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O ressurgimento do latim

Página do Livro de Kells. Trecho de
Mateus 23, 12–15. Folio 99, verso.

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A língua que ressuscitou dentre os mortos [1], por Scott Randall Paine

“UMA LÍNGUA DEVE MORRER, PARA QUE SEJA IMORTAL”

Quando se trata de expressar as verdades eternas e imutáveis da fé cristã, a única língua adequada é a língua morta. Certa vez, Chesterton proferiu uma resposta desconfortante à desvalorização costumeira que considera o latim uma língua morta. Simplesmente ele ressaltou que isso de nenhum modo é uma desvalorização, pois bem contrário à intenção do detrator, essa afirmação traz à tona a superioridade clara do latim sobre todas as atuais línguas “vivas”.

É uma questão de uma língua morta ou de outra que jaz agonizante, pois toda língua viva é uma língua moribunda, mesmo que não morra. Partes dela estão a todo momento perecendo ou mudando de sentido; e há apenas um jeito de escapar desse fluxo: ela deve morrer para que seja imortal [2].

De fato, o latim pagão retornou ao pó, e a mentalidade ocidental passou a demasiadamente saborear o novo amontoado de línguas que começou a se espalhar confusamente por todo o mapa linguístico europeu. Dentre elas, a lucidez intensa do francês, o vigor irresistível do italiano, a velocidade enérgica do espanhol e a sinceridade nasal do português sobressaíram-se em sua longa evolução, cada uma delas atraindo milhares de vozes do discurso secular em sua nova constelação de ênfases. Mas a língua dourada de Cícero estava de saída, e junto com o Império, cujo corpo estava desmembrado e servindo como semente de um novo jardim de nações, essa língua antiga estava também prestes a ser enterrada.

Mas eis que veio uma daquelas reviravoltas bizarras da história humana que nos leva a questionar o quão humana realmente é. Após Roma ter perdido sua dignidade imperial para Bizâncio, ademais de ter se afundado moralmente ensopando suas arenas com sangue cristão, não surpreenderia ninguém que as sílabas moribundas finais da língua imperial permanecessem mudas por toda a história. Mas no início do Século V, o idioma que uma vez vibrou na língua de Catão estava soando vibrante e brilhantemente uma vez mais, e precisamente no momento em que as muralhas do Império colapsavam. Os vândalos se moveram da Espanha para o norte da África, e em um período de vinte anos velejariam para o norte e assaltariam a própria capital. Enquanto isso, dentro das muralhas africanas de Hipona, Santo Agostinho estava finalizando o último capítulo de A Cidade de Deus e talvez, em seu escritório, chegou a contar os minutos pensando se as hordas de Genserico estavam indo desmoronar sua residência episcopal sobre sua cabeça. Com a graça de Deus, ele finalmente terminou seu livro, mas nesse ínterim os vândalos também tinham posto um fim a Hipona.

O latim morreu para o mundo. Foi em 430. Poucos anos antes, São Jerônimo tinha terminado sua tradução latina da Bíblia, destinada a se tornar o texto bíblico mais influente de todos. A maior parte do trabalho de São Jerônimo foi na Palestina, como tinha sido a África para Santo Agostinho. Mas na própria Roma, onde os convertidos judeus helenizados tinham chegado com as Boas-Novas da Palestina, muitos deles focaram suas energias na tradução do Evangelho grego e de sua liturgia para o latim, que os romanos arruinados poderiam entender. A língua estava morrendo, mas as almas daqueles que ainda a falavam estavam, não obstante, necessitando de salvação.

Para surpresa de todos, surgiu desse campo de esforço puramente instrumental algo como um renascimento linguístico, conforme um conjunto de prefácios, coleções, orações, segredos e pós-comunhões cresciam no que hoje conhecemos como o Sacramentário Leonino. A civilização romana surgiu e morreu; seu último imperador deixou a cena sem cerimônias em 476. Mas, paradoxalmente, o coração da língua latina estava ainda pulsando fortemente, e suas conjugações e declinações foram levadas para respirar ar novo com um novo grupo de falantes. Mas há uma diferença: sobre o que esses homens estavam falando era algo, até então, inédito nas esquinas das ruas da história, e em nenhum período de Cícero as afirmações que estavam sendo feitas tinham sido abrangidas, mesmo que remotamente.

É isso que Chesterton quer nos dizer. A língua latina morreu, de fato, mas a morte que sofreu, foi a morte para o mundo. No pequeno enclave da Igreja Cristã, a mesma língua experimentou nada menos que uma ressurreição miraculosa; e a analogia pode ser levada até o extremo. A carcaça sem sangue da língua, cheia até à pele com os esquemas terrenos dos antigos, não podia mais responder à alma do paganismo; como todo corpo simplesmente natural, a vida que o sustentava era meramente mortal. Assim a história lentamente arrastou-a até o túmulo, e mais uma poderia ser adicionada às mil línguas decadentes da época.

Mas eis que veio a aurora pascal do latim, pois após o Evangelho de Cristo ter sido rejeitado pelos judeus, o Príncipe dos Apóstolos selou seu testemunho do Mestre avermelhando uma colina romana, que hoje chamamos de Vaticano. E então como um furacão abruptamente alterando seu curso, a fúria completa da mensagem de Cristo voltou-se repentinamente e excitadamente sobre essa língua prostrada dos romanos, e levantando a mão por sobre essa pilha de palavras sem vida – todas elas com a língua presa por séculos de questões não respondidas – bradou: “Ephphatha!” – assim a língua foi solta, e o latim cristão começou a falar com o mundo.

Nunca apreciaremos a importância grandiosa da língua latina para nossa Igreja e nossa fé até que entendamos o caráter sobrenatural do que acabei de descrever. Em Cristo, a história mesma foi condicionada por Deus, e desde então nada, mesmo a língua, permaneceu como era antes.

A Igreja não adotou o latim apenas porque era uma ferramenta pronta que as condições históricas forneceram e que ela então com apreço escolheu. Seria tão mentira quanto dizer que Bach escolheu a fuga porque todos os outros estavam escolhendo-a, quando, na verdade, todos a estavam abandonando. O fato de as fugas serem tão importantes na história da música decorre do fato nada banal de que Bach as escolheu quando todos tinham se cansado delas; ignorando os “ventos da mudança”, ele criou sua própria tempestade de gênio na velha forma, enquanto os outros, com rostos rosados e têmporas latejantes, voltaram-se finalmente para os desafios mais domesticados da novidade. Da mesma maneira, a Igreja resgatou os morfemas descartados do latim.

Esforçamo-nos com um prejuízo particular ao tentar entender isso hoje em dia. O clero da Renascença e, em maior medida, os jesuítas da Contra Reforma estavam ambos ansiosos para não ficarem em segundo plano comparados aos humanistas; assim, começaram a aplicar os paradigmas do latim clássico nas academias eclesiásticas e relutantemente concordaram quando a língua cristã de Santo Agostinho e São Bernardo foi rebaixada abaixo dos padrões vangloriados dos antigos.

Muito do descontentamento do clero moderno com o latim tem a ver com ser aterrorizado pela linguagem tortuosa de muitos documentos da Igreja, incluindo as encíclicas modernas, e a obrigação de estudar Cícero e Virgílio, quando tudo o que queriam fazer era assistir a Missa. Em vez de desfrutar da prosa mais acessível de muitos dos Padres e do latim simples da Summa de São Tomás, o adestramento da mente nas complexidades e sutilezas do latim antigo foi entendido como o batismo inevitável de fogo na língua nativa da Igreja. E muitos, previsivelmente, queimaram-se por esse fogo.

O latim clássico é grandioso, inegavelmente majestático, e irrevogavelmente morto; pois a Renascença não o ressuscitou, mas apenas retirou seus esqueletos dos túmulos e nos ensinou a maravilhar-nos com o modo intensamente interessante como os ossos se unem. Os estudiosos clássicos podem mais ou menos se aproximar disso ao imaginar a carne e a sensação do pulso da língua no seu verdadeiro Sitz im Leben (“contexto vital”), e poucos homens como Erasmo podem tornar esse tipo de coisa atraente. Mas a língua não está novamente viva, nem como fez na antiguidade, nem por meio da infusão de uma nova vida; pois o humanista não tem nenhuma vida para dar. Quando estruturados nesse meio não-natural, as asserções simples e sublimes e os quase inspirados neologismos da teologia cristã parecem configurar-se desajeitadamente num falatório em meio a todo o florescimento e seriedade mensurada das construções ciceronianas.

