mas falsamente.

A pintura – que varia (1), ora deleitando, ora ensinando – quis logo aqui (2) dar-lhes nomes que a antiga poesia, fabulando, dera já aos seus deuses; pois o verso sacro está chamando ‘deuses’ aos anjos da companhia celeste (3); e não nega que esse proeminente nome de anjos se dá também aos maus, mas falsamente (4).

(1) Apresenta-se sob vários aspectos: umas vezes a pintura inventa, para deleitar; outras vezes copia a natureza, ensina, a quem não viu uma paisagem de países longínquos, a conhecê-la por meio dum quadro. “Pintura”, é alusão às figuras inventadas pelos astrônomos para representarem as constelações celestes na esfera armilar, e alguns astros a que deram nomes dos deuses do paganismo: Marte, Vênus, Mercúrio, etc. (2) “Aqui” = nestes céus que estais vendo em imagem. (3) “O verso sacro”, etc; alude-se à expressão do Salmo 49, Deus Deorum, cuja tradução literal é “Deus dos deuses”, para significar “Deus dos anjos”. (4) “Nem nega” que a poesia sacra também continuou a chamar anjos, indevidamente, aos que o foram mas deixaram de sê-lo; por isso acrescenta-lhes o epíteto de “maus” (Luzbel, Lúcifer).


85 “Enfim que o Sumo Deus, que por segundas
Causas obra no mundo, tudo manda.
E tornando a contar-te das profundas
Obras da mão divina veneranda,
Debaixo deste círculo, onde as mundas
Almas divinas gozam, que não anda,
Outro corre tão leve e tão ligeiro,
Que não se enxerga: é o móbile primeiro.

Enfim o Sumo Deus – que no mundo obra por intermédio de segundas causas (1) – manda tudo. Mas (2) – torno [volto] a contar-te o que sei das profundas obras da veneranda mão divina (3): debaixo deste círculo (4), onde as mundas [puras] almas (5) divinas gozam a bem-aventurança – círculo que não anda [não se move] –, corre outro tão leve e tão ligeiro, que não se enxerga (6): é o primeiro móbil (7).

(1) “Sumo Deus”, etc; o Ente Supremo é a causa primária de tudo quanto acontece no mundo, é a causa das causas. (2) A conjunção liga a exposição da est. 81 – exposição interrompida nas três estâncias imediatas, em que Tétis fala de como foram dados às estrelas os nomes dos deuses, etc. (3) “Obras”, etc; Tétis continua a explicar o que é o universo, o conjunto das obras divinas. (4) “Este círculo”, o do Empíreo, que é imóvel, não anda. (5) “Mundas almas”, as almas puras, as almas dos santos, dos bem-aventurados. (6) O círculo imediato (nono céu) gira com tal velocidade, que não se vê, não parece que gira. (7)Primum mobile”, o primeiro motor, o que imprime movimento aos demais círculos, que estão dentro dele, e que representam outros tantos céus. Cf. Introdução do Vol. I, p. 25 e sgs.

No verso 1, “que” é pleonástico, expletivo.

Excertos de “A Astronomia dos Lusíadas”:

“A décima esfera é introduzida na est. 85; é o círculo que corre ligeiro logo por baixo do Empíreo imóvel. Este movimento do primeiro móbil leva com seu ímpeto todas as esferas interiores; é o movimento diurno. Isto exprime o poeta na primeira parte da admirável est. 86 (p. 26).

“Do primeiro móbil diz Sacrobosco [tradução de Pedro Nunes, Ed. Concreta, p. 47]: ‘mas o primeiro movimento move e leva com seu ímpeto todas as outras esferas e, em um dia, com sua noite, fazem ao redor da Terra uma revolução’ (p. 58).”


86 “Com este rapto e grande movimento
Vão todos os que dentro tem no seio.
Por obra deste, o Sol andando a tento,
O dia e noite faz, com curso alheio.
Debaixo deste leve anda outro lento,
Tão lento e sojugado a duro freio,
Que enquanto Febo, de luz nunca escasso,
Duzentos cursos faz, dá ele um passo.

