É com grande alegria que apresentamos uma tradução do Prólogo e da Introdução do livro La Filosofía de las Matemáticas en Santo Tomás, em traduzimos como A Filosofia da Matemática em Santo Tomás. Este livro foi escrito por José Alvarez Laso, C. M. F., Professor de Filosofia no Colégio Claretiano de Santa Cruz Zinacantepec. Foi publicado pelo Editorial Jus, México, 1952. Primeiramente quero agradecer a minha esposa pela tradução e revisão do texto em espanhol. As demais traduções são nossa. Futuramente teremos mais novidades deste livro. Aguardem!
PRÓLOGO
Antes de entrar no assunto, convém citar aqui algumas advertências. E, primeiramente, para que ninguém ache que minha tese é um de tantos esforços para atribuir a Santo Tomás, sete séculos antes, o que agora dizemos, hei de explicar
A ocasião deste tema. Muitos matemáticos modernos e não poucos filósofos de todo tipo de escolas prestam grande atenção aos problemas filosóficos que a Matemática oferece, agrupados sob a denominação comum de Filosofia da Matemática.
Basta ler as últimas páginas da monografia de W. Dubislav, A filosofia da Matemática na Atualidade [Die Philosopie der Mathematik in der Gegenwart] (Berlín, 1932), para se convencer disso.
Por outro lado, os escolásticos, esquecendo o exemplo dos grandes Mestres (veja a Conclusão), pouco ou nada fizeram neste campo estritamente metafísico.
É, pois, este terreno como diz o P. Hoenen, Um campo de pesquisa para Escolástica (O Escolástico Moderno 12 [A field of research for Scholasticism (The Modern Schoolman 12)] [Nov. 1934] 15-18).
Objeto desta pesquisa. Não é minha intenção propor uma filosofia da Matemática segundo a doutrina escolástica. Meu trabalho será mais modesto: colaborar com meu grãozinho de areia para este ideal preparando a história destes problemas na escolástica.
Autor escolhido. E para sintetizar, na medida do possível, esta história, escolhi como autor central Santo Tomás de Aquino, que representa melhor que nenhum outro a doutrina escolástica. Ele reuniu toda a ciência anterior e dele derivam mais ou menos todos os Escolásticos posteriores. Por isso, creio que as
Fontes principais deste trabalho devem ser os Comentários do Angélico aos livros do Estagirita [Aristóteles]. Assim, poderemos estudar paralelamente o pensamento do Filósofo e de seu melhor intérprete. Uma consequência prática é a maneira de citar ambas as referências o mais preciso possível. Somente os que quiseram consultar alguma vez o pensamento de Santo Tomás com os outros Comentadores antigos e modernos, verão a utilidade destas citações.
Características do meu trabalho. Assim, pois, meu trabalho é primariamente histórico. Apresentar as soluções que Santo Tomás deu aos problemas que oferecia a matemática de seu século.
Em segundo lugar, meu trabalho deve ser crítico. Em dois sentidos: primeiro em relação aos problemas que o próprio Santo Tomás se propunha: estão plenamente resolvidos?; logo, em relação aos problemas de agora, as soluções tomistas podem ser aplicadas a eles?
Método seguido. Eu segui o método histórico e documental, pesquisando o que de fato disse Santo Tomás. Método diametralmente oposto ao que segue D. García em seu artigo De metaphysica multitudinis ordinatione (Div. Thom. Plac. 31 [1928] 83-109; 607-638). [Sobre a metafísica da ordem do número].
Uso dos idiomas. O método documental exige a menor intervenção possível do pesquisador nos textos. Por isso, embora o texto da dissertação esteja na minha língua materna [espanhol], as citações estão sempre nos idiomas dos respectivos autores.
É lamentável ter que dizer, mas é um fato, cito autores em nove línguas diferentes e nenhum em espanhol.
Para maior comodidade, o índice de referências está em latim.
Divisão da tese. Fiz um esquema quase a priori sobre os problemas filosóficos que a Matemática oferece para ordenar, segundo ele, os materiais que estivesse recolhendo, mas logo tive a sorte de encontrar um belo texto de Santo Tomás que me deu uma magnífica divisão da matéria, segundo exponho no primeiro capítulo.
A bibliografia que aparece nas páginas seguintes compreende, sistematicamente catalogados, todos e apenas os livros e artigos empregados para compor a dissertação.
Fruto da minha pesquisa. Creio que o mérito principal do meu trabalho está em ter encontrado em Santo Tomás um esboço de Filosofia da Matemática, que é necessário desenhar e colorir com muito cuidado para poder apresentá-lo diante do público de nossos dias.
Defeitos da minha dissertação. Certamente, terão muitos a serem delatados ao principiante. Mas, há três que eu mesmo vejo e que quero confessar aqui.
Facilmente se nota que os últimos capítulos estão menos trabalhados, embora em parte se deva ao fato de que são menos filosóficos.
Logo, teria que ler de novo todos os textos, para referendar mais a doutrina. Conheço mais textos dos que aparecem usados na dissertação como facilmente poderá constatar quem tivesse paciência para comparar o texto com o Apêndice. Talvez, em algum momento, teria que corrigir alguma frase ou polir alguma expressão, como tive que fazer em relação ao número. Na primeira redação, atribuía a Santo Tomás uma doutrina errônea sobre o objeto da aritmética, que depois tive a satisfação de constatar que era apenas de João de Santo Tomás e de outros que o copiavam (veja a nota 29 do cap. III).
Por fim, em relação à matemática moderna, é vasta e tão variada a literatura, que não sei se terei escolhido sempre o que é típico e característico.
Devo manifestar minha sincera gratidão e reconhecimento ao R. P. Pedro Hoenen, S.J., sob cuja amável e sábia direção trabalhei.
Devo recordar aqui a memória do falecido R. P. L. W. Keeler (que Deus o tenha), que tanto me ajudou na leitura dos Manuscritos. Que o bom Deus, para cuja maior glória trabalhávamos juntos na Biblioteca Vaticana, lhe tenha agraciado no céu por sua extrema bondade para comigo.
México, D. F., 13 de abril de 1952, solenidade de Páscoa.
INTRODUÇÃO
A MATEMÁTICA EM SANTO TOMÁS
Santo Tomás estudou a Aritmética e a Geometria com as demais disciplinas do Quadrivium na Universidade de Nápoles [1] nos anos de 1236 a 1239 [2].
Tão bem diligente sairia destas aulas, à medida que se abundam em suas obras filosóficas e teológicas as alusões à Matemática [3].
Não é minha intenção estudar esta introdução um ponto [4], que não tem nenhum interesse nem para a Matemática nem para a História [5].
Só quero registrar os dados necessários para demonstrar que Santo Tomás poderia refletir sobre a Matemática.
Conhecia bem [6] Euclides [7]. Poucas vezes cita [8] a aritmética de Boécio [9]; mas todos sabem que os livros VII-IX de Euclides são pura aritmética.
Sabido é também o lugar que ocupa a Matemática na classificação geral das ciências que faz Santo Tomás [10].
Quero encerrar esta breve nota com uma frase do grande historiador da Matemática M. Cantor, que demonstra o grande afeto e admiração que professava por Tomás de Aquino: “O matemático chama-os (Alberto Magno e Tomás de Aquino) com pesar de amigos da sua ciência” (Vorlesungen über Geschichte der Mathematik [Lições sobre a história da matemática], Leipzig, Teubner, 1892, vol. II, p. 86).
Notas:
[1] Veja os parágrafos em que os três primeiros biógrafos de Santo Tomás falam de seus estudos em Nápoles:
“O pai enviou seu filho a Nápoles para que ele pudesse ser completamente educado em gramática, dialética e retórica. Pois quando ele logo deixou Martinho, seu tutor de gramática, ele foi entregue ao seu professor Pedro, o Ibérico, que, tendo-o instruído em ciências lógicas e naturais”. Calo P., Vita S. Thomae A., ed. Prümmer, p. 20.
“Assim, seguindo o conselho dos pais, o menino foi enviado para Nápoles e aprendeu gramática e lógica com o Mestre Martinho, e ciências naturais com o Mestre Pedro da Ibéria.”. Tocco G., Historia B. Thomae de Aq., ed. Prümmer, p. 70.
“Em pouco tempo, portanto, quando ele fez grande progresso em gramática, lógica e filosofia natural...”. Guidonis B., Legenda Sancti Thomae de Aq., ed. Prummer, p. 70.
[2] El P. Prümmer (Chronología vitae S. Thomae Aq., en Xenia Thomistica) atribui o ano 1235 como o primeiro ano de sua estadia em Nápoles. P. Walz (Delineatio vitae S. Thomae de Aquino, Romae, Angelico, 1927, p. 16) coloca "anno 1236 vel 1239".
