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A Pedagogia Medieval

 

Saltério de Eadwinus. Inglaterra,
séc. XII. Monge copista.
Trinity College, Cambridge
Trecho retirado Introdução do livro Educação, Teatro e Matemática Medievais de Luiz Jean Lauand, 1986. Editora Perspectiva.

Atualidade da Pedagogia Medieval

Régine Pernoud, a conhecida medievalista francesa, comparou certa vez, a possibilidade de abertura proporcionada pelo genuíno estudo de história com a que se pode obter pelas viagens: em ambos os casos nos deparamos com "o outro", distante de nós no tempo ou no espaço.

E esse encontro nos coloca em situação de reparar em tantos aspectos do nosso modo de ser e de ver o mundo que julgávamos universais mas que para nossa surpresa -- mostram-se próprios de nosso meio ou época. Como também, com igual surpresa, deparamo-nos com experiências humanas que por coincidirem com as nossas (mutatis mutandis, é claro) nos revelam que não somos tão originais como pensávamos.

E assim, viajando ou estudando história, temos a possibilidade de abrir-nos, de superar um pouco os limites mais ou menos estreitos de nosso "bairro" de espaço e tempo, a possibilidade de enriquecer-nos como homens através de uma melhor compreensão da realidade do mundo e também de nós mesmos. Claro que nos referimos a uma possibilidade, pois, de per si, nem as viagens nem os estudos históricos podem realizar essa abertura. Para tanto requer-se além disso, e, principalmente, uma atitude interior de compreensão e acolhimento.

Pois pode acontecer, que o efeito desse contato com o "outro" seja até mesmo um maior fechamento e provincianismo. Todos conhecem algum exemplo: o novo-rico que volta da Europa e ao projetar os slides para os amigos vai manifestando sua indignação ante aquelas "velharias caindo aos pedaços".

Algo semelhante ao que se passa com tantos turistas, pode dar-se também quando se trata do contato com o "outro" no tempo, com o estudo de história: embotamento, superficialidade e incapacidade de compreensão (o que pode perfeitamente ocorrer também com eruditos estudiosos).

No caso da história, o "outro" é ainda menos visível e os cicerones -- no caso, livros e professores -- nem sempre sabem dirigir a atenção àquilo que realmente interessa, conduzindo-nos antes a apressadas correrias superficiais pelos estereotipados "pontos turísticos" da história sem que captemos nada de significativo. Ou, ainda pior, levando-nos a lojas com ele aconchavadas e onde a mercadoria é falsificada e o preço exorbitante.

Todos esses empecilhos que ameaçam comprometer o estudo de qualquer período histórico, parecem manifestar-se mais acentuadamente quando se trata da Idade Média. O medieval é -- assim se expressa o preconceito -- a obscuridade, a ignorância, o desprezível. Por isto, procuraremos lembrar alguns aspectos ligados aos primeiros séculos medievais e que o estudioso da história da cultura e da educação da época deve ter em conta.

Alguns poucos aspectos que nos farão por um lado apreciar as diferenças daqueles séculos em relação ao nosso e, por outro (o que poderá surpreender a muitos...!), as semelhanças da problemática educacional medieval com a brasileira contemporânea.

Primeiramente, as diferenças. Aí é especialmente importante a tarefa de abrir-se ao outro, procurar apreendê-lo tal qual é e não como se tivesse de agir, pensar e ver o mundo com critérios que hoje nos são conaturais. 

Assim, antes de emitirmos juízos sumários sobre por exemplo a ciência medieval devemos procurar compreender os condicionamentos, mentalidade e motivações próprias da época.

Superando por exemplo nossa errada tendência a só dar valor a inovações e progressos técnicos sofisticados que nos impressionam: computadores, raio laser etc...

A propósito dessa distorção, consideremos algo para nós tão corriqueiro e irrelevante como efetuar uma conta de divisão. Por exemplo, dividir 3 878 por 88. Valendo-nos do algoritmo usual (para não falar em calculadoras...) é questão de segundos: dá 44 e resto 6.

3 878 |88
   358   44
       6

Contudo, sem os nossos algarismos chamados arábicos, qual a viabilidade de se fazer o mesmo: comportam os algarismos romanos algum algoritmo para as operações?

MMMDCCCLXXVIII |LXXXVIII,

tem algum sentido isto?

Para nós, hoje, com imprensa, xerox etc., pode não ser imediatamente evidente a descomunal importância da letra minúscula que permite a escrita cursiva; ou o significado do paciente trabalho de cópia nos mosteiros medievais; ou ainda, o imenso alívio que representou a introdução do nosso atual sistema de algarismos.

Tenha-se em conta também que, no caso da evolução da cultura, não contam só os fatores ligados a recursos técnicos, mas também, e principalmente, a mentalidade: que atitude terão uns bárbaros analfabetos instalados no espaço do ex-Império Romano? Que farão eles por exemplo com os livros?

E não se trata só do que farão, mas do que podem fazer. Que acesso físico (obter o livro), motivacional, de língua etc., têm ostrogodos e visigodos à cultura clássica?

