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Introdução à Logica Clássica

Robert Fludd, Tomus secundus, 1619-1621

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Tempo de leitura: 32 minutos.

Apresentamos o Prefácio e Preliminares do livro Elemento de Filosofia 2: A ordem dos conceitos: Lógica menor, de Jacques Maritain, tradução de Ilza das Neves, revisão por Adriano Kury. 13.ed. Editora Agir, 1994.


PREFÁCIO 

I

Ao compormos estes elementos de Lógica, esforçamo-nos para distinguir com cuidado o que pertence à Lógica propriamente dita, cujo objeto é o ser de razão: as intenções segundas do espírito (intenciones secundae), e o que pertence à Crítica, que é uma parte da Metafísica e tem por objeto o próprio ser real em sua relação com o espírito que conhece. Esta discriminação é um trabalho bastante delicado - pois muitos problemas oscilam entre as duas disciplinas - e entretanto muito necessária - pois é preciso antes de tudo manter as ciências na linha exata do seu objeto formal.

Por esta razão preferimos reservar para a Crítica várias questões geralmente estudadas nos tratados de Lógica, em particular na Logica Major, por exemplo a discussão (metafísica) do nominalismo e do realismo, as controvérsias referentes à natureza da ciência e do conhecimento vulgar, a ordem do nosso conhecimento intelectual, o valor dos primeiros princípios e a maneira pela qual os conhecemos, etc., finalmente a questão da classifica­ção das ciências (pois em primeiro lugar é preciso saber o que é a ciência e o que ela representa antes de classificar as ciências, e compete ao sábio, isto é, ao metafísico, ordenar as ciências); nesse caso mesmo, a questão dos métodos das diversas ciências, que não pode ser estudada convenientemente sem haver determinado antes o objeto e o valor das mesmas, ficaria também reservada para o tratado de Crítica.

Tirando, desse modo, da Lógica Maior (Logica Major) muitos materiais que lhe são estranhos, pudemos restituir-lhe várias questões que na verdade lhe dizem respeito, e que na maior parte dos manuais escolásticos sobrecarregam inutilmente a Lógica Menor (Logica Minor, Lógica formal). Graças a esta redistribuição geral, em que procuramos sempre nos conservar fiéis ao espírito de Aristóteles e dos antigos escolásticos, esperamos, ter conseguido certas vantagens pedagógicas de clareza e precisão, podendo apresentar os problemas da Lógica e da Crítica em uma ordem suficientemente natural de complexidade e de dificuldade crescentes.

Sendo estes problemas bastante áridos em si mesmos, devido ao seu alto grau de abstração, certos professores hão de pensar talvez que para comodidade do ensino seria conveniente quebrar a ordem normal indicada na Introdução (1º Lógica Menor e Maior; 2° Cosmologia e Psicologia; 3° Crítica como primeira parte da Metafísica...) e substituí-la na prática pela ordem seguinte, que permite tratar da Lógica Maior somente quando os alunos se tivessem familiarizado bastante com a abstração filosófica e por outro lado fizessem estudado suficientemente a parte científica do programa, a fim de ter alguma experiência do raciocínio dedutivo e indutivo e alguma compreensão das alusões e exemplos a que o Lógico deve recorrer.

1º Lógica Menor (que se torna mais curta e mais fácil pelo plano que adotamos).

2º Cosmologia e Psicologia.

3º Lógica Maior.

4° Crítica.

Em conseqüência resolvemos dividir em duas partes, que aparecerão separadas, o segundo fascículo (Ordem dos Conceitos ou Lógica) e o quinto fascículo (O Ser enquanto ser ou Metafísica­) do nosso manual, de modo a publicar em três seções separadas a Lógica Menor, a Lógica Maior e a Crítica, permitindo assim a cada um agrupar as matérias do curso segundo a ordem que mais praticamente lhe parecer melhor.

Talvez esta Lógica encontre alguns leitores mesmo fora do público das escolas, como aconteceu com a nossa Introdução Geral. "O abandono dos estudos lógicos", escrevia Renouvier em 1875, "atingiu na França um tal grau que a teoria do juízo é tão pouco estudada como a do silogismo, e se o estudo das Matemáticas e até certo ponto o do Direito não tivessem trazido algum remédio a este mal, poucas seriam as pessoas instruídas capazes de manejar a recíproca por exemplo, e que não se habituariam a semear sua conversa de paralogismos grosseiros" [1]. Desde a época em que apareceram essas queixas, aliás muito justas, muito mais numerosos foram os espíritos que compreenderam a necessidade de um retorno ao estudo da Lógica, para a restauração da inteligência. Muito nos alegraremos se o nosso modesto trabalho puder contribuir com sua parte para este retorno benéfico. "Estou convencido" dizia Stuart Mill [2] a respeito da Lógica, "que nada pode contribuir mais do que ela, quando dela se faz uso judicioso, para formar pensadores exatos, fiéis ao sentido das palavras e das proposições­, preservando-os dos termos vagos, frouxos e ambíguos. Aconselham muito o estudo das Matemáticas para chegar a este resultado: ele não é nada em comparação ao da Lógica. Com efeito, nas operações matemáticas não se encontra nenhuma das dificuldades que constituem verdadeiros obstáculos para um raciocínio correto (por exemplo, em matemática, as proposições são apenas universais afirmativas; além disso, os dois termos são reunidos pelo sinal $=$, donde a possibilidade imediata da conversão pura. e simples, etc.)... No entanto, muitos homens, aliás capazes, não conseguem elucidar uma idéia confusa e contraditória, por não se terem submetido ao estudo desta disciplina..."

II

Permitam-nos ainda duas observações. Em primeiro lugar, como já dissemos no prefácio da Introdução Geral, mas convém repetir para evitar qualquer mal-entendido, a presente obra destina-se a principiantes. Continua, pois elementar e não tem pretensões a ser absolutamente completa no que diz respeito especialmente à riqueza de referências documentárias e de textos citados. Entretanto, como deve conservar, na exposição filosófica, seu caráter científico, constituirá um verdadeiro tratado, encerrando portanto mais do que pedem em geral os programas. Mas todas as explanações que comportarem alguma dificuldade ou que servirem apenas para esclarecer melhor certos pontos de detalhe, serão escritas em caracteres menores; além disso marcaremos com um asterisco todos os parágrafos cujo estudo não é de estrita necessidade à preparação do exame.

Em segundo lugar, há um ponto sobre o qual julgamos ter sido bastante claro, mas que talvez não tenhamos explicado suficientemente, pois que um crítico de responsabilidade como o R. P. Ramirez [3] pôde a esse respeito equivocar-se inteiramente quanto à verdadeira significação do nosso modo de proceder. Cremos, com o próprio R. P. Ramirez e com a tradição aristotélica, que o estudo da natureza da Filosofia e de sua divisão, assim como de seu valor, só deve ser feito num tratado que respeite a ordem das disciplinas filosóficas, na Metafisica, pois que só ela, a Metafísica, a título de sabedoria, pode julgar a si mesma e os seus próprios princípios, e julgar as outras ciências. E é exata­mente deste modo que pretendemos proceder na presente obra. Se tocamos nessas questões (e em outras mais) em nossa Introdução Geral, é porque esta, segundo o nosso modo de pensar, de forma alguma é uma parte do curso ou do tratado de Filosofia, e por conseguinte nenhuma questão lhe é reservada especialmente. Como seu próprio nome bem o indica, ela precede o curso e o prepara, ficando-lhe inteiramente exterior; desenvolvemo-la exclusivamente por preocupação pedagógica, a fim de auxiliar os principiantes e lhes ministrar uma exposição geral e propedêutica, colocando certos grandes resultados da ciência ao seu alcance do ponto de vista, do senso comum, antes de serem estabelecidos mais tarde de maneira mais aprofundada e mais científica. Eis por que as questões que aqui forem tratadas deverão ser retomadas em seu respectivo lugar nos diversos capítulos do Curso, especialmente na Crítica.

III

A natureza deste trabalho não nos permitiu discutir lon­gamente sobre as diversas teorias modernas de interesse para a Lógica, e com todas as explanações convenientes. Julgamos, no entanto, haver tratado suficientemente das mais importantes, sem prejuízo dos complementos que aparecerão na Lógica Maior e posto suficientemente em relevo os princípios essenciais que dirigem essa discussão. Ficaríamos contente de ter podido mostrar que a melhor maneira de renovar muitos problemas é remontar ao pensamento dos antigos, consultando-os em suas fontes.

Não pretendemos dissimular as imperfeições inevitavelmente inerentes a uma exposição geral e didática como é esta. Se, apesar do cuidado com que foi redigida, escaparam erros, muito reconhecido ficaremos aos nossos leitores que tiverem a gentileza de nos informar.

J. M.

Notas:

[1] CH. RENOUVIER, Essais de Critique générale 2ª édit., 1875, Logique, t. II, pág. 126.

[2] J. STUART MILL, Mémoires, pág. 18.

[3] Ciência tomista, julho-agosto 1922.