[3] Veja o índice dos lugares em que Santo Tomás fala de Matemática, posto como Apêndice desta dissertação.
[4] Do ponto de vista sistemático, H. Meyer estudou este ponto em vários artigos de Philosophisches Jahrbuch publicados à parte depois. Sobre a Matemática, trata o volume 47 (1934) nas páginas 441-464.
[5] Talvez, o nome de Santo Tomás deva figurar na história da Matemática outro conceito. Veja, de fato, o que diz Timerding (Die Verbreitung mathematisches Wissens und mathematischer Auffassung, Leipzig, Teubner, 1914 [A disseminação do conhecimento matemático e da compreensão matemática]):
“Além da já mencionada tradução de Euclides por Campanus, devem ser mencionadas as traduções que, segundo consta, foram feitas por Guilherme de Mörbecke da Catóptrica de Heron e dos escritos arquimedianos a pedido de Tomás de Aquino (1274)”. Zeuthen (Die Mathematik in Altertum und im Mittelalter, Leipzig, Teubner, 1912 [A Matemática na Antiguidade e na Idade Média]), atribui este mérito a Witelo. Veja Cantor, Vorlesunger über Geschichte der Mathematik, Leipzig, Teubner, 1892, Vol. II, p. 89.
[6] Veja, por exemplo, estes textos:
Explica o nome Elemento
III Met. 1.8, n. 424.
“ “ “
V Met. 1.4, n. 801.
Cita o livro I de Euclides
III De An. 1.1, n. 577.
III
II De cae 1.26. n. 6.
IV
De mem 1.7, n. 392
X
I An. Pos. 1.4, n. 13
[7] Segundo Montucla (Histoire des Mathématiques, Paris, 1758, I, p. 213), só no século XIII começaram os latinos a conhecer Euclides no mesmo texto.
[8] Veja, por exemplo:
De pot. q. 3, a. 16 sed contra 4.
I Sent. d. 24; q. 1 ob. 2.
De Trin. q. 1. a. 4 ad 2.
q. 4 á. 1 arg. 1.
[9] Veja o juízo que faz Montucla (vol. I, p. 492), das obras matemáticas de Boécio:
“Sua aritmética e geometria são, estritamente falando, apenas traduções livres do primeiro (Nicômaco) e do último (Euclides), onde ele preservou para nós muitas características interessantes da história dessas ciências”.
[10] Veja, por exemplo, no recente livro de H. Meyer, Thomas von Aquino, Bonn, 1938, p. 399-407.
Apresentamos aqui, trecho retirado do livro Os Lusíadas - vol. II Comentários de Francisco de Sales Lencastre. Editora Concreta, 2018. É importante ler primeiro a Introdução do vol I, onde é apresentado a astronomia clássica [leia aqui Introdução à Astronomia Clássica].
Uma observação: além do poema original, Lencastre adicionou, junto a cada estrofe, a versão do mesmo texto em prosa, dispondo-o em ordem sintática regular, para facilitar a compreensão do leitor iniciante e tornar explícitos os recursos da língua genialmente explorados por Camões. Mais do que o poema e sua versão em prosa, foram anexadas ainda diversas notas e longos comentários filológicos, históricos e literários.
A máquina do mundo
Contextualizando, no Canto X, temos Vênus conduzindo todos os marinheiros portugueses e seu capitão Vasco da Gama para a Ilha dos Amores. E lá eles terão um encontro com as ninfas e Vasco da Gama conquistará o amor de Tétis, a ninfa marinha. Após um banquete, Tétis conduzirá Vasco da Gama para contemplar a máquina do mundo, descrito abaixo no Canto X, estâncias de 75 a 90.
75 Despois que a corporal necessidade
Se satisfez do mantimento nobre,
E na harmônica e doce suavidade
Viram os altos feitos, que descobre
Tétis, de graça ornada e gravidade,
Pera que com mais alta glória dobre
As festas deste alegre e claro dia,
Pera o felice Gama assim dizia:
Prosa: Depois de satisfeita a corporal necessidade do [pelo] nobre mantimento (1); depois de terem todos ouvido os altos feitos (2) que a bela ninfa descobrira [vaticinara] na harmônica e doce suavidade da sua voz; Tétis, ornada de graça e gravidade – para dobrar [duplicar] com mais alta glória as festas deste alegre e claro [festivo] dia –, disse assim para o feliz Gama (3):
Notas:(1) “Depois de satisfeita”, etc; acabado o banquete, e saciado o estômago pelas suaves e divinas iguarias da ilha encantada. (2) As proezas que seriam praticadas no Oriente pelos portugueses. (3) “Tétis”, etc; tinha ela dito (IX, 86) que viera àquela ilha descobrir a Vasco da Gama altos segredos. Por intermédio da sereia (X, 10 e sgs.) foram descobertas (vaticinadas) as façanhas futuras dos portugueses na Índia; agora é ela própria que vai descobrir os segredos da esfera universal, “os segredos da unida esfera”, etc., como prometera (cit. est. 86).
76 “Faz-te mercê, barão, a sapiência
Suprema de, c’os olhos corporais,
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.
Segue-me firme e forte, com prudência,
Por este monte espesso, tu c’os mais.”
Assi lhe diz: e o guia por um mato
Árduo, difícil, duro a humano trato.
“A sapiência suprema faz-te mercê, varão, de veres com os olhos corporais o que a ciência vã dos errados [ignorantes] e míseros mortais não pode compreender. Segue-me firme, forte e com prudência, por este monte espesso, tu e os mais.” Assim lhe diz, e guia-o por um mato árduo, difícil, duro [penoso] a humano trato (1).
(1) Revendo o manuscrito do canto x, e quando já estava impresso o primeiro volume do presente estudo, teve o anotador notícia dos preciosos artigos do Sr. Dr. Luciano Pereira da Silva, na Revista da Universidade, intitulados “A Astronomia dos Lusíadas”, e que encerram doutrina transcendente fora do alcance dos leitores desta edição destinada para indoutos. Todavia, desses artigos, que já constituem centenas de páginas, serão aqui transcritos (e de uma separata com que fomos favorecidos) alguns excertos, e com a devida vênia, quando acessíveis a esses leitores, pois só a quem já possua a “suprema ciência” da matemática pura, só ao astrônomo, será dado compreender completamente o profundo estudo do sábio professor da Universidade de Coimbra, na interpretação das estâncias que encerram a descrição da “grande máquina do mundo”.
“No canto X – diz o Sr. Dr. Luciano Pereira da Silva – faz Tétis aos argonautas portugueses uma lição de mecânica celeste, segundo a teoria da escola de Alexandria.
“O princípio matemático que anima a astronomia grega, dando lugar a observações e cálculos de admirável persistência e sutileza, é a explicação dos movimentos periódicos dos astros, que já aos caldeus e egípcios se mostravam tão complicados nas suas observações da Lua e dos planetas, por uma sobreposição de movimentos circulares e uniformes.”
Em comentário à presente estância e à seguinte, lê-se, na “Astronomia dos Lusíadas”:
“Neste monte espesso, de mato árduo difícil a humano trato, por onde é preciso seguir firme e forte com prudência, está bem simbolizado todo esse longo trabalho de pacientes observações e laboriosos cálculos, todo esse dispêndio de engenho de tantos homens de superior capacidade em procura das leis que regem o movimento dos astros. E a teoria a que se chegou, dum subido valor, não só pelo trabalho que custou como pelos benefícios que dela se colhem, é o erguido cume, esmaltado de rubis e esmeraldas, chão divino, donde é permitido, através do modelo criado, abranger a complicada variedade dos fenômenos astronômicos, prevê-los em cálculos prévios nas preciosas tábuas bem conhecidas dos navegadores portugueses” (p. 53).
77 Não andam muito, que no erguido cume
Se acharam, onde um campo se esmaltava
De esmeraldas, rubis tais que presume
A vista que divino chão pisava.
Aqui um globo vem no ar, que o lume
Claríssimo por ele penetrava,
De modo que o seu centro está evidente,
Como a sua superfície, claramente.
Não tendo andado muito, Tétis e Vasco da Gama acharam-se no erguido cume, onde um campo [uma planície] se esmaltava [estava esmaltada] de esmeraldas (1) e rubis (2), tais que a vista presumia pisar (3) chão divino [olhar para chão divino]. Vem no ar [aparece no ar] um globo, pelo qual (4) penetrava claríssimo lume [luz], de modo que o seu centro, assim como a sua superfície, estavam claramente evidentes.