Este é o ponto em que a problemática pedagógica medieval se revela de plena atualidade. Pois, quem contempla hoje a situação educacional brasileira, repara imediatamente que o ostrogodo é uma realidade atual, atualíssima.

O risco hoje, tal como no século VI, é o do desaparecimento da cultura que tem suas origens na Grécia e em Roma e que plasmou o Ocidente. Quem lê hoje Platão, Virgílio, Dante, Cervantes, Shakespeare? Quem estuda Geometria, os teoremas de Geometria?

No caso da experiência medieval, a cultura antiga salvou-se. Graças a um trabalho de imenso valor mas que nós hoje não sabemos apreciar. Um trabalho humilde (e, necessariamente, pouco original) de aprendizado elementar. Um trabalho de preservação, de salvação da cultura antiga, conservando-a sob a forma de "minúsculas sementes que iriam sofrer longo e demorado pro- cesso germinativo em solo novo" (Pieper). E graças à disposição de aprender não totalmente ausente nos ostrogodos.

E graças ainda a educadores com grande visão pedagógica. A título de exemplo consideremos o caso de Boécio.

Boécio elabora essas sementes para a Idade Média. Boécio é um romano que conhece a fundo a cultura grega e que percebe que o esplendor cultural do mundo antigo passou: a realidade agora são os ostrogodos!

Para se compreender a situação de Boécio no reino ostrogodo de Teodorico no início do século VI, imagine-se, hoje, um brilhante scholar europeu, destacado em todas as áreas do pensamento, tendo que lecionar num supletivo de 1.º grau em Cochabamba.

Boécio, no entanto, percebe o que deve ser feito: só se pode salvar a cultura em épocas de crise como a que ele viveu adaptando-a às condições dos bárbaros.

E ele assume a tarefa de selecionar, traduzir, dar em forma de bê-a-bá os grandes tesouros culturais da Antiguidade. Por exemplo, parte explícita de seu projeto era a tradução de todas as obras de Platão e Aristóteles, projeto interrompido pela trágica morte.

Escreveu tratados de Música, Aritmética e Geometria (De Institutione Geometrica), entre outros.

No caso exemplar da Geometria, ainda que o original boeciano se tenha perdido, resta-nos o Ars Geometrica (durante muito tempo atribuído a Boécio e que provavelmente é pouco posterior ao De Institutione e nele se apoia), que, seja como for, reflete sem dúvida o espírito (e talvez a letra) do "último romano e primeiro escolástico"

Trata-se de uma resumo das definições e proposições de Euclides em tradução latina. No começo do livro II, encontramos uma sentença que sintetiza maravilhosamente todo o projeto de salvação cultural boeciano: "Quamvis succincte tamen dicta sunt", isto é, apresentei-vos a Geometria de modo sucinto e facilitado, mas a apresentei.

São as tais sementes secas: a gloriosa Geometria de Euclides, maltratada, resumida, exposta sem sua parte mais nobre, as demonstrações: precisamente o que Boécio mais prezava! Mas, graças a isso, precisamente por isso, salva-se no Ocidente a própria Geometria: não havia outra opção de salvação!

Quem pensa na situação do próprio ensino de Geometria hoje, no Brasil, ou na do de Literatura ou História etc., se tiver um pouco de amor a essas matérias, sentir-se-á imediatamente muito próximo de Boécio, irmanado com ele. E talvez o imagine sorrindo diante de projetos pedagógicos contemporâneos como o dos Great Books, ou o dos concertos populares em Shopping Centers.

Pelo menos Boécio como ele mesmo diz - traduzia à risca e selecionava o melhor que os seus bárbaros alunos podiam assimilar. Há neste sentido a curiosa passagem do Ars Geometrica -- que apresentamos em onde se vê claramente emergir o espírito do 3.1 Boécio "grego": um parágrafo onde, como num desabafo, o autor pede licença aos ostrogodos leitores para fazer demonstrações de teoremas, três apenas, e dos mais fáceis (as três primeiras proposições do livro I de Euclides) a fim de não deixá-los numa treva tão total e, algum dia, as sementes poderem florescer: que se saiba pelo menos o que é demonstrar um teorema e que isso é belo, importante e formativo.

Graças a esse trabalho humilde e sacrificado, assumido conscientemente por quem tinha talento para muito mais, a Matemática preservou-se no Ocidente e pôde manter-se até o século X, quando recebe novo impulso com Gerberto e, a partir dos séculos seguintes, desenvolver-se mais e mais.

Considerando isso, é o caso de perguntarmo-nos se não haverá na história da educação medieval (da qual destacamos aqui apenas mínimos aspectos) muita matéria de reflexão quando se a capta autenticamente.

Mas para isso é necessário abrir-se, captar o "outro", como um viajante que chega a uma terra distante com os olhos abertos para aprender, com a mesma diligência com que procuramos captar e compreender detalhes do modo de ser de uma pessoa a quem amamos.

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