Postagem em destaque

COMECE POR AQUI: Conheça o Blog Summa Mathematicae

Primeiramente quero agradecer bastante todo o apoio e todos que acessaram ao Summa Mathematicae . Já são mais de 100 textos divulgados por a...

Mais vistadas

Santo Agostinho e a Educação

Santo Agostinho por
Antonio Rodríguez (1636 - 1691)

Texto retirado do livro História da Educação na Antigüidade Cristã de Ruy Afonso da Costa Nunes de 1978 e republicado em 2018 pelas Edições Kírion.

Santo Agostinho, grande Doutor da Igreja, foi o último grande pensador do fim do mundo antigo. Ele cresceu como pagão e imbuiu-se da cultura romana tendo sido exímio humanista, mestre de retórica e por isso, teólogo. Depois de convertido à filosofia e ao Cristianismo, Agostinho, movido por imensas inquietudes espirituais, aprofundou a meditação dos magnos problemas que afligem o espírito humano, escreveu muitas obras em elegantes linguagem latina, e deixou em herança à posteridade obras filosóficas e teológicas vazadas em tratados, sermões e cartas.

Antes das sua conversão, Santo Agostinho, profissionalmente, era mestre de retórica, literato e orador e, mais tarde, como sacerdote e bispo, sobre ser mestre de vida e de doutrina, imprimiu sempre em suas obras a marca indelével de pensador arguto e beletrista. Ora, tendo-se em mente o seu ardor pelos estudos, a sua experiência do magistério, o gosto das artes liberais e da filosofia, pode imaginar-se que o grande bispo de Hipona havia de se preocupar com a questão educacional entre os cristão. Ademais, se Santo Agostinho representava, de um lado, a maior figura da cultura latina no fim do mundo antigo, ele constituía, por outro lado, o estuário em que iam desaguar as águas dos caudalosos rios de doutrina dos Santos Padres. Daí podermos deparar nas obras do santo doutor com mina inexaurível de ensinamentos, conselhos e sugestões a respeito de assuntos educacionais. Os estudiosos e os especialistas podem recorrer às obras sistemáticas de um Marrou, de um Howie e de um Patanè, que examinaram a fundo a posição de Santo Agostinho quanto à cultura da sua época e quanto à educação. Muito modestos em nossos objetivos, queremos neste capítulo simplesmente assinalar os pontos que nos parecem capitais quanto à concepção de Santo Agostinho sobre a educação.

TRAÇOS BIOGRÁFICOS

Agostinho nasceu em Tagaste, na Numídia proconsular, a 13 de novembro de 354, e morreu em Hipona a 28 de agosto de 430, com 76 anos. Seu pai era soldado e pagão, enquanto a mãe, Mônica, era mulher cristã e muito piedosa, tanto que veio a merecer as honras do altar.

Fez os estudos de gramática e de retórica em Cartago e em Tagaste e, conforme as Confissões, foi aluno brilhante [1]. Durante esse período da juventude, deixou-se arrastar pelos maus exemplos e pelo temperamento ardente, entregando-se à luxúria. Ele mesmo confessa arrependido os pecados da adolescência [2], o que não é razão suficiente para que seja tomado como grande devasso, cumprindo observar-se, com Gabriel Riesco na sua biografia de Santo Agostinho, que acabou por surgir uma lenda negra a respeito dos pecados do jovem retórico africano que não foi nem melhor nem pior do que qualquer rapaz estróina do nosso tempo. Segundo seu próprio depoimento, Agostinho se manteve fiel à mulher com a qual vivia amancebado. Salvou-o, talvez, de outros excessos a preocupação com os livros e também o seu amor ao estudo. Agostinho terminou o curso de retórica em Cartago em 374 e foi nessa época que arranjou a amante de quem teve o filho Adeodato, tendo aderido, outrossim, à seita dos maniqueus. Voltou, então, para Tagaste e aí ensinou gramática durante dois anos, retirando-se, em seguida, para Cartago, onde abriu uma escola de retórica. Em 384 estava em Roma, tendo, por fim, atingido o ápice da carreira de professor de retórica em Milão em 385, quando se distinguiu como orador oficial na Corte Imperial. Aí ouviu os sermões de Santo Ambrósio e leu os escritos de Plotino, o fundador do Neoplatonismo. Converteu-se à religião católica em 386, tendo recebido o Batismo na noite de 24 ou 25 de abril, na vigília de Páscoa de 387, juntamente com seu amigo Alípio e o seu filho Adeodato. Em 388 regressou à África, e no ano seguinte morreu-lhe o filho. Agostinho foi ordenado e aclamado bispo de Hipona, cidade em que permaneceu até o fim da vida como pastor diligente, consagrado à evangelização por meio da palavra oral e escrita, tendo deixado um vasto acervo de obras que se lêem e estudam com proveito até os dias de hoje. Ele foi inegavelmente o mentor espiritual da Idade Média, máxime até até o século XII, e a sua concepção educacional influenciou e modelou a educação medieval, só vindo a surgir algo de equivalente durante o século XII, com o aparecimento das grandes obras da Escolástica, principalmente de Santo Tomás de Aquino, que estudou com carinho e aprofundou a doutrina do Mestre de Hipona.

O TRATADO SOBRE A DOUTRINA CRISTÃ: DE DOCTRINA CHRISTIANA

Santo Agostinho não foi apenas o último grande representante do pensamento latino na África do Norte romana, mas foi igualmente o último grande professor de retórica a deixar um legado respeitável de idéias pedagógicas. Ele teve, de fato, grande experiência do magistério. Em Tagaste lecionou gramática durante um ano numa escola que ele próprio estabelecera. Depois, lecionou em escolas de retórica em Cartago e em Roma. Quando retornou definitivamente à África, organizou em Tagaste, e mais tarde em Hipona, comunidades de estudiosos que se preparavam para ser professores cristãos bem adestrados, Foi exatamente com a intenção de orientar esses jovens estudiosos que Santo Agostinho redigiu o seu precioso tratado Sobre a Doutrina Cristã, iniciado em 397 e completado a partir do livro II, cap. 35, em 426, como se colhe das Revisões [3]. Diz aí o Mestre de Hipona que os três primeiros livros ajudam a compreender a Escritura, e o quarto ensina como é preciso expor aquilo que se compreendeu. Ora, como vamos ver, depara-se-nos, especialmente no Livro II, a concepção agostiniana sobre a formação intelectual do cristão e sobre as Artes Liberais, e descobre-se no Livro IV verdadeira mina de preceitos didáticos que podem ser transpostos com todo o direito para as modernas áreas do ensino, dada a sua importância metodológica.

De acordo com Marrou, Santo Agostinho rompeu com a tradição antiga e lançou os fundamentos da cultura medieval, tendo considerado apenas os altos estudos religiosos e deixado completamente de lado o problema da educação elementar ou, diz ainda o autor de Santo Agostinho e o fim de cultura antiga, O seu programa abrangia os cursos secundário e superior, enquanto o problema da escola primária não era examinado. Ora, parece-me que essas observações de Marrou são discutíveis. Primeiramente, Santo Agostinho não rompeu propriamente com a tradição antiga. Ele próprio ainda é um homem da Antiguidade. O que ele fez em matéria de cultura e pensamento cristão foi elaborar com mais apuro e sistematizar com empenho as concepções culturais e educacionais dos Santos Padres, legando dessa forma um verdadeiro patrimônio intelectual, um autêntico ideário pedagógico, à nova idade que logo se abriria, a saber, a Idade Média. Por outro lado, tudo indica que não passou pela mente de Santo Agostinho a pretensão de traçar programas de ensino para os diferentes níveis de escolarização, como se ele estivesse preocupado basicamente com a questão do ensino profano na África do Norte ou como se ele, com dons proféticos, já cuidasse da futura educação medieval, atentando apenas para os cursos médio e superior, e descurando o elementar ou primário. Ora, isso nunca foi preocupação de Santo Agostinho. Conforme o passo das Retractationes que citamos, Santo Agostinho confessa que o De Doctrina Christiana foi escrito com o objetivo de orientar os jovens quanto ao estudo da Sagrada Escritura, e sabemos que toda a obra do bispo de Hipona tem significado primariamente religioso e apostólico e, só por ricochete de idéias, alcance filosófico ou pedagógico. Tanto isso é verdade que, ao tratar da importância da eloquência para o orador cristão, observa Agostinho que a pessoa desejosa de estudar retórica deve tratar de arranjar tempo e um tipo de ensino adaptado à sua idade em lugar adequado, “extra istas litteras nostras” [4].