(1) Pedra preciosa de cor verde. (2) Pedra preciosa de cor vermelha. (3) “A vista presumia pisar”; metalepse: quem olhava para o chão presumia pisar, etc. (4) “Que… por ele” = pelo qual; cf. Fontes dos Lusíadas, pp. 380, 494 e 573.
Em “A Astronomia dos Lusíadas”, citada nas notas precedentes, lê-se (p. 54):
“Sabélico mostra-nos o imperador Carlos V passando os seus dias no mosteiro de S. Justo, longe dos negócios e bulício do mundo, encantado com o instrumento admirável onde o insigne matemático Leonelo incluíra uma representação completa das esferas celestes e dos astros com seus movimentos, juntando também o movimento perpétuo da oitava esfera. Nunca se ouvira falar duma máquina assim nos séculos passados.
“Este movimento perpétuo da oitava esfera é o movimento de trepidação, que lhe é próprio. Podia assim ver-se neste aparelho o curso ordenado das estrelas em torno dos ‘axes’ da oitava esfera, os pontos equinociais médios, pólos do movimento de trepidação, a que Camões se refere na est. 87
“Deste famoso aparelho de Leonelo devia Camões ter tido conhecimento. Teria ele visto algum modelo semelhante?”
Qual seja a matéria do globo (verso 5 da estância precedente) não se enxerga (1); mas enxerga-se bem que está composto de vários orbes, que a divina verga (2) compôs e que, a todos, pôs um centro só. Esse globo, volvendo, ora se abaixe ora se erga, nunca se ergue ou se abaixa e tem um mesmo rosto por toda a parte; e enfim, por divina arte, começa e acaba em toda a parte.
(1) Não se percebe. (2) “Verga divina”, o poder de Deus; “verga” = vara, símbolo da autoridade.
Na recitação do verso 5 não se faça pausa nas vírgulas:
Vol-ven- | do o-ra | se a-bai- | xe a-go- | ra se er- | ga
1 2 3 4 5 6 7 8 910
Comentário de “A Astronomia dos Lusíadas” aos primeiros quatro versos (p. 55): “Não se enxerga a matéria que compõe a parte celestial, porque a quinta essência [*] não pode ser apreendida pelos sentidos, vendo-se através dela a Terra no centro. Mas enxerga-se bem que está composta de vários orbes concêntricos à Terra; quer dizer, neste globo transparente podem distinguir-se os contornos aparentes das onze esferas e, portanto, uma série de círculos concêntricos (…) [que representam] as sete esferas planetárias, desde a Lua até a de Saturno, o Firmamento, o Céu Áqueo ou cristalino, o Primeiro Móbil e finalmente o Empíreo”.
[*] “Junto da região dos elementos, está logo a região celestial lúcida; e, pelo seu ser imutável, é livre de toda mudança. Tem contínuo movimento circular, e chamaram-lhe os filósofos Quinta Essência”, in: João de Sacrobosco, Tratado da Esfera, trad. Pedro Nunes, coment. Marcos Monteiro, Porto Alegre, Editora Concreta, 2018, pp. 45–7.
Sobre os versos 3 e 4: “Nestes versos os orbes são ‘todos’ concêntricos ao mundo” (Op. cit., p. 15).
Sobre os versos 5–8 (p. 40): “Na definição de Euclides, a que se chamava a definição ‘causal’, a esfera é uma superfície de revolução gerada pelo movimento duma circunferência em torno do diâmetro; cada ponto da curva generatriz descreve um círculo cujo plano é perpendicular ao eixo da revolução.
“No primeiro verso [o 5º da estância] está resumida a definição de Euclides. A palavra ‘volvendo’ indica que a esfera é uma superfície de revolução; não se refere ao movimento da esfera, porque a superfície externa do globo pertence ao undécimo céu, ao Empíreo imóvel. A esfera, ‘volvendo’, isto é, curvando-se em torno do eixo do mundo em círculos paralelos, ora se ergue, ora se abaixa em relação a um plano horizontal.
“No segundo verso [o 6º da estância] está resumida a definição de Teodósio. A esfera não se ergue nem se abaixa relativamente ao seu centro. E Tétis pode bem mostrar no globo a propriedade da eqüidistância, porque, sendo ele transparente, o seu centro, onde se vê a Terra, está evidente, como a sua superfície, claramente (p. 40).
“O mundo arquetípico é pois, em última análise, o próprio Deus. Que as propriedades da esfera refletem os atributos divinos, di-lo o poeta na expressão ‘por divina arte’, com que terminou a est. 78, e no verso ‘qual enfim o arquétipo que o criou’ da estância imediata.
“Mas a geometria esférica não desvenda afinal, de modo satisfatório, o divino mistério, pois que (p. 47): ‘(…) o que é Deus ninguém o entende/ Que a tanto o engenho humano não se estende.’
“Já vimos no capítulo anterior (p. 40 supra) que no primeiro verso [1º da 2ª quadra] se exprime que a esfera é uma superfície de revolução, podendo supor-se gerada pelo movimento duma semicircunferência em torno da linha dos pólos, subindo e descendo relativamente ao horizonte. No segundo verso [da 2ª quadra] está expressa a propriedade da eqüidistância ao centro, não subindo, nem descendo a superfície esférica em relação a este ponto; e ‘um mesmo rosto’ traduz a propriedade da esfera ser uma superfície de curvatura constante. Enfim, começando e acabando em qualquer ponto, não tem princípio nem fim determinado, unindo-se o princípio com o fim, por divina arte, isto é, segundo o divino exemplar. Esta semelhança com Deus é completada na estância seguinte (p. 56).”
79 Uniforme, perfeito, em si sustido,
Qual enfim o arquétipo que o criou.
Vendo o Gama este globo, comovido,
De espanto e de desejo ali ficou.
Diz-lhe a deusa: “O transunto reduzido
Em pequeno volume aqui te dou
Do mundo aos olhos teus, pera que vejas
Por onde vás e irás, e o que desejas,
O Gama – vendo este globo uniforme, perfeito, sustido em si, enfim qual o Arquétipo (1) que o criou – ficou ali comovido de espanto e de desejo (2). A deusa diz-lhe: “Dou-te aqui aos teus olhos – reduzido em pequeno volume – o transunto (3) do mundo; para que vejas por [para] onde vais (4) e irás, e o que desejas (5).
(1) Modelo superior, Deus. A esfera que se via ali, representando o Universo, tinha as perfeições do Criador. “Sustido em si”, suspenso na atmosfera – se diz do globo terrestre e dos corpos celestes. (2) “Ficou”, etc; tornou-se extático, enlevado, contemplando aquelas perfeições, e desejando saber como se explicariam. (3) Cópia. (4) “Por onde” = para onde (vaticínio de que iria para o Empíreo). (5) Subentende-se: “o que desejas saber”.
“É esta constante curvatura (da esfera) que o poeta exprime, quando diz que o globo ‘um mesmo rosto por toda a parte tem’ e quando lhe chama ‘uniforme’ na est. 79” (Op. cit., p. 41; veja-se a transcrição nas notas da estância precedente).
80 “Vês aqui a grande máquina do mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do saber alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende;
Que a tanto o engenho humano não se estende.
Aqui vês a grande máquina etérea (1) e elementar (2) do mundo, que foi fabricada assim do [pelo] alto e profundo Saber (3), que é [existe] sem princípio e sem meta limitada (4). Quem cerca em redor este globo rotundo e a sua tão limada [lisa] superfície é Deus (5); mas o que é Deus, ninguém o entende, que [pois] a tanto não se estende [não chega] o engenho humano (6).
(1) Dos céus. (2) Dos elementos; segundo a astronomia antiga, consideravam-se elementos o ar e o fogo [além do ar e da água], e supunha-se que estes formavam as primeiras camadas celestes em volta da Terra; supondo-se também ser esta o centro do universo; cf. Introdução do Vol. I, pp. 26 e sgs. (3) “Alto e profundo Saber”, a Sabedoria divina, Deus. (4) “Meta limitada”, marco de limite, fim (sem princípio nem fim). (5) “Quem cerca”, etc; era doutrina corrente que o último céu era o Empíreo, superior à esfera em que estavam fixadas as estrelas – segundo o paganismo, era a morada dos deuses; no catolicismo, o lugar dos bem-aventurados, dos santos, o Céu. (6) “O que é Deus”, etc; afirma Faria e Sousa que os dois últimos versos contêm doutrina pregada por S. Paulo, S. Crisóstomo, e outros doutores da Igreja.