Com este rapto [rápido] (1) e grande movimento do primeiro móbil vão [andam] todos os círculos que ele tem dentro do seu seio; por obra [pela ação] deste movimento, o Sol – andando a tento (2) – faz o dia e a noite com curso [com impulso e andamento] alheio (3). Debaixo deste leve [ligeiro] móbil, anda outro círculo lentamente (4), tão lentamente e tão subjugado [reprimido] por duro freio (5), que enquanto Febo [o Sol] – nunca escasso de luz (6) – faz duzentos cursos, ele [o outro círculo, debaixo do primeiro móbil o das estrelas] dá um passo (7).

(1) Adjetivo só usado em poesia. (2) “A tento”, acauteladamente, com precaução, com toda a regularidade. (3) “Com curso alheio”, com o andamento diurno do quarto céu, o Sol fazia o dia no Hemisfério Oriental enquanto era noite no Hemisfério Ocidental. Segundo a astronomia antiga, o Sol não se movia; quem se movia era o círculo em que ele estava. (4) “Outro círculo”, etc; o das estrelas fixas (cf. gravura na Introdução do Vol. I, p. 23); o adjetivo “lento”, no texto, exerce função de advérbio. (5) “Subjugado a duro freio”, movimento reprimido, por isso é lento. (6) “Nunca escasso de luz”, a luz do Sol nunca se apaga: quando não a vemos em um hemisfério, é porque está em outro hemisfério. (7) “Duzentos cursos”, referência ao tempo em que os astros percorrem as suas órbitas: enquanto o Sol percorre as constelações do Zodíaco duzentas vezes, as estrelas do céu dão um passo.

Lê-se em “A Astronomia dos Lusíadas” (pp. 56 e 59):

“Nos últimos quatro versos descreve o movimento dos auges e estrelas fixas, próprio da nona esfera. Como esta faz a sua revolução em 49.000 anos, anda em 200 anos 1 grau e 28 minutos aproximadamente, o que, sendo menos de grau e meio, o poeta arredonda num grau, e chama-lhe ‘um passo’. O cristalino ou céu áqueo dá um passo enquanto o céu deferente do Sol dá 200 voltas.

“Comunicando-se o movimento de cada esfera às ‘que dentro tem no seio’, há a distinguir, em cada céu, o movimento que lhe é próprio dos que lhe são alheios, provenientes das esferas superiores. Assim, o curso próprio do Sol é o seu movimento anual que tem no excêntrico, seu deferente na quarta esfera; e o seu movimento diurno é curso alheio, causado pelo primeiro móbil.

“Note-se sempre como Camões reúne à formosura dos versos o rigor científico das doutrinas do seu tempo.

“Faria e Sousa parece considerar ‘rapto’ como substantivo e diz que é termo próprio dos matemáticos (…). Parece-nos porém que o poeta emprega ‘rapto’ como adjetivo, exprimindo com as duas palavras, ‘movimento rapto’, a mesma idéia do substantivo ‘rapto’ (…)

“Aqui [na Cronografia, de André de Avelar, 1594] está o movimento diurno do Sol designado como ‘movimento rapto’, isto é, movimento de arraste, proveniente do primeiro móbil em oposição ao movimento próprio per obliquo na Eclíptica.

“O poeta diz analogamente que todas as esferas contidas no seio da décima esfera vão com este ‘rapto e grande movimento’, isto é, com o grande movimento de arraste em que são levados por esta esfera. Hoje o primeiro móbil é a Terra. É a rotação da Terra que produz o movimento diurno dos astros. É este ‘rapto e grande movimento’ em que somos levados no globo terrestre que nos dá a aparência do movimento diurno do firmamento. O verso do poeta ainda tem atualidade aplicado à Terra.

“Na segunda parte da est. 86 é descrita a nona esfera ou segundo móbil, também chamado Céu Áqueo ou Cristalino, designada na figura por Coelum aqueum. O Cristalino é a esfera propulsora do movimento dos ‘auges e estrelas fixas’, etc.”