Além do mais, tudo isso é perda de tempo, pois os mistérios cristãos tinham já forjado sua própria linguagem, e lá, como em nenhum outro lugar, eles desvelavam suas verdades não apenas acuradamente, mas também naturalmente. Essa foi a grande descoberta de Santo Agostinho sobre a Bíblia latina; pois após voltar-se para ela anos depois de Cícero, ele se deparou com um estilo descontinuado e bárbaro, fazendo-o questionar quais ideias simples espreitavam-se por trás de tal ingenuidade. De fato, as Escrituras “pareciam-me indignas de serem comparadas com o grandioso estilo de Cícero”. Mas assim que foi tocado pelos mistérios de além do estilo, ele descobriu a razão da simplicidade:

“... o que eu vi foi algo que não se descobre pelo orgulhoso e não se está aberto às crianças; de princípio é baixo e humilde, mas ao abrir seu cofre encontram-se elevados e ocultos mistérios... essas Escrituras cresceriam juntas com uma pequena criança; eu, no entanto, me tinha em tão alta estima que não podia ser uma pequena criança; assim, cheio de orgulho, eu era, perante meus olhos, um adulto crescido” [3].

O latim cristão que se encontra na Vulgata, em Santo Agostinho, nos Padres latinos, e nos antigos Sacramentários não é um latim restaurado, sacudido, de que se varreu o pó e grosseiramente reciclado em uma época que tinha perdido a inspiração dos dias de Virgílio e Horácio. Assim era como a Renascença via o caso. É na verdade uma linguagem renascida pela obstetrícia, irreduzível à evolução linguística comum; e o que os literatos confundem com uma não-sofisticação bárbara é ao contrário a simplicidade dignificada exigida pelos mistérios de um Deus que é a própria Simplicidade. A unção do Espírito parece forçar esse latim a se mover mais modestamente numa marcha de autoesquecimento, mas por causa disso se move mais próximo do mundo silencioso dos segredos mais íntimos de Deus.

É isso que primeiro gostaria de declarar sobre o latim cristão, ou seja, que ele era a mesma língua que tinha “conhecido” a sabedoria da antiguidade greco-romana, mas sofreu uma morte natural quando aquela sabedoria esgotou seus recursos. Foi então ressuscitado dos mortos pela Verdade sobrenatural de Cristo. Após muita calúnia, a opinião acadêmica veio a reconhecer esse quase-milagre, especialmente depois das pesquisas do Século XIX de Ozanam, Roensch, Goelzer e outros.

Minha segunda declaração é uma de duas consequências do que acabei de dizer: embora o latim cristão não nasceu com o próprio Cristianismo, mesmo assim nasceu com a teologia cristã, e assim não apenas sua simplicidade característica (ao menos quando comparada com o latim clássico), mas também seu novo mundo de significados cresceu rapidamente com o novo entendimento da fé. Aqui, certamente, o latim cristão estava ligado ao grego cristão, pelo menos nos séculos iniciais. Mas os poderes únicos da especulação ocidental, começando com Agostinho para num dia ter seu clímax no edifício latino esmagador de Aquino, foram os frutos gerados na língua em que o pensamento cristão primeiro moveu-se e amadureceu. Dentro da gramática e do vocabulário latinos, as reflexões piedosas sobre a revelação de Cristo tiveram seus passos inaugurais, moldaram seus primeiros instrumentos conceptuais, e obrigaram a sintaxe e a morfologia a renderem-se às exigências soberanas da própria Palavra da PALAVRA. Tudo isso fez a teologia cristã e o latim cristão serem realidades correlativas, cada uma sendo a mãe da outra, por sua vez.

Minha terceira declaração é a mais pertinente de todas, pelo menos para nós que cavalgamos na debandada do progresso moderno. Chesterton tinha observado que o único modo para uma língua se manter verdadeiramente viva é morrer e renascer pelo poder de uma força mais elevada e doadora de vida, tal como a Igreja. As línguas vernaculares comuns do dia-a-dia estão imersas nas contingências do tempo e sujeitas aos caprichos das correntes de mudança do mundo. As palavras estão morrendo quase que diariamente, com outras novas surgindo para tomar seu lugar. Com as enxurradas de mudança tecnológica do rei da montanha, uma atrás da outra, muitas de nossas palavras parecem perder o alvo antes mesmo de serem ditas.

Do mesmo modo – repito em tom fúnebre – a língua inglesa está morrendo e com ela todas as outras línguas “vivas” do mundo. E muitas vezes elas estão se dividindo ao meio. O que se passa com o português brasileiro quando comparado com o português continental (como presenciei em primeira mão) é um caso mais dramático que o do inglês americano quando comparado com o britânico. Todas as línguas faladas do mundo estão sofrendo uma morte lenta, e partes delas são envoltas em mortalhas todo dia. Mas a única razão de eu trazer isso à tona é o efeito que isso tem em nossa habilidade de pensar e falar sobre doutrinas imutáveis.

Se é verdade que estamos em posse de uma revelação sobrenatural de verdades que não estão morrendo, ou seja, que estão enraizadas na eternidade e não são sujeitas às mudanças do tempo e do calendário, então vem à razão que elas serão preservadas imperfeitamente se seus únicos recipientes são os velhos odres rachados dos idiomas contemporâneos. Se as verdades da fé são eternamente novas (como na sua grande maioria o são), então deveríamos preservá-las dentro de uma língua que já foi alçada acima do mortuário linguístico que habitamos, herdeira de uma parte do status imutável da eternidade, e assim morta para este mundo, mas viva para o outro. Para nós da Igreja Ocidental, o eterno novo odre foi sempre o latim, e se essa bebida serve para refrescar nosso caminho todo à eternidade, devemos olhar com ceticismo qualquer odre novo e aprimorado que nos é oferecido atualmente.

É claro que precisamos falar de verdades sobrenaturais nas línguas vernaculares também, mas receio termos que beber da doutrina rapidamente, pois esses velhos odres são como sacos de papel, e a fraqueza de nossas línguas contemporâneas inconstantes está criando fissuras no tecido de uma linguagem quase tão rapidamente quanto proferimos nossas palavras. Por vezes é impossível de se encontrar palavras cujo fundo não vaza ao tentarmos inserir verdades nelas.

Tente, por exemplo, inserir a doutrina da Trindade ou da Encarnação no inglês americano moderno sem ter a necessidade de uma página de elucidação para tentar aproximar as palavras “pessoa” e “natureza”, conforme as usamos hoje, do conteúdo teológico; e essa necessidade será ainda mais acentuada quando se tentar falar da substância da Eucaristia. Sem pelo menos um corpo considerável do latim no plano de fundo de nossa memória, todas as três dessas noções fundamentais (e junto delas o fardo de nossa fé) poderiam facilmente se perder perante as palavras inglesas originalmente geradas. As palavras, lançadas pela história e incapazes de designar nada além dela, podem ser disparadas do passado e apressarem-se para o futuro, atravessando o presente apenas num encontro acidental, incomum e desconcertante.

O latim vive na eternidade. Toda a glória do latim cristão é que ele reside no maior presente verbal: o “agora” da eternidade. Nunca precisando ser atualizado, ele se mantém livre do perigo de sempre precisar se atualizar. E nós que passamos horas falando interminavelmente sobre coisas que passam, devemos ser capazes de nos voltar para a reflexão teológica dos mistérios imutáveis de Deus, e por meio de uma língua ainda inspirada pelo Sopro que vem da Terra dos Vivos.


Notas:

[1] Artigo pela primeira vez publicado na edição de julho de 1990, de The Homiletic Pastoral Review; e novamente publicado em julho de 2018 no site “Memoria Press”.

[2] G.K. Chesterton, “Some of Our Errors”, The Thing (New York: Dodd, Mead, & Co., 1930), p. 193.

[3] “The Confessions of St. Augustine”, trans., Rex Warner (New York: Mentor-Omega, 1963), p. 57.

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A Verdadeira Importância do Latim, por Napoleão Mendes

Uma cópia do Borgianus Latinus, um missal de Natal feito para o Papa Alexandre VI



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Tempo de leitura: 20 minutos.

Apresentamos o prefácio do livro Gramática Latina de Napoleão Mendes de Almeida, Saraiva, 29ª ed. 2000.

Se a idéia do bem constitui o objeto supremo do conhecimento, a educação para o estudo constitui a finalidade precípua do latim.


A VERDADEIRA IMPORTÂNCIA DO LATIM

1 - É de todo falso pensar que a primeira finalidade do estudo do latim está no benefício que traz ao aprendizado do português. Vejamos, por meio de fatos e de pessoas, onde reside a primeira importância do estudo desse idioma.