Observações de “A Astronomia dos Lusíadas” (pp. 39, 43 e 57) sobre a presente estância:
“A superfície deste rotundo globo, superfície tão ‘limada’, como se diz na est. 80, é uma superfície esférica. Leia-se a definição de esfera com que abre o capítulo I do Tratado da Esfera, de Pedro Nunes.
“No Tratado da Esfera lê-se, na parte do capítulo I, intitulada ‘Da redondeza do céu’ [Ed. Concreta, p. 51]: ‘[Para] Que o céu seja redondo há três razões: semelhança, proveito e necessidade. Pela semelhança se prova o céu ser redondo porque este mundo sensível é feito à semelhança do mundo arquetípico, no qual não há princípio nem fim. E por isso o mundo sensível tem figura redonda, na qual não há princípio nem fim.’
“A máquina do mundo, assim mostrada ao Gama, como transunto reduzido do universo, tal qual o concebia a ciência do tempo, divide-se em duas regiões: etérea e elemental.
“Na tradução de Pedro Nunes [do texto latino de Sacrobosco] lê-se [Ed. Concreta, pp. 43–7]: ‘A universal máquina do mundo se divide em duas partes: celestial e elemental. A parte elemental é sujeita a contínua alteração e divide-se em quatro: Terra, a qual está como centro do mundo, no meio assentada; segue-se logo a Água; e por derredor dela o Ar, e logo o Fogo que chega ao céu da Lua, segundo diz Aristóteles no livro dos meteoros, porque assim os assentou Deus glorioso e alto. E estes quatro são chamados elementos, os quais uns pelos outros se alteram, corrompem e tornam a gerar (…). Junto da região dos elementos, está logo a região celestial lúcida; e, pelo seu ser imutável, é livre de toda mudança. Tem contínuo movimento circular, e chamaram-lhe os filósofos Quinta Essência.’”
Cf. as transcrições de “A Astronomia dos Lusíadas” nas notas à est. 78.
81 “Este orbe, que primeiro vai cercando
Os outros mais pequenos, que em si tem,
Que está com luz tão clara radiando,
Que a vista cega, e a mente vil também,
Empíreo se nomeia, onde logrando
Puras almas estão daquele bem
Tamanho, que ele só se entende e alcança,
De quem não há no mundo semelhança.
“Este primeiro orbe (1), que vai cercando os outros mais pequenos nele contidos, e que está radiando com tão clara luz, que cega a vista e também cega a mente vil (2), nomeia-se [chama-se] Empíreo, onde [no qual] as almas puras (3) estão logrando aquele bem tamanho, que só é entendido e alcançado de [por] quem não há [não tem] no mundo bem semelhante.
(1) “Primeiro orbe”, o orbe superior ao oitavo céu e ao primeiro “móbil”; cf. a gravura na Introdução ao vol. I, p. 23. (2) “Está radiando”, etc; a luz que dimana do Empíreo é radiante, mas a vista do corpo humano não tem faculdade para divisá-la, por isso é “cega”. À mente de criaturas vis também não será dado o poder de descortinar essa luz. (3) “As almas puras”, as almas dos entes humanos que foram virtuosos na terra; só essas é que hão-de ver o Empíreo, e nele gozar a bem-aventurança.
82 “Aqui só verdadeiros gloriosos
Divos estão: porque eu, Saturno e Jano,
Júpiter, Juno, fomos fabulosos,
Fingidos de mortal e cego engano.
Só pera fazer versos deleitosos
Servimos; e se mais o trato humano
Nos pode dar, é só que o nome nosso
Nestas estrelas pôs o engenho vosso;
“Aqui (1) só estão os verdadeiros divos (2) gloriosos; porque eu, Saturno, Jano, Júpiter e Juno, somos divos fabulosos (3) – fingidos de [por] mortal e cego engano (4). Só servimos para fazer versos deleitosos (5); e, se mais nos pôde dar o trato humano (6), foi só ter o vosso engenho (7) posto o nosso nome nestas estrelas (8).
(1) “Aqui”, neste orbe, que representa o Empíreo. (2) “Verdadeiros divos”, os santos. “Divos” era o termo que entre os pagãos designava os deuses; aqui, tem a significação de “cristãos” que viveram segundo as leis divinas; IX, 90, nota última. (3) “Porque eu”, etc; porque nós, deuses mitológicos, somos uma invenção da fábula. (4) “Fingidos”, etc; foi a imaginação (fingimento) dos mortais (dos homens) que na cegueira do seu erro (engano) nos criou: alusão aos erros do paganismo. (5) “Só servimos”, etc; “a liberdade poética emprega os nossos nomes como ornato literário para se fazerem versos de aprazível leitura”. (6) “Trato humano”, “o tratamento de mais valor que nos dão os homens é o que resulta de ser aplicado o nosso nome às estrelas pelo engenho (invento) dos astrônomos”. (7) “Vosso engenho”; refere-se não propriamente a Vasco da Gama, a quem Tétis está dirigindo a sua fala, mas aos sábios da humanidade, aos astrônomos. (8) “Nestas estrelas”, nos astros que vedes representados nesta “máquina do mundo”.
Note-se que Tétis, deusa mitológica, está falando a um católico, confessando ser falsa a sua divindade, e que tudo é ainda a liberdade poética da invenção fabulosa da Ilha dos Amores, deixando assim o poeta a perceber que os entes mitológicos que figuram no poema designam a Divina Providência.
Nas Fontes dos Lusíadas, p. 71, o Sr. Dr. J. M. Rodrigues justifica essas ficções poéticas como a apologia dos poetas clássicos, feita pelo célebre poeta italiano Boccaccio (1313–1375).
No verso 3, “fabulosos” parece dever interpretar-se no sentido evemerista; IX, 90 e notas (cf. Fontes dos Lusíadas, p. 277 e sgs.).
83 “E também porque a Santa Providência,
Que em Júpiter aqui se representa,
Por espíritos mil que têm prudência,
Governa o mundo todo que sustenta.
Ensina-lo a profética ciência
Em muitos dos exemplos que apresenta:
Os que são bons, guiando favorecem,
Os maus, em quanto podem, nos empecem.
“E isto que fica dito é assim mesmo porque (1) a Santa Providência (2) – representada aqui (3) em Júpiter – é quem governa todo o mundo que sustenta, e governa-o por meio de mil espíritos que têm prudência (4). Assim o ensina a ciência profética (5), em muitos exemplos que apresenta: os espíritos que são bons, guiando-nos, favorecem-nos; os espíritos maus, empecem-nos [causam-nos dano] em tudo quanto podem.
(1) Esta conjunção é continuada do “porquê” da estância precedente, verso 2. (2) “Santa Providência”, o Deus verdadeiro. (3) “Aqui”, no Empíreo, representado na “máquina” para a qual Tétis está apontando. (4) “Espíritos que têm prudência”, seres incorpóreos, discretos, reservados, que não se dão a conhecer à humanidade (anjos bons e anjos maus). (5) “Ciência profética”, a Bíblia do Antigo Testamento.
A interpretação da presente estância é ainda assunto de diversas opiniões. Cf. Fontes dos Lusíadas, pp. 277–9.
84 “Quer logo aqui a pintura, que varia,
Agora deleitando, ora ensinando,
Dar-lhe nomes que a antiga poesia
A seus deuses já dera, fabulando:
Que os anjos de celeste companhia
‘Deuses’ o sacro verso está chamando;
Nem nega que esse nome preminente
Também aos maus se dá, mas falsamente.
“A pintura – que varia (1), ora deleitando, ora ensinando – quis logo aqui (2) dar-lhes nomes que a antiga poesia, fabulando, dera já aos seus deuses; pois o verso sacro está chamando ‘deuses’ aos anjos da companhia celeste (3); e não nega que esse proeminente nome de anjos se dá também aos maus, mas falsamente (4).
(1) Apresenta-se sob vários aspectos: umas vezes a pintura inventa, para deleitar; outras vezes copia a natureza, ensina, a quem não viu uma paisagem de países longínquos, a conhecê-la por meio dum quadro. “Pintura”, é alusão às figuras inventadas pelos astrônomos para representarem as constelações celestes na esfera armilar, e alguns astros a que deram nomes dos deuses do paganismo: Marte, Vênus, Mercúrio, etc. (2) “Aqui” = nestes céus que estais vendo em imagem. (3) “O verso sacro”, etc; alude-se à expressão do Salmo 49, Deus Deorum, cuja tradução literal é “Deus dos deuses”, para significar “Deus dos anjos”. (4) “Nem nega” que a poesia sacra também continuou a chamar anjos, indevidamente, aos que o foram mas deixaram de sê-lo; por isso acrescenta-lhes o epíteto de “maus” (Luzbel, Lúcifer).