Torna-se evidente, pela análise do De Doctrina Christiana, que o jovem intelectual cristão fazia os estudos regulares durante os séculos quarto e quinto da nossa era, tal como os demais letrados pagãos que freqüentavam as escolas do gramático e do retórico, ou seja, a escola latina, já em decadência há muito tempo.

Passemos agora a analisar com brevidade alguns dos pontos mais salientes do tratado Sobre a Doutrina Cristã.

PRIMEIRO LIVRO DO DE DOCTRINA CHRISTIANA

O primeiro livro do De Doctrina Christiana abrange três partes, nas quais Santo Agostinho discorre sobre as verdades dogmáticas da fé cristã, sobre as verdades morais e sobre os verdadeiros princípios da exegese, sempre de acordo com o título do Livro I: “Verdades a descobrir na Sagrada Escritura”. Conforme declara Agostinho no começo do Livro I, há duas coisas nas quais se apóia o estudo das Escrituras: o modo de descobrir o que deve ser compreendido, e o modo de exprimir o que se compreendeu. Ora, ao primeiro modo, o da descoberta das verdades sagradas, serão consagrados os três primeiros livros, enquanto o quarto será dedicado às técnicas de ensino ou à arte da expressão retórica.

Santo Agostinho começa a expor, em primeiro lugar, as verdades dogmáticas, a saber: a Santíssima Trindade, o caráter inefável do Ser Divino, a sua grandeza e a sua sabedoria; a Encarnação do Verbo, a Redenção, a Ressurreição e a Ascensão, a Igreja e a ressurreição dos corpos. No capítulo X dessa primeira parte do Livro I, deparamos com certa observação que resume só por si a diferença profunda entre o espírito da pedagogia pagã e a mentalidade cristã. Sabe-se que os plasmadores da concepção educacional que ainda hoje rege o mundo ocidental foram os gregos [5]. Sabe-se, outrossim, que juntamente com a sua elevada concepção da filosofia, com a sua reta noção de personalidade humana, e com o seu maravilhoso senso estético da vida, os gregos mesclaram a prática dos vícios mais sórdidos que macularam as relações educacionais no plano concreto, como se colhe dos ensinamentos de Marrou sobre o uso da pederastia e do lesbianismo na educação grega, na sua História da Educação na Antiguidade. Ora, esses mesmos gregos brilhantes e loquazes sempre gostaram de discutir e de ouvir falar a respeito dos deuses, tanto que São Paulo, ao fazer o seu famoso discurso no Areópago de Atenas, declarou no exórdio: “Atenienses, vejo que sois, em tudo, os mais religiosos dos homens” (Atos 17, 22). Acontece, porém, que a verdadeira vida religiosa não se compadece, de maneira alguma, com a imoralidade. Por isso, o próprio São Paulo declara aos coríntios que o corpo da pessoa batizada é templo do Espírito Santo, e aos romanos indica o grau de corrupção em que viveram os gentios esquecidos de Deus.

Ora, levando tudo isso em conta, podemos avaliar o alcance da observação feita por Santo Agostinho [6]. “Devemos purificar o nosso espírito, a fim de nos tornarmos capazes de ver a luz divina e de a ela aderirmos. Julgamos que essa purificação é uma espécie de marcha e de navegação no rumo da pátria, pois não podemos dirigir-nos Aquele que se acha em toda a parte por meio de mudanças locais, mas por meio de bons desejos e de bons costumes.” Sim, eis a nota importante dessa observação agostiniana: não basta ler e estudar a respeito de Deus. É preciso que o estudioso se purifique, se esforce para melhorar de vida, pois só pode buscar a Deus quem se anima por santo desejo e pela prática das virtudes, “sed bono studio bonisque moribus”.

Em seguida, Agostinho trata das verdades morais e demonstra a hierarquia dos amores fundamentais: o amor de Deus, o amor de nós mesmos e o amor do próximo, ensinando como o amor de si mesmo deve proceder com ordem e prudência, a fim de não se converter em puro egoísmo, e como quem ama a Deus não pode deixar de amar os próprios inimigos.

Na última parte do Primeiro Livro, discorre Santo Agostinho sobre as verdadeiras regras da interpretação da Escritura, demonstrando que a idéia capital — haec summa est — é compreender que a plenitude e o fim da Lei e de todas as Escrituras é o amor, isto é, o amor de Deus (Rm. 13, 10; 1 Tim. 1, 5).

SEGUNDO LIVRO DO DE DOCTRINA CHRISTIANA

De acordo com Howie, o objetivo da Educação Cristã, título pelo qual se pode traduzir o De Doctrina Christiana, é aprestar um manual de instruções para o professor cristão, leigo ou clérigo. Pede ser que o santo doutor tenha tido, de fato, esse propósito. Parece-nos, entretanto, que o seu objetivo central foi o de orientar os jovens, os adolescentes cristãos, quanto ao ideal da vida de estudos sob a perspectiva da Revelação conservada e transmitida pela Igreja Católica. Assim, a certa altura da obra [7], Santo Agostinho dirige-se aos jovens estudiosos e inteligentes — studiosis et ingeniosis adolescentibus — que temem a Deus e buscam a vida feliz, dando-lhes o seguinte conselho: “Não se atrevam a consagrar-se sem inquietação às ciências liberais professadas fora da Igreja, como se elas fossem indispensáveis para alcançar a vida feliz. Os jovens devem submetê-las a exame criterioso e sereno, pois as ciências profanas só lhes devem interessar enquanto servirem de adminículo para o estudo da Sagrada Escritura e para auxílio na tarefa de interpretação das suas passagens obscuras”.

Outro aspecto fundamental do Segundo Livro da Educação Cristã é a apresentação feita por Santo Agostinho das artes liberais. Através da enumeração que delas faz, e das suas considerações, observa-se que a concepção agostiniana reflete a decadência dos estudos no ocaso do mundo antigo, ao mesmo tempo que se colhe da exposição que o estudo das Artes só teria função ancilar quanto à Sagrada Escritura. Aliás, Santo Agostinho trata das artes liberais em vários passos de suas obras e, nas suas Retractationes, afirma que lhe desagrada ter dado excessiva importância às disciplinas liberais que “muitos santos ignoram completamente, enquanto outros que as conhecem não são santos” [8].

O Livro II do De Doctrina Christiana é dedicado à interpretação dos sinais da Escritura. Afirma Santo Agostinho que o sinal, além da impressão produzida sobre os sentidos, faz vir ao pensamento algo diferente de si mesmo, tal como o rastro indica a passagem do animal, a fumaça indica o fogo, a voz exprime o estado da alma e o som da trombeta assinala ao soldado 6 tipo de manobra a executar. Entre os sinais, no entanto, uns são naturais e outros, convencionais. Os primeiros fazem conhecer alguma coisa, sem que haja intenção nem desejo de significá-la, tal como a fumaça que indica a presença do fogo. O mesmo ocorre com os rastros deixados pelos animais. Os sinais convencionais, ao contrário, são os de que se valem os seres vivos para mostrarem uns aos outros os movimentos da própria alma, isto é, tudo o que sentem e pensam, Ora, diz Santo Agostinho, “resolvemos considerar e estudar essa espécie de sinais referentes aos homens, pois os sinais dados por Deus e contidos na Sagrada Escritura nos foram revelados pelos homens que os compuseram”. Entre os sinais que servem aos homens para se comunicarem, uns pertencem à vista, a maior parte ao ouvido, e pouquíssimos aos outros sentidos. A Sagrada Escritura foi escrita num certo sistema de sinais, e graças aos tradutores propagou-se pelo mundo por meio de diversas línguas. Não resta dúvida de que ela contém passagens obscuras, mas essa obscuridade serve para contundir o orgulho de certos homens, assim como para lhes espicaçar o engenho. O verdadeiro intérprete da Escritura precisa elevar-se à sabedoria, mediante disposições da alma, que são como degraus da ascensão espiritual, a saber, o temor, a piedade, a ciência — “de que trato no livro presente, de quo nunc agere institui” —, a fortaleza, o conselho (que leva a apreciar as coisas no seu justo valor, e a amar a Deus e ao próximo), a purificação do coração pela renúncia ao mundo, e a sabedoria, o sétimo e último degrau, em que a pessoa do estudioso se entrega às delícias da contemplação divina. Em seguida, Santo Agostinho passa a tratar dos livros canônicos que integram o Antigo e Novo Testamento.