LÓGICA (A ORDEM DOS CONCEITOS)

PRELIMINARES

1. PRIMEIRA NOÇÃO DA LÓGICA. - A Lógica [1] estuda a razão como instrumento da ciência ou meio de adquirir e possuir a verdade. Pode-se defini-la: a arte

QUE DIRIGE O PRÓPRIO ATO DA RAZÃO,

isto é, que nos permite chegar com ordem, facilmente e sem erro, ao próprio ato da razão [2]

a) Desse modo, a Lógica não procede somente como qualquer ciência, segundo a razão, mas diz respeito ao próprio ato desta razão; daí seu nome de ciência da razão ou do lógos (λογικὴ ἐπιστήμη) [3]

A Lógica é a arte que nos faz proceder, com ordem, facilmente e sem erro, no ato próprio da razão.

b) A razão não é uma faculdade diferente da inteligência (ou ainda entendimento, intelecto). Mas, do ponto de vista do funcionamento desta faculdade, chamamo-la mais especialmente inteligência quando ela vê, atinge ou "apreende", e mais especialmente razão, quando vai pelo discurso de uma coisa apreendida a uma outra.

2. AS TRÊS OPERAÇÕES DO ESPÍRITO. - Qual é o ato próprio da razão corno tal?

RACIOCINAR.

Raciocinamos quando pensamos por exemplo:

O que é espiritual é incorruptível;

ora. a alma humana é espiritual;

logo, ela é incorruptível.

Raciocinar,

O raciocínio é a operação mais complexa do nosso espírito; é raciocinando que vamos das coisas que já conhecemos às que ainda não conhecemos, que descobrimos, que demonstramos, que fazemos progredir a nossa ciência. A Lógica, que estuda a razão como meio de adquirir a ciência, deve portanto considerar, entre as operações do espírito, antes de tudo o raciocínio. Todavia, há outras operações do espírito que ela precisa considerar. Considera-as, porém, em relação ao raciocí­nio, em função do raciocínio.

ato indiviso

O ato de raciocinar é um ato um ou indiviso, como o ato de dar três passos até o fim. Um, dois, três, chegamos ao fim: contamos três passos, mas nos movemos sem interrupção, num movimento indiviso. Da mesma maneira, raciocinamos com um movimento indiviso. Isto porque não raciocinamos pelo prazer de correr ou "discorrer" de uma idéia à outra, mas sim para concluir, isto é, para tornar evidente qualquer verdade em que nos detemos.

mas complexo.

O ato de raciocinar é contudo um ato complexo; é um ou indiviso, mas não é simples ou indivisível; pelo contrário, é com posto de vários atos distintos ordenados entre si, cada um deles tendo por objeto uma enunciação semelhante às três enunciações do exemplo dado acima, chamadas proposições. Cada um destes atos considerados em si mesmo chama-se um

JUÍZO.

Eis aqui uma outra operação do espírito que é anterior ao raciocínio e por ele suposta.

Julgar,

Julgar é afirmar ou negar. É por exemplo pensar:

A desconfiança

é a mãe da segurança,

ou ainda:

Uma cabeça empenachada

não é pequeno embaraço.

Pelo primeiro juízo afirmamos deste termo "desconfiança" este outro termo "mãe da segurança", isto é, identificamos esses dois termos, dizendo: existe uma coisa uma e a mesma (um mesmo sujeito) à qual convém ao mesmo tempo o nome "desconfiança" e o nome "mãe da segurança".

Pelo segundo juízo, negamos do termo "uma cabeça empenachada" este outro termo "pequeno embaraço".

Pelo juízo, declaramo-nos de posse da verdade sobre este ou aquele ponto. Um homem sábio é um homem que julga bem.

ato simples mas sobre um objeto complexo

O ato de julgar é um ato um ou indiviso como o ato de dar um passo, ou, mais propriamente falando, um ato simples, isto é, indivisível [4]. Assim, o juízo dado acima como exemplo não é uma justaposição de três atos de pensamentos diferentes, - um ato de pensamento para "a desconfiança'', um outro, para "é" e um terceiro para "a mãe da segurança", - mas representam um só ato de pensamento. Todavia, refere-se a um objeto complexo. (proposição fabricada pelo espírito) e assim como um passo é um movimento entre dois termos, entre um ponto de partida e um ponto de chegada, assim também o ato de julgar é um movimento de pensamentos, - traduzido pela palavra "é" - que une duas noções diferentes, expressas pela palavra-sujeito e pela palavra-atributo ou predicado.

Cada uma destas noções corresponde por si a certo ato do espírito chamado concepção [5], percepção ou

SIMPLES APREENSÃO.

Aqui temos uma outra operação do espírito que é anterior ao juízo e por ele suposta.

Conceber é formar em si uma idéia, na qual se vê, atinge ou "apreende" alguma coisa. É pensar por exemplo:

"homem"

ou

"desconfiança"

ou

"infeliz''.

Conceber ou fazer ato de apreensão sobre um objeto simples,

Este ato está evidentemente na origem de todo o nosso co­nhecimento intelectual; eis por que sua importância é capital. Por ele um objeto de pensamento é representado a consideração de nossa inteligência e à sua posse por ela.

Entretanto, este ato de percepção ou de apreensão é tão imperfeito que nos dá sem dúvida um objeto de pensamento discernível em uma coisa, mas sem nos dar, ao mesmo tempo, os outros objetos de pensamento que estão unidos a este na coisa tal qual existe (de uma existência atual ou possível); de maneira que nosso espirito, ficando por assim dizer em suspenso, não tem ainda o que afirmar ou negar. É claro, por exemplo, que se pensamos:

"o homem"

ou

"a neve"

ou

"os delicados",

só temos no espírito uma verdade começada, nosso espírito ainda não fez nenhuma declaração de conformidade com o real; esta declaração só se realiza, só há verdade acabada no espírito, quando pensamos por exemplo (num juízo):

"o homem é mortal"

ou

"a neve é branca"

ou

"os delicados são infelizes",

ou qualquer outra coisa semelhante.

Assim não andamos quando elevamos simplesmente o pé acima do solo; só andamos quando damos um passo.

Digamos por conseguinte que, quando nosso espírito faz ato de simples apreensão, ele se contenta em apreender uma, coisa sem nada afirmar ou negar.

Temos aqui um ato não somente um ou indiviso, mas além disso simples ou indivisível: o ato de pensar "homem" ou "neve" é evidentemente um ato que não comporta partes. Além disso [6], refere-se a um objeto que é ou indivisível em si mesmo (enquanto objeto de pensamento, "homem" por exemplo), ou então pelo menos apreendido da mesma maneira que os objetos indivisíveis, isto é, sem implicar construção edificada pelo espírito. Eis por que se chama ato de simples apreensão.

ato simples sobre um objeto simples.

O ato de concepção ou de simples apreensão é deste modo uma operação primeira, que não supõe nenhuma outra operação intelectual antes dela: não constitui naturalmente o nosso primeiro ato de conhecimento (pois supõe antes dele as operações dos sentidos), mas constitui a nossa primeira operação INTELECTUAL, é a primeira operação do espírito.

As três operações do espírito humano são a simples apreensão, o juízo e o raciocínio.


*3. AS OPERAÇÕES E AS OBRAS DO ESPÍRITO. - o estudo da natureza das operações do espirito e do seu mecanismo íntimo pertence à Psicologia. Observemos aqui que é necessário distinguir

a própria operação ou o ato do espírito, e a obra que o espírito produz em conseqüência dentro de si mesmo [7].

O ato de julgar, por exemplo, é uma operação mental que implica a produção ou a construção no espírito de um certo conjunto de conceitos que denominamos uma enunciação ou proposição. E existe tanta diferença entre o ato de reunir conceitos e julgar, e a reunião construída, como a que existe entre a ação de construir uma casa e a casa construída.

A proposição pensada (reunião de conceitos) distingue-se por sua vez da proposição falada que a exprime por palavras, e que é o seu sinal oral. Existe tanta diferença entre uma e a outra como entre a própria casa e um sinal qualquer que a represente.

Por proposição falada, entendemos tanto a proposição falada realmente, - reunião de palavras emitidas exteriormente - como a proposição falada mentalmente - reunião de palavras formadas na imaginação.

Quanto pensamos, por exemplo, "o homem é mortal", afirmamos aquilo que nos é apresentado pela idéia de homem e aquilo que nos é apresentado pela idéia de mortal. Mas ao mesmo tempo que formamos em nosso espírito esta proposição pensada, imaginamos a proposição falada que a exprime (e às vezes chegamos mesmo a esboçar realmente os movimentos de fonação pelos quais pronunciaríamos essa proposição).

A proposição pensada (reunião de conceitos), evidentemente difere tanto da proposição falada mentalmente (reunião de imagens auditivas ou musculares de sons articulados) como da proposição falada realmente.