85 “Enfim que o Sumo Deus, que por segundas
Causas obra no mundo, tudo manda.
E tornando a contar-te das profundas
Obras da mão divina veneranda,
Debaixo deste círculo, onde as mundas
Almas divinas gozam, que não anda,
Outro corre tão leve e tão ligeiro,
Que não se enxerga: é o móbile primeiro.
“Enfim o Sumo Deus – que no mundo obra por intermédio de segundas causas (1) – manda tudo. Mas (2) – torno [volto] a contar-te o que sei das profundas obras da veneranda mão divina (3): debaixo deste círculo (4), onde as mundas [puras] almas (5) divinas gozam a bem-aventurança – círculo que não anda [não se move] –, corre outro tão leve e tão ligeiro, que não se enxerga (6): é o primeiro móbil (7).
(1) “Sumo Deus”, etc; o Ente Supremo é a causa primária de tudo quanto acontece no mundo, é a causa das causas. (2) A conjunção liga a exposição da est. 81 – exposição interrompida nas três estâncias imediatas, em que Tétis fala de como foram dados às estrelas os nomes dos deuses, etc. (3) “Obras”, etc; Tétis continua a explicar o que é o universo, o conjunto das obras divinas. (4) “Este círculo”, o do Empíreo, que é imóvel, não anda. (5) “Mundas almas”, as almas puras, as almas dos santos, dos bem-aventurados. (6) O círculo imediato (nono céu) gira com tal velocidade, que não se vê, não parece que gira. (7) “Primum mobile”, o primeiro motor, o que imprime movimento aos demais círculos, que estão dentro dele, e que representam outros tantos céus. Cf. Introdução do Vol. I, p. 25 e sgs.
No verso 1, “que” é pleonástico, expletivo.
Excertos de “A Astronomia dos Lusíadas”:
“A décima esfera é introduzida na est. 85; é o círculo que corre ligeiro logo por baixo do Empíreo imóvel. Este movimento do primeiro móbil leva com seu ímpeto todas as esferas interiores; é o movimento diurno. Isto exprime o poeta na primeira parte da admirável est. 86 (p. 26).
“Do primeiro móbil diz Sacrobosco [tradução de Pedro Nunes, Ed. Concreta, p. 47]: ‘mas o primeiro movimento move e leva com seu ímpeto todas as outras esferas e, em um dia, com sua noite, fazem ao redor da Terra uma revolução’ (p. 58).”
86 “Com este rapto e grande movimento
Vão todos os que dentro tem no seio.
Por obra deste, o Sol andando a tento,
O dia e noite faz, com curso alheio.
Debaixo deste leve anda outro lento,
Tão lento e sojugado a duro freio,
Que enquanto Febo, de luz nunca escasso,
Duzentos cursos faz, dá ele um passo.
“Com este rapto [rápido] (1) e grande movimento do primeiro móbil vão [andam] todos os círculos que ele tem dentro do seu seio; por obra [pela ação] deste movimento, o Sol – andando a tento (2) – faz o dia e a noite com curso [com impulso e andamento] alheio (3). Debaixo deste leve [ligeiro] móbil, anda outro círculo lentamente (4), tão lentamente e tão subjugado [reprimido] por duro freio (5), que enquanto Febo [o Sol] – nunca escasso de luz (6) – faz duzentos cursos, ele [o outro círculo, debaixo do primeiro móbil o das estrelas] dá um passo (7).
(1) Adjetivo só usado em poesia. (2) “A tento”, acauteladamente, com precaução, com toda a regularidade. (3) “Com curso alheio”, com o andamento diurno do quarto céu, o Sol fazia o dia no Hemisfério Oriental enquanto era noite no Hemisfério Ocidental. Segundo a astronomia antiga, o Sol não se movia; quem se movia era o círculo em que ele estava. (4) “Outro círculo”, etc; o das estrelas fixas (cf. gravura na Introdução do Vol. I, p. 23); o adjetivo “lento”, no texto, exerce função de advérbio. (5) “Subjugado a duro freio”, movimento reprimido, por isso é lento. (6) “Nunca escasso de luz”, a luz do Sol nunca se apaga: quando não a vemos em um hemisfério, é porque está em outro hemisfério. (7) “Duzentos cursos”, referência ao tempo em que os astros percorrem as suas órbitas: enquanto o Sol percorre as constelações do Zodíaco duzentas vezes, as estrelas do céu dão um passo.
Lê-se em “A Astronomia dos Lusíadas” (pp. 56 e 59):
“Nos últimos quatro versos descreve o movimento dos auges e estrelas fixas, próprio da nona esfera. Como esta faz a sua revolução em 49.000 anos, anda em 200 anos 1 grau e 28 minutos aproximadamente, o que, sendo menos de grau e meio, o poeta arredonda num grau, e chama-lhe ‘um passo’. O cristalino ou céu áqueo dá um passo enquanto o céu deferente do Sol dá 200 voltas.
“Comunicando-se o movimento de cada esfera às ‘que dentro tem no seio’, há a distinguir, em cada céu, o movimento que lhe é próprio dos que lhe são alheios, provenientes das esferas superiores. Assim, o curso próprio do Sol é o seu movimento anual que tem no excêntrico, seu deferente na quarta esfera; e o seu movimento diurno é curso alheio, causado pelo primeiro móbil.
“Note-se sempre como Camões reúne à formosura dos versos o rigor científico das doutrinas do seu tempo.
“Faria e Sousa parece considerar ‘rapto’ como substantivo e diz que é termo próprio dos matemáticos (…). Parece-nos porém que o poeta emprega ‘rapto’ como adjetivo, exprimindo com as duas palavras, ‘movimento rapto’, a mesma idéia do substantivo ‘rapto’ (…)
“Aqui [na Cronografia, de André de Avelar, 1594] está o movimento diurno do Sol designado como ‘movimento rapto’, isto é, movimento de arraste, proveniente do primeiro móbil em oposição ao movimento próprio per obliquo na Eclíptica.
“O poeta diz analogamente que todas as esferas contidas no seio da décima esfera vão com este ‘rapto e grande movimento’, isto é, com o grande movimento de arraste em que são levados por esta esfera. Hoje o primeiro móbil é a Terra. É a rotação da Terra que produz o movimento diurno dos astros. É este ‘rapto e grande movimento’ em que somos levados no globo terrestre que nos dá a aparência do movimento diurno do firmamento. O verso do poeta ainda tem atualidade aplicado à Terra.
“Na segunda parte da est. 86 é descrita a nona esfera ou segundo móbil, também chamado Céu Áqueo ou Cristalino, designada na figura por Coelum aqueum. O Cristalino é a esfera propulsora do movimento dos ‘auges e estrelas fixas’, etc.”
Na gravura do volume I não está indicada esta esfera; cf. Introdução, p. 23 e est. 90. [Figura acima]
87 “Olha estoutro debaixo, que esmaltado
De corpos lisos anda e radiantes
Que também nele têm curso ordenado,
E nos seus axes correm cintilantes.
Bem vês como se veste, e faz ornado
C’o largo cinto d’ouro, que estrelantes
Animais doze traz afigurados,
Aposentos de Febo limitados.
“Olha estoutro círculo – debaixo do nono (1) –, que anda esmaltado de lisos e radiantes corpos (2) que também têm nele ordenado (3) curso, e correm cintilantes nos seus axes (4). Bem vês como se veste, e se faz ornado com o largo cinto de ouro, que traz afigurados doze animais estrelantes (5): são os limitados aposentos de Febo (6).
(1) Referência ao círculo do Zodíaco – o oitavo céu, que se chamava o “firmamento” por se supor que ali demoravam as estrelas “fixas” (firmes). (2) “Esmaltado”, etc; o céu adornado de estrelas cintilantes. (3) “Que também”, etc; que as estrelas, assim como o círculo nono, tem também curso regrado, “uniforme”. (4) Eixos. (5) “Como se veste”, etc; repetição por outras palavras da idéia expressa no verso 5 (perífrase do Zodíaco), o céu adornado com as constelações dos signos, que os astrônomos figuram no papel com os nomes de animais: Touro, Áries, Peixes, etc. (6) “Limitados”, etc; alude-se às doze constelações zodiacais, que na sua zona circular parece que são percorridas pelo Sol (Febo) no espaço de um ano. Limitando-se o percurso do Sol a essas constelações – por isso (fig.) “limitados aposentos” –, não podia entrar noutros.