A partir do capítulo IX, Santo Agostinho passa a demonstrar que o estudo da Sagrada Escritura exige o conhecimento dos sinais próprios e figurados. A fim de conhecer os primeiros, o remédio é o conhecimento das línguas: latim, grego e hebraico, conhecimento que faculta resolver as ambigüidades dos textos, bem como corrigir os erros de tradução. O conhecimento das línguas, ademais, ajuda a interpretar os sinais figurados — in translatis vero signis — que também exigem o conhecimento das coisas. Este último, que permite esclarecer as expressões figuradas, é obtido por meio do que hoje denominamos ciências naturais, como a zoologia, a botânica, a geologia, a geografia, e através da aritmética, da geometria, da música e da astronomia, bem como por meio da gramática, da retórica, da dialética, da história, e da filosofia, Santo Agostinho recomenda expressamente que se fuja da astrologia, prática supersticiosa — genus perniciosae superstitionis —, assim como de quaisquer outras superstições, como as artes mágicas, que devem ser proscritas e abominadas, uma vez que “é supersticioso tudo o que foi instituído pelos homens para fabricar e cultuar os ídolos” [9].

É interessante observar o que diz Santo Agostinho, naquela época de escravatura, a respeito das artes mecânicas. Elas têm por fim, declara, a fabricação de objetos, e há casos em que o resultado da atividade ou trabalho do artífice permanece, como uma casa, um banco, um vaso, etc., e há outros em que o artífice apenas serve de instrumento para a ação divina — ministerium quoddam exhibent operanti Deo, —, como ocorre com a medicina, a agricultura e a arte de pilotar navios. Em outros, todavia, o resultado se reduz à ação, tal como nas danças, nas corridas e nas lutas. Ora, importa, durante a vida, ter conhecimento leve e rápido dessas artes, não para praticá-las — “a não ser que o dever nos obrigue ainda mais, e disso não estamos a tratar agora” —, mas para podermos apreciá-las, e sabermos o que a Escritura quer dar a entender quando emprega expressões figuradas peculiares a essas artes. Por conseguinte, esse conhecimento perfunctório sobre as artes mecânicas deve ser equivalente ao das artes liberais, uma vez que o objetivo dos estudos é simplesmente a leitura e a interpretação da Sagrada Escritura.

Finalmente, Santo Agostinho desenvolve o tema clássico entre os Padres da Igreja dos “despojos dos egípcios” [10], procurando demonstrar que os cristãos têm direito a se apossarem do que os filósofos disseram de verdadeiro, de reivindicar aos filósofos, especialmente aos Platônicos, tudo o que por acaso disseram de verdadeiro e de consentâneo com a fé, como quem se apropria do depósito guardado por injustos possessores, tal como Moisés e os Hebreus fizeram, ao despojarem os egípcios dos seus haveres preciosos. O patrimônio das doutrinas pagãs, diz Agostinho, contém, ao lado das fábulas e das superstições, as artes liberais apropriadas ao uso da verdade, certos preceitos morais utilíssimos, e ensinamentos sobre o culto de Deus único, semelhantes ao ouro e à prata, que os pagãos não inventaram, mas extraíram de certos metais formados pela Providência divina, que se acham por toda a parte, mas de que eles abusaram de modo injusto e perverso, para servir aos demônios. Por isso, o cristão pode arrebatar-lhes essas verdades para o uso justo da pregação do Evangelho. 

Santo Agostinho recomenda que os jovens intelectuais preparados com esses estudos preliminares, ao começarem a aprofundar a investigação da Sagrada Escritura, não se esqueçam do conselho do Apóstolo: “A ciência incha e a caridade edifica” (1Cor., 8, 1). Firmados na caridade, poderão aprender com os santos a largura, o comprimento, a altura e a profundidade da Cruz de Cristo, e descobrirão, por fim, que “os despojos dos egípcios” representaram quantidade ínfima em comparação com as riquezas que o povo obteve em Jerusalém, principalmente sob o rei Salomão, tal como é ínfima a ciência — que afinal é útil —. recolhida nos livros pagãos, quando comparada com a ciência guardada nas divinas Escrituras. Ora, convém sempre lembrar que “tudo o que o homem aprendeu alhures de prejudicial nelas é condenado, e tudo o que aprendeu de útil, aí já é ensinado”.

Como acabamos de ver, depois dessa ligeira análise, o Livro II da Educação Cristã formula o ideal do estudioso cristão que se aposta na juventude a estudar a Sagrada Escritura com a esperança da vida eterna, valendo-se para isso do auxílio que lhe possam prestar as artes mecânicas, as artes liberais e a filosofia. Estas disciplinas auxiliares deverão concorrer para que os jovens alcancem a “ciência” a que se refere Santo Agostinho no decurso da sua exposição. Essa ciência, conforme ensina Follet, é o estudo da Sagrada Escritura sem pretensões de erudição ou de sutilezas filosóficas e teológicas, que procura simplesmente descobrir a Vontade de Deus e a orientação moral para a vida feliz [11]. A ciência, por conseguinte, tem por objeto as verdades da fé que servem de instrução ao homem para alcançar a vida eterna.

TERCEIRO LIVRO DO DE DOCTRINA CHRISTIANA

No terceiro livro do De Doctrina Christiana explica Santo Agostinho os princípios que devem orientar o estudioso quanto à exegese da Sagrada Escritura e, embora o seu ensinamento se refira primeiramente à interpretação do Livro Sagrado, nem por isso deixa de revestir grande alcance pedagógico, uma vez que até mesmo nas relações educacionais, ao falar, ao escrever, e durante a leitura, a pessoa avisada deve ter em mente a medula desses ensinamentos agostinianos. Hoje em dia estuda-se com muito gosto e proveito a filosofia analítica aplicada à educação e, num livro como o de Israel Scheffler sobre A Linguagem da Educação, verificamos como os educadores devem estar atentos ao uso das definições, das metáforas e dos slogans educacionais. Ora, quem lê as obras de Santo Agostinho sabe muito bem da perícia com que ele manejou essas questões, embora o anglicismo slogan não figure, evidentemente, em passo algum de sua obra. O santo Doutor, entretanto, observa freqüentemente que o bom entendimento de certas passagens exige que elas sejam lidas no seu contexto, recomendação feita por Scheffler a propósito dos slogans.

No Livro III do De Doctrina Christiana Santo Agostinho explica a maneira de dissipar as ambigüidades dos termos oriundas da má pontuação, da má pronúncia, do modo de expressão, bem como da apreensão em sentido literal de expressões figuradas. Primeiramente, ele disserta sobre a atitude do estudioso perante o sinal, e diz que fazer ou venerar um significante sem saber o que significa é ser escravo de um sinal, sub signo enim servit. Já aquele que, sem compreender a significação de um sinal, sabe que se trata de sinal, não está sob o jugo da servidão, enquanto só é livre e espiritual aquele que faz ou venera um sinal útil, divinamente instituído, e cuja força e significação ele entende, tal como ocorre com os sinais dos sacramentos do Batismo e da Eucaristia. De seguida, Santo Agostinho formula um princípio geral e outros particulares para que se possa distinguir a locução figurada.

O princípio geral reza: Tudo o que na palavra não pode ser referido à honestidade dos costumes ou à verdade da fé é dito em sentido figurado. A Sagrada Escritura prescreve sempre a caridade e condena a cupidez. Ora, a caridade em vantagem própria é utilidade, enquanto no interesse do próximo é beneficência. A cupidez assinala-se por ser movimento da alma que a leva a gozar de si mesma, do próximo e de qualquer ser corporal, sem levar a Deus em consideração. Quando ela está voltada para a corrupção da alma e do corpo, chama-se turpitude, flagitium, e quando usada para prejudicar o próximo é iniqüidade, facinus.

Quanto aos princípios particulares da exegese, são de fato muito esclarecedores para a leitura proveitosa da Sagrada Escritura. Assim, diz o primeiro, nunca se deve atribuir a Deus ou aos santos personagens atos cruéis referidos pela Bíblia, pois tudo isso tem por fim destruir o reino da cupidez. Em segundo lugar, cumpre não referir, também, a Deus e aos santos, as torpezas de qualquer espécie, uma vez que não passam de figuras, e é preciso, ainda, levar em consideração os lugares, os tempos e as pessoas. O terceiro princípio manda que as locuções figuradas sejam entendidas de tal modo que a interpretação seja levada ao seu objetivo: o reino da caridade.