Chegados ao Brasil, três eminentes matemáticos de renome internacional, Gleb Wataghin, professor de mecânica racional e de mecânica celeste, Giacomo Albanese, professor de geometria, e Luigi Fantapié, professor de análise matemática, que vieram contratados para lecionar na recém-fundada Faculdade de Filosofia de S. Paulo - o professor Wataghin é considerado, no mundo inteiro, um dos maiores pesquisadores de raios cósmicos cuidaram, logo após os primeiros meses de aula, de enviar um ofício ao então ministro da educação, que na época cogitava de reformar o ensino secundário. Vejamos o que, mais de esperança que de desânimo, continha esse ofício, do qual tive conhecimento antes do seu endereçamento, dada a solicitação dos três grandes professores de uma revisão minha do seu português:

"Chegados ao Brasil, ficamos admirados com o cabedal de fórmulas decoradas de matemática com que os estudantes brasileiros deixam o curso secundário, fórmulas que na Itália - os três professores eram catedráticos de diferentes faculdades italianas - são ensinadas só no segundo ano de faculdade; ficamos, porém, chocados com a pobreza de raciocínio, com a falta de ilação dos estudantes brasileiros; pedimos a vossa excelência que na reforma que se projeta se dê menos matemática e MAIS LATIM no curso secundário, para que possamos ensinar matemática no curso superior".

2 - O professor Albanese costumava dizer - e muitas pessoas são disto prova - "Deem-me um bom aluno de latim, que farei dele um grande matemático".

3 - Outra prova de que é falso pensar que a primeira finalidade do latim está no proveito que traz ao conhecimento do português posso aduzir com este fato, comigo ocorrido.

Indo a visitar um amigo, encontrei-o a conversar com um senhor, de forte sotaque estrangeiro, que explicava as razões de certa modificação na planta de um prédio por construir; como, no decorrer da troca de idéias, tivesse por duas vezes proferido sentenças latinas, perguntei-lhe se havia feito algum curso especial de latim.

- Curso especial de latim? Não fiz, senhor.

- Mas o senhor esteve em algum seminário?

- Não, senhor; sou engenheiro.

- Percebo que o senhor é engenheiro; mas onde estudou latim? - Na Áustria.

- Quantos anos?

Sete anos.

- Sete anos?! Todo o engenheiro austríaco tem sete anos de latim?

- Sim, senhor; quem se destina a estudos superiores na Áustria estuda sete anos o latim.

Pois bem, relatando a um alemão esse fato, mostrou-se admirado com não saber eu que na Alemanha se estuda nove anos o latim e não somente sete.

4 - É também inteiramente falso educadores - assim chamados porque dentro das lutas e ambições políticas ocuparam pastas de educação ou, quando muito, escreveram livros de psicologia infantil - dizerem que estas palavras foram proferidas numa sessão da comissão de "diretrizes e bases do ensino", comissão nomeada para cumprimento do artigo 5, inciso XV, d, da constituição federal - "nos Estados Unidos da América, país que ninguém nega estar na vanguarda do progresso, não se estuda latim".

Felizmente, nessa mesma reunião, a desastrada afirmação não ficou sem resposta; um dos membros da comissão não se fez esperar: "Como não se estuda? É fácil provar; peçamos de diversos estabelecimentos americanos de diversos, porque a programação do ensino secundário aí não é única como no Brasil - o programa, que veremos a verdade". Dias e dias decorreram, e nada de programas; interrogado, o "educador" respondeu que não tinham chegado; um dia, porém não sei de quem foi maior a distração - o defensor do latim examina uma gaveta, esquecida aberta, e aí vê, guardados ou escondidos, os programas solicitados, e em todos eles o latim rigorosamente exigido.

Esse "educador" era, a esse tempo... presidente de uma seção estadual de partido político.

5 - Não encontra o pobre estudante brasileiro quem lhe prove ser o latim, dentre todas as disciplinas, a que mais favorece o desenvolvimento da inteligência. Talvez nem mesmo compreenda o significado de "desenvolver a inteligência", tal a rudeza de sua mente, preocupada com outras coisas que não estudos.

O hábito da análise, o espírito de observação, a educação do raciocínio dificilmente podemos, pobres professores, conseguir de um estudante preocupado tão só com médias, com férias, com bolas, com revistas.

Muita gente há, alheia a assuntos de educação, que se admira com ver o latim pleiteado no curso secundário, mal sabendo que ensinar não é ditar e educar não é ensinar. É ensinar dar independência de pensamento ao aluno, fazendo com que de per si progrida: o professor é guia. É educar incutir no estudante o espírito de análise, de observação, de raciocínio, capacitando-o a ir além da simples letra do texto, do simples conteúdo de um livro, incentivando-o, animando-o. No fazer do estudante de hoje o cidadão de amanhã está o trabalho educacional do professor.

6 - Quando o aluno compreender quanta atenção exige o latim, quanto The prendem o intelecto e lhe deleitam o espírito as várias formas flexionais latinas, a diversidade de ordem dos termos, a variedade de construções de um período, terá de sobejo visto a excelente cooperação, a real e insubstituível utilidade do latim na formação do seu espírito e a razão de ser o latim obrigatório nos países civilizados.

Ser culto não é conhecer idiomas diversos. Não é o conhecimento do inglês nem do francês que vem comprovar cultura no indivíduo. Tanto marinheiro, tanto mascate, tanto cigano há a quem meia dúzia de idiomas são familiares sem que, no entanto, possuam cultura.

Não é para ser falado que o latim deve ser estudado. Para aguçar seu intelecto, para tornar-se mais observador, para aperfeiçoar-se no poder de concentração de espírito, para obrigar-se à atenção, para desenvolver o espírito de análise, para acostumar- se à calma e à ponderação, qualidades imprescindíveis ao homem de ciência, é que o aluno estuda esse idioma.

"lo, lo, omnes adsunt - indeed! We who teach Latin would do a far grater service to the cause if we channeled pupil interest toward the task of learning Latin rather than into such academic (sic) shenanigans as chariot racing (an event at the Albuqueque convention of Latin students). The intelligent 20th century teen-ager will work hard at Latin when he is shown some of the many genuine values in such study. We need not always entertain him with superficialities" (Fred Moore, Chairman, Language Department, Riverside High School, Painesville, Ohio, USA).

7 - Muitos indagam a razão da fatuidade, da leviandade, da aridez intelectual da geração moça de hoje. É que, tendo aprendido a ler pelo método analítico, tão prático e fácil, julga o estudante que a disciplina que prática e facilidade no aprendizado não contiver não lhe trará proveito, senão tédio e perda de tempo. Acostumado a tudo assimilar com facilidade no primeiro grau, esbarra o aluno no segundo com a obrigação de pensar, e ele estranha, e ele se abate, e ele se rebela. O menino que no primeiro grau era o primeiro da classe passa para lugar inferior no segundo; perda de inteligência, diferença de idade? Não: falta de hábito de pensar. O que no primeiro grau estava em quinto, em décimo lugar passa no segundo às primeiras colocações; aquisição de inteligência? Também não: pensamento mais demorado, mais firme por isso mesmo, sobrepuja agora os colegas de intelecto mais vivo, vivo porém tão só para as coisas objetivas e de evidência.

Raciocinar é, partindo de idéias conhecidas, diferentes, chegar a uma terceira, desconhecida, e é o latim, quando estudado com método, calma e ponderação, o maior fator para aguçar o poder de raciocínio do estudante, tornando-lhe mais claras e mais firmes as conclusões.

8 - O que é certo, inteiramente certo, é não conhecerem alguns homens que nos representam no congresso o que é educação, o que é cultura. Fato ocorrido não há muito tempo vem prová-lo.

Discorrendo sobre a necessidade de nova reforma de ensino, um deputado citava as disciplinas inúteis nos diversos anos do curso secundário, quando é apoiado por um colega, que acrescenta: "O latim para as meninas".

Para este herói, o latim é inútil para as meninas, porque elas não vão ser padres: é a única justificação que até agora pude entrever nesse tão infeliz aparte. As meninas, pobrezinhas, por que ensinar-lhes latim se não vão ler breviário?

Por que esse "para as meninas"? E por que, pergunto, não é também inútil para os meninos? Que distinção cultural faz esse deputado entre menino e menina? Que quer ele para elas? Aulas de arte culinária? Aulas de corte e costura? Pretende dizer que as suas meninas não devem estudar ou quer com isso afirmar que o latim só interessa a padres?

