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Educação e Formação da Personalidade

Texto retirado do Prefácio do livro A Formação da PersonalidadeP. Leonel Franca. Edições Hugo de São Vitor, 1ª edição, 2019. também publicado pela Agir Editora, em 1938 e Edições Kírion em 2019.

Personalidade humana: a pessoa como sujeito de perfeições

por Sidney Silveira

A INTELIGÊNCIA NO CENTRO DA PERSONALIDADE

Tratar do tema da personalidade sem passar pelo conceito de pessoa seria mais ou menos como explicar um axioma da geometria euclidiana sem dominar conceitos básicos desta ciência, como reta, curva, ponto, intermediação, congruência, superfície, ângulo, etc. Desgraçadamente, em psicologia, assim como em pedagogia, isto é mais comum do que o vulgo imagina: estudiosos da alma humana adeptos de escolas diversas discorrem de maneira temerária sobre questões relativas à personalidade, negligenciando definições e postulados elementares [1]. Em regra, o resultado do seu trabalho é uma babel terminológica e conceitual - e, como diz Santo Tomás de Aquino seguindo as pegadas de Aristóteles, parvus error in principio magnus est in fine [2].

O grave problema da formação da personalidade requer que partamos de definições precisas, como as aludidas acima. A primeira delas é a que nos deixou Boécio:

"Pessoa é substância individual de natureza racional" [3].

Ao deparar com esta acepção, que em linhas gerais aceita, Tomás de Aquino comenta na Suma Teológica o seguinte: nela, o termo "substância" tem significado genérico (communiter), pois não se define se se trata de uma natureza abstrata - como ocorre com o termo "humanidade" -, ao passo que o termo "individual" se refere a uma substância concreta (substantia prima), ou seja, a "este homem" [4]. O Aquinate vai além e diz-nos que os indivíduos racionais se encontram no gênero da substância quoddam specialiori et perfectiori [5], ou seja, de modo especial e perfeito em relação às substâncias desprovidas de potências para descortinar a realidade compondo e dividindo raciocínios.

Para Santo Tomás, a definição de Boécio indica que "pessoa" é uma substância primeira, ou seja, o suppositum do indivíduo concreto, e tal suposto se distingue de todos os demais - na ordem do ser - pela diferença específica "racional". Pessoa é, portanto, um indivíduo especial do gênero da substância, e com o termo "substância" se exclui que os acidentes sejam pessoa [6]. Mas o Aquinate vai além e frisa o seguinte: (...) persona est aliquid distinctum subsistens in natura intellectuali [7]. Como se pode deduzir, uma personalidade em que o intelecto não desempenhe papel central é, para o Doutor Angélico, algo absolutamente insustentável [8] - pois a inteligência é a nota distintiva da pessoa [9].

Pessoa é o núcleo ontológico do indivíduo humano, o substrato inalienável do seu ato de ser. Nesta ordem de considerações, Tomás de Aquino chega a dizer que, dentre todas as coisas existentes, pessoa é maximamente indivíduo, pois (dadas as suas potências intelectiva e volitiva) se governa a si mesma, opera de modo especial movida por forças intrínsecas e não por algo que lhe seja extrínseco [10]. A individualidade pessoal encerra um sentido de unidade perfeitíssimo; seria aquela em relação à qual todas as demais individualidades são analógicas, em graus decrescentes de perfeição.

Podemos dizer que o "eu" é um sujeito subsistente ao qual costumamos chamar pessoa [11]. Em breves palavras, o eu, ou ego, não é um aspecto isolado da psique humana; ele é a própria pessoa em relação consigo mesma, com o mundo à sua volta e, por fim, com Deus. Em tal estrutura ontológica, o intelecto [12] governa a personalidade. Expliquemo-nos: as potências sensitivas integrantes da alma humana, as quais têm por objeto algo singular concreto, subordinam-se metafisicamente à inteligência [13], que tem por objeto o conceito universal [14]. Tal subordinação só é perceptível para filosofias que tenham a clara noção da hierarquia existente entre as potências da alma humana.