Lê-se em “A Astronomia dos Lusíadas” sobre a presente estância (pp. 27, 33, 61 e 88):
“Os corpos ‘lisos e radiantes’, que esmaltam o oitavo céu são as estrelas (…). Como as estrelas estão fixas neste céu, quando o poeta diz que ‘nele’ tem curso ordenado, significa apenas que elas são levadas no movimento regular próprio do firmamento; e que se trata do movimento próprio ao oitavo céu, indica-o na palavra ‘também’. As estrelas têm o movimento alheio que o primeiro móbil comunica a todos os orbes que ‘dentro tem no seio’; e têm mais o movimento alheio que o segundo móbil, por seu turno, comunica a todas as esferas interiores; mas não têm só estes dois movimentos, têm ‘também’ o curso ordenado, próprio do firmamento. A palavra ‘seus’ aplicada, no verso seguinte, aos eixos em volta dos quais as estrelas ‘correm cintilantes’, acentua que se não trata de curso alheio.
“Camões dizendo ‘axes’, no plural, refere-se aos extremos do eixo, como na est. 84 do canto VI: ‘Cair o céu dos eixos sobre a terra’. Os eixos do céu, que aqui significa toda a máquina celestial, são os extremos do eixo do mundo, pólos do movimento diurno. O céu ameaça desprender-se dos pólos Ártico e Antártico, e desabar sobre a terra.
“As estrelas são, através do século XVI, consideradas como núcleos de condensação da matéria de que os céus são compostos, brilhando com a luz recebida do Sol (…). Assim, na est. 87 do canto X (…) as estrelas são corpos ‘lisos’, como espelhos radiantes com a luz que recebem do Sol; brilham com ‘luz alheia’ (II, 60).
“Camões reflete a opinião corrente no seu tempo, não atribuindo luz própria às estrelas.
“O largo ‘cinto de ouro’, com que o firmamento se veste e faz ornado, é o Zodíaco, que o cinge com a profusa pregaria de ouro das constelações zodiacais. Os doze animais estrelantes ‘afigurados’ são as doze constelações do Zodíaco, cujas estrelas, pela sua disposição, ‘pintam e semelham’ a figura de animais. Os aposentos de Febo limitados são os doze signos, da extensão de 30 graus cada um, em que se divide o Zodíaco, e a que se deram os mesmos nomes das constelações, os quais o Sol vai sucessivamente percorrendo no seu movimento anual ao longo da Eclíptica, demorando-se em cada um deles um espaço de tempo de cerca de um mês.
“O Sol, percorrendo a Eclíptica, linha média do Zodíaco, ocupa sucessivamente cada um dos ‘signos’, que se chamavam também ‘casas’ do Sol. Por isso o poeta lhes chama ‘aposentos’ de Febo limitados. São ‘limitados’ à extensão de 30 graus cada um, perfazendo os doze os 360 graus da volta inteira do Zodíaco.”
88 “Olha por outras partes a pintura
Que as estrelas fulgentes vão fazendo;
Olha a Carreta, atenta a Cinosura,
Andrômeda e seu pai, e o Drago horrendo;
Vê de Cassiopéia a fermosura,
E do Orionte o gesto metuendo;
Olha o Cisne morrendo que suspira,
A Lebre, os Cães, a Nau e a doce Lira.
“Olha, por outras partes, a pintura (1) que estão fazendo as fulgentes estrelas; olha a Carreta (2), atenta [observa bem] a Cinosura (3), Andrômeda (4) e seu pai (5) Cefeu, e o Drago (6) horrendo. Vê a formosura de Cassiopéia (7), e o gesto metuendo de Orionte (8); olha o Cisne (9) que suspira morrendo; olha a Lebre, os Cães (10), a Nau (11) e a doce Lira (12).
(1) “Pintura”: o delineamento das diversas constelações, que os antigos astrônomos indicavam nos mapas ou cartas celestes, ligando as diversas estrelas por linhas imaginárias formando diferentes figuras. (2) “Carreta”: designação popular da Ursa Maior, constelação boreal próxima do Pólo Ártico. Também é denominada carro de Davi; V, 15, nota 4. (3) “Cinosura”, constelação boreal denominada Ursa Menor; na mitologia grega, nome duma ninfa que por Zeus foi transformada em estrela. (4) “Andrômeda”, constelação boreal; na mitologia grega, nome duma filha de “Cefeu” (rei lendário da Etiópia) e de “Cassiopéia” (rainha da Etiópia). Cefeu e Cassiopéia são também os nomes de duas constelações boreais. Na lenda mitológica, Cassiopéia, por ser muito formosa, disputava o prêmio da beleza às Nereidas. Júpiter, para estas se vingarem, inventou um monstro que assolava a Etiópia. Para o aplacar, consultou-se um oráculo, que respondeu ser necessário que Andrômeda fosse exposta aos furores do monstro. A princesa, ligada a um rochedo pelas Nereidas, ia ser devorada, quando acudiu Perseu montado sobre um cavalo alado e libertou a princesa, sendo ela então e os pais transformados em estrelas. (5) Veja-se a nota precedente. (6) “Drago”, dragão: constelação boreal entre a Ursa Menor e Cefeu. Na mitologia, monstro fabuloso que é representado geralmente com asas, garras de leão, e cauda de serpente. Imaginou-se um dragão a guardar os pomos de ouro no jardim das Hespérides; e outro, a servir de guarda ao tosão de ouro, raptado pelos argonautas. (7) Veja-se a nota 4. (8) Nome do caçador que Diana transformou em constelação, por lhe ter faltado ao respeito (não se confunda com Actéon); VI, 85. (9) “Cisne”, constelação boreal; na mitologia (Cygnus), filho do rei da Ligúria e amigo de Faetonte, por cuja morte chorou tanto que foi transformado em cisne e colocado no céu; IX, 43. (10) “Lebre”, constelação boreal; a lebre que Orion perseguia andando à caça; “Cães”, outra constelação, os cães de caça de Orion. (11) Constelação boreal: a nau Argo, que depois da viagem à Cólquida foi convertida nessa constelação. (12) Constelação boreal; na fábula, a lira de Orfeu (filho de Apolo), colocada no céu e convertida em estrela.
89 “Debaixo deste grande firmamento
Vês o céu de Saturno, deus antigo;
Júpiter logo faz o movimento,
E Marte abaixo, bélico inimigo;
O claro olho do céu no quarto assento,
E Vênus, que os amores traz consigo;
Mercúrio, de eloqüência soberana;
Com três rostos debaixo vai Diana.
“Debaixo deste grande firmamento (1) vês o céu de Saturno (2), deus antigo; Júpiter (3) faz logo abaixo o seu movimento, e abaixo está Marte (4), bélico inimigo; o claro olho do céu (5) está no quarto assento; e no terceiro está Vênus (6), que traz consigo os amores; e vês, no segundo círculo, Mercúrio (7), de soberana eloqüência; debaixo vai Diana (8) com três rostos.
(1) Grande firmamento; oitavo céu. (2) Planeta (que tomou esse nome da fábula) no sétimo céu. (3) Planeta no sexto céu. (4) Planeta no quinto céu; “belo inimigo”, por ter o nome do deus da guerra. (5) “Claro”, etc; perífrase do Sol, no quarto céu. (6) O planeta no terceiro céu (identificado com a deusa dos amores), chamado também estrela vespertina (quando aparece ao anoitecer) e estrela d’alva (quando aparece ao amanhecer). (7) Pequeno planeta, o mais próximo do Sol, no segundo céu. O deus da fábula com esse nome era protetor da eloqüência (assim como também do comércio e dos ladrões). (8) A Lua, no primeiro céu. Três rostos, porque os poetas fingiram Diana de três formas: Lucina, deusa que presidia ao nascimento, no céu; Diana, deusa da caça, na terra; e Prosérpina, nos infernos. Os três rostos da Diana aqui são as três fases: a Lua cheia, e os quartos crescente e minguante; na Lua Nova não há rosto porque a Lua se “esconde”.
Estão aqui representados os “sete céus” (I, 21); cf. Introdução do Vol. I, p. 23.
90 “Em todos estes orbes diferente
Curso verás, nuns grave e noutros leve;
Ora fogem do centro longamente,
Ora da Terra estão caminho breve;
Bem como quis o Padre onipotente,
Que o fogo fez, e o ar, o vento e neve,
Os quais verás que jazem mais a dentro,
E tem, c’o mar, a terra por seu centro.
“Em todos estes orbes (1) verás curso diferente; nuns, curso grave (2), e noutros, leve (3): ora fogem (4) do centro longamente, ora estão a caminho breve da Terra (5), como bem quis o onipotente Padre (6), que fez o fogo e o ar, o vento e a neve, os quais (7) verás que jazem mais a dentro, e tem o mar e a terra por seu centro.