A questão não é o que os meninos vão fazer do latim, mas o que o latim vai fazer dos meninos: The question is not what your boy will do with Latin, but what Latin will do for your boy, dizia com o bom senso pachorrento e inato de sua gente o senador Arnold.

PORQUE É O LATIM REPUDIADO

9 - A quem conhecia o regime de estudos de um seminário tornava-se dispensável toda e qualquer critica a programas de latim. A quem não conhecia não era demais dizer que nos seminários não existia programa de latim... Existia estudo de latim com seis horas semanais, existia consciência do que se fazia. Em que seminário já se ouviu falar em "sintaxe do verbo?" Pois assim estava no programa do último ano clássico. Procure-se, agora, em todo o programa, "verba timendi", "verba declarandi", "verba voluntatis", "verba impediendi", orações finais, orações interrogativas, orações dubitativas, orações causais, orações relativas, orações infinitivas, orações condicionais etc.; nada disso se encontrava. Por que então programa?

Ou se divide a matéria, ou seja, ou ela é realmente programada pelas séries ou então programa não se faz. Se o programa na lexeologia pedia "qui, quae, quod", descendo a uma discriminação quase cômica, partilhando dessa forma a matéria, como falar depois, retumbantemente, em "período composto", em "discurso indireto", em "emprego dos modos e dos tempos nas orações subordinadas"?

10 - Com todos os erros de que estava eivado o programa de latim, o descalabro se tornou ainda maior quando se considera que uma portaria reduziu o número de aulas semanais de três para duas; modificaram o programa? Não; continuou o mesmo, com todas as incongruências, deficiências e disparates.

Era de tal forma pedida a parte gramatical e tão poucas as horas de aula que não havia possibilidade de traduzirem os alunos os autores exigidos a menos que desejasse o professor provar aos seus discípulos ser o latim intraduzível.

Considere-se ainda que pessoas existiam a lecionar latim mais acanhadas de equilíbrio mental do que de capacidade didática, pessoas que, na primeira aula, isto diziam: "Eu sei que vocês não vão aprender latim" - "Eu sou contra o latim"

"Eu sou cego", "Eu não sei por que os meus alunos não aprendem", "Eu não sei ensinar" - é que deveriam confessar aos alunos esses truões.

11 - Preocupação nefasta para o ensino do latim é a da tradução de autores latinos. Dar a alunos sem conhecimento de princípios essenciais do latim trechos para traduzir é dar-lhes pedradas, é dar-lhes cacetadas. Nem Eutrópio, nem Fedro, nem César, nem Cicero previram portarias ministeriais; nem Ovídio, nem Virgílio, nem Horácio escreveram latim para estudantes que nem sequer sabem o que é agente da passiva, o que é ablativo absoluto, o que é sujeito acusativo; nem Publílio Siro, nem Valério Máximo escreveram latim para estudantes, quer meninos quer meninas, que nem do idioma pátrio têm aulas de gramática, para meninos ou para meninas que nem sabem o que é objeto direto, o que é adjunto adverbial, o que é predicativo, o que é aposto.

Conseqüência dessa impossibilidade era darem certos professores irresponsáveis a tradução já pronta para que os alunos a decorassem, fato por si bastante para provar ou a incompetência do professor, ou o erro do programador, ou a conivência de ambos no desbarato do ensino em nossa terra, na decadência e no despautério educacionais a que em nossa pátria vimos assistindo.

12 - Com lacunas de toda a sorte, o latim tornou-se ainda mais antipatizado, seu ensino passou a ser ainda mais dificultado com a introdução, mormente em estados do Sul, e de maneira especial em S. Paulo, da pronúncia reconstituída, galicamente chamada pronúncia "restaurada". Apedrejados e vergastados como se já não bastasse, nossos pirralhos passaram a ser torturados por ex-alunos universitários que de faculdades de filosofia saíam cientes de latim mas inscientes de didática, rapazes e moças que, tão preocupados em mostrar sabença, passavam a ensinar a tal pronúncia e se esqueciam de ensinar latim.

"Para nós - são palavras do eminente educador, padre Augusto Magne - o que interessa no latim é sua literatura, sua virtude formadora do espírito. Desviar o estudo do latim para a especialização em questiúnculas de pronúncia reconstituída é desvirtuar aquela disciplina e tirar-lhe seu poder formador para recair no eruditismo balofo, pretensioso e estéril."

Por que não ensinam nas faculdades de letras de S. Paulo a pronunciar o portu- guês à lusitana, se a pronúncia de um idioma deve ser a dos seus clássicos? Precisa- mente aí está a explicação da pronúncia novidadeira do latim; quem a introduziu em S. Paulo foi um professor lusitano que, achando mais fácil ensinar o latim pela pro- núncia da Alemanha que pela de Portugal, impingiu-a aos alunos da faculdade, que então teimavam em pretender passá-la adiante.

Se não é para falar latim que um estudante vai aprendê-lo, muito menos deve estudá-lo para o pronunciar mais à alemã que à portuguesa, tirando do latim até a própria utilidade para o vernáculo.

MÉTODO

13- Não há professor de latim que deixe de lastimar a pobreza de conhecimentos do vernáculo em seus discípulos. Vendo na deficiência de conhecimento dos princípios fundamentais de análise sintática do período português a causa principal desse desajustamento é que me pus a redigir este curso, mostrando ao aluno o que realmente dificulta o aprendizado do latim e fazendo com que, através de questionários e de exercícios muito graduados, demonstre conhecimento do essencial e suficientemente necessário ao estudo desse idioma.

Como obrigar um aluno a decorar a conjugação total de um verbo se ele não sabe o que é particípio presente, o que é gerúndio, o que é supino? Como dar-lhe a voz passiva se ele não sabe o que é agente da passiva? De que lhe adianta saber muito bem de cor o "qui, quae, quod", se não sabe analisar um relativo em frase portuguesa? 

Asas de um pássaro, o latim e o português devem voar juntos: tal é a minha convicção, tal a minha preocupação em todas estas 104 lições.

Napoleão Almeida

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Lista de Livros Clássicos, segundo o Instituto Hugo de São Vitor

Um bom livro - Walther Firle

Continuando nossas listas de livros, temos uma excelente que foi retirada do livro Coleção de Artes Liberais Vol. 2: Gramática do Instituto Hugo de São Vitor, 2020. Estes livros moldaram e formaram a Civilização Ocidental. Recomendo fortemente que leia também as lições (contida no vol. 2 do livro citado) que estão diretamente atreladas a esta lista. Essas lições trazem consigo comentários e justificativas para leitura de tais livros.

Abaixo segue algumas listas já publicadas.

Lista de livros sobre a Educação verdadeira - parte 1

Lista de livros sobre a Educação verdadeira - parte 2

Lista de livros sobre a Educação verdadeira - parte 3

Lista de livros sobre a Educação verdadeira - parte 4

Livros para aprender bem Matemática


1. Os Lusíadas, de Luiz Vaz de Camões.

2. Ilíada, de Homero. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 

3. Odisseia, de Homero. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 

4. Eneida, de Virgílio. Tradução de Carlos Alberto Nunes.

5. O Mundo de Homero, de Andrew Lang.

6. A Teogonia e Os Trabalhos e os Dias, Hesíodo.

7. História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides.

8. Fábulas, de Esopo

9. Contos dos Irmãos Grimm.

10. Sete contra Tebas, de Ésquilo.

11. Édipo Rei, de Sófocles.

12. As Bacantes, de Eurípedes.

13. Trilogia das Barcas, de Gil Vicente.

14. Divina Comédia, de Dante Alighieri.

15. Confissões, de Santo Agostinho.

16. Dom Casmurro, de Machado de Assis.

17. Quincas Borba, de Machado de Assis.

18. Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.

19. Metamorfoses, de Ovídio.

20. As Odes, de Horário.

21. Gênesis em latim e em português, livro da Bíblia.

22. Salmos, livro da Bíblia.

23. Rimas, de Luiz Vaz de Camões.

24. As Poesias Satíricas, de Gregório de Matos.

25. Segundo volume das obras de Manuel Maria Barbosa Du Bocage, editado por Theophilo Braga.

26. Mensagem, de Fernando Pessoa.

27. A Cinza das Horas, de Manuel Bandeira.

28. Os Escravos, de Castro Alves.

29. Últimos Cantos, de Gonçalves Dias.

30. Evangelho segundo Mateus, livro da Bíblia.

31. Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto.