Para precisar o sentido dos termos que empregaremos, podemos estabelecer da seguinte maneira o quadro das operações do espírito:





Na primeira coluna deste quadro escrevemos o que concerne aos atos ou operações do espírito; na  segunda o que concerne às obras produzidas dentro do espírito; na terceira o que concerne aos sinais orais e materiais dessas obras espirituais. A linguagem corrente em geral confunde essas três ordens de coisas, porque em muitos casos o que se diz da obra também se pode dizer da operação, e porque é natural ao homem chamar as coisas significadas pelo mesmo nome que o sinal por ser este último mais conhecido. Entretanto um juízo, por exemplo, é um ato vital, uma proposição (pensada) é um organismo imaterial composto de vários conceitos, uma proposição falada é um composto inerte de partes materiais (palavras) justapostas no tempo (proposição oral) ou no espaço (proposição escrita). Estas distinções têm grande importância para a boa compreensão da Lógica.

a) Como veremos mais tarde, Leibniz e certos Lógicos que se inspiram nele tendem a deixar a operação pela obra, e a obra imaterial do espírito pelo seu sinal material.

b) Por outro lado, em sua crítica da inteligência, a escola anti-intelectualista (James, Bergson, Le Roy) confunde não poucas vezes as operações e as obras da inteligência com os sinais materiais que as exprimem.

c) Esta distinção entre o pensamento e os seus sinais materiais, em nenhum lugar é tão bem marcada como em Aristóteles, cuja Lógica tem precisamente por objeto as obras imateriais do espírito, não as palavras faladas ou escritas, e refere-se a estas somente enquanto são sinais daquelas. Cf. Ammonius, in Periherm, f. 19a e 20a: τὰ τε ἐκφωνοὐμενα σὐμβολα εἰναι τίθεται τῶν νοουμένων καὶ τά υραφόμενα τῶν ἐκφωνουμένων.

Para evitar qualquer equívoco, restringiremos aqui o sentido corrente da palavra juízo, empregando-a somente no caso em que se trata da operação do espírito que consiste em dar seu assentimento, e empregando a palavra proposição para designar a obra realizada dentro do espírito, e sobre a qual recai este ato de assentimento. A mesma restrição não se impõe à palavra raciocínio, que empregamos com a linguagem corrente para designar ora só a operação do espírito, ora a obra assim produzida ou argumentação, ora as duas ao mesmo tempo, bastando o contexto para fixar o pensamento.

4. DIVISÃO DA LÓGICA. - Considerando a Lógica antes de tudo o raciocínio, é em relação ao raciocínio que deve ser dividida. Ora, não há duas coisas a considerar num raciocínio, como em qualquer construção e obra de arte? Numa casa, por exemplo, é preciso distinguir os materiais e a disposição que o arquiteto lhes dá: se esta disposição é má, a casa não ficará de pé porque está mal construída; e se os materiais são maus (mesmo quando a disposição seja boa), a casa não ficará de pé, porque foi construída com maus materiais. O mesmo acontece com o raciocínio. É preciso distinguir: 1º, os materiais ideais com os quais se raciocina, é o que se denomina

a MATÉRIA do raciocínio,

e 2.° a disposição segundo a qual estes materiais são reunidos no espírito, de maneira a sustentar a conclusão; é o que se chama

a FORMA do raciocínio.

Em virtude de sua forma o raciocínio é correto ou incorreto; em virtude da sua matéria é verdadeiro ou falso. O seguinte raciocínio

Nenhum homem faz o mal; (I)

ora, este criminoso é homem; (II)

logo, este criminoso não faz o mal, (III)

é correto - a forma é boa, a conclusão é bem deduzida; - mas conclui falsamente, a matéria é má, sendo falsa a proposição I.

Sendo a Lógica a arte que nos permite proceder com ordem, facilmente e sem erro no próprio ato da razão, precisa ocupar-se tanto da forma como da matéria de nossos raciocínios. Daí sua divisão em duas partes: Lógica Menor ou Lógica "formal" (Logica Minor) e Lógica Maior ou Lógica "material" (Logica ma­jor).

Lógica Menor.

A Lógica Menor estuda as condições formais da ciência; analisa ou "resolve", como se diz, o raciocínio nas leis de que ele de­pende do ponto de vista de sua forma, ou de sua disposição [9]; ela ensina as regras a se seguir para que o raciocínio seja correto ou bem construído, e para que a conclusão seja boa relativamente à disposição dos materiais. Um espírito que não se conforma com estas leis formais do pensamento é um espírito inconseqüente. E, como diz a Lógica de Port-Royal, um espírito inconseqüente "não tem garras" para reter a verdade.

Lógica Maior.

A Lógica Maior estuda as condições materiais da ciência; ela analisa ou resolve o raciocínio nos princípios de que ele depende quanto à sua matéria ou ao seu conteúdo [10]; ela mostra a que condições devem corresponder os materiais do raciocínio para que se obtenha uma conclusão firme sob todos os aspectos - não somente quanto à forma, mas também quanto à matéria. - isto é, uma conclusão verdadeira e certa [11].

A Lógica Menor estuda pura e simplesmente o mecanismo do raciocínio, abstração feita do conteúdo mesmo das proposições que ele emprega e do uso (investigação ou demonstração) que o espírito dele faz. É chamada de Lógica Menor (Logica Minor) porque, sendo constituída de regras e de preceitos, é menos longa para se estudar e trata de questões menos árduas. O nome de Lógica formal é mais expressivo, e deveria ser preferido, se não favorecesse um equívoco, pois muitos autores modernos, desde Kant e Hamilton, empregaram a palavra "Lógica formal" em sentido completamente diferente [12]. Os antigos tratavam dessa parte da Lógica no que denominavam as Summulae.

A Lógica Maior, pelo contrário, exige mais desenvolvimento, porque trata das questões mais difíceis, - questões que são também as mais importantes, não só em relação à própria arte de raciocinar, mas em relação aos conjuntos da Filosofia. Este é o motivo pelo qual recebe a denominação de Lógica Maior (Logica Major). Podemos chamá-la também de Lógica material, uma vez que chamamos a Lógica Menor de Lógica formal. Certos tratados modernos preferem o nome de Lógica aplicada, mas este nome pode provocar equívocos e levar a pensar que a parte da Lógica assim designada só trata de "aplicar" as verdades estabelecidas na Lógica Menor, quando na realidade ela é uma disciplina particular que se refere a um aspecto das coisas ló­gicas que a Lógica Menor não considera [13].

Subdivisões da Lógica. Menor e da Lógica Maior.

A Lógica Menor e a Lógica Maior dividem-se naturalmente segundo as três operações do espírito, o estudo da terceira operação, o objeto primeiro da Lógica, supondo necessariamente o estudo das duas primeiras.

Além disso é do domínio da Lógica Maior tratar especialmente da Definição, da Divisão e da Argumentação como instrumento do saber. Convém também que ela termine pelo estudo do objeto e da natureza da Lógica, questão que aliás pertence ao domínio próprio da Crítica, e que a Lógica apenas toma de empréstimo dessa ciência.





ÍNDICE

Prefácio 11

LÓGICA (A ORDEM DOS CONCEITOS)

Preliminares 17

LÓGICA MENOR

CAPÍTULO I - O CONCEITO E A 

PRIMEIRA OPERAÇÃO DO ESPÍRITO

SEÇÃO I. A Simples Apreensão 35

SEÇÃO II. O Conceito 41

                    A. Noção do Conceito 41

                    B. Extensão e compreensão dos Conceitos 46

                    C. As várias espécies de Conceitos 55

                        § 1. Conceitos incomplexos e conceitos complexos 55

                        § 2. Conceitos concretos e conceitos abstratos 57

                        § 3. Conceitos coletivos e conceitos divisivos 59

                        § 4. Extensão do Conceito-Sujeito 60

SEÇÃO III. O Termo 69

                    A. Noção do Termo oral 69

                    B. As várias espécies de Termos 72

                        § 1. Generalidades 72

                        § 2. Nome e Verbo 74

                        § 3. Sujeito e Predicado 79

                        § 4. Extensão do Termo-Sujeito 80

                    C. Propriedades dos Termos na Proposição 81

SEÇÃO 4. A Definição 100

SEÇÃO 5. A Divisão 104

CAPÍTULO II - A PROPOSIÇÃO E

A SEGUNDA OPERAÇÃO DO ESPÍRITO

SEÇÃO 1. O Juízo 109

SEÇÃO 2. A Proposição 120

                    A. Noções Gerais 120

                        § 1. O Discurso em geral 120

                        § 2. A Enunciação ou Proposição 123

                    B. As várias espécies de Proposições 126

                        § 1. Proposições simples e Proposições compostas 126

                        § 2. Proposições afirmativas e proposições negativas 120

                        § 3. Proposições de inesse e proposições modais 135

                        § 4. O Sujeito e o Predicado do ponto de vista da quantidade 139

                    C. Oposição das Proposições 134

                    D. Conversão das Proposições 164

CAPÍTULO III - RACIOCÍNIO

SEÇÃO I. O Raciocínio em geral 173

                    A. Noções gerais 173

                    B. Divisão do Raciocínio 176

                    C. As "Inferências imediatas" 187

SEÇÃO 2. O Silogismo 195

                    A. O Silogismo categórico 195

                        § 1. Noções gerais 195

                        § 2. Figuras e Modos do Silogismo 210

                        § 3. Elucidações e discussões sobre o Silogismo 230

                        § 4. O Silogismo Expositório 258

                    B. O Silogismo condicional 260

                        § 1. Os Silogismos hipotéticos em geral 231

                        § 2. O Silogismo Condicional 233

                    C. Divisão do Silogismo 272

                        § 1. Silogismos demonstrativos, prováveis, errôneos, sofísticos 272

                        § 2. Silogismos incompletos 274

                        § 3. Silogismos oblíquos 275

                        § 4. Silogismos compostos 277

SEÇÃO III. A Indução 283

                    A. O Raciocínio indutivo 283

                    B. Divisão da Indução 303

                    C. O Raciocínio por semelhança 308

APÊNDICE

INDICAÇÕES PRÁTICAS 313

RESUMO 319


Notas:

[1] Cf. J. MARITAIN, Introdução Geral à Filosofia, págs. 102. AGIR S. A. Editora, 17ª ed. 1994.