Isto faz toda a diferença no tocante ao tema da formação da personalidade, pois a educação da pessoa humana dependerá do conceito que desta se tiver [15]. Assim, se o motor dos atos psíquicos forem as pulsões do inconsciente, a educação será uma; se forem os movimentos do apetite sensitivo (entre os quais se enumera a imaginação como potência sensitiva interna), será outra; se forem os atos da inteligência e da vontade [16], será outra bastante distinta.

A mente é a parte principal da personalidade humana, na medida em que o intelecto tem refluência decisiva não apenas sobre a vontade, mas também sobre a afetividade [17]. No complexo dinamismo da nossa psique, o intelecto é capaz de ordenar as paixões e fazer com que a pessoa não se prenda ao aqui e agora de maneira patológica, enredando-se em medos irrazoáveis que, muitas vezes, beiram o delírio; em idéias-fixas capazes de se transformar em monomanias incuráveis; em desejos impossíveis de realizar; etc. [18]

Para o Padre Leonel Franca, formar a personalidade tem como pressuposto - ora implícito, ora explícito nos seus textos - que a excelência humana se atualiza pelas potências superiores da inteligência (cujo objeto é a verdade) e da vontade (cujo objeto é o bem). Não por outro motivo, o filósofo e teólogo brasileiro diz, nas primeiras páginas do livro que o leitor tem em mãos, que a formação da personalidade é o problema dos problemas humanos.

INSTRUIR E EDUCAR, REALIDADES DISTINTAS

A Formação da Personalidade reúne conferências ministradas por Leonel Franca em momentos diversos, entre as décadas de 20 e 30 do século passado. Quem porventura contemplar o conjunto destas exposições pode estranhar a diversidade temática da obra: ciência política, pedagogia, relações Igreja-Estado, direito, Idade Média, Idade Moderna, socialismo, física, biologia, história, educação sexual, políticas educacionais, Catecismo, ensino religioso, filosofia moral, laicismo, formação da imaginação, Ação Católica, moral leiga, etc. Mas ninguém se engane: há um fio condutor, ao modo de premissa fundamental, que garante o sentido de unidade por trás dessa multiplicidade: o homem é pessoa. Trata-se, em suma, de um ser dotado de inteligência e vontade, capaz de aperfeiçoar-se moral e intelectualmente no decurso de sua vida.

Formar a personalidade de maneira sã, neste contexto, é educar tendo em vista a perfectibilidade inerente à condição humana. Mas como se pode dizer que uma pessoa atinge maior nível de perfeição? A resposta do nosso autor é duma simplicidade desconcertante: melhorando o padrão de conhecimento e adquirindo critérios para realizar escolhas responsáveis. Tal idéia está presente em diferentes obras de Franca, como por exemplo no magnífico A Psicologia da Fé, onde se lê o seguinte:

"Na variedade das nossas certezas, algumas há determinadas por uma evidência fulgurante que se impõe ao espírito com esplendor irresistível. (...) A influência das paixões e das más inclinações pode sobrevalorizar os sofismas, obnubilar a luz demonstrativa dos argumentos e impedir a serena visão da realidade" [19].

Essa "serena visão da realidade" implica a chegada a um grau de perfeição moral decorrente da melhora do padrão de entendimento das coisas. Sem isto não existe decisão livre, em sentido estrito, pois a inteligência humana acaba por indisciplinar-se devido à influência perturbadora de paixões desordenadas. A vontade é, então, afetada de maneira direta, tornando-se tendente a realizar escolhas não iluminadas pela reta razão, o que, de acordo com Leonel Franca, a fez perder o dinamismo, o equilíbrio próprio das vontades regidas pela clara visão da verdade, em vários planos [20]. A boa educação por cujo intermédio a personalidade humana deve ser formada é aquela que facilita à inteligência a visão dos primeiros princípios da razão prática.