32. Folhas Caídas, de Almeida Garret.

33. Rei Lear, de William Shakespeare.

34. Dom Quixote, de Miguel Cervantes.

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Leia mais em O que é educação clássica

Leia mais em A Educação em Ilíada e Odisseia

Leia mais em Matemática Sagrada na Divina Comédia de Dante



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Carlos Magno e a expansão da Educação Clássica

Imperador Carlos Magno
- Albrecht Dürer, 1512

30 min de leitura.

Carlos Magno e os Pilares da Civilização Ocidental por Thiago Brum Teixeira.

Ao longo da história da humanidade surgem de tempos em tempos luzes e inspirações que fecundam a cultura e a promove a patamares mais altos. Dentre os maiores desenvolvimentos culturais que impactaram de forma positiva e decisiva o curso dos acontecimentos da civilização ocidental até os dias de hoje, figuram com destaque especial o judaísmo, a filosofia grega, o direito romano e o cristianismo. Carlos Magno, considerado o Pai da Europa, tem papel fundamental na conservação desses pilares da Civilização Ocidental.

A Grécia da antiguidade, local de passagem de viajantes e encontros de culturas, recebeu por herança influências de diversos povos, como hebreus, árabes, egípcios, mesopotâmios e hindus e, foi terreno fértil para o florescimento de uma cultura das mais ricas que já se teve notícia, constituída esta por uma profunda mitologia, um refinamento nas artes, uma substancial literatura e, sobretudo, sua filosofia que abrange nada menos que as mais altas conquistas da razão humana.

No período conhecido como Grécia clássica (entre 500 a.C. e 328 a.C.), aconteceu esta fusão cultural, catalisada e sintetizada por ilustres como Platão e Aristóteles, sob influências de sábios como Pitágoras e Sócrates. Vale lembrar que este período, apesar de profícuo, já anunciava a decadência da cultura grega. O império de Alexandre o Grande conquistou grandes extensões territoriais e difundiu o helenismo, que já não era só a mais fina flor da filosofia grega, o materialismo se difundiu com seus antagonismos no confronto entre estoicos e epicuristas. O império de Alexandre só durou durante sua vida, mas numa perspectiva histórica mais distanciada foi muito mais que um conquistador  ambicioso, foi um eficiente polinizador da cultura grega.

Paralelamente à constituição e difusão da filosofia da Grécia, já vinha em desenvolvimento milenar, entre o povo hebreu, a religião judaica, que era o conjunto de ensinamentos e revelações de uma sucessão impressionante de profetas, dentre estes: Abraão, Isaac, Jacó, José, Moisés, Josué, Sansão, Samuel, Davi, Salomão, Elias, Isaías e Daniel só para mencionar alguns principais dentre tantos nomes de destaque entre os judeus. E foi no seio de uma família judia da casa de Davi que surgiria, então, o cristianismo. De Joaquim e Ana, Maria, de sua prima Izabel e Zacarias, veio João Batista, de Maria e José, veio o Emanuel messias, Deus entre nós, anunciado nas sagradas escrituras: Jesus de Nazaré.

Com a ascensão do Império romano, este desenvolve meios de organização política e militar nunca dantes conhecidas, que possibilitaram a conquista e administração de um extenso e longo domínio. As culturas judaica e grega abrigadas sob o estandarte romano presenciaram o advento do cristianismo, com a presença e ensinos do Divino Mestre Jesus e sua posterior transmissão por apóstolos e santos. A longa duração do império romano permitiu a lenta interpenetração e difusão destas ricas e robustas elaborações culturais: o judaísmo, o cristianismo, o direito romano e a filosofia grega.

Após a dissolução do império romano, houve um tempo que o cristianismo e toda cultura da antiguidade estavam fragmentados em pequenas ilhas de resistências em mosteiros e reinados e, ameaçavam ser página virada na história da humanidade. Nesta época sombria para os cristãos, a expansão do império islâmico tomou todo o oriente, norte da África, península ibérica e pretendia dominar todo continente europeu, já enfraquecido pelas terríveis invasões germânicas.

Neste ínterim houve um rei que teve o mérito de unir com maestria as culturas judaico-cristã e greco-romana e se fazer soberano sobre árabes e bárbaros. Impôs seu domínio e a paz entre os seus com sua espada e se consagrou na história como o pai da Europa.

Carlos Magno foi um rei franco que conquistou um amplo império na região onde hoje são os países da França, Alemanha, Holanda, Bélgica, Suíça, Áustria, Hungria, as repúblicas Tcheca, Eslovaca e partes da Itália e Espanha.

Ele constituiu um enorme exército para a época, desenvolveu novas táticas militares, como a unidade militar da cavalaria. Tinha uma guarda pessoal com os doze melhores cavaleiros e espadachins, seus doze pares de França, assim chamados por serem à semelhança de Carlos Magno e entre si em excelência militar e virtude. Para empunhar uma espada não bastava a força e habilidade, mas, sobretudo a virtude e uma série de preceitos morais que o cavaleiro deveria ser digno. Muitas histórias e lendas foram escritas e contadas das aventuras destes bravos cavaleiros e constituem uma extensa literatura chamada por matéria de França.

Carlos Magno premiava seus cavaleiros por seus méritos com terras e títulos hereditários, criou os títulos de nobreza de duque, marquês, conde e visconde e a base da sociedade feudal fundamentada na confiança entre os homens e na obediência ao monarca, a vassalagem. A palavra feudal vem daí, de fé, de confiança entre soberanos e vassalos.

A partir desses princípios estabeleceu um eficiente sistema administrativo, dividindo as regiões em condados governados por condes e seus assistentes e substitutos, os viscondes (vice-conde). O cargo de missi dominici (enviado do senhor) tinha atribuição de fiscalizar a atuação dos condes em determinada região, na aplicação das leis e cobrança de impostos. O título de marquês era reservado aos governantes e protetores das marcas, regiões mais inóspitas e de fronteiras do reino. O duque governava um ducado que era uma região maior e mais independente. Assim como um condado estava para uma diocese, um ducado estava para uma arquidiocese. Numa comparação apenas ilustrativa, mas um tanto anacrônica, um condado seria como uma cidade e um ducado um estado, porém nas devidas proporções da época, um ducado chegava a ter uma população de aproximadamente 300 mil pessoas, o que seria equivalente hoje a uma pequena cidade brasileira.

O reinado não tinha uma capital fixa, ela se fixava no local onde a corte do palácio estava. A corte palatina era o centro administrativo e era integrada por pessoas de confiança do rei. O principal cargo nessa corte era o de conde palatino, um conselheiro, ministro e administrador do palácio, castelos e terras sob domínio direto do rei.

Foi de Carlos Magno as primeiras leis escritas da idade média, chamadas “Capitulares” por serem organizadas em capítulos. As leis eram estabelecidas de acordo com a necessidade e não na tentativa de prever e controlar situações futuras, como é a tendência moderna. Dentre as 65 “Capitulares” se destacam a criação de juízes, de recursos ao tribunal do palácio, o fortalecimento do uso de testemunhas como provas e a estruturação da educação com base na unificação da cultura grega com a cristã.

Carlos Magno reuniu em sua corte os maiores intelectuais da época que promoveram o que ficou conhecido como Renascimento Carolíngio, dentre eles: o mestre de latim Pedro de Pisa; o diácono Paulo; o grande gramático e poeta Paulino de Aquiléia; o bispo Isidoro de Sevilha, escritor das Etimologias, uma riquíssima enciclopédia de diversos conhecimentos adquiridos pelos gregos e romanos até então; e o homem mais culto de sua época, o monge britânico Alcuíno de Yorque.

O monge era como um braço direito de Carlos Magno na corte, uma espécie de ministro da educação do reinado, que por pedido do rei, organizou as Sete Artes Liberais da antiguidade no Trivium e no Quadrivium e contribuiu para edificar em sua época uma Academia, segundo ele, superior à de Atenas, pois além da ciência das sete artes da Academia de Platão, estava enriquecida com os ensinamentos cristãos, os Sete Dons do Espírito Santo, em analogia às sete artes.

Compõe o Trivium as três disciplinas da linguagem ligadas à natureza humana que compreendem ler, escrever, falar e pensar bem: a Gramática, que abarcava também as artes literárias; a Retórica, que incluía o valor da virtude na oratória; e a Dialética (Lógica), que compreendia o rigor e a coerência do raciocínio e sua expressão. O Quadrivium consiste nas disciplinas ligadas ao mundo natural: a Aritmética, a ciência do número e suas propriedades simbólicas; a Geometria, o estudo do número no espaço; a Música, o estudo do número no tempo; e a Astronomia, aplicação do número no espaço e no tempo. Esta englobava ainda a Cosmologia e a Astrologia. Para rei e Alcuíno, o conhecimento destas sete artes era fundamental para o melhor entendimento dos ensinamentos sagrados, sendo a ciência material uma base para edificação espiritual.