[2] "Ars directiva ipsius actus rationis, per quam scilicet homo in ipso actu rationis ORDINATE et FACILITER et SINE ERRORE procedat." (S. TOMÁS, in Anal. Post., lib. I, lect. 1.)

[3] Logica vocatur rationalis non solum "ex eo quod est secundum rationem, sed etiam ex eo quod est circa ipsum actum rationis, sicut circa propriam materiam." (SANTO TOMÁS, ibid.)

[4] Ver mais adiante, nº 37.

[5] A palavra concepção designa geralmente apenas a formação da idéia (é neste sentido que a empregamos aqui), se bem que possa designar também a formação da proposição à qual se aplica o juízo.

[6] Ver mais adiante, nº 7.

[7]. "Sicut in actibus exterioribus est considerare operationem, et operatum. putn aedificationem et aedificatum; ita in operibus rationis est considerare ipsum actum rationis, qui est intelligere et ratiocinari, et aliquid per hujusmodi actum constitutum: quod quidem in speculativa ratione primo quidem est definitiosecundo enuntiatiotertio vero syllogismus, vel argumentatio". (SÃO TOMÁS, Sum. Teol. I - II, q. 90, a. 1, ad 2.)

[8] Primeira quanto à ordem lógica e não quanto à ordem cronológica. Ver mais adiante nº 29-a. Dizemos que a definição é a primeira obra da razão porque ela é a primeira obra da inteligência reunindo entre si os conceitos. 

[9] Esta análise ou "resolução" do raciocínio em seus princípios formais constitui o objeto dos Primeiros Analíticos de ARISTÓTELES. Eis por que os escolásticos a chamavam de resolutio prioristica.

[10] Esta análise ou "resolução" do raciocínio em seus princípios materiais constitui o objeto dos Segundos Analíticos de ARISTÓTELES; eis por que os escolásticos a chamavam de resolutio posterioristica.

[11] Para prevenir qualquer confusão, devemos notar que, quando se diz que a Lógica Menor resolve o raciocínio em seus princípios formais (trata-se então dos princípios ou leis que dirigem a forma ou a disposição dos materiais inteligíveis empregados pelo raciocínio), emprega-se a palavra formal num outro sentido do que quando se diz a Filosofia se resolve formalmente nos primeiros princípios da razão, e materialmente na experiência sensível (Cf. Introd. pág. 99). Dizemos simplesmente que os primeiros princípios conhecidos por si mesmos são os princípios que constituem a Filosofia "formalmente" ou em sua essência e que lhe dão sua luz própria, enquanto que a experiência sensível fornece os materiais de onde provém realmente nosso conhecimento intelectual e nos quais a Filosofia se baseia.

Desse modo, os primeiros princípios da razão podem entrar na consideração da Lógica maior ou material, que se ocupa do conteúdo de nossos raciocínios e não unicamente da sua "forma" ou disposição; não deixam de ser sob outro ponto de vista, os princípios formais do conhecimento intelectual e da Filosofia como a alma é a forma que dá vida ao corpo.

[12] Este ponto será examinado na Lógica Maior.

[13] O nome de Lógica aplicada convém antes àquilo que os Antigos denominavam Logica utens. A distinção entre a Logica docens (Lógica pura) e a Lógica utens (Lógica aplicada) será estudada na Lógica Maior.

***

Leia mais em Introdução à Astronomia Clássica

Leia mais em Introdução geral ao Quadrivium (Matemáticas)



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Como se produziam os livros antigos

Detalhe do livro em São Paulo escrevendo, por Maestro del Papagayo, séc. XVI.

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Apresentamos o Prefácio e a Introdução do livro A Técnica do Livro Segundo São Jerônimo, por Dom Paulo Evaristo Arns, traduzido por Cleone Augusto Rodrigues e publicado pela Editora Cosac Naify, 2007.

Prefácio

Paulo Evaristo, leitor de São Jerônimo

É como professor de Literatura e velho amigo dos livros — esses companheiros singulares que só nos falam quando nos dirigimos a eles e ao abrirmos o segredo de suas páginas — que desejo comentar a reedição pela Cosac Naify de um notável trabalho universitário composto por um inveterado amigo dos livros. O que lembramos hoje é a obra com que o estudante de Filosofia e Letras da Sorbonne se doutorou há mais de cinqüenta anos: A técnica do livro segundo São Jerônimo. Essa tese, vertida para o português em 1993, quando a publicou a editora Imago, intitula-se, no original francês La technique du livre d'après Saint Jérôme.

Qual foi a gênese, a motivação primeira que levou o jovem sacerdote Paulo Evaristo a embrenhar-se na selvo selvaggia de um dos maiores escritores cristãos de todos os tempos — São Jerónimo —, que costuma ser citado, sobretudo, pela sua versão latina das Escrituras, a Vulgata, fonte de quase todo o conhecimento bíblico no Ocidente durante mais de um milênio? É Dom Paulo que nos conta com a sua bela simplicidade franciscana:

No dia de minha profissão religiosa, estava iniciando os vinte anos de vida e me perguntava como faz todo mundo: ”que será do meu futuro?’. Nesse momento, me entregaram a carta de meu irmão padre, dizendo “dedique-se à literatura cristã dos primeiros séculos, porque você gosta de latim e grego e o Brasil precisa de informações sobre esta era tão rica e tão desconhecida”.

O jovem levita seguiu à risca o conselho do irmão. E atirou-se a um trabalho ingente de pesquisa erudita, que começava simplesmente pela decifração das 10 mil colunas dos tomos 22 a  29 da célebre Patrologia Latina de Migne, dedicada aos textos dos primeiros cristãos.

O objetivo da tese era descrever com exatidão filológica todo o longo processo de composição da escritas acionado nos primeiros séculos da era cristã. O que comportava o estudo de uma série de elementos que vão desde o tipo de suporte usado (o papiro, o pergaminho, as tabuletas de cera com o estilete), até, na outra ponta, aspectos ligados à difusão da obra, passando metodicamente pelas etapas da redação e das várias modalidades da edição. Os cinco capítulos da tese estão ordenados com clareza exemplar: o material, a redação, a edição, a difusão, o livro e os arquivos. A tese inclui uma bibliografia geral sobre o tema, que é um precioso guia para o leitor que deseje prosseguir seus estudos nesse mundo fascinante em que a técnica jamais foi um fim, em si mesma, mas, no caso de Jerónimo, apenas um instrumento apto para transmitir a palavra divina da revelação e as palavras humanas sobre a revelação.

Não é preciso dizer que, desde as primeiras linhas da tese, o leitor leigo, como eu, em cultura patrística, tem tudo a aprender. Cada parágrafo do pesquisador Paulo Evaristo dá uma informação nova, exata e sempre calçada pela nota erudita ao final de cada capítulo. Tratando, por exemplo, do papiro, que serviu de principal suporte à escrita no período em questão, o autor nos lembra a dificuldade de obtê-lo entre os monges do deserto, que se escusavam de escrever pouco por falta da rara planta egípcia. Adiante, esclarece-nos sobre o sentido do termo charta, que é a folha de papel-papiro, e não o texto inteiro que se envia a alguém, o qual tinha por nome epístula.

Ficamos sabendo que, como nós outros de hoje, São Jerónimo às vezes lançava mão de pedacinhos de. folha, as chartulae, para rascunhar alguma frase que só depois seria desenvolvida, e confessa modestamente: “Volo in chartulis meis quaslibet ineptias scribere, commentari de scripturis..'’ [“Quero escrever umas bobagens em minhas fichinhas, comentários sobre as escrituras”]. Mas a ficha, mesmo, era scheda, palavra que o italiano conservou, e nela Jerónimo fazia, de fato, os seus rascunhos, isto é, os manuscritos que precedem a redação definitiva. Mas quem. continuar lendo o tópico, vê que schedula não só vale para rascunho e acha, como também cobre, às vezes, por metonímia, o texto inteiro. Lembro que, na acepção de lista de anotações, ou agenda, o termo está vivo no inglês schedule.

Chega, enfim, à obra acabada, o codex ou códice, termo consagrado na bibliologia para o “livro” até a invenção da imprensa no século XV. De todo modo, na competição que houve entre o papiro e o pergaminho da tradição bíblica e judaica, é este que acaba vencendo; e da sua durabilidade é testemunho, até hoje, a conservação dos códices medievais.

São Jerônimo aprecia essas membranas tiradas da pele dos carneiros, mas, fiel ao espírito da sua missão de transmitir a Escritura, denuncia no seu comentário a Isaías aqueles que entesouram pergaminhos e os guardam em arcas sem interiorizar as mensagens neles escritas: “Legunt enim Scriptural sed non intelligunt, tenent membranas et Christuin, qui in membranis est, perdiderunt” [“Lêem, pois as Escrituras, mas não as compreendem; guardam as membranas, mas perderam a Cristo, que está nas membranas”].