De acordo com o quarto princípio, é preciso saber interpretar os preceitos que parecem ordenar uma iniqüidade, tal como o passo do Evangelho de São João (6, 54): “comer a carne e beber o sangue do Filho do Homem”, em que se inculca participar da Paixão do Senhor, etc. Em quinto lugar, muitos atos referidos no Antigo Testamento, e cometidos por dever, além de serem figurados, não poderiam ser cumpridos hoje senão libidinosamente. Por último, cumpre desculpar as faltas cometidas pelos grandes homens, e tomar-lhes os exemplos como advertência à vigilância quanto à nossa própria conduta: “Quem está de pé, veja de não cair” (1Cor. 10, 12).

Lembra Santo Agostinho que as pessoas instruídas devem saber que os autores sagrados usaram tropos, como a alegoria, o enigma e a parábola. Ademais, quase todos os tropos, que se aprendem nas artes liberais, acham-se até na linguagem dos que nunca estudaram com nenhum gramático e se contentam apenas com o uso da língua vulgar. Assim, por exemplo, é o caso da metáfora, e o da catacrese.

À primeira é o uso figurado de um termo, enquanto a segunda é a aplicação de termo figurado devido à falta de termo próprio, tal como ocorre com o termo piscina (piscis, peixe), aplicado ao reservatório sem peixes. Todavia, diz Santo Agostinho, a língua vulgar não emprega habitualmente os tropos que fazem entender o contrário do que se diz, tal como a ironia ou a antífrase. A ironia indica pelo tom da voz o contrário de que se quer dar a entender, como “o dizermos a quem age mal: “Fazes bem!”. A antífrase, por sua vez, emprego de palavras em sentido oposto ao verdadeiro, não recorre do tom da voz para dar a entender o contrário, mas usa termos em sentido oposto à etimologia ao chamar, por exemplo, de lucus (de lucere) um bosque escuro ou ao dizer “sim” ao que se entende por “não”, tal como, ao procurarmos um objeto onde ele não se acha, alguém nos responde: “Há de sobra”.

O conhecimento desses tropos é necessário para dissipar as ambigüidades das Escrituras, e por essa razão Santo Agostinho passa a discutir as regras de Ticônio, o leigo donatista que se dedicou à teologia e redigiu, por volta de 382, o Liber regularum, manual de exegese muito apreciado pelo Bispo de Hipona e pelos autores medievais. A obra de Ticônio foi o primeiro manual de exegese escrito em latim. Como informa Santo Agostinho, Ticônio donatista escreveu contra os donatistas de maneira invencível — invictissime — e formulou no seu Manual sete regras “feitas para abrir como chaves as passagens ocultas das Escrituras divinas”, embora Ticônio não tivesse apresentado nas suas regras todos os recursos necessários à boa interpretação da Bíblia. Além disso, a sua obra deve ser lida com cautela, não só porque ele se enganou em muitos pontos mas, sobretudo, por causa das suas idéias de herege donatista.

QUARTO LIVRO DO DE DOCTRINA CHRISTIANA

No início deste quarto livro da sua obra, observa Santo Agostinho que os três primeiros foram escritos com a preocupação de descobrir a verdade na Sagrada Escritura, de compreendê-la com a mente e de amar essa eterna verdade com todo o coração. Agora, na última parte do tratado, a sua atenção volta-se exclusivamente para a questão da expressão do pensamento, para a importância da eloquência como instrumento de difusão da verdade. Logo de entrada, no entanto, o santo doutor vai advertindo os leitores que não esperem da sua parte o ensinamento sistemático dos preceitos da retórica que ele aprendeu e ensinou nas escolas do século, in scholis saecularibus. Reconhece-lhes a utilidade, mas acha que o seu aprendizado demanda muito tempo e, por esse motivo, recomenda que os interessados os estudem em particular, se tiverem tempo. Ora, como ensina Donald Lemen Clark em sua obra Rhetoric in Greco-Roman Education, o verdadeiro significado da retórica e a sua prática nos tempos romanos eram determinados pelo treino escolar [12]. Pois é exatamente esse treino proporcionado pelas escolas que Santo Agostinho desaconselha aos jovens estudiosos cristãos, por lhe parecer que os exercícios escolares absorveriam demasiadamente o tempo a ser consagrado principalmente à meditação e à difusão da verdade religiosa.

Depois de ter analisado o Livro IV do De Doctrina Christiana, Marrou acha que a grande vantagem do método preconizado por Agostinho para a aquisição da eloqüência vem a ser exatamente a diminuição do programa, e diz que não nos devemos apressar a ver nisso um progresso ou uma antecipação da pedagogia contemporânea, mas reconhece na concepção agostiniana un effet de la décadence, da decadência de sua época em matéria de estudos. Sabe-se que nos séculos IV e V houve um rebaixamento do nível da civilização que, já por volta de Agostinho, diz Marrou, anuncia os tempos bárbaros. Todavia, o Mestre de Hipona não despreza a técnica em que se formara e notabilizara, mas propõe um método diferente, mais fácil e mais rápido [13].

A arte retórica, diz Agostinho, serve para inculcar a verdade e a falsidade, o bem e o mal. Ora, os maus servem-se dela para prejudicar o próximo. Mais razão, portanto, para que os bons a utilizem para fazer o bem. Santo Agostinho adverte aos que pretendem conhecer e ensinar que adquiram o talento da palavra, facultatem dicendi, sobremodo conveniente a um homem da Igreja, a um eclesiástico que cumprirá a contento com a sua tarefa de pregador, se fizer o possível da sua parte, ao recorrer à retórica, confiando ao mesmo tempo na inspiração do Espírito Santo, conforme a recomendação de Nosso Senhor Jesus Cristo em Mt 10, 19 [14]. A fim de adquirir a eloqüência, Agostinho recomenda aos clérigos que, em vez de seguir as lições dos professores de retórica, procurem ler, escutar e imitar os oradores que sabem aliar a eloqüência à sabedoria. Os temas da pregação devem ser sempre hauridos da Sagrada Escritura, reservando-se as questões difíceis para um auditório mais seleto e evitando-se examiná-las com o povo simples. Ademais, é típico dos bons engenhos, diz Agostinho, amar a verdade nas palavras e não as próprias palavras, pois de que serve uma chave de ouro que não serve para abrir o que desejamos, ou em que prejudica uma chave de madeira se ela pode abrir o que está fechado, conforme o nosso desejo?

O autor de De Doctrina Christiana acha que os homens maduros não se devem abalançar à aquisição da eloqüência, uma vez que sobre eles já se faz sentir o peso dos anos. Quanto aos adolescentes, só vem aplicar-se à arte retórica os que dispuserem de tempo e lazer. O ideal do estudante deve ser adquirir a sabedoria na Sagrada Escritura e possuir habilidade retórica para transmiti-la aos ouvintes de modo conveniente. De acordo com Cicero no De Oratore, ensinar é necessidade; deleitar é um prazer, e comover, uma vitória. A instrução, por conseguinte, é o objetivo essencial do orador, embora o encantamento ou agrado constitua fator importante na eloqüência. Por isso, “é necessário, remata Agostinho, que o orador eclesiástico, ao inculcar um dever, ensine para instruir, deleite para cativar e comova para vencer? (9). Embora recomende com empenho aos clérigos a obrigação de procurar falar com eloqüência, Agostinho não se esquece de preveni-los quanto à condição fundamental do êxito, que é o espírito de oração. O orador, diz ele, deve crer mais no poder da oração do que nos recursos da retórica e deve rezar por si mesmo e pelos ouvintes, distinguindo-se por ser mais orator que dictor, mais orante que orador. Desse modo, antes do sermão, deve mergulhar na oração para que Deus lhe abençoe as palavras, uma vez que ninguém progride no conhecimento de Deus ou na prática da virtude por meio dos homens santos ou através do ministério dos anjos, a não ser que seja dócil ao próprio Deus, doador de todo o bem. Assim, os adminículos doutrinários só surtem efeito quando a graça de Deus lhes dá eficácia.

Em matéria de retórica, Santo Agostinho segue os passos de Cícero. De acordo com o De Oratore, aos três objetivos da oratória, já assinalados, correspondem três estilos de eloqüência. Ser eloqüente é poder tratar de pequenos assuntos de modo simples, submisse; de assuntos médios em estilo moderado, temperate, e de grandes assuntos de modo sublime, granditer. Segundo esses parâmetros, será orador eloqüente aquele que procurar inculcar o bem por meio da instrução, do deleite e da comoção, depois de ter implorado o auxílio de Deus através da oração, e será orador eloqüente, ainda que não consiga o assentimento do ouvinte.