(1) Círculos, representando os céus; veja a nota precedente. (2) Vagaroso. (3) Ligeiro. (4) Correm velozmente a grande distância (“longamente”). (5) Alguns orbes estão longe do centro (a Terra), outros estão a breve distância do mesmo centro; os que estão mais distantes (no seu curso aparente em volta da Terra) andam mais depressa. (6) Pai: Deus. (7) Refere-se o pronome a “fogo, ar”, etc., os elementos que, segundo a antiga astronomia, havia interpostos entre a Terra e o primeiro céu; veja-se a figura na Introdução do Vol. I, p. 23.
Os antigos astrônomos distinguiam céus, orbes e esferas para explicar a complicada teoria dos “epiciclos e excêntricos”; cf. Introdução do Vol. I, p. 27.
Acerca dos “círculos e movimento dos planetas”, diz o Sr. Dr. Luciano Pereira da Silva em “A Astronomia dos Lusíadas”, p. 66 (depois duma transcrição do Tratado da Esfera, já citado):
“Na descrição dos movimentos planetários, Camões refere-se apenas aos excêntricos, não pensando em descrever os tão diversos movimentos dos epiciclos (…). E que especialmente se consideram os céus excêntricos, torna-se claro na est. 90.
“Estes orbes [verso 1] são os excêntricos deferentes dos planetas, mais afastados do centro da Terra, no auge ou apogeu, e mais perto dele no perigeu. Tem curso mais grave o deferente de Saturno em 30 anos, e o de Júpiter em 12; o de Marte faz seu curso em 2 anos, e os do Sol, Vênus e Mercúrio em 1 ano; o curso mais leve é o da Lua em 27 dias e 8 horas.
“Pondo de parte os epiciclos, peças menores com tão variados movimentos, o poeta reduz as esferas planetárias à simplicidade da do Sol; e assim pode manter aquela linha de sobriedade com que vem sendo feita esta admirável descrição da máquina do mundo.”
Iluminura do Livro de Jogos, obra do scriptorium de Afonso X. A imagem mostra três copistas trabalhando.
RECEBA NOSSAS ATUALIZAÇÕES
DIGITE SEU EMAIL:
Verifique sua inscrição no email recebido.
Tempo de leitura: 18 min.
Trecho retirado do livro Uma História da Matemática da Florian Cajori, publicado pela Editora Ciência Moderna, em 2007.
A Europa durante a Idade Média
Com o terceiro século depois de Cristo começou uma era de migração de nações na Europa. Os poderosos godos abandonaram os seus pântanos e florestas no norte e, em marcha constante em direção ao sul, desalojaram os vândalos, os suecos, e os borgonheses. Cruzando o território romano, pararam e recuaram somente quando alcançaram as praias do Mediterrâneo. Dos Montes Urais, hordas selvagens varreram as terras até o Danúbio, o Império Romano caiu em pedaços indicando a Idade das Trevas. Embora possa parecer tenebroso, foram eles os responsáveis pela criação das instituições e das nações da Europa Moderna. Assim como os gregos e os hindus foram os grandes pensadores da antiguidade, o mesmo também se aplica aos povos latinos, que foram o embrião de um forte e luxuriante acontecimento, ou seja, as modernas civilizações do norte dos Alpes e a da Itália passaram a ser os grandes líderes dos tempos modernos.
INTRODUÇÃO À MATEMÁTICA DOS ROMANOS
Consideraremos agora como as nações do norte, ainda bárbaras, gradualmente conseguiram se apossar dos tesouros intelectuais da antiguidade. Com a expansão do cristianismo, a língua latina foi introduzida não só eclesiástica, como também cientificamente em todas as importantes transações mundiais. Naturalmente a ciência da Idade Média foi largamente extraída das fontes latinas. Com isto, durante os primeiros tempos da Idade Média os autores romanos eram os únicos escritores lidos no Ocidente. Embora o grego não fosse totalmente desconhecido, mesmo assim, antes do século XIII nenhum trabalho grego foi lido ou traduzido para o latim. Por ser na verdade escassa a ciência de que se poderia extrair dos escritores romanos, tivemos de esperar vários séculos antes que qualquer progresso matemático fosse feito.
Depois da época de Boécio e Cassiodório [Cassiodoro], a atividade matemática Itália morreu completamente. O primeiro tênue sopro de ciência entre as tribos que vieram do norte foi uma enciclopédia intitulada Orígenes [Etimologias], escrita por Isidoro (morto em 636 como bispo de Sevilha). Este trabalho é baseado nas enciclopédias de Martiano Capella de Cartago e a de Cassiodório e parte dele é dirigido ao quadrivium, aritmética, música, geometria, e astronomia. O autor apresenta definições e explicações gramaticais de termos técnicos, e mais os modos de computação usados na época. Depois de Isidoro, seguiu um século de obscurantismo um pouco dissipado pela presença de Beda, o Venerável (672-735), o mais erudito homem do seu tempo. Era um nativo de Wearmouth, na Inglaterra, seus trabalhos contêm tratados sobre o Computus, ou cálculo da data da Páscoa e prática da contagem com os dedos. Parece que o simbolismo com os dedos foi então largamente usado para os cálculos. A correta determinação da data da Páscoa naqueles dias era um problema crucial para a Igreja. Tornou-se mandatório que pelo menos um monge em cada monastério soubesse calcular o dia dos festivais religiosos, bem como o calendário. Tais cálculos requerem algum conhecimento de aritmética. Portanto achamos que a arte do cálculo sempre teve um papel importante na educação dos monges.
O ano em que Beda morreu é também o ano em que Alcuíno (735- 804) nasceu. Alcuíno foi educado em York, e depois chamado à corte de Carlos Magno, que foi um grande patrono da educação, e ele próprio um homem culto. Nas grandes catedrais e monastérios criaram-se escolas nas quais eram ensinados os salmos, a escrita, o canto, o cálculo (computus) e a gramática. Por computus significa aqui, provavelmente, não meramente o cálculo da data da Páscoa, mas a arte do cálculo em geral. Exatamente o que era, não temos como saber. Não se sabe igualmente se Alcuíno estava familiarizado com os ápices de Boécio ou com o modo romano de calcular pelo ábaco. Ele pertence à extensa lista dos sábios que moldaram a teoria dos números na teologia. Assim, o número de seres criados por Deus, que criou também todas as coisas, é 6, porque 6 é um número perfeito (cuja soma dos seus divisores é 1 + 2 + 3 = 6); 8, por outro lado, é um número imperfeito (1 + 2 + 4 < 8); portanto a segunda origem da humanidade vem do número 8, que é o número de almas dito ter estado na arca de Noé.
Há uma coleção de "Problemas para estimular a mente" (propositiones ad acuendos invenes), que é tão velha quanto 1000 d.C. ou talvez mais. O historiador Cantor é de opinião que foram escritos muito antes por Alcuino. O que se segue é um desses "Problemas": Um cão corre atrás de um coelho que tem uma vantagem de 50 m, e avança por cada pulo 3 metros, enquanto o coelho ao dar um pulo avança 2,5 metros. Para calcular em quantos pulos o cão alcança o coelho, 50 é dividido por 0,5 [1]. Nessa coleção de problemas, as áreas de terras triangulares ou quadrangulares são calculadas pelas mesmas fórmulas aproximadas usadas pelos egípcios fornecidas por Boécio em sua geometria. Um antigo problema é o da "cistema" (dado o tempo em que cada uma de várias bicas podem encher uma cistema, calcular o tempo que todas juntas levariam para enchê-la), que fora previamente encontrado em Herão, na Antologia grega, e em trabalhos hindus. Muitos dos problemas indicam que a coleção foi compilada principalmente de fontes romanas. O problema que em razão de sua unicidade dá o mais positivo testemunho de sua origem romana é o da interpretação de um testamento, no caso dos dois herdeiros serem gêmeos. O problema é idêntico aos dos romanos, exceto no que diz respeito às proporções de divisão estabelecidas no testamento. Como exemplo de problemas recreativos, mencionamos o do lobo, da cabra e da couve que devem fazer a travessia de um rio em um bote que os transporte, além do seu piloto, apenas mais um dos três. Pergunta: Quais podem ir no barco em cada travessia de modo que a cabra não coma a couve e nem o lobo a cabra? As soluções dos "problemas para estimular a mente" requerem não mais conhecimento do que algumas poucas fórmulas usadas em agrimensura, a habilidade de resolver equações lineares e o domínio das quatro operações fundamentais com inteiros. Extrações de raízes em nenhuma parte eram exigidas; e frações dificilmente ocorriam.