Na gravura do volume I não está indicada esta esfera; cf. Introdução, p. 23 e est. 90. [Figura acima]


87 “Olha estoutro debaixo, que esmaltado
De corpos lisos anda e radiantes
Que também nele têm curso ordenado,
E nos seus axes correm cintilantes.
Bem vês como se veste, e faz ornado
C’o largo cinto d’ouro, que estrelantes
Animais doze traz afigurados,
Aposentos de Febo limitados.

Olha estoutro círculo – debaixo do nono (1) –, que anda esmaltado de lisos e radiantes corpos (2) que também têm nele ordenado (3) curso, e correm cintilantes nos seus axes (4). Bem vês como se veste, e se faz ornado com o largo cinto de ouro, que traz afigurados doze animais estrelantes (5): são os limitados aposentos de Febo (6).

(1) Referência ao círculo do Zodíaco – o oitavo céu, que se chamava o “firmamento” por se supor que ali demoravam as estrelas “fixas” (firmes). (2) “Esmaltado”, etc; o céu adornado de estrelas cintilantes. (3) “Que também”, etc; que as estrelas, assim como o círculo nono, tem também curso regrado, “uniforme”. (4) Eixos. (5) “Como se veste”, etc; repetição por outras palavras da idéia expressa no verso 5 (perífrase do Zodíaco), o céu adornado com as constelações dos signos, que os astrônomos figuram no papel com os nomes de animais: Touro, Áries, Peixes, etc. (6) “Limitados”, etc; alude-se às doze constelações zodiacais, que na sua zona circular parece que são percorridas pelo Sol (Febo) no espaço de um ano. Limitando-se o percurso do Sol a essas constelações – por isso (fig.) “limitados aposentos” –, não podia entrar noutros.

Lê-se em “A Astronomia dos Lusíadas” sobre a presente estância (pp. 27, 33, 61 e 88):

“Os corpos ‘lisos e radiantes’, que esmaltam o oitavo céu são as estrelas (…). Como as estrelas estão fixas neste céu, quando o poeta diz que ‘nele’ tem curso ordenado, significa apenas que elas são levadas no movimento regular próprio do firmamento; e que se trata do movimento próprio ao oitavo céu, indica-o na palavra ‘também’. As estrelas têm o movimento alheio que o primeiro móbil comunica a todos os orbes que ‘dentro tem no seio’; e têm mais o movimento alheio que o segundo móbil, por seu turno, comunica a todas as esferas interiores; mas não têm só estes dois movimentos, têm ‘também’ o curso ordenado, próprio do firmamento. A palavra ‘seus’ aplicada, no verso seguinte, aos eixos em volta dos quais as estrelas ‘correm cintilantes’, acentua que se não trata de curso alheio.

“Camões dizendo ‘axes’, no plural, refere-se aos extremos do eixo, como na est. 84 do canto VI: ‘Cair o céu dos eixos sobre a terra’. Os eixos do céu, que aqui significa toda a máquina celestial, são os extremos do eixo do mundo, pólos do movimento diurno. O céu ameaça desprender-se dos pólos Ártico e Antártico, e desabar sobre a terra.

“As estrelas são, através do século XVI, consideradas como núcleos de condensação da matéria de que os céus são compostos, brilhando com a luz recebida do Sol (…). Assim, na est. 87 do canto X (…) as estrelas são corpos ‘lisos’, como espelhos radiantes com a luz que recebem do Sol; brilham com ‘luz alheia’ (II, 60).

“Camões reflete a opinião corrente no seu tempo, não atribuindo luz própria às estrelas.

“O largo ‘cinto de ouro’, com que o firmamento se veste e faz ornado, é o Zodíaco, que o cinge com a profusa pregaria de ouro das constelações zodiacais. Os doze animais estrelantes ‘afigurados’ são as doze constelações do Zodíaco, cujas estrelas, pela sua disposição, ‘pintam e semelham’ a figura de animais. Os aposentos de Febo limitados são os doze signos, da extensão de 30 graus cada um, em que se divide o Zodíaco, e a que se deram os mesmos nomes das constelações, os quais o Sol vai sucessivamente percorrendo no seu movimento anual ao longo da Eclíptica, demorando-se em cada um deles um espaço de tempo de cerca de um mês.