Santo Agostinho, de seguida, faz importante advertência aos pregadores, ao ensinar que o clérigo nos sermões só trata de grandes assuntos, já que todos estes dizem respeito à salvação eterna. Por isso, ele deve ter sempre em mente que os seus temas são grandes e capitais, em qualquer lugar em que deva tratar deles, com qualquer espécie de público, por exemplo, perante uma ou muitas pessoas, diante de amigos ou inimigos; e em qualquer situação, isto é, tanto num sermão como numa conversa, em tratados ou livros, como em cartas longas ou breves. Por conseguinte, a missão do orador não se cumpre apenas através de discursos, mas estende-se a todos os gêneros literários de que se pode valer para anunciar a palavra de Deus e promover a conversão das pessoas. Todavia, lembra Agostinho que convém empregar ora um ora outro estilo, conforme a natureza do assunto tratado.

Com a prática da oratória e a ciência a ela pertinente, o santo Bispo de Hipona orienta o estudioso a respeito do emprego das modalidades da eloquência, recomendando-lhe que recorra ora a este ora aquele estilo, conforme as conveniências do assunto e do público, e para completar o seu pensamento aduz exemplos de estilo simples, moderado e sublime em São Paulo, em São Cipriano e em Santo Ambrósio. Depois desses esclarecimentos a respeito do estilo da eloqüência, Santo Agostinho explana as regras da oratória eclesiástica. Segundo a Primeira Regra, no discurso devem mesclar-se os três gêneros de eloqüência, observando-se, no entanto, que o estilo simples é preferível, preceito da Segunda Regra, nos discursos que requerem agudeza de espírito (acumine opus est). A Terceira Regra refere-se ao estilo sublime. Geralmente, diz Agostinho, esse estilo tem por efeito comprimir a garganta e provocar lágrimas, e o santo demonstra o asserto com um caso pessoal, ao relatar o discurso que pronunciara certa vez em Cesaréia da Mauritânia, ao tentar persuadir os cidadãos a renunciarem a uma guerra particular e tradicional, a caterva, combate em que parentes, irmãos, pais e filhos lutavam em bandos opostos a pedradas durante dias, em certa época do ano, e se matavam a torto e a direito. Agostinho falou à turba em estilo sublime, e ganhou aclamações dos ouvintes que derramaram abundantes lágrimas, de tal modo que o abominável costume foi extirpado definitivamente, embora fosse prática herdada dos pais e de antepassados distantes. Por outro lado, Quarta Regra, muitas pessoas mudaram de vida, ao aprenderem verdades e ao acreditarem no que antes não admitiam, por meio de instruções ministradas em estilo simples. Ao discorrer sobre a Quinta Regra, observa Santo Agostinho que o objetivo do orador é persuadir os ouvintes e, por essa razão, convém ter em mente que os dois primeiros gêneros da eloquência são necessários aos que pretendem falar com sabedoria e vigor, enquanto o moderado, cujo fim é deleitar, não deve ser usado por si mesmo, mas para reforçar os resultados obtidos por meio dos outros dois estilos. Com a Sexta Regra, ensina o autor do De Doctrina Christiana que o orador sagrado deve sempre propor-se a obtenção dos três fins da eloqüência, embora o seu discurso seja pronunciado num só estilo. A Sétima Regra tem relevo especial. Diz Santo Agostinho que o pregador deve viver o que anuncia, deve ser coerente com a doutrina que apregoa. Quem fala com sabedoria e eloqüência, mas vive mal, diz ele, pode instruir pessoas ávidas de aprender, mas “permanece inútil para a sua alma”, conforme o Eclesiastes (37, 22). Há homens, reconhece o santo Doutor, que anunciam a doutrina de Cristo, mas estão mais preocupados com os seus próprios interesses do que com os do reino de Cristo. Mesmo assim, como o ensina o Divino Mestre (Mt 23, 3), os bons cristãos podem fazer o que dizem e não o que fazem os pregadores. Por isso, estes já são úteis a muitos ao dizerem o que não fazem, mas seriam mais úteis, e as suas palavras seriam muito mais eficazes se pusessem em prática o que pregam. Aliás, reflitamos, essa não vem a ser, também, a questão séria da coerência que se impõe aos educadores de todos os níveis e de quaisquer disciplinas, tanto no ambiente familiar como no recinto das escolas?

Oitava Regra, por sua vez, é, também, de importância capital, e reza que o orador sacro, e dizemos nós o professor, deve preocupar-se mais com o fundo do que com a forma do discurso, e que nada é pronunciado melhor do que a doutrina verdadeira, pois “o doutor não está a serviço das palavras, mas as palavras é que estão a serviço do doutor”. De nada vale recorrer-se a este ou àquele estilo de eloqüência, se não se trata de exprimir juízos verdadeiros. Por isso, adverte Santo Agostinho, se não se é capaz de falar ao mesmo tempo com sabedoria e eloqüência, que se diga pelo menos com sabedoria o que não se diz com eloqüência, antes que dizer com eloqüência o que se diz nesciamente. Quem, entretanto, não for capaz disso, uma vez que a eloquência não depende apenas da boa vontade, que viva de tal modo que a sua conduta já seja uma pregação, et sit eius quasi copia dicendi forma vivendi.

Ao expor a Nona Regra, Santo Agostinho revela-se claramente pastor de almas, preocupado com a salvação do seu rebanho e sabendo pela prática que o clero de qualquer região e em qualquer época não pode ser composto apenas de Demóstenes ou Cíceros. Daí a recomendação que parece um atentado à honestidade intelectual de um retórico ou de um professor que se preza. Diz aí o santo Doutor que, se uma pessoa for incapaz, por incompetência, de compor um sermão, por mais mofino que fosse, então poderia pedir a alguém que o redigisse, contentando-se o orador sacro com o decorar e pronunciar, acrescentando que nisso não iria mal algum. Desse modo, muitos se tornam pregadores da verdade, praedicatores veritatis fiunt, sem que por isso haja muitos mestres, nec multi magistri, contanto que todos ensinem a mesma verdade em nome do único verdadeiro Mestre, e que não haja divisão entre eles [16] Finalmente, com a Décima Regra, Santo Agostinho retoma um tema predileto e a recomendação insistente no De Docirina Christiana: o orador deve sempre rezar antes de fazer a pregação. Deve rezar para que Deus Nosso Senhor lhe inspire boas palavras tanto no momento em que vai falar ao povo ou a qualquer outro grupo, como no momento em que vai ditar um discurso a ser pronunciado para o povo ou a ser lido por quem o quiser e o puder fazer. E não sei se a recomendação seguinte do santo Bispo não vai repassada por leve dose de humor, ao dizer que os oradores, antes de pronunciarem o discurso escrito por outrem, devem rezar pelo autor, por si mesmos e pelos ouvintes, devendo o êxito da palavra ser sempre atribuído a Deus.

Encerra-se a obra com a ação de graças feita por Santo Agostinho ao rejubilar-se por ter conseguido terminar esse livro tão útil aos oradores eclesiásticos sobre a doutrina cristã, a ser estudada e anunciada tanto para proveito pessoal como para o bem do próximo.

E nós estamos certos de que essa obra clássica do pensamento cristão e pedagógico constitui verdadeira mina de preceitos válidos e de inspirações notáveis para os educadores de todos os tempos.

A APRENDIZAGEM E A ILUMINAÇÃO

Quando se procura expor o pensamento de um autor como Santo Agostinho, é preciso resistir à tentação de querer esmiuçar o seu pensamento, máxime quando se trata de apresentar apenas a sua concepção educacional. É clarc que, muitas vezes, as idéias pedagógicas estão de tal modo enleadas nas concepções filosóficas, que não é possível expor umas sem tratar das outras. Todavia, ainda nesse caso é preciso estar em guarda para não transformar a história da pedagogia em história da filosofia. Afinal, não foi à toa que a necessidade de clareza do pensamento levou os estudiosos à divisão do trabalho intelectual em áreas disciplinares. Por isso, embora ao perscrutar o pensamento de um educador se possa e se deva levar em conta a sua filosofia explícita ou implícita, bem como, freqüentemenie, as suas crenças religiosas, convém não pretender transformar a história da educação em história da filosofia. Cuique suum: é uma questão de justiça intelectual e de probidade científica. O historiador da educação e da pedagogia pode remeter o leitor às obras de história filosófica para os devidos e, às vezes, imperiosos esclarecimentos, mas ele próprio deve cingir-se ao mínimo de incursão na história da filosofia, uma vez que o seu ponto de vista, o seu critério de investigação ou o seu objeto formal são as idéias e os fatos relativos à educação. A não ser assim, melhor fora renunciar à história da pedagogia, da arte, da economia, da política, da religião, da técnica, etc., por se insistir em que as concepções filosóficas permeiam sempre o pensamento de uma época e em que a filosofia é a disciplina fundamental do espírito. Pode-se reconhecer tudo isso e, no entanto, deixar a exposição das idéias filosóficas para os livros dedicados exclusivamente a esse objetivo. Cuide-se, portanto, de evitar o filosofismo, tão pernicioso quanto o cientificismo ou o teologismo, na investigação e na apresentação das concepções educacionais de um autor ou de um determinado período histórico.