O grande império de Carlos Magno foi ameaçado de ruir logo após a sua morte em virtude da guerra e confusão que assumiram o poder. As pesquisas científicas foram abandonadas, e não retomadas até o final do século X, quando sob o domínio saxônico na Alemanha e dos capetianos na França, surgiu mais uma época de paz e a espessa escuridão da ignorância começou a desaparecer, e o zelo com o qual o estudo de matemática foi tomado deve-se principalmente a energia e influência de um homem Gerbert, nascido em Auvergne (França). Depois de receber uma educação monástica engajou-se no estudo, principalmente de matemática na Espanha. De volta ensinou em Reims por dez anos, tornando-se notável por sua grande cultura e elevado a mais alta posição. Pelo rei Oto I e seus sucessores, foi eleito bispo do Reino, depois de Ravena, sendo por fim, eleito papa sob o nome de Silvestre II, pelo último imperador Oto III. Considerado como o maior matemático da Europa do século X. sua matemática foi considerada maravilhosa pelos seus contemporâneos. Morreu em 1003 depois de uma vida atribulada, envolvendo-se em muitas disputas políticas e religiosas, acusado de conluios criminosos com os espíritos do diabo.
Gerbert aumentou seus conhecimentos com a leitura de livros raros. Assim, em Múntua, encontrou a geometria de Boécio, e embora isto fosse de menor valor científico, possuía, contudo, uma grande importância histórica. Foi, na época, o livro principal no qual os sábios europeus podiam aprender os elementos de geometria. Gerbert estudou-o com afinco, e é aceito, em geral, que ele próprio tenha sido o autor de uma geometria. H. Weissenbonn, um historiador, nega essa teoria, e garante que o livro em questão consiste em três partes que não podem ter vindo de um mesmo e único autor. Estudos mais recentes admitem Gerbert como o autor e adiantam que ele o tenha compilado de diferentes fontes. A sua geometria contém pouco mais do que a de Boécio, mas o fato de erros ocasionais nesta última e corrigidas na de Gerbert demonstra que o autor dominara o assunto. "O primeiro texto matemático da Idade Média que merece este nome", diz Hankel, "é uma carta de Gerbert a Adalbold, bispo de Utrecht", na qual é explicada a razão porque a área de um triângulo, obtida "geometricamente" tomando-se produto da base pela metade da altura difere da área calculada "aritmeticamente", pela fórmula \dfrac{1}{2} a (a + 1), usada pelos agrimensores onde a representa o lado de um triângulo equilátero. A carta fornece corretamente a explanação que na última fórmula todos os pequenos quadrados, nos quais é suposto o triângulo ser dividido, são contados inteiramente, embora parte deles saia fora dos limites da figura. D. E. Smith chama a atenção para um grande jogo numérico medieval; chamado Aritmancia: suposto por alguns ser de origem grega, foi praticado até tardiamente como no século XVI. Esse jogo exige considerável habilidade aritmética, tendo sido conhecido por Gerbert, Oronce Fine, Thomas Bradwardine e outros. Um tabuleiro semelhante ao de xadrez era usado. Relações como 81=72+ \dfrac{1}{8} de 72, 42 = 36 + \dfrac{1}{6} de 36 eram envolvidas no jogo.
Gerbert fez um cuidadoso estudo dos trabalhos de Boécio, e ele próprio publicou o primeiro, talvez ambos, dos dois trabalhos seguintes, Um Pequeno Livro sobre Divisão de Números: e o Regras de Cálculo Para o Ábaco. Estes livros dão idéia dos métodos de cálculos praticados na Europa antes da introdução dos numerais hindus. Gerbert usou o ábaco que provavelmente não era conhecido por Alcuíno. Bernelino, um aluno de Gerbert, descreve o ábaco como consistindo em uma prancha lisa sobre a qual os geômetras estavam acostumados a espalhar areia azul para desenhar os seus diagramas. Para os propósitos aritméticos, a prancha era dividida em 30 colunas, das quais três eram reservadas para frações enquanto as 27 restantes, divididas em grupos com três colunas em cada. Em cada grupo, as colunas são marcadas respectivamente pelas letras C (cento), D (dez), e S (unidades) ou M (monas). Bernelino apresenta os nove numerais usados que são os ápices de Boécio, e relembra que as letras gregas podem ser empregadas nos lugar daqueles. Com a utilização das colunas, qualquer número pode ser escrito sem o zero, e todas as operações da aritmética podem ser executadas sem as colunas do mesmo modo que fazemos hoje, empregando o zero. Na verdade, os modos de adicionar, subtrair, e multiplicar em voga entre os abacistas concordam substancialmente com os de hoje. Mas para a divisão existe uma grande diferença. As primitivas regras para a divisão parecem ter sido elaboradas para satisfazerem as três seguintes condições: (1) O uso de tabelas para a multiplicação seriam restritas, pelo menos, à prática de nunca se pedir a multiplicação mental de um número de dois dígitos por outro de um dígito. (2) As substrações deveriam ser evitadas tanto quanto possível e substituídas por adição. (3) A operação deveria ser feita de modo puramente mecânico, não sujeita a tentativas. Que tais condições fossem pedidas pode nos parecer estranho; mas deve ser lembrado que os monges da Idade Média não freqüentavam a escola na infância e aprendiam a tabuada enquanto a memória estava fresca. As regras para a divisão de Gerbert são as mais antigas ainda existentes. Elas são tão lacônicas que se tornam obscuras para o não iniciado. Foram provavelmente criadas simplesmente para ajudar a memória na chamada das sucessivas etapas do trabalho. Nos manuscritos posteriores foram instituídas com mais detalhes. Na divisão de um número qualquer por outro de um algarismo digamos 668 por 6, o divisor era primeiro aumentado para 10 com o acréscimo de 4. O processo era apresentado com uma figura ao lado. Na continuação do processo, devemos imaginar os dígitos que deveriam ser cortados, apagados e substituídos pelo que estava abaixo. Seria como segue: 600\div 10 = 60, mas para corrigir o erro, 4 \times 60, ou 240, deveria ser adicionado; 200 \div 10 = 20, mas 4 \times 20, ou 80, adicionado. Agora, escreve-se para 60 + 40+ 80, cuja soma é 180, e continuava-se assim: 100 \div 10 = 10; a correção necessária é 4 \times 10, ou 40, que somada a 80, dá 120. Novamente 100 \div 10 = 10, e a correção 4 \times 10, junto com 20, resulta 60. Procedendo como antes, 60 \div 10 = 6; a correção é 4\times 6 = 24. Agora 20 \div 10 = 2, a correção passa a ser 4\times 2 = 8. Na coluna das unidades temos aqui 8 + 4 + 8, ou 20. Como antes 20 \div 10 = 2; a correção é 2 \times 4 = 8, que não divisível por 10, mas somente por 6, fornecendo o quociente 1 e o resto 2. Todos os quocientes parciais tomados juntos fornecem 60 +20 + 10 + 10 + 6 + 2 + 2 + 1 = 111, e o resto 2.
Semelhante, mas mais complicado, é o processo quando o divisor é formado por dois ou mais algarismos. Quando o divisor for 27, por exemplo, então o múltiplo mais próximo de 10, ou 30, deve ser tomado como divisor, mas as correções para 3 são impostas. Aquele que tivesse paciência para levar uma tal divisão até o fim, entenderia por que se tem dito de Gerbert que "Regulas dedit, quae a sudantibus abacistis vix intelliguntur" [2]. Perceberá também por que o método de divisão árabe, quando foi introduzido, era chamado de divisio aurea, mas para o ábaco, de divisio ferrea.
Em seu livro sobre o ábaco, Bernelino separou um capítulo para frações. Estas eram, naturalmente, as duodecimais, primeiramente usadas pelos romanos. Sem uma notação adequada, o cálculo com elas era muito difícil. Mesmo para nós que estamos acostumados a lidar com frações, pela aplicação de nomes, tais como uncia para \dfrac{1}{12}quincunx para \dfrac{5}{12} e dodrans para \dfrac{9}{12}.
No século X, Gerbert foi a figura central dos sábios. No seu tempo, o Ocidente entrou na posse segura de todo o conhecimento matemático dos romanos, e durante o século XI esse saber foi estudado assiduamente. Apesar dos numerosos trabalhos que foram escritos sobre aritmética e geometria, o conhecimento matemático era ainda muito insignificante, na verdade escassos tesouros matemáticos obtidos das fontes romanas.
Notas:
[1] Está subentendido que o cão e o coelho, na corrida, executam os saltos concomitantemente. (N. T.)
[2] Estabeleceu regras que são compreendidas apenas por esforçados abacistas. (N. T.)