Seria, para mim, um grande prazer acompanhar todos os passos deste livro ao mesmo tempo erudito e ameno. Fiquei apenas com passagens do primeiro capítulo, certo de que a curiosidade vai levar muitos a ler toda a obra.

Gostaria apenas de espicaçar essa natural curiosidade acenando para alguns temas superiormente tratados nos outros capítulos da obra. Dom Paulo estuda a maneira de Jerônimo compor as suas cartas, traduções e comentários: o ditado a verdadeiros taquígrafos, que iam velozmente preenchendo tabuinhas de cera, operação que se tornou cada vez mais necessária à medida que o grande escritor foi perdendo a luz dos olhos; os sistemas de sinais que esses taquígrafos e os copistas inventaram; a remuneração que recebiam, os defeitos das cópias; a vitória do liber-codex sobre o rolo (volumen); os problemas de divulgação dos escritos, os problemas de sua conservação em arquivos etc.

Quero terminar citando mais uma frase de Jerónimo, que vale muito especialmente para entender o espírito da carreira pastoral do seu comentador Dom Paulo Evaristo. O pensamento é este. As letras são belas, mas quando transformadas em um culto, podem impedir o seu devoto de voltar-se para o outro, o pobre, que é a efígie de Cristo padecente: “Tinge-se o pergaminho de cor de púrpura, traçam-se letras com outro líquido, revestem-se de gemas os livros, mas diante das suas portas, totalmente nu, Cristo esta morrendo”. Antevejo nessa pungente reflexão de São Jerónimo o traçado de um longo roteiro que Dom Paulo percorreu intrepidamente: primeiro, abeirando-se da cultura letrada, não por si mesma, mas enquanto estímulo para a ação inteligente; depois, voltando-se, no Brasil, para o pobre, o marginal, o oprimido. Dom Paulo soube, como poucos, ouvir o apelo de Jerônimo. E esta é a razão profunda da homenagem que lhe estamos prestando neste memento.

Alfredo Bosi


Introdução 

A palavra técnica, aos olhos dos modernos, toma um sentido cada vez mais complexo. Em geral, é empregada significando o conjunto dos procedimentos de uma arte, de um ofício. Se nos permitimos dar à nossa tese o título de Técnica do livro, não é, porém, nossa intenção nos determos na arte da composição nem na manufatura do livro. De fato, vamos tentar nos aproximar de um grande escritor cristão do fim do século IV e surpreender seus esforços para reunir o material, compor seus escritos, dar-lhes uma forma, assegurar-lhes a vitória, e prover-lhes a sobrevivência. Seria então o caso de pensar que toda nossa pesquisa vai consistir em captar o desenvolvimento de seu gênio. Não. Vamos apenas trazer à luz o que passa despercebido aos olhos da maior parte dos homens que lêem os volumosos escritos do santo Doutor. O material, em nossa tese, só apresentará o papiro, o pergaminho, a tabuleta e o estilete. A redação se resumirá para nós no ditado, na transcrição e no acabamento do exemplar-modelo. A edição, onde nos esforçaremos para definir em que consiste a publicação, recordará algumas formas do livro com suas subdivisões. A difusão nos evocará o esforço dos amigos e dos inimigos para garantir uma sorte mais ou menos feliz à obra literária. O livro e os arquivos nos mostram enfim os lugares onde serão conservados os manuscritos já bem modificados pelas reproduções sucessivas.

***

Por que nos limitamos agora a examinai os textos de São Jerônimo? O quadro que eles ajudarão a traçar será forçosamente imperfeito, porque incompleto, e isto por vários motivos. Primeiro, o autor jamais fez um tratado sobre uma dessas cinco partes; todas as nossas indicações foram colhidas na leitura, Citando apareciam aqui ou ali no texto. Depois, a interpretação textual fornecida pelo autor corre o perigo de ser vaga ou falsa, na medida em que não pôde ser confrontada com as indicações de outros escritos da mesma época. É também por essas duas razões que o desenvolvimento dado segundo os textos às diversas partes deste trabalho não é forçosamente proporcional a importância real delas.

Apesar de tudo, ficamos presos unicamente a São Jerônimo porque, no estado atual de nossos conhecimentos, os estudos em profundidade preparam as sínteses do futuro. Segundo o axioma dos filósofos, o trabalho ganhará em compreensão o que perde em extensão.

Além do mais, uma leitura assídua da obra de Jerônimo nos convenceu de que é um dos autores mais atentos aos detalhes no que tange à cópia e à edição. Com o auxílio de suas próprias indicações, tentaremos reconstituir, em parte, a história do livro nos séculos IV e V.

***

Para facilitar uma futura síntese sobre a técnica do livro naquela época, julgamos necessário citar os textos latinos por inteiro. Pela mesma causa, não hesitamos em repetir as mesmas citações para ilustrar diferentes partes de nossa exposição.

O estudo dos manuscritos de São Jerônimo, sobretudo dos mais antigos, poderia ter esclarecido alguns dos problemas levantados por nossa tese. Esta longa e paciente pesquisa será grandemente facilitada no dia em que pudermos consultar a edição de toda a obra do autor.

***

Resta nos cumprir o dever mais agradável: agradecer a todos aqueles que nos ajudaram em nossa primeira pesquisa científica: Nosso superior provincial, o Reverendíssimo Padre Dr. Ludovico Gomes de Castro, um grande amigo da França, nos permitiu realizar neste país esta longa e frutuosa estada. Os professores da Faculdade de Letras da Universidade de Paris sempre nos receberam e aconselharam com a cortesia e gentileza francesas, tão conhecidas e estimadas em nosso país. Aos senhores Jean Bayet, Henri-Irenée Marrou, Marcel Durry, entre outros, toda a nossa gratidão. O Reverendíssimo Padre Ferdinand Cavallera aceitou gentilmente ler nosso trabalho, e nos encorajou a perseverar em nosso esforço para ajudar a compreender melhor São Jerônimo. A direção do Thesaurus Linguae Latinae nos deu, em Munique, a mais generosa acolhida; o sr. professor Bernhard Bischoff, em relação a nós, foi de uma amabilidade prestativa e calorosa. À Província Franciscana da França, o nosso reconhecimento pela amizade, pela atenção fraterna e pela ajuda preciosa de que nos cercou sem cessar, no Convento de Paris.

Enfim, nossa última homenagem e a mais fervorosa e devida a nosso mestre, professor Pierre Courcelle. E a seus conselhos e a sua simpatia que devemos o melhor deste trabalho. Que nos permita testemunhar-lhe nosso mais profundo reconhecimento.

Paris, janeiro de 1952

Paulo Evaristo Arns


SUMÁRIO

Paulo Evaristo, leitor de São Jerônimo, Alfredo Bosi 7
Introdução 11
Siglas 15


CAPÍTULO l
O MATERIAL 21
O PAPIRO 21
Charta 21
Scheda 24
O PERGAMINHO 26
AS TABULETAS DE CERA 29
O ESTILETE 31
NOTAS 32


CAPÍTULO 2
A REDAÇÃO 43
O DITADO 43
Dictare 43
As circunstâncias do ditado 46 
Os inconvenientes do ditado 48
Manu propria 50
O TAQUÍGRAFO 50
A rapidez 51 
Os sinais 52 
Excipere 53
As tabuletas do taquígrafo 54
Remuneração do taquígrafo 56 
Evolução da palavra notarius 56
A TRANSCRIÇÃO 56
A profissão de copista 57
Tarefa do copista 58
Defeitos do Copista 59
A CORREÇÃO 60
O EXEMPLAR 62
NOTAS 65


CAPÍTULO 3
A EDIÇÃO 83
A PUBLICAÇÃO 83
AS FORMA DO LIVRO 87
A EPÍSTOLA 89
O LIBER 94
O CODEX 103
NOTAS 106


CAPÍTULO 4
A DIFUSÃO 129
ALGUNS ASPECTOS DO PROBLMA 129 
INTERMEDIÁRIOS E DEPOSITÁRIOS 132 
A REMUNERAÇÃO 138
PUBLICAÇÃO À REVELIA DO AUTOR 140
INFORMAÇÕES LITERÁRIAS 144
O EMPRÉSTIMO DE LIVROS 147
CÓPIA PARTICULAR 148
NOTAS 149


CAPÍTULOS 5
O LIVRO E OS ARQUIVOS 169
A AUTENTICIDADE DOS LIVROS 169
Crítica externa 169
Crítica interna 171
ADULTERAÇÃO DOS ESCRITOS 172
Adulteração acidental 172
Adulteração intencional 173
Alguns princípios para a reconstituição de texto 175
OS ARQUIVOS 176
NOTAS 179


CONCLUSÃO 189
NOTAS 192


Bibliografia 193
Índice de nomes e assuntos 199 
Sobre o autor 203
Crédito das ilustrações 207

***

Leia mais em Educação (Paideia) na Antiguidade Cristã

Leia mais em Uma breve história do livro



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Latim pelo método natural

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Apresentamos o texto de Introdução e Apresentação do livro Latim pelo Método Natural (vol. 1) do Padre Willian Most, publicado pela Editora Centro Dom Bosco, 2020. 