Quando rastreamos os textos agostinianos à procura do seu pensamento a respeito da aprendizagem, três conclusões, parece-nos, acabam por se nos impor. Primeiro, advertimos que o santo doutor evoluiu intelectualmente quanto a esse tema, tendo de início se deixado enlevar pela doutrina platônica da reminiscência, mas sem a haver adotado jamais em toda a amplitude, uma vez que depois do Batismo renunciou definitivamente à admissão da preexistência da alma, que na concepção platônica justifica a doutrina da reminiscência. Essa posição filosófica foi superada por Santo Agostinho com a sua doutrina da iluminação.

A segunda conclusão que se nos impõe é a de que a doutrina da iluminação já se insinuava para Agostinho através dos textos bíblicos, patrísticos e filosóficos, sendo esta influência filosófica marcantemente neoplatônica. Por fim, a terceira conclusão a que se chega naturalmente é a de que para Santo Agostinho só Deus é Mestre e que os professores, na realidade, nada ensinam, limitando-se a provocar os estudantes, a motivar os alunos para o conhecimento. A fim de esclarecer essas conclusões, perlustremos ligeiramente alguns passos da obra agostiniana.

Ensina Santo Agostinho que o homem é dotado de razão, poder espiritual que se distingue conforme os objetos do conhecimento. Assim, a razão é inferior, enquanto conhece o mundo sensível e corporal, e é superior, desde que se volte para o conhecimento do que é inteligível e eterno. Da razão inferior procede a ciência, e da superior, a sabedoria. Acontece que o ser divino e as coisas eternas excedem a capacidade intelectual do homem, o âmbito da razão superior. Daí o recurso de Agostinho à metáfora da iluminação, que caracteriza a intervenção divina quanto à razão. Desse modo, Deus é comparado ao sol nos Solilóquios [17], é a luz que ilumina a inteligência humana [18]. No Tratado sobre a Santíssima Trindade, depois de haver criticado a doutrina da reminiscência de Platão, Santo Agostinho afirma que a mente intelectual é de tal natureza que contempla as realidades inteligíveis de ordem natural numa luz incorpórea sui generis, da mesma forma que o olho corpóreo, ao resplendor da luz material, vê os objetos que lhe estão em redor, pois foi criado para essa luz e a ela adaptado [19]. O mesmo pensamento vem afirmado no De Civitate Dei [20], onde o Mestre de Hipona reforça a sua asserção, ao invocar em seu apoio o prólogo do Evangelho de São João. Ora, evidentemente a metáfora da iluminação foi inculcada solenemente no início do Quarto Evangelho, quando o Discípulo Amado declara: “Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens e a luz brilha nas trevas mas as trevas não a apreenderam”, e ao dizer que João Batista “veio para testemunhar a luz verdadeira que, vindo ao mundo, ilumina todo homem”. Aliás, a metáfora da iluminação divina já fora proposta no Antigo Testamento. Nas Confissões [21], Agostinho afirma que se recolheu em seu coração, conduzido por Deus, e ali discerniu com a vista da alma, acima dos olhos interiores e do próprio espírito, a Luz imutável muito mais clara e esplendorosa que a visível. E Agostinho exclama embevecido: Quem conhece essa Luz imutável, conhece a Verdade e a Eternidade, acrescentando: “O Amor conhece-a!”

Entre os Padres da Igreja, Clemente de Alexandria, inspirado por certo no Evangelho de São João, afirma no cap. IX do Protréptico que o Logos exerce o papel de iluminador, é a luz para os homens, a luz pela qual vemos a Deus, e uma luz comum, phôs coinón, uma vez que brilha para todos os homens.

Entre os filósofos, parece-nos, a influência marcante sobre Santo Agostinho procede de Plotino, que ensina ser a nossa alma sempre iluminada, e daí poder iluminar continuamente as coisas inferiores [22].

Nesse diapasão, Santo Agostinho, nos Solilóquios, compara Deus ao sol visível, dizendo que a terra é visível mas só pode ser vista quando iluminada pelo sol, o mesmo ocorrendo com as verdades inteligíveis que só podem ser entendidas quando iluminadas pelo sol que é Deus [23]. Esta doutrina do Mestre Interior já fora sugerida no De vita beata e vem a ser plenamente desenvolvida no De Magistro [24]. Nesta obra Sobre o Mestre, Santo Agostinho ensina sem rebuços que o homem só aprende quando é iluminado interiormente pelo Mestre que é Cristo, a luz interior da verdade que ensina e esclarece o homem interior. Assim, o ouvinte ou o aluno conhece a verdade não por meio das palavras exteriores dos professores e dos pregadores, mas através da contemplação exercida pelo olho secreto e simples da mente, ao apreender as próprias coisas na sua verdade essencial que Deus lhe desvenda. As palavras só servem de advertência e estímulo, pois Cristo é o verdadeiro e único Mestre da Verdade. Como explica Santo Agostinho no Sermão 179, o pregador que não escuta o Mestre Interior não passa de inútil e extrínseco pregador, pois no interior da alma somos todos ouvintes, in corde, in mente, onde Deus verdadeiramente nos ensina (13). Aliás, no Sermão 23 diz Agostinho que o magistério é perigoso, enquanto o discipulado é seguro, uma vez que devemos reconhecer sermos todos nós, os que falamos e os que ouvimos, os que ensinamos e os que aprendemos, apenas condiscípulos aos pés do Mestre que é Cristo [26]. O diálogo De Magistro, em que Santo Agostinho formulou, de modo claro e definitivo, a sua concepção da aprendizagem, foi escrito em 389, e desenvolve-se entre Agostinho e o seu filho Adeodato, que tinha 16 anos. O próprio Agostinho confirma nas suas Retractationes [27] que no livro Sobre o Mestre se discute, se investiga e se conclui não existir mestre para ensinar a ciência ao homem fora de Deus, conforme o que está escrito no Evangelho: “Um só é o vosso Mestre, Cristo”. Por isso, ao comentar o De Magistro, afirma Gilson sermos levados à conclusão inevitável e paradoxal de que nunca se aprende nada. Professores e alunos estão na mesma situação. O que uns dizem e os outros escutam deve ser conferido à luz do Mestre Interior, que é a mesma Verdade [28]. Segundo Santo Agostinho, tanto a intelecção das coisas interiores como a que se exerce através dos órgãos dos sentidos sobre os objetos externos opera-se no interior, e só se apreende a verdade recorrendo-se a Deus [29].

Por conseguinte, de acordo com o Mestre de Hipona, o intelecto humano exerce atividade cognitiva quando o homem confere o que vê, escuta, lê ou pensa com a verdade inteligível que está na sua própria mente, apresentada por Deus. Agostinho não conheceu a doutrina aristotélica do intelecto agente e, por isso, ele não confunde a Deus com tal função intelectual, nem toma o poder intelectual do homem por um intelecto separado, tal como o apresentarão certos filósofos muçulmanos, ao interpretarem a doutrina exposta no De Anima de Aristóteles. Segundo Santo Agostinho, é o próprio homem que entende, auxiliado pela iluminação. Tanto é assim que no De libero arbitrio [30], ao considerar Deus como o sol dos espíritos, Agostinho reconhece que o grau de intelecção varia entre os homens, havendo alguns mais bem dotados, cujos olhos são mais potentes, sãos e vigorosos, vegetioribus sanisque et fortissimis oculis praediti.

NORMAS DIDÁTICAS SEGUNDO DE CATECHIZANDIS RUDIBUS

O pequeno tratado de Santo Agostinho, De Catechizandis Rudibus, é uma verdadeira jóia doutrinária e pedagógica [31]. Um cristão alegrar-se-á com certeza, e muito aproveitará, se o ler e meditar.