Esta antropologia filosófica preconiza que a liberdade é exercida por escolhas voluntárias não pressionadas por desordens afetivas. Em tal horizonte de considerações, o padre Franca ressalta que "instrução" e "educação" não são palavras unívocas:

"O primeiro [tópico a destacar] é a diferença essencial entre instrução e educação. Comumente se distinguem estes dois termos atribuindo o de instrução à cultura da inteligência e o de educação à cultura moral. Não é perfeitamente exato: há também uma instrução moral e uma educação intelectual. Peçamos luzes à etimologia. Instruir é primitivamente edificar, construir, e em significação mais estrita é prover, mobiliar, subministrar; educar é primitivamente tirar para fora o que se acha dentro, derivadamente atuar o que se achava em estado de potência, transformar em realidade, em hábitos, as disposições que se encontram latentes e em germe na natureza. Como vedes, a instrução subministra conhecimentos à inteligência; a educação eleva toda a alma; a instrução dirige-se a uma das nossas faculdades à qual propõe o seu objeto, a educação desenvolve-as todas harmonicamente" [21].

Neste longo trecho do seu A Formação da Personalidade, Leonel Franca aponta para o fato de que a educação apresenta-se num vetor de totalidade, de perfeição, de acabamento, ao passo que a instrução cultiva certas funções humanas, mas não integralmente.

"É instruído quem possui muitos conhecimentos, quem sabe o que dizem os livros sobre um determinado assunto; mas é educado intelectualmente quem tem a inteligência desenvolvida, quem sabe fazer análises, sínteses, raciocínios seguros, críticas exatas, numa palavra, quem é capaz de pensar pessoalmente. Um erudito pode ter lido muitas filosofias e não ser filósofo; pode ser versado em muitas literaturas e não saber dar a suas idéias a elegância ática de uma bela expressão literária. A educação tem, pois, um caráter de interioridade, de desenvolvimento vital que falta à instrução" [22].

Pressupostos metafísicos, gnosiológicos, catequéticos, psicológicos e teológicos estão correlacionados neste A Formação da Personalidade, cuja conclusão geral é um acinte para a mentalidade laicista e liberal dos nossos dias: NÃO HÁ EDUCAÇÃO SEM RELIGIÃO.

Citemos o padre Franca ipsis litteris, uma vez mais:

"Não há, pois, educar sem educar religiosamente. A razão humana feita para a plenitude da luz descansa no conhecimento das verdades contingentes e particulares; o coração humano, infinito na sua capacidade de amor, não se satisfaz com o amor efêmero das criaturas; para os heroísmos do sacrifício precisamos das energias mais fortes que as que nos podem dar os exemplos e as relações sociais. (...) Durante o nosso curriculum vitae, Deus, o grande e primeiro educador, o grande artista das almas, continua a trabalhar na perfeição das suas obras-primas" [23].

O espírito arquitetônico de Leonel Franca o faz conceber um plano de estudos bastante amplo com o intuito de formar a personalidade: a) no ensino das disciplinas: sociologia, filosofia, matemáticas, física, geografia, história e literatura; b) na organização escolar: organização social na sala de aula, exigência de disciplina, self-government e enumeração de algumas cautelas práticas a seu ver necessárias à boa formação. Também é salientada a importância da personalidade do mestre, que serve de exemplo para alunos e discípulos, assim como a circunstância de que a etapa propedêutica pavimenta a formação espiritual, fim inescapável da formação da personalidade.

Neste livro, a quantidade de autores cuja memória começa a perder-se na poeira do tempo é imensa - muitos deles foram grandes referências intelectuais do século XIX, para o bem e para o mal. Também neste sentido, a reedição de A Formação da Personalidade é um serviço prestado, na medida em que inúmeros jovens passarão a travar contato com filósofos, escritores e poetas dos quais quase já não se fala.

Convidamos o leitor a enveredar por estas páginas advertido que está a travar contato com um autor que não tergiversa, quando o assunto é ensinamento católico. Sirvam-lhe, pois, de aperitivo as seguintes palavras de um texto da presente obra intitulado "Unidade e Dispersão em Pedagogia":

"A pedagogia laicista é dispersiva, fragmentária e estruturalmente desarticulada na incoerência dos seus elementos. Não é difícil, remontando o curso das idéias e dos acontecimentos, encontrar a primeira origem deste vício fundamental. A ruptura da unidade viva que lamentamos nos sistemas de educação é apenas reflexo de um desequilíbrio interior não menos funesto que sofre o homem moderno em toda a sua vida espiritual".