Introdução

Em 31 de dezembro de 1939, na encíclica Divini illius Magistri, Sua Santidade o Papa Pio XI escreveu sobre o professor cristão:

... Acolhendo, pois, o que é novo, terá o cuidado de não abandonar facilmente o antigo, demonstrado bom e eficaz pela experiência de muitos séculos, mormente no estudo da latinidade, que vemos, em nossos dias, em progressiva decadência, exatamente pelo inqualificável abandono dos métodos tão frutuosamente usados pelo são humanismo que obteve grande florescência principalmente nas escolas da Igreja [1].

Os séculos XIII e XVI certamente foram épocas em que o humanismo cristão floresceu. Ademais, métodos de ensino são meios para alcançar os objetivos; e os métodos são naturalmente adaptados à medida que os objetivos variam. Consequentemente, as palavras do Santo Padre manifestam claramente o seu desejo de uma volta aos objetivos e métodos de ensino do latim utilizados com sucesso nos séculos XIII e XVI, juntamente com aperfeiçoamentos modernos.

São precisamente esses os métodos e objetivos que se alcançam com os livros didáticos do padre William G. Most para o ensino e aprendizagem do latim pelo "método natural". Eles empregam, não de uma maneira servil, mas com uma sábia adaptação às novas circunstâncias modernas, o objetivo (facilidade no uso do latim como um meio de comunicação) e os métodos (formação de hábito por meio de repetição frequente) utilizados em 1250 ou 1550. Eles levam o aluno a reproduzir os processos naturais da formação de hábito pelos quais as crianças romanas aprendiam o latim como língua materna. Ao fazê-lo, os livros não descartam o valioso treinamento da mente, o conhecimento da gramática e outros benefícios até então buscados pelos professores de latim do século XX, mas simplesmente postergam a conquista desses benefícios até que o aluno consiga usar a língua latina com facilidade. Igualmente, eles aplicam ao ensino do latim muitas das técnicas mais eficazes de ensino das línguas modernas e muito do que se tem aprendido da ciência moderna chamada "linguística descritiva". Eles são os primeiros livros didáticos católicos de latim publicados nos Estados Unidos que fazem isso tudo.

Podemos descrever aqui a grande mudança nos objetivos e procedimentos do ensino de latim entre os séculos XIII e XVI de uma forma muito breve [2].

Nos séculos de Santo Tomás de Aquino (1225-1274) e Santo Inácio de Loyola (1491-1556), praticamente toda a educação era transmitida com base em livros didáticos em latim e explicados verbalmente em latim. A faixa etária dos alunos que aprendiam latim girava quase totalmente em torno de seis a catorze anos de idade. O principal objetivo dos professores era transmitir a arte de ler, escrever e falar em latim com facilidade, de modo que a língua latina pudesse ser usada como meio para comunicar o pensamento, ou, em outras palavras, como uma ferramenta indispensável em todos os estudos superiores e, posteriormente, por toda a vida. Eles utilizavam amplamente conversação em latim e livros didáticos de latim de nível fácil, como, por exemplo, diálogos ou "colloquia" acerca da vida cotidiana, o Pai-Nosso, a Ave-Maria, Salmos e Evangelhos. Então, utilizando materiais fáceis, os professores prodigalizavam aos seus pupilos a prática e a repetição que por si sós desenvolvem uma série de hábitos - e essa é a essência do aprendizado bem-sucedido de um idioma. Os alunos, na verdade, experimentavam um sentimento de conquista ao expressarem seu pensamento em um novo idioma. Aprender latim era divertido, em vez de um trabalho árduo. As palavras em latim evocavam diretamente as ideias, não os equivalentes no vernáculo ou nomenclatura gramatical, que eram utilizados de maneira penosa para captar ideias. Ao dominar a tripla habilidade de ler, escrever e falar em latim os alunos automaticamente adquiriam bastante treinamento da mente e conhecimento cultural. Mas ninguém pensava em estabelecer a disciplina da mente ou o conhecimento cultural como a meta do ensino de latim. Essa meta era o domínio da habilidade de usar o latim com facilidade.

A situação toda começou a mudar gradualmente por volta de 1700. As línguas nativas substituíram o latim nos livros didáticos e como meio de instrução. À medida que, cada vez mais, o latim deixava de ser necessário como meio de adquirir e expressar o conhecimento, as pessoas ficavam cada vez menos motivadas a estudá-lo, e o lugar dele na grade curricular foi diminuindo continuamente. Para defendê-lo, especialmente após as épocas de John Locke (1632-1704) e Christian Wolff (1679-1754), os professores apontavam para o treinamento da mente e o conhecimento cultural que ele proporcionava. O conhecimento do estilo ciceroniano e a análise gramatical receberiam ênfase crescente. Com o tempo, os alunos começavam a estudar latim não aos seis, mas aos catorze anos de idade. Eles aprendiam as declinações, conjugações, regras de sintaxe, listas de vocabulário e nomenclatura gramatical. Então, depois de 1890, nos Estados Unidos, eles decodificavam as longas frases difíceis de César e analisavam as palavras. Repetiam o processo com um ou dois discursos de Cícero e alguns livros de Virgílio. Adquiriam conhecimento sobre latim, mas não a habilidade de usá-lo com facilidade como um meio de expressar o pensamento. (A habilidade de ler de imediato era classificada somente no último lugar dentre os dezenove objetivos do ensino de latim enumerados pelos professores durante a Classical Investigation de 1923). Para a maior parte dos alunos, o aprendizado de latim tornou-se um trabalho árduo, em vez de proporcionar divertimento e senso crescente de conquista. As matrículas caíram. Em 1910, 49,05 % dos alunos americanos de ensino secundário estudavam latim. Até 1954, somente 7 % o estudavam (1,3 % no Alabama, 5,8 % em Wisconsin, 16,4 % em Connecticut) [3].

A maioria dos americanos que haviam estudado latim com os nossos padres, incluindo seminaristas, havia usado esse método, que eles reputavam ser "tradicional". Todavia, como algo totalmente desenvolvido, essa tradição mal remonta a 1880; e, mesmo em seu início, ela dificilmente precede o século XVII.

Em contraste a esse método de análise gramatical, os livros didáticos do padre Most reproduzem bastante o "método natural", pelo qual as crianças aprendem a sua própria língua materna. Por isso, o significado dos livros do padre Most é evidentemente grande para as aulas de latim em quaisquer escolas secundárias ou faculdades católicas. Os conteúdos de nossa doutrina e cultura católicas depositados na língua latina são tantos que desejamos que muitos de nossos católicos instruídos sejam capazes de usar o latim com facilidade.

Porém, os textos do padre Most são particularmente importantes para as aulas de latim em nossos seminários. Aqui os alunos ainda têm basicamente os mesmos motivos convincentes para dominar a habilidade de usar o latim com facilidade, da mesma forma que os alunos do século XIII ou XVI. Eles precisam dele como um meio indispensável de comunicar o pensamento em seus estudos superiores e, posteriormente, ao longo da vida. Os objetivos (conhecimento sobre latim e treinamento da mente) e respectivos métodos (análise gramatical e tradução) "tradicionais" têm predominado em nossos seminários desde 1880; e lá também os alunos têm experimentado uma incapacidade crescente de usar o latim. Os livros didáticos do padre Most podem contribuir bastante no sentido de revolucionar o ensino da língua latina, na medida em que resgatam, como objetivo principal, a habilidade de ler, escrever e (se desejável) falar em latim com fluência. Assim, eles ajudarão não somente a concretizar os desejos do Papa Pio XI mencionados acima, mas também aqueles expressos pelo Papa Pio XII no Congresso Carmelita, em 13 de setembro de 1951:

Infelizmente, a língua latina, a glória dos sacerdotes, tem atualmente poucos devotos, e mesmo estes estão constantemente perdendo a vitalidade [...]. Que não haja padres que não saibam falar e ler em latim com facilidade e rapidez. Além disso, que surjam entre vós alguns que não sejam poucos nem medíocres e que possam escrever nesse idioma com estilo conciso e elegante. [4]

Para alcançar esses objetivos elevados, esperamos e rezamos para que os relevantes livros didáticos do padre Most, que adotam o "método natural", sejam cada vez mais utilizados.

GEORGE E. GANSS, S.J., PH.D. 
Diretor do Departamento de Estudos 
Clássicos da Marquette University, 
20 de janeiro de 1957.



Apresentação

LATIM: A LÍNGUA DOS GIGANTES

William Bottazzini Rezende

Não é exagerado afirmar que, neste primeiro quartel do século XXI, o latim vive um dos seus mais excelsos momentos em terras brasileiras. Há décadas não se assistia a tão grande e genuíno interesse pela língua de Cícero, Virgílio, Horácio, Ovídio, Tito Lívio, Lucrécio e Santo Agostinho. Contrariando todas as expectativas, as trevas da profunda crise educacional em que nos encontramos não foram capazes de impedir que brilhasse a luz libertadora que emana das letras latinas. Com efeito, ela brilha agora com uma intensidade há muito tempo não vista. Portanto, tendo contemplado uma fagulha desse brilho quase que por milagre, esta geração, que por onde olha não vê nada além de ruínas e fragmentos na sua formação intelectual, volta resolutamente os olhos para o passado, não com saudosismo romântico, mas com o senso de responsabilidade que revela que só enxerga mais longe quem se assenta sobre os ombros dos gigantes. E não se chega aos ombros dos gigantes senão pela língua latina.