Qualquer estudioso da pedagogia, no entanto, e todo professor, terão motivos de júbilo e grande recompensa se compulsarem esse opúsculo com a máxima atenção. Feita essa recomendação de leitura, atenhamo-nos ao que nos parece essencial nesse tratado à reflexão pedagógica. Santo Agostinho dirige-se ao catequista desejoso de ministrar ensino profícuo aos catecúmenos da fé cristã. Ele era professor experiente e grande orador familiarizado com os mais variados tipos de auditório. Pois bem, o que ele diz a respeito do ensino da doutrina cristã pode ser perfeitamente transposto para o ensino de qualquer disciplina, ao se levar em conta o valor e o alcance dos seus preceitos didáticos. 

Assim, de acordo com o pensamento da Águia de Hipona, o professor não deve olhar para a própria exposição da matéria, como se ela devesse aparecer aos próprios olhos como um modelo artístico de explanação. Ao contrário, deve apagar-se, sob tal aspecto, diante dos seus ouvintes, ficando satisfeito, desde que se faça entender por eles. Desse modo, diz Santo Agostinho, o êxito do ensino depende em boa parte do professor que deve trabalhar com alegria, pois isso ajuda os alunos a se tornarem receptivos, e torna a exposição agradável, As vezes, pode acontecer que haja entre os alunos alguns muitos eruditos e que, por alguma razão, se tornaram ouvintes. Nesse caso, o professor não deve preocupar-se. Fale, como se estivesse a lidar com pessoas que ignoram o assunto das lições; toque de leve nos temas já conhecidos e exponha com calma o que, de regra, se propõe aos incultos e aos ignorantes. Desse modo, o aluno erudito não deixa de tirar proveito da aula, uma vez que relembrou o que sabia e aprendeu algo que ignorava.

A parte mais interessante, todavia, do tratado De Catechizandis Rudibus é a que se acha nos capítulos X e XV, e onde o grande Doutor explica como deve agir o professor em classe para não aborrecer os alunos com aulas monótonas ou desinteressantes. Santo Agostinho, portanto, apresenta algumas regras a respeito do modo de dar aulas, ressaltando que o nó do problema está em conseguir o professor promover uma válida motivação dos alunos por meio da alegria. Ora, isso exige certa arte, ou, pelo menos, jeito e habilidade. Primeiramente, Agostinho aponta as seis causas do enfado, ou seja, os motivos que levam os alunos em classe ao desinteresse pela aula, e, em seguida, aponta os remédios convenientes para sanar tal situação.

Em primeiro lugar, diz ele, o professor pode ficar com a impressão de que sua aula parece vulgar e sem brilho. Ele deve reparar que essa é a impressão suscitada em seu próprio espírito pelo desejo, talvez, de excessiva perfeição. Ora, o remédio para isso é combater essa falsa impressão, pois a aula só estaria deixando a desejar se os alunos o manifestassem. O professor deve procurar, sim, descer das alturas do pensamento ou das suas ambições culturais até o nível dos seus ouvintes, tratando de se fazer entender, de falar com clareza, e de explicar qualquer dificuldade encontrada pelos alunos.

A segunda causa do enfado é que o professor se encanta com os próprios pensamentos e se aborrece por ser obrigado a falar, a expor o que pensa. Outras vezes, lamenta o tempo perdido com a exposição, pois mais lhe valeria ficar a ler um bom livro ou entregue à reflexão. Ora, o remédio para isso é lembrar-se o professor de que o seu papel é ensinar, e não permanecer alheio à classe em atitude narcisista. Tudo sairá bem se ele empregar os meios convenientes para ensinar a verdade das coisas ou dos acontecimentos por meio das palavras. O professor desempenha um papel social de relevo e, com as aulas, não deve pretender a glória pessoal ou o aplauso dos sábios. A sua tarefa pode parecer rotineira e está constantemente ameaçada pela preguiça pessoal ou pelo peso da monotonia, mas ele sempre poderá desempenhá-la a contento.

Em terceiro lugar, há professores que se lamentam por terem de voltar todos os anos, e constantemente, aos mesmos assuntos, pois o programa permanece, de certa forma, quase invariável diante das gerações sucessivas de alunos. Para isso, diz Agostinho, o grande remédio é “adaptar-nos aos nossos ouvintes com amor fraterno, paterno e materno”, pois se tivermos em mira o seu bem, e os estimarmos, os temas sempre nos parecerão novos, tal é o poder do amor!

Outras vezes, o professor pode ficar aborrecido com a atitude de indiferença dos alunos. Eles parecem não querer nada com nada. Fixam algum ponto no espaço infindo, murmuram para os vizinhos ou olham o professor de modo cínico. O professor precisa manter a calma diante desse tipo de auditório. Envide os melhores esforços para chamar a atenção dos ouvintes para a matéria exposta, procure descobrir, por meio de perguntas, se eles estão entendendo, e anime os que tiverem algo a dizer ou a objetar. Agora, se o aluno for inepto, surdo e indiferente, diz Santo Agostinho, o professor “deve suportá-lo misericordiosamente”.

Às vezes, acontece que não estamos dispostos a dar aula, e teríamos preferido ficar em casa a ler ou a fazer qualquer outra coisa e, no entanto, o dever nos chama e temos de fazer a nossa exposição ou dar explicações. O resultado é que estas não saem brilhantes e os alunos correspondem à atitude do professor com bocejos. Quando for esse O caso, é preciso primeiro que o professor se retempere, e procure levantar o tonus da classe por meio de alguma frase engraçada ou de uma historieta graciosa mas relacionada com O assunto da aula. Cuide o professor de manter o bom humor, e use esses pequenos estratagemas, que servem para despertar a atenção, sem converter a aula numa seqüela de piadas...

A quinta causa do enfado pode provir da nossa convicção de que dar aula todo dia é uma perda de tempo, um aborrecimento ou um motivo de frustração, uma vez que o nosso programa pessoal de estudos é perturbado e interrompido ou o plano das nossas atividades é agitado ou bloqueado pelo horário das aulas. Ora, diz Agostinho, o remédio para isso é pensar que não damos aula por mero prazer pessoal, mas por obrigação. Trata-se de um dever profissional, e de obra de misericórdia para com o próximo. Não esqueçamos que as aulas fazem parte do nosso programa de vida e constituem parte importante dos nossos planos. Não podemos viver bem no papel de professores se o ignorarmos. O trabalho obrigatório e necessário poderá converter-se, se nos esforçarmos para isso, em fonte de alegria.

Finalmente, chegamos à sexta e última causa do aborrecimento em classe. Isso ocorre quando o professor vai à escola perturbado por alguma grande aflição pessoal ou familiar, em estado de tensão ou de desânimo, faltando-lhe, então, as condições para falar e explicar convenientemente a lição. Ora, em tal situação, o professor deve lembrar-se de que os alunos não têm culpa do seu problema pessoal; deve animar-se com pensamentos positivos, certo de que não existe vida humana sem dores e aflições. Ademais, lembre-se de que é preciso cumprir o dever da melhor maneira possível, e de que o fato de poder ensinar alguém mais uma vez é sempre fonte de alegria. Além disso, o professor cristão saberá combater a tristeza causada pelo pecado por meio do arrependimento e da contrição, assim como saberá recorrer ao bálsamo da oração humilde e confiante a fim de conseguir proceder sempre com caridade e misericórdia em relação ao próximo,

Pelo que vimos, a Metodologia contemporânea pode perfeitamente endossar e justificar os preceitos didáticos exarados por Santo Agostinho no início do século V, tal é a permanência da natureza humana, através dos fluxos acidentais da maré histórica em que os homens se debatem no curso das idades.


Notas:

[1] “Adamaveram enim latinas (litteras), non quas primi magistri, sed quas docent qui grammatici vocantur. Nam illas ubi legere et scribere et numerare discitur, non minus onsrosas poenalesque habebam, quam omnes graecas”. Augustinus, Confessiones, 1, I, cap. 13, 20, PL 32 (1877), cl. 670.

— “Habebant et illa studia quae honesta vocabantur, ductum suum intuentem fora litigiosa, ut excellerem in eis, hoc laudabilior, quo fraudulentior, Tanta est caecitas hominum de caecitate etiam gloriantium. Et maior iam eram schola rhetoris; et gaudebam superbe, et tumebam typho”. Ib., 1. III, cap. 3, 6, PL 32 (1877), cl, 685.