“O Sol, percorrendo a Eclíptica, linha média do Zodíaco, ocupa sucessivamente cada um dos ‘signos’, que se chamavam também ‘casas’ do Sol. Por isso o poeta lhes chama ‘aposentos’ de Febo limitados. São ‘limitados’ à extensão de 30 graus cada um, perfazendo os doze os 360 graus da volta inteira do Zodíaco.”


88 “Olha por outras partes a pintura
Que as estrelas fulgentes vão fazendo;
Olha a Carreta, atenta a Cinosura,
Andrômeda e seu pai, e o Drago horrendo;
Vê de Cassiopéia a fermosura,
E do Orionte o gesto metuendo;
Olha o Cisne morrendo que suspira,
A Lebre, os Cães, a Nau e a doce Lira.

Olha, por outras partes, a pintura (1) que estão fazendo as fulgentes estrelas; olha a Carreta (2), atenta [observa bem] a Cinosura (3), Andrômeda (4) e seu pai (5) Cefeu, e o Drago (6) horrendo. Vê a formosura de Cassiopéia (7), e o gesto metuendo de Orionte (8); olha o Cisne (9) que suspira morrendo; olha a Lebre, os Cães (10), a Nau (11) e a doce Lira (12).

(1) “Pintura”: o delineamento das diversas constelações, que os antigos astrônomos indicavam nos mapas ou cartas celestes, ligando as diversas estrelas por linhas imaginárias formando diferentes figuras. (2) “Carreta”: designação popular da Ursa Maior, constelação boreal próxima do Pólo Ártico. Também é denominada carro de Davi; V, 15, nota 4. (3) “Cinosura”, constelação boreal denominada Ursa Menor; na mitologia grega, nome duma ninfa que por Zeus foi transformada em estrela. (4) “Andrômeda”, constelação boreal; na mitologia grega, nome duma filha de “Cefeu” (rei lendário da Etiópia) e de “Cassiopéia” (rainha da Etiópia). Cefeu e Cassiopéia são também os nomes de duas constelações boreais. Na lenda mitológica, Cassiopéia, por ser muito formosa, disputava o prêmio da beleza às Nereidas. Júpiter, para estas se vingarem, inventou um monstro que assolava a Etiópia. Para o aplacar, consultou-se um oráculo, que respondeu ser necessário que Andrômeda fosse exposta aos furores do monstro. A princesa, ligada a um rochedo pelas Nereidas, ia ser devorada, quando acudiu Perseu montado sobre um cavalo alado e libertou a princesa, sendo ela então e os pais transformados em estrelas. (5) Veja-se a nota precedente. (6) “Drago”, dragão: constelação boreal entre a Ursa Menor e Cefeu. Na mitologia, monstro fabuloso que é representado geralmente com asas, garras de leão, e cauda de serpente. Imaginou-se um dragão a guardar os pomos de ouro no jardim das Hespérides; e outro, a servir de guarda ao tosão de ouro, raptado pelos argonautas. (7) Veja-se a nota 4. (8) Nome do caçador que Diana transformou em constelação, por lhe ter faltado ao respeito (não se confunda com Actéon); VI, 85. (9) “Cisne”, constelação boreal; na mitologia (Cygnus), filho do rei da Ligúria e amigo de Faetonte, por cuja morte chorou tanto que foi transformado em cisne e colocado no céu; IX, 43. (10) “Lebre”, constelação boreal; a lebre que Orion perseguia andando à caça; “Cães”, outra constelação, os cães de caça de Orion. (11) Constelação boreal: a nau Argo, que depois da viagem à Cólquida foi convertida nessa constelação. (12) Constelação boreal; na fábula, a lira de Orfeu (filho de Apolo), colocada no céu e convertida em estrela.


89 “Debaixo deste grande firmamento
Vês o céu de Saturno, deus antigo;
Júpiter logo faz o movimento,
E Marte abaixo, bélico inimigo;
O claro olho do céu no quarto assento,
E Vênus, que os amores traz consigo;
Mercúrio, de eloqüência soberana;
Com três rostos debaixo vai Diana.