Alcuíno de Yorque trabalhou na formação da liderança religiosa e política da época através da alfabetização, do ensino das sete artes e das sagradas escrituras. Criou a minúscula carolíngia. Na época os escritos eram todos em maiúsculas e sem espaçamento, o que dificultava muito a leitura. O trabalho de mandar reescrever as grandes obras diferenciando maiúsculas e minúsculas e dando espaçamento entre as palavras foram simples e geniais contribuições que permitiram a popularização da leitura.

No natal do ano 800, Carlos Magno foi coroado pelo Papa Leão III imperador do Sacro Império Romano Germânico. A partir da data de sua coroação ele instituiu um novo calendário e estabeleceu como referência para o início da contagem do tempo o nascimento de Jesus. Até então cada reino tinha sua própria contagem dos anos a partir do nascimento de seu rei ou outro marco importante do reinado. Foi Carlos Magno que unificou o calendário, colocando em sua base a referência cristã que perdura até os dias de hoje.

Carlos Magno integrou, consolidou e difundiu as mais altas realizações culturais, morais e espirituais de seu tempo, criando a identidade de seu império, que posteriormente seria a própria identidade da Europa, da Idade Média e da própria civilização ocidental, que estaria destinada à expansão, ao domínio e à absorção de outras culturas.


Bibliografia

HOLLAND, Tom. Milênio: a construção da Cristandade e o medo da chegada do ano 1000 na Europa.

LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval.

RIVAS, R. Alcuíno de York: Obras Morales. Introdução, tradução e notas.

WOODS Jr., Thomas E. Como a Igreja Católica construiu a civilização Ocidental

Fonte: LINK

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Carlos Magno e as Artes Liberais por Isabela Abes Casaca

Afinal, como o Renascimento Carolíngio contribuiu para evolução da intelectualidade medieval? Qual dos intelectuais do reinado de Carlos Magno foi o grande responsável pela consolidação do ensino das Artes Liberais? Quais eram os graus e os conteúdos estudados durante a aprendizagem?

Como já explicitado no texto Carlos Magno e os Pilares da Civilização Ocidental [texto acima], o Imperador do Sacro Império Romano-Germânico reuniu em sua corte os maiores intelectuais da época, dentre eles: o mestre de latim Pedro de Pisa; o diácono Paulo; o grande gramático e poeta Paulino de Aquiléia; o bispo Isidoro de Sevilha, escritor das Etimologias, uma riquíssima enciclopédia de diversos conhecimentos adquiridos pelos gregos e romanos até então; e o homem mais culto de sua época, o monge britânico Alcuíno de York.

Desta união de inteligências, ascendeu no horizonte histórico o que hoje conhecemos como Renascimento Carolíngio, que preservou e expandiu a Cultura Clássica juntamente com o Cristianismo, em um tempo de invasões bárbaras destruidoras. O rei sabiamente percebeu que, para fortalecer e unificar seu Império precisaria valorizar a educação e a instrução. Quem capitaneou essa ação foi o monge Alcuíno, sendo quase um espécie de ministro da educação do reinado.

Dentre as muitas inovações desse período, podemos iniciar mencionando a Minúscula Carolíngia, uma caligrafia desenvolvida visando estabelecer um padrão caligráfico europeu. Antes dessa simples medida, era muito complicado estudar os textos antigos. Com esse advento, cresceu a uniformidade, clareza e legibilidade da caligrafia, assim o alfabeto latino foi compreendido com mais facilidade. As letras passaram a ser melhor desenhadas e as palavras separadas umas das outras.

O primeiro exemplo datado dessa nova forma de escrita, é o Evangeliário de Godescalco, escrito entre 781 e 783, por um escriba franco, a pedido de Carlos Magno. Esse mesmo manuscrito é também um dos primeiros exemplos da Iluminura Carolíngia, uma forma de arte igualmente nascida no reinado de Carlos Magno, caracterizada por um naturalismo decorativo com a fusão de influências cristãs primitivas, bizantinas e insulares, fazendo uso de uma sugestão de tridimensionalidade nas figuras através de técnicas de sombreado.

Carlos Magno fez da escrita um meio de propagação do conhecimento, valorizando também a poesia e o canto. Incentivava o estudo de alguns autores da Idade Antiga, dentre eles Platão, que tornou-se muito conhecido. A questão da instrução era tão importante para o imperador, que ele recomendou aos monges primazia pelo seu aperfeiçoamento intelectual, a fim de ensinarem a doutrina cristã com consistência e expertise.

Porém, a maior realização acontecida sob a tutela do rei, juntamente com o monge beneditino Alcuíno, foi o reavivamento do saber clássico acrescido da doutrina cristã, através do ensino das Artes Liberais.

Inicialmente se aprendia o Trivium: Gramática, Retórica e Dialética/Lógica; na sequencia o Quadrivium: Aritmética, Geometria, Astrologia/Astronomia e Música. Adquirido o domínio dessas sete esferas do conhecimento, ganhava-se o título de Mestre em Artes Liberais. Então, estava-se preparado para aprender as Artes Liberais Superiores: Teologia, Medicina e Direito. Concluído o estudo superior, ganhava-se o título de Doutor.

O designo precípuo e maior dessas Artes é a busca pela Verdade Superior; auxiliando no caminho de liberação humana. Fazendo triunfar as virtudes dos homem, elevando seu espírito e promovendo a transcendência de sua consciência. O estudo das Artes Liberais é um fim em si mesmo. Por amor a ciência, elas são ensinadas, estudadas e aprendidas. Ampliando-se o conhecimento. Por esse motivo, são chamadas de “Liberais”, pois não há uma obrigatoriedade, o homem as estuda pelo arbítrio de seu próprio querer, procurando sua libertação e engrandecimento espiritual.

Esclarecido isso, percebemos que o notório rei está estritamente ligado as Artes Liberais, sendo um dos grandes responsáveis por essa expressão da Alta Cultura chegar ao nosso tempo.

Fonte: LINK

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Alcuíno de Yorque e a Escola Palatina por Thiago Brum Teixeira

O Rei Carlos Magno reuniu em sua corte os mais diversos sábios, artistas e intelectuais, que promoveram uma renovação cultural conhecida como Renascimento Carolíngio, responsável por consolidar no mundo ocidental o cristianismo, integrado e apoiado pela filosofia grega. Dentre estes o mais destacado foi Alcuíno de Yorque, reconhecido como um dos homens mais cultos do ocidente cristão do século VIII. Alcuíno, Alcuin ou Albinus Flaccus, como assinava suas obras (todas escritas em latim), nasceu entre os anos 730 e 735 d.C., na Bretanha, hoje território da Inglaterra, foi monge em York, capital do reino da Nortúmbria, onde recebeu instrução do mestre e abade Alberto, que foi discípulo de Egberto e este por sua vez de Beda, o Venerável.

Numa época não existia computador, nem prensa móvel de Gutenberg, nem mesmo máquina de escrever, o papel era artigo de luxo, a tinta tinha que ser meticulosamente preparada e as letras com pena e tinteiro eram caprichosamente desenhadas sob o papel. Escrever um livro era um imenso trabalho e era preciso copiá-lo diversas vezes para preservá-lo ao longo do tempo. Tanto para ter cópias de segurança quanto colocá-lo em papel e encadernações em melhores estados. Tudo isso era necessário para que o conhecimento sobrevivesse às intempéries, à umidade, ao mofo, aos incêndios, saques de inimigos e chegasse até o século XV (700 anos depois de Alcuíno) quando a prensa de tipos móveis foi inventada.

No mundo ocidental eram os monges beneditinos que se dedicavam a preservação e cópia dos textos, principalmente na antiga Inglaterra. Foi neste ambiente que Alcuíno viveu. A regra beneditina valorizava o estudo e a cultura, o cristianismo celta com influências irlandesas era mais flexível, também era comum o ensino do canto gregoriano e a valorização do latim na liturgia e nos costumes. Nestes mosteiros foram construídas as mais importantes bibliotecas, abrigavam os mais notáveis professores e o que podemos chamar de as escolas da época, estavam entre os maiores centros intelectuais da época.

Em 781, Alcuíno foi convidado por Carlos Magno para ser diretor da Escola Palatina (o mesmo que escola do palácio), em Aquisgrán, e chega a corte no ano de 782 com uns 50 anos de idade. A escola palatina funcionava desde os tempos do rei Carlos Martel, avô de Carlos Magno, mas foi com Alcuíno que a conduziu a seu pleno desenvolvimento, quando este serviu de ponte entre o tesouro guardado nos mosteiros beneditinos e o reinado de Carlos Magno.