O retorno do latim ao centro das discussões educacionais trouxe à baila questões sobre fins e métodos: Para que aprender o latim? Como fazê-lo? Poderíamos ocupar páginas e páginas com justificativas para o aprendizado do latim. Ora, sabe-se que o latim contribui para o desenvolvimento do raciocínio lógico, para a ordenação do intelecto, para a formação do senso etimológico, habilidade sem a qual não se alcança a precisão linguística, para a prática de diversas virtudes, como a constância e a paciência, para o aprimoramento dos conhecimentos em língua portuguesa entre incontáveis outros benefícios. Contudo, podemos afirmar que o fim principal do estudo do latim repousa na leitura fluente dos grandes textos. É sobretudo para isso que se estuda o latim.

Estabelecido o fim, deve buscar-se o método, o caminho, que mais facilmente nos conduzirá a ele. Ora, assim como aprendemos a escrever escrevendo e a falar falando, da mesma forma é lendo que aprendemos a ler. Portanto, o método ideal para os que têm como escopo adquirir a habilidade de ler com autonomia os textos latinos é aquele que estimula a leitura em latim desde as primeiras lições, conduzindo o aprendiz por textos que crescem gradativamente em complexidade e aumentando-lhe paulatinamente o vocabulário, sem descuidar, evidentemente, de todas as explanações gramaticais pertinentes. Ademais, não se aprende nada fora de contexto. Portanto, contextualizados o vocabulário e a gramática, aprende-se o latim - e qualquer idioma - com grande naturalidade, donde o nome de natural dado ao método que segue esses preceitos.

Obedecendo às diretrizes do método natural, o reverendo padre William Most produziu uma série de três livros para o ensino do latim, sendo este que o leitor tem em mãos o primeiro. Por meio de dezenas de textos didáticos, instrutivos e divertidos, o padre Most leva os alunos à leitura segura de textos latinos autênticos, fornecendo-lhes vocabulário suficiente para que não necessitem interromper a leitura em cada frase para satisfazer em dicionários e listas de palavras a própria insegurança na compreensão do que se lê, fenômeno comum para quem estuda o latim sob uma óptica estritamente gramatical.

As lições, oitenta e uma no total, possuem a seguinte estrutura:

• Texto principal.
• Vocabulário.
• Exposição gramatical.
• Leitura complementar.
• Exercícios que podem ser de tradução, de estilo latino e de identificação de padrões.

Os textos escritos pelo padre Most para este volume narram parte da história de Roma e diversas histórias bíblicas. Os exercícios, por sua vez, não só reforçam os conteúdos estudados, como também proporcionam ocasiões para que os alunos falem e escrevam em latim, pois a prática ativa do idioma, uma das características mais marcantes do método natural, corrobora os usos passivos, como o da leitura. Caberá ao professor estimular os seus alunos com perguntas e atividades para que memorizem o vocabulário, pensem, falem e escrevam em latim, pois de outra forma não se pode transmitir uma formação sólida e completa no idioma. Um bom professor de latim saberá, seguramente, encontrar neste manual ferramentas e ideias, embora um pouco heterodoxas entre os latinistas, para desempenhar com excelência o seu ofício. Concluído este livro, não temos dúvidas de que o aluno estará apto a ler grande parte dos textos da Vulgata, a versão latina da Bíblia, e a compreender muito dos textos latinos da Santa Missa.

Encerro esta apresentação agradecendo ao Centro Dom Bosco por presentear o público brasileiro com a primeira versão em língua portuguesa do excelente livro do padre William Most, para quem evangelizar e ensinar o latim era uma só coisa. Graças ao empenho do Centro Dom Bosco, agora temos em nossas estantes um texto católico para o ensino do latim concebido no método que acreditamos ser o melhor.

Viva Cristo Rei!

Poços de Caldas - 28 de janeiro de 2019
Memória de Santo Tomás de Aquino.


Notas:

[1] Acta Apostolicae Sedis, 22, 80; America Press Edition, p. 29.

[2] Para obter um relato mais extenso, leia "A Sketch of the History of Latin Teaching," p. 218-258 de Ganss, G.E., S.J., St. Ignatius' Idea of a Jesuit University, Marquette University Press, Milwaukee. 1956.

[3] The FL. Program, Report No. 2 (agosto de 1955), Boston, D.C. Heath Co., p. 5.

[4] Acta Apostolicae Sedis 43, 737

***

Leia mais em A língua latina e a Igreja

Leia mais em O ressurgimento do latim



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Sobre a Literatura e Dante Alighieri

Afresco de Luca Signorelli, na capela de San Brizio, Duomo, Orvieto



Tempo de leitura: 60 minutos.

Texto retirado do LINK

CARTA APOSTÓLICA

CANDOR LUCIS AETERNAE

DO SANTO PADRE FRANCISCO

NO VII CENTENÁRIO DA MORTE DE DANTE ALIGHIERI

Esplendor da Luz Eterna, o Verbo de Deus tomou um corpo da Virgem Maria quando, ao anúncio do Anjo, Ela respondeu: «Eis a serva do Senhor» (Lc 1, 38). O dia em que a Liturgia celebra este mistério inefável é particularmente significativo também na vida histórica e literária do insigne poeta Dante Alighieri, profeta de esperança e testemunha da sede de infinito presente no coração do homem. Por isso, nesta ocorrência, desejo unir-me também eu ao coro numeroso de quantos querem honrar a sua memória no VII centenário da sua morte.

Em Florença, de facto, o ano tinha início, segundo o cômputo ab Incarnatione, em 25 de março. Próxima do equinócio da primavera e vista na perspectiva pascal, tal data aparecia associada quer com a criação do mundo quer com a redenção realizada por Cristo na cruz, início da nova criação. À luz do Verbo encarnado, convida a contemplar o desígnio de amor que é o próprio coração e a fonte inspiradora da obra mais célebre do Poeta, a Divina Comédia. No último canto desta, o acontecimento da Encarnação é lembrado por São Bernardo com estes versos famosos: «No ventre teu reacendeu-se amor / e em paz eterna fez que germinasse / a seu calor assim tão bela flor» (Par. XXXIII, 7-9)[*].

Mas, já no Purgatório, Dante representara a cena da Anunciação esculpida num penhasco rochoso (X, 34-37.40-45).

Por isso, nesta circunstância, não pode faltar a voz da Igreja que se associa à comemoração unânime do homem e do poeta Dante Alighieri. Melhor do que muitos outros, soube exprimir, com a beleza da poesia, a profundidade do mistério de Deus e do amor. O seu poema, expressão sublime do génio humano, é fruto duma nova e profunda inspiração, de que o Poeta aliás tem consciência quando fala dele como «poema santo que consagro, / em que puseram mão o céu e a terra» (Par. XXV, 1-2).

Desejo, com esta Carta Apostólica, unir a minha voz à dos meus Antecessores que honraram e celebraram o Poeta, especialmente por ocasião dos aniversários do nascimento ou da morte, para o propor de novo à atenção da Igreja, à universalidade dos fiéis, aos estudiosos de literatura, aos teólogos, aos artistas. Recordarei brevemente estas intervenções, focando a atenção nos Pontífices do último século e nos seus documentos de maior relevo.

1. As palavras sobre Dante Alighieri dos Romanos Pontífices do último século

Há um século, em 1921, por ocasião do VI centenário da morte do Poeta, Bento XV, recolhendo as ideias que surgiram nos pontificados anteriores, particularmente de Leão XIII e São Pio X, comemorou o aniversário de Dante quer com uma Encíclica[1] quer promovendo obras de restauro em Ravena na igreja de São Pedro Maior, chamada popularmente de São Francisco, onde se celebrou o funeral de Alighieri tendo sido sepultado na respetiva área tumular. O Papa, vendo com apreço as numerosas iniciativas tendentes a solenizar a ocorrência, reivindicava o direito da Igreja, «que foi sua mãe», de ser protagonista de tais comemorações, honrando o «seu» Dante.[2] Já na Carta ao Arcebispo de Ravena, D. Pasqual Morganti, com a qual aprovara o programa das celebrações do centenário, Bento XV motivou a sua adesão da seguinte forma: «Além disso (e isto é mais importante) há uma razão particular para considerarmos que se deve celebrar o seu fausto aniversário com grata memória e grande concurso de povo, ou seja, o facto de que Alighieri é nosso. (...) Com efeito, quem poderá negar que o nosso Dante tenha alimentado e fortalecido a chama do engenho e a virtude poética inspirando-se na fé católica, a ponto de cantar num poema quase divino os mistérios sublimes da religião?»[3]

Num momento histórico marcado por sentimentos de hostilidade à Igreja, o Pontífice reiterou, na citada Encíclica, a pertença do Poeta à Igreja, «a união íntima de Dante com esta Cátedra de Pedro»; mais, afirmou que a sua obra, apesar de ser expressão da «prodigiosa vastidão e agudeza do seu engenho», recebeu «um poderoso impulso de inspiração» precisamente da fé cristã. Por isso, «nele – continuava Bento XV – não devemos admirar apenas a altura sublime do engenho, mas também a vastidão do tema que a religião divina ofereceu ao seu canto». E tecia o seu elogio, respondendo indiretamente a quantos negavam ou criticavam a matriz religiosa da sua obra: «Respira-se em Alighieri a mesma piedade que há em nós; a sua fé tem os mesmos sentimentos. (...) O motivo principal de elogio nele é este: ser um poeta cristão e ter cantado com acentuações quase divinas os ideais cristãos dos quais contemplava, com toda a alma, a beleza e o esplendor». E o Pontífice prosseguia: a obra de Dante é um exemplo eloquente e válido para «demonstrar quão falso seja que o obséquio da mente e do coração a Deus corte as asas do engenho; pelo contrário, estimula-o e eleva-o». Por isso, defendia ainda o Papa, «os ensinamentos que Dante nos deixou em todas as suas obras, mas sobretudo no seu triplo poema» podem servir «como guia validíssimo para os homens do nosso tempo», e de modo particular para alunos e estudiosos, já que ele, «ao compor o seu poema, não teve outro objetivo senão levantar os mortais do estado de miséria, isto é, do pecado e conduzi-los ao estado de beatitude, isto é, da graça divina».