A história dessa perda do sentido de unidade no âmbito da pedagogia - ou seja, do ensino da verdade - tem início no Ocidente, segundo Leonel Franca, com a revolta à qual os historiadores dão o nome de Reforma Protestante, e impulso vital com a Revolução Francesa, quando o Estado começa a agigantar-se a pretexto de defender a liberdade dos indivíduos.

Boa leitura.


Notas:

[1] Aos interessados em conhecer de maneira mais aprofundada algumas dessas escolas, indicamos a leitura do livro Corrientes de Psicología Contemporánea, de Martín F. Echavarría. [Esta obra foi publicada em português: Correntes de Psicologia Contemporânea em 2021 pela Editora CDB].

[2] "Um pequeno erro no princípio torna-se grande no fim". SANTO TOMÁS DE AQUINO, De Ente et Essentia, Proêmio.

[3] "Persona est rationalis naturae individua substantia". BOÉCIO, De duabus naturis et una Persona Christi, Cap. 3.

[4] Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologica, I, q. 29, art. 1.

[5] SANTO TOMÁS DE AQUINO, Op. cit.

[6] Cf. FORMENT, Eudaldo, Ser y persona, Publicacions Edicions Universitat de Barcelona. Barcelona (ESP): 1983, p. 18.

[7] "Pessoa é algo de distinto subsistente na natureza intelectual". Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, In IV Libros Sententiarum, d. XXII, solutio.

[8] A propósito, uma das críticas do psicólogo e filósofo tomista Martín F. Echavarría a Freud é que, na obra deste, o termo mens (mente) é praticamente inexistente.

[9] Inteligência que, no caso humano, é abstrativa e se vale de raciocínios, pois não temos a intuição direta dos inteligíveis.

[10] Cf. ECHAVARRÍA, Martín, La praxis de la Psicologia y sus niveles epistemológicos según Santo Tomás de Aquino, Documenta Universitaria - Universitat Abat Oliba CEU. Barcelona: 2005, p. 186. [Esta obra foi publicada em português: A Práxis da Psicologia e seus níveis epistemológicos segundo Santo Tomás de Aquino em 2021 pela Editora CDB].

[11] Um eu impessoal seria nada menos que uma contradictio in terminis.

[12] Que, como vimos, é o traço característico da pessoa.

[13] E, derivativamente, também à vontade, que é apetite intelectivo do bem. 

[14] Cf. ECHAVARRÍA, Martín, Op. cit., p. 146.

[15] Diz Leonel Franca na página 111 da presente edição: "A pessoa é um indivíduo de natureza espiritual. Inteligência e vontade caracterizam-na essencialmente. A pessoa é ao mesmo tempo individuo e sujeito. Como sujeito, isto é, como ser dotado de conhecimento e de conhecimento intelectivo, relaciona-se com um mundo de objetos, com um sistema de valores distintos de si, mas cuja realização lhe condiciona o aperfeiçoamento. A pessoa é portadora de valores morais

[16] Como em verdade são.

[17] Cf. ECHAVARRÍA, Martín, Op. cit., p. 308.

[18] É no seguinte sentido que devem ser entendidas as críticas feitas pelo padre Franca, em vários de seus livros, a Immanuel Kant: para o jesuíta brasileiro, o mau feitio psíquico do filósofo de Königsberg está intimamente relacionado às imprecisões que o levaram àquilo que Franca chama de individualismo pedagógico.

[19] FRANCA, Leonel. A Psicologia da Fé - O Problema de Deus. Edições Loyola, São Paulo: 2001, p. 39. [Ambas as obras também foram publicadas pela Calvariae Editorial em 2019].

[20] Neste ponto, convém salientar o seguinte: não se trata de dizer que uma vida psiquicamente saudável é prerrogativa de gente intelectualizada, mas sim de afirmar que o intelecto não deve ser tolhido em seus movimentos naturais.

[21] Página 37 da presente edição.

[22] Páginas 38 da presente edição.

[23] Páginas 42 da presente edição.

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