Como diretor da Escola Palatina implementou o Trivium e o Quadrivium, organizando  a ciência e artes da antiguidade no que veio a ser os alicerces da instrução medieval e da renascença posterior. As disciplinas do Trivium e Quadrivium já existiam desde a antiguidade, presentes principalmente nas obras de Platão, Aristóteles e dos filósofos e matemáticos pitagóricos. Porém foram difundidas na cultura latina por autores como Quintiliano, Agostinho, Boécio, Cassiodoro, Isidoro e Beda. A partir de Alcuíno as Sete Artes Liberais são difundidas no Reino Franco e deste para todo o mundo ocidental.

Importante entender que Alcuíno não inovou e sim, selecionou, organizou e transmitiu fielmente o que de melhor encontrou na cultura antiga e “pagã” (não cristã). Alcuíno considerava tudo que era bom e verdadeiro inspirado por Deus, e sendo, as artes liberais inspiradas por Deus elas deviam ser estudadas pelos cristãos, mesmo sendo um conhecimento considerado pagão.

Para Alcuíno, o objetivo maior da educação era o conhecimento e a sabedoria, em que o estudante devia ser conduzido por degraus de ensinamentos, sendo os primeiros sete degraus da sabedoria, as Sete Artes Liberais do Trivium e Quadrivium. Alcuíno compara as setes artes às sete colunas do templo de Salomão e, afirma que a sabedoria é fortalecida pelas Sete Artes Liberais, constituindo estas o currículo da Escola Palatina, onde eram admitidas crianças que já sabiam ler, escrever e realizar as quatro operações. O programa de estudos que durava entre 7 e 9 anos, sendo equivalentes ao atual 6º ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio, constituí durante a idade média aos estudos preparatórios para os estudos superiores de Teologia, Direito e Medicina.

O ensino da época se fundamentava na lectio (lição; leitura), na disputatio (diálogo; perguntas e respostas) e no diálogo socrático. A lectio era a exposição didática de um assunto seguido de comentário às opiniões dos autores clássicos, autoridades no assunto. A disputatio era um livre diálogo entre mestre e discípulo composto de perguntas e respostas sobre determinado assunto, ora podendo o mestre fazer as perguntas e o discípulo respondê-las, ora o discípulo fazer as perguntas e o mestre respondê-las. Também podia ter proposições controvertidas como num debate, onde se apresentam argumentos prós e contras, buscando a melhor solução. O diálogo socrático é quando o professor através de perguntas conduzia o aluno à solução de problemas, a definições, ao exame e esclarecimentos.

Para Alcuíno o ensino devia ser divertido e por isso ensinava também por meio de jogos, enigmas, anedotas e adivinhas. Na Escola Palatina cada um tinha um apelido, pelo qual se comunicavam por meio de cartas, Alcuíno era o poeta Horácio e Carlos Magno o Rei Davi. Pelos diálogos e cartas da época é possível perceber o clima descontraído e lúdico da corte, sem em nenhum momento ser desrespeitoso ou grosseiro, pelo contrário, imperava o cavalheirismo, a cortesia e a admiração entre os pares.

Também era de grande importância educacional o canto coral, a música e a recitação de poesias. A pedagogia de Alcuíno se inicia no som, em seu tratado de gramática ele escreve que é pelo som que se inicia a arte da Gramática, pois a linguagem escrita vem da linguagem falada. A cultura medieval está fundamentada na oralidade, mesmo os poemas, leis e textos escritos, eles eram escritos de forma “oralizada”, ou seja, com objetivo não que fosse lidos, mas que fossem ouvidos. Quando se fala, por exemplo, que as leis da época eram publicadas, quer dizer que eram lidas em praça pública. Da mesma forma os trovadores, bardos e menestréis narravam os acontecimentos heroicos em versos e rimas. A voz era então o fundamento da literatura que se  transformou quando passamos a ler com os olhos, sem soletrar e sem ouvir.

A Escola Palatina era a escola modelo, sua didática e seu currículo eram copiados por todo o reinado. O rei recomendava a construção de escolas em paróquias, catedrais, monastérios e palácios. Geralmente a alfabetização se dava na família ou nas paróquias, para continuidade dos estudos as crianças eram mandadas a mosteiros sob os cuidados dos monges, a escolas catedrais ou mesmo à própria Escola Palatina, que, apesar de, inicialmente servir à instrução dos nobres da corte, também recebia pessoas do povo, selecionadas por interesse, vocação e mérito. Não é incomum encontrar na biografia de cavaleiros, nobres e sacerdotes da época, uma descendência de pessoas das mais simples do povo, como artesãos e até mendigos. Durante o reinado de Carlos Magno as escolas que mais se desenvolveram foram a Escola Palatina e as abrigadas em monastérios. Porém foram a partir do desenvolvimento das escolas catedrais, dirigidas por bispos e que ficavam dentro das cidades, que nasceram as universidades 4 séculos depois.

O rei e o monge valorizam muito a instrução dos sacerdotes e como eles iriam instruir as crianças e jovens, bem como os povos conquistados e incorporados ao reino. Deixaram isso escrito em leis e cartas e trabalharam juntos em prol da unidade cultural, legal e religiosa do reinado e a construção de uma identidade cultural dentre diversos povos diferentes em línguas, história e costumes.

Alcuíno escreveu uma extensa obra de mais de 40 trabalhos e tratados e 320 cartas da qual chegou até nós pela tradução de Migne pertencente a sua Patrologia Latina. Além das cartas sua obra pode ser dividida em obras didáticas, obras teológicas, obras poéticas. Escreveu tratados didáticos de cada uma das artes liberais, que respondiam as necessidades da Escola Palatina. Também era poeta, e deixou uma coletânea de poesias, sendo sua principal obra uma poesia épica que narra a história do reino da Nortúmbria em 1657 versos.

As obras teológicas são as mais numerosas, escreveu a cerca do ensino e da interpretação de partes da bíblia, escreveu diversas obras de ensinamentos para uma conduta moral e virtuosa, se dedicou a refutação de heresias e a defesa da fidelidade da doutrina cristã, redigiu inúmeras obras litúrgicas que tiveram importante impacto na organização e unificação dos cerimoniais religiosos no reinado e ainda escreveu biografias da vida de “santos” e figuras que deixaram como legado uma conduta moral exemplar.

Em 796 quando em idade mais avançada Alcuíno se retirou da vida pública e Carlos Magno o nomeou abade de San Martin, em Tours, dos mais importantes monastérios do reino Franco, onde Alcuíno se dedicou a impulsionar o trabalho da scriptorium monástica, que é a aquisição, conservação e cópias de manuscritos constituindo uma importante biblioteca em Tours.

Alcuíno instruía os copistas no uso e desenvolvimento da minúscula carolíngia e da iluminura. A minúscula carolíngia era um tipo de letra que se destacava por sua beleza, clareza e facilidade de leitura. O latim era escrito apenas com letras maiúsculas, sem espaçamentos, parágrafos e pontuação, o que dificultava o entendimento e o aprendizado de leitura. A partir da minúscula carolíngia se desenvolveu a letra minúscula, os espaçamentos entre as palavras, parágrafos e pontuação, como a criação do ponto de interrogação, por exemplo. O que facilitou muito o aprendizado da leitura, que até então era para poucos sacerdotes que tinham acesso e que, a partir de então, foi difundido entre os nobres, governantes, líderes religiosos e daqueles que demonstravam interesse e vocação.

A iluminura era a ilustração dos livros com belas imagens em um estilo clássico e a ornamentação das letras, com desenhos, arabescos, miniaturas e estilos de grafismos. A palavra iluminura vem de iluminar por conta das cores vibrantes e luminosas que eram utilizadas, principalmente a decoração com ouro e prata, chamada de douração. Também eram utilizadas predominantemente as cores azul, vermelho e amarelo, por conta da disponibilidade dos pigmentos.

Alcuíno viveu até 19 de março de 804 e foi sepultado em San Martin de Tours como abade. Não ocupou altos cargos na igreja e permaneceu como diácono por toda vida. Porém aconselhou patriarcas, reis, arcebispos, abades e monges durante sua vida, teve muitos discípulos, os quais foram os mais renomados professores e escritores da geração seguinte.  Foi religioso, erudito, poeta, pedagogo, político e conselheiro. Foi amigo e braço direito de Carlos Magno na área cultural, religiosa e educacional. Junto com o rei construíram a identidade do reino franco que veio a ser as bases da própria identidade europeia e ocidental.