[2] Augustinus, Confessiones, 1. II, Cap. 2, 2: “Annum aetatis suae decimum sextum in ardore libidinoso consumptum”. PL 32 (1877), cl. 675.

[3] Retractationes, II, 4.

[4] De Doctrina Christiana, 1. IV, cap. 3, 4.

[5] Em seu comunicado sobre o valor da herança antiga dos gregos no Inquérito publicado na França pelo “Enseignement chrétien”, em 1932, dizia o famoso helenista Festugiêre: “Qu'on le veuille ou non, nos enfants sont de petits Oceidentaux, soumis en fait à un systeme de pensées, de sentiments, d'usages qui, sur le plan humain, nous viennent, par Rome, de la Grêce [...].
    Ces deux faits conjoints: universalité de l'Idés d'homme, origine grecque des loís de l'homme moral et connaissant, m'induisent à donner à l'étude de l'Humanisme grec une prééminence singulière.
    Sans doute on en saisit, à Rome, le reflet. La littérature des Latins se calque sur la grecque. Leurs réflexions morales sont puisées à l'Hellade.
    Mais précisément ce n'est plus la source. On imite, on traduit”.
    F. Charmout, s. j., L'Humanisme et l'Humain, pp. 372-373.

[6] De Doctrina Christiana, 1. I, cap. 10, 10.

[7] L. II, cap. 39, 58.

[8] Cf. Ruy Afonso da Costa Nunes, Gênese, Significado e Ensino da Filosofia no século XII, Segunda Parte, cap. IV, pág. 101 e 109, Consulte-se, ainda, o meu artigo “Santo Agostinho e a Herança Romana” em Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo, n.º 754, de 9/1/72.

[9] L. II, cap. 20, 30.

[10] L. II, cap. 10, 60.

[11] Excelente apanhado de Folliet sobre a noção de ciência no Livro II do De Doctrina Christiana, em Oeuvres de Saint Augustin, XI, Le Magistere Chrétien, Notes complémentaires, 29, pp. 570 a 573.

[12] Clark, Donald Lemen — Rhetoric in Greco-Roman Education, pág. 59.

[13] Marrou, H. I. — Saint Augustin et la Fin de la Culture Antique, pp, 517-518.

[14] De Doctrina Christiana, L. IV, cap. 15, 32. PL 34 (1887).

[15] “Oportet igitur eloquentem ecclesiasticum, quando suadet aliquid quod agendum est, non solum docere ut instruat, et delectare ut teneat, verum etiam flectere ut vincat”. Ib, IV, c 13, 29.

[16] Cf. 1 Cor., 1, 10 e Mt., 2, 34.

[17] I, 8, 15

[18] ib. I, 1, 3

[19] De Trinitate, XII, 15, 24.

[20] X, 2. 

[21] L. VII, 9, 13

[22] Plotino, Enéadas (ed. Brehier), t. II, 9, 2-3, pág. 113-115.

[23] Solilóquios, l. 1, cap. 8, n.º 15, PL 32, (1877), cl. 869.

[24] De vita beata, IV, 35. PL 32, (1877), dl. 976;  De Magistro, XII, 38, PL 32, (1877), cl. 1216. Cf. De Magistro, Kírion: Campinas, 2017.

[25] Sermo 179, PL 38 (1841), cl. 966, 970.

[26] Sermo 23, PL 38 (1841), cl. 155.

[27] L. I, cap. 12.

[28] Gilson, Introduction a l'étude de Saint Augustin, pág. 93-99. Sobre a abstração e a iluminação consultem-se pág. 118-121 especialmente.

[29] Epístola a Nebrídio. PL 33 (1865), cl, 78.

[30] L. II, cap. 13, 36.

[31] O De Catechizandis Rudibus foi traduzido por Maria da Glória Novak para a Editora Vozes Limitada com o título: A Instrução dos Catecúmenos. Teoria e prática da catequese. PL 40 (1887). [Também publicado com o título Como Catequizar os Rudes pela editora CDB em 2022]


Bibliografia

Agostinho, Santo. De Doctrina Christiana. Cura et studio J. Martin (Corpus Christianorum. Series Latina XXXII, A. A. Opera, Pars IV, D. Turnholti Typographi Brepols Editores Pontificii, 1962.

—————— De Magistro. De Libero Arbitrio, in Oeuvres de Saint Augustin 6. Dialogues Philosophiques. Texto da edição beneditina. Tradução, introdução e notas de F. J, Thonnard. Paris, Desclée, De Brouwer et Cie, 1941.

—————— De Catechizandis Rudibus. De Doctrina Christiana, em Oeuvres de Saint Augustin 11. Texto da edição beneditina. Tradução, introdução e notas de G, Combes e Farges. Paris, Desclée, De Brouwer et Cie. 1949.

—————— Soliloquia, em Oeuvres de Saint Augustin 5. Dialogues Philosophiques. Texto da edição beneditina. Tradução, introdução e notas de Pierre de Labriolle. Paris, Desclée, De Brouwer et Cie., 1948.

—————— Retractationes, em Oeuvres de Saint Augustin 12. Les Révisions. Texto da edição beneditina. Tradução, introdução e notas de Gustave Bardy. Paris, Desciée, De Brouwer et Cie., 1950.

—————— Confessiones, em Obras de San Augustin. Texto Bilingüe. Tomo II, Las Confessiones. Edição crítica e comentada pelo P. Angel Custodio Vega, O. S. A. 2ª edição (3.ª do autor). Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1951.

—————— Confissões. Tradução do original latino por J. Oliveira Santos S. J. e de A. Ambrósio de Pina S. J. Prólogo de Lúcio Craveiro da Silva S. J. 4.ª edição. Porto, Livraria Apostolado da Imprensa, 1952.

Altaner, B. e A. Stuiber. Patrologia. Vida, Obras e Doutrina dos Padres da Igreja. S. Paulo, Edições Paulinas, 1972.

Bihlmeyer, K. e Tüelche, H. História da Igreja. Tradução do Pe. Ebion de Lima SDB. São Paulo, Edições Paulinas, 1964.

Boyer, S. J, Charles. Christianisme et Néo-Platonisme dans la Formation de Saint Augustin, Nova edição revisada pelo autor. Roma, Catholic Book Agency, 1953.

Cayré, A. A, F. Patrologie et Histoire de la Théologie. Paris-Tournai-Rome, Desclée et Cie., 1953, 3 vol.

Cayré, A.A.F. Initiation a la Philosophie de Saint Augustin, Pais, Desclée, De Brouwer et Cie,, 1947.

Charmot, F. S. J. L'Humanisme et l'Humain. Psychologie Individuelle et Sociale. Paris, Éditions Spes, 1934.

Clark, Donald Lemen. Rethoric in Greco-Roman Education. Nova York e Londres. Columbia University Press, 1957.

Daniélou, J. e Marrou, Henri. Nova História da Igreja. 2.ª edição. Dos Primórdios a São Gregório Magno. Tradução de Dom Frei Paulo Evaristo Arns, O. F. M. Petrópolis, Editora Vozes Ltda. 1973.

Gilson, Etienne. Introduction a l'étude de Saint Augustin. 3.ª edição. Paris, Libraire Philosophique J. Vrin, 1949.

Howie, G. Educational Theory and Pratice in St Augustine. Londres, Routledge and Kegan Paul, 1969.

Insuelas, J. B. L. Curso de Patrologia (História da Literatura Antiga da Igreja). Braga, Escola Tipográfica das Oficinas de S. José, 1944.

Marrou, Henri-Irénée. Saint Augustin et la Fin de la Culture Antique. Paris, E. De Boccard, Éditeur, 1938.

Plotin. Ennéades. Editado e traduzido por Émile Bréhier. 10.ª edição. Paris, Societé d'Édition "Les Belles Lettres", 1954, 6 tomos (7 volumes). 

Quasten, J. Patrologia. Edição espanhola preparada por Ignacio Oñatibia. Madrid, BAC, 1962, 2 vol.

San Miguel, Jose Ramn. De Plotino a S. Agustín. El conocimento en San Agustin y en el Neoplatonismo. Madrid, Libreria Editorial Augustinus, 1964. 

Tixeront, J. Histoire des Dogmes dans l'Antiquité Chrétienne. 7.ª edição. Paris, Librairie Víctor Lecoffre. J. Gabalda, Éditeur, 1924, 3 vol.

***


Curta nossa página no facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Total de visualizações de página