Debaixo deste grande firmamento (1) vês o céu de Saturno (2), deus antigo; Júpiter (3) faz logo abaixo o seu movimento, e abaixo está Marte (4), bélico inimigo; o claro olho do céu (5) está no quarto assento; e no terceiro está Vênus (6), que traz consigo os amores; e vês, no segundo círculo, Mercúrio (7), de soberana eloqüência; debaixo vai Diana (8) com três rostos.

(1) Grande firmamento; oitavo céu. (2) Planeta (que tomou esse nome da fábula) no sétimo céu. (3) Planeta no sexto céu. (4) Planeta no quinto céu; “belo inimigo”, por ter o nome do deus da guerra. (5) “Claro”, etc; perífrase do Sol, no quarto céu. (6) O planeta no terceiro céu (identificado com a deusa dos amores), chamado também estrela vespertina (quando aparece ao anoitecer) e estrela d’alva (quando aparece ao amanhecer). (7) Pequeno planeta, o mais próximo do Sol, no segundo céu. O deus da fábula com esse nome era protetor da eloqüência (assim como também do comércio e dos ladrões). (8) A Lua, no primeiro céu. Três rostos, porque os poetas fingiram Diana de três formas: Lucina, deusa que presidia ao nascimento, no céu; Diana, deusa da caça, na terra; e Prosérpina, nos infernos. Os três rostos da Diana aqui são as três fases: a Lua cheia, e os quartos crescente e minguante; na Lua Nova não há rosto porque a Lua se “esconde”.

Estão aqui representados os “sete céus” (I, 21); cf. Introdução do Vol. I, p. 23.


90 “Em todos estes orbes diferente
Curso verás, nuns grave e noutros leve;
Ora fogem do centro longamente,
Ora da Terra estão caminho breve;
Bem como quis o Padre onipotente,
Que o fogo fez, e o ar, o vento e neve,
Os quais verás que jazem mais a dentro,
E tem, c’o mar, a terra por seu centro.

Em todos estes orbes (1) verás curso diferente; nuns, curso grave (2), e noutros, leve (3): ora fogem (4) do centro longamente, ora estão a caminho breve da Terra (5), como bem quis o onipotente Padre (6), que fez o fogo e o ar, o vento e a neve, os quais (7) verás que jazem mais a dentro, e tem o mar e a terra por seu centro.

(1) Círculos, representando os céus; veja a nota precedente. (2) Vagaroso. (3) Ligeiro. (4) Correm velozmente a grande distância (“longamente”). (5) Alguns orbes estão longe do centro (a Terra), outros estão a breve distância do mesmo centro; os que estão mais distantes (no seu curso aparente em volta da Terra) andam mais depressa. (6) Pai: Deus. (7) Refere-se o pronome a “fogo, ar”, etc., os elementos que, segundo a antiga astronomia, havia interpostos entre a Terra e o primeiro céu; veja-se a figura na Introdução do Vol. I, p. 23.

Os antigos astrônomos distinguiam céus, orbes e esferas para explicar a complicada teoria dos “epiciclos e excêntricos”; cf. Introdução do Vol. I, p. 27.

Acerca dos “círculos e movimento dos planetas”, diz o Sr. Dr. Luciano Pereira da Silva em “A Astronomia dos Lusíadas”, p. 66 (depois duma transcrição do Tratado da Esfera, já citado):

“Na descrição dos movimentos planetários, Camões refere-se apenas aos excêntricos, não pensando em descrever os tão diversos movimentos dos epiciclos (…). E que especialmente se consideram os céus excêntricos, torna-se claro na est. 90.

“Estes orbes [verso 1] são os excêntricos deferentes dos planetas, mais afastados do centro da Terra, no auge ou apogeu, e mais perto dele no perigeu. Tem curso mais grave o deferente de Saturno em 30 anos, e o de Júpiter em 12; o de Marte faz seu curso em 2 anos, e os do Sol, Vênus e Mercúrio em 1 ano; o curso mais leve é o da Lua em 27 dias e 8 horas.

“Pondo de parte os epiciclos, peças menores com tão variados movimentos, o poeta reduz as esferas planetárias à simplicidade da do Sol; e assim pode manter aquela linha de sobriedade com que vem sendo feita esta admirável descrição da máquina do mundo.”

***


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