Bibliografia

[1] ALCUINO DE  YORK. De Grammatica. in: ALCUIN, Opera Omnia, 2 vols. Paris, 1851. (Migne, Patrologia Latina, C, CI).

[2] FRENK, Margit. Entre la voz y el silencio. Centro de Estudos Cervantinos, 1997. (citação: Paul Valéry. Oeuvres. Pleiade: Paris, 1957.)

[3] OLIVEIRA, Priscila Sibim de. Alcuíno e a educação de governantes: Final do Século VIII e Início do Século IX. 2008. 120 f. Dissertação (Mestrado)-Universidade Estadual de Maringá. Orientadora: (Dra.: Terezinha Oliveira). Maringá, 2008.

[4] RIVAS, R. Alcuíno de York: Obras morales. Introdução, tradução e notas. Espanha:(EUNSA), 2004.

[5] ROSZAK, Piotr. La práctica exegética de Alcuino de York. Facies Domini: Revista alicantina de estudios teológicos, n. 3, p. 503-514, 2011.

Fonte: LINK.

Leia mais em: Alcuíno de York: difusor do Trivium e Quadrivum

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Institutiones, um livro que preservou a Educação Clássica

 

O copista Jean Mielot (1448-68) trabalhando em seu
scriptorium na página de um manuscrito do século XV

Tempo de leitura: 8 min.

O texto abaixo é a Apresentação do livro de Institutiones: introdução às letras divinas e seculares, de Cassiodoro, publicado pelas Edições Kírion, 2018.

APRESENTAÇÃO

Flávio Magno Aurélio Cassiodoro Senador viu a luz deste mundo pela primeira vez por volta de 485 na cidade de Scyllaceum, atual Squillace, localizada nas terras quentes do sul da Península Itálica e beijada docemente pelas águas do Mar Jônio. Quando nasceu, o Império Romano do Ocidente já estava morto e enterrado, e com ele todo aquele período que séculos mais tarde os historiadores chamariam de Idade Antiga. Na segunda metade da década de oitenta do séc. V, a porção ocidental da Europa já se havia tornado uma enorme colcha de retalhos de reinos germânicos que se esforçavam em manter-se de pé sobre os escombros do colossal edifício civilizacional construído pelos romanos ao longo de mais de mil anos.

A Itália dos antigos césares, pátria de Cassiodoro, se encontrava naquele momento sob o domínio dos ostrogodos, de jure subordinados à corte de Constantinopla; de facto, porém, independentes. Em outras palavras, isso significava que os ostrogodos tinham em suas mãos a hercúlea missão de encontrar o tênue equilíbrio entre a manutenção do legado romano (ainda muito vivo na população nativa remanescente) mediante a conservação de diversas instituições e leis do extinto Império do Ocidente, e a preservação dos costumes típicos dos próprios ostrogodos. Falhar no primeiro ponto poderia lançar a península em uma guerra contra Constantinopla, aquela porção do Império Romano ainda muito viva, de conseqüências inimagináveis naquele momento; falhar no segundo seria agir para o progressivo embotamento da própria identidade. A esse caldeirão fervente devemos acrescentar também o ingrediente inflamável da divisão religiosa. Ora, os ostrogodos aderiram em sua maioria ao arianismo, enquanto a população nativa da Península Itálica era majoritariamente adepta da fé católica proclamada com solenidade pelo Concílio de Nicéia em 325. Por cerca de cinqüenta anos os ostrogodos tiveram governantes — como Teodorico, o Grande — que souberam dar bases sólidas à ponte do presente que haveria de unir o passado ao futuro. A partir da década de trinta do séc. VI, no entanto, crises políticas agudas romperam o frágil equilíbrio das coisas e a intervenção inevitável das forças de Constantinopla sepultaram o reino ostrogodo. Cassiodoro não só testemunhou todos esses eventos como também, de certa forma, deixou-se moldar por eles.

Assim como seu pai, Cassiodoro ocupou altos cargos entre os ostrogodos. Sob Teodorico, o Grande, foi sucessivamente questor, cônsul e magister officiorum, isto é, ministro para a política interna. Atalarico, sucessor de Teodorico, fez dele prefeito do pretório da Itália. De suas mãos correram rios de tinta que deram forma a diversas obras nesta etapa de sua vida, entre as quais citamos: Chronica, Historia Gothorum e Variae. As crises que culminaram na eclosão da guerra entre os ostrogodos e o Império Romano do Oriente levaram Cassiodoro à desesperança na política e, por conseguinte, ao abandono da vida pública. Por volta de 545, Cassiodoro fundou nos arredores de sua cidade natal o monastério de Vivarium, destinado a tornar-se o embrião dos centros culturais monásticos da Idade Média. Ali viveria o restante de seus dias, emigrando deste mundo com aproximadamente noventa anos de idade.

No Vivarium, Cassiodoro tomou em suas mãos a tarefa de preservar os monumentos da literatura ameaçados pelos conflitos que percorriam as terras da Itália com a impetuosidade de fogo em palha seca. Assim, foram realizados ali os trabalhos de cópia e tradução de tudo o que se pudesse encontrar de gregos e latinos. Para este fim, criaram-se métodos e estabeleceram-se preceitos rigorosos a fim de que os textos produzidos fossem os mais fidedignos possíveis. A biblioteca que se estruturou no Vivarium tornou-se, como se pode imaginar, verdadeiro tesouro das preciosíssimas jóias do mundo greco-romano. Como uma espécie de prolongamento dessa atividade, instituiu-se naquele local uma escola voltada ao estudo de assuntos sagrados e humanos.

Ora, em decorrência dos trabalhos realizados no Vivarium, o grande engenho de Cassiodoro produziu as célebres Institutiones, que o leitor tem agora nas mãos em uma bela edição traduzida para o português. Escritas em torno do ano de 550, as Institutiones possuíam como objetivo primeiro a instrução dos monges residentes no Vivarium. Entretanto, a posteridade demonstrou que a grandeza das Institutiones não podia ficar circunscrita a este modesto escopo e fez delas uma das obras mais influentes do medievo.

O tratado se divide em duas partes bastante distintas. Na primeira, o autor discorre sobre os livros sagrados e aproveita a oportunidade para tratar de seus principais comentadores, conduzindo o leitor por veredas suaves à introdução daquilo que hoje chamamos Patrística. A mensagem de Cassiodoro é clara: a leitura das Sagradas Escrituras deve sustentar-se na autoridade da Igreja — manifestada, por exemplo, através dos Concílios — e nos comentários dos grandes sábios cristãos. Ademais, o autor salienta que a educação não deve ser vista como um fim em si, mas como um meio que fornece os instrumentos adequados para a reta compreensão das Sagradas Escrituras. Por fim, abordam-se questões referentes à arte de copiar e à ortografia. A segunda parte, por sua vez, versa sobre cada uma das artes que compõem o trivium e o quadrivium, percorrendo, portanto, cada uma das sete artes liberais, consideradas, como já mencionado há pouco, suportes para o estudo da Teologia.

Embora as Institutiones não tenham sido escritas para eruditos e especialistas, Cassiodoro não deixou de empregar em seu texto o melhor do estilo latino de seu tempo. Podemos mesmo conjecturar que talvez o êxito de seu escrito se explique justamente pelo fato de o autor conciliar de maneira magistral a simplicidade didática na exposição dos temas com um bom estilo latino que se empenha em seguir os cânones da literatura clássica. O que não quer dizer que o seu latim não se ressinta aqui e acolá do cenário conturbado e decadente daqueles tempos de incertezas e miscigenação cultural que empurravam a língua latina para províncias cada vez mais distantes daquelas freqüentadas outrora por Cícero, Virgílio e Horácio. Assim, o tradutor de Cassiodoro enfrenta não poucas dificuldades para determinar se tal termo foi empregado em sua acepção clássica ou de acordo com um significado mais recente. Além disso, o uso de termos técnicos e neologismos se torna outro campo minado mesmo para o tradutor mais experiente. Entretanto, nenhuma dessas coisas é suficiente para ofuscar a beleza e a relevância das páginas que logo se abrirão aos olhos do leitor.

Para concluir, é preciso ressaltar que todo aquele que estiver realmente empenhado em resgatar a essência das artes liberais sob um viés cristão não pode de forma alguma ignorar o conteúdo destas Institutiones, verdadeira espinha dorsal de tal projeto pedagógico.

William Bottazzini Rezende
Pouso Alegre, abril de 2018

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