Passando a São Paulo VI, as suas várias intervenções estão relacionadas com o VII centenário do nascimento, em 1965. No dia 19 de setembro, ofereceu uma cruz dourada para embelezar a Capela de Ravena que guarda o túmulo de Dante, até então desprovida de «tal sinal de religião e esperança».[4] Em 14 de novembro, enviou a Florença uma coroa áurea de louros para ser encastoada no Batistério de São João. Finalmente, no termo dos trabalhos do Concílio Ecuménico Vaticano II, quis doar aos Padres Conciliares uma edição artística da Divina Comédia. Mas sobretudo honrou a memória do insigne Poeta com a Carta Apostólica Altissimi cantus,[5] na qual reiterava a forte ligação entre a Igreja e Dante Alighieri: «Se alguém quisesse perguntar por que motivo a Igreja Católica, por vontade do seu Chefe visível, tenha a peito cultivar a memória e celebrar a glória do poeta florentino, é fácil a nossa resposta: porque, por um direito particular, Dante é nosso! Nosso, queremos dizer da fé católica, porque tudo nele respira amor a Cristo; nosso, porque muito amou a Igreja, cujas glórias ele cantou; e nosso, porque no Romano Pontífice reconheceu e venerou o Vigário de Cristo».

Mas tal direito, continuava o Papa, longe de autorizar atitudes triunfalistas, constitui um compromisso. «Dante é nosso: podemos justamente repeti-lo. E afirmamo-lo, não para fazer dele um almejado troféu de glória egoísta, mas antes para nos lembrar a nós próprios o dever de o reconhecer como tal e explorar na sua obra os tesouros inestimáveis do pensamento e sentimento cristãos, convencidos como estamos de que só quem penetra na alma religiosa do insigne Poeta pode compreender profundamente e saborear as suas maravilhosas riquezas espirituais». E este compromisso não dispensa a Igreja de acolher também as palavras de crítica profética pronunciadas pelo Poeta contra quem devia anunciar o Evangelho e representar, não a si próprio, mas a Cristo: «Nem me custa recordar que a voz de Dante se ergueu, pungente e severa, contra mais de um Romano Pontífice, e teve amargas reprimendas para instituições eclesiásticas e pessoas que foram ministros e representantes da Igreja»; contudo resulta claro que «tais atitudes inexoráveis nunca abalaram a sua fé católica firme nem o seu afeto filial à santa Igreja».

Depois Paulo VI ilustrava as caraterísticas que fazem do poema de Dante uma fonte de riqueza espiritual ao alcance de todos: «O poema de Dante é universal: na sua amplitude imensa, abraça céu e terra, eternidade e tempo, os mistérios de Deus e as vicissitudes dos homens, a doutrina sagrada e a que deriva da luz da razão, os dados da experiência pessoal e as memórias da história». Mas sobretudo especificava a finalidade intrínseca da obra de Dante, particularmente da Divina Comédia (finalidade essa, nem sempre claramente apreciada e avaliada): «O objetivo da Divina Comédia é primariamente prático e transformador. Não se propõe apenas ser poeticamente bela e moralmente boa, mas capaz de mudar radicalmente o homem e levá-lo da desordem à sabedoria, do pecado à santidade, da miséria à felicidade, da visão terrificante do inferno à contemplação beatificante do paraíso».

Num momento histórico denso de tensões entre os povos, o Papa tinha a peito o ideal da paz e encontrava na obra do Poeta uma reflexão preciosa para a promover e suscitar: «Esta paz dos indivíduos, das famílias, das nações, da sociedade humana, paz interna e externa, paz individual e pública, tranquilidade da ordem, é perturbada e abalada, porque são espezinhadas a piedade e a justiça. E, para restaurar a ordem e a salvação, são chamadas a trabalhar em harmonia a fé e a razão, Beatriz e Virgílio, a Cruz e a Águia, a Igreja e o Império». Nesta linha, assim definia a obra poética na perspectiva da paz: «A Divina Comédia é poema da paz: lúgubre canto da paz perdida para sempre é o Inferno, suave canto da paz esperada é o Purgatório, epinício triunfal de paz eterna e plenamente possuída é o Paraíso».

Nesta perspectiva, continuava o Pontífice, a Divina Comédia «é o poema da melhoria social na conquista duma liberdade, que está isenta da escravidão do mal e nos leva a encontrar e amar a Deus (…) professando um humanismo, cujas qualidades julgamos ter ficado bem esclarecidas». E Paulo VI reiterava uma vez mais quais eram as qualidades do humanismo de Dante: «Em Dante, todos os valores humanos (intelectuais, morais, afetivos, culturais, civis) são reconhecidos, exaltados; e é muito importante notar que este apreço e honra se verificam enquanto ele mergulha no divino, quando a contemplação teria podido anular os elementos terrenos». Daí, afirmava o Papa, nasce – e justamente – o apelativo de Sumo Poeta e o atributo de divina dado à Comédia, bem como a proclamação de Dante como «senhor do altíssimo canto», no incipit da própria Carta Apostólica.

Além disso, avaliando as qualidades artísticas e literárias extraordinárias de Dante, Paulo VI reiterava um princípio por ele afirmado muitas outras vezes. «A teologia e a filosofia têm com a beleza ainda outra relação, e é esta: a beleza, ao emprestar à doutrina o seu vestido e ornamento, com a suavidade do canto e a visibilidade da arte figurativa e plástica, abre a estrada para os seus preciosos ensinamentos chegarem a muitos. As pesquisas profundas, os raciocínios subtis resultam inacessíveis aos humildes, que são uma multidão, e famintos também eles do pão da verdade. Entretanto estes percebem, sentem e apreciam o influxo da beleza e, por este veículo, brilha mais facilmente para eles a verdade e nutre-os. Bem o compreendeu e realizou o senhor do altíssimo canto, cuja beleza se tornou serva da bondade e da verdade, e a bondade matéria da beleza». Por fim, citando a Divina Comédia, Paulo VI exortava a todos: «Honrai agora o altíssimo poeta» (Inf. IV, 80).

De São João Paulo II, que repetidamente citou nos seus discursos as obras do insigne Poeta, quero lembrar apenas a intervenção de 30 de maio de 1985 na inauguração da Exposição Dante no Vaticano. Como Paulo VI, também ele destacou a sua genialidade artística: a obra de Dante é interpretada como «uma realidade visualizada, que fala da vida do além-túmulo e do mistério de Deus com a força própria do pensamento teológico, transfigurado pelo esplendor da arte e da poesia, simultaneamente conjuntas». Depois o Pontífice deteve-se a examinar um termo chave da obra de Dante: «“transumanar”, ultrapassar o humano. Foi este o esforço supremo de Dante: fazer que o peso do humano não destruísse o divino que existe em nós, nem a grandeza do divino anulasse o valor do humano. Por esta razão, o Poeta leu justamente a própria vicissitude pessoal e a da inteira humanidade em chave teológica».

Bento XVI falou frequentemente do itinerário de Dante, tirando das suas obras tópicos de reflexão e meditação. Por exemplo, ao apresentar a sua primeira Encíclica – a Deus caritas est –, partiu precisamente da visão de Deus que tinha Dante e na qual «luz e amor são uma coisa só», para propor novamente uma sua reflexão sobre a novidade da obra de Dante: «O olhar de Dante vislumbra uma coisa totalmente nova (…). A Luz eterna apresenta-se em três círculos aos quais se dirige com estes versos densos que conhecemos: “Luz eterna que só tens sede em ti, / e a ti entendes, e por ti intelecta / e entendente, te amas, ris assi!” (Par. XXXIII, 124-126). Na realidade, ainda mais impressionante que esta revelação de Deus como círculo trinitário de conhecimento e amor é a perceção dum rosto humano – o rosto de Jesus Cristo – que aparece a Dante no círculo central da Luz. (…) Este Deus tem um rosto humano e – podemos acrescentar – um coração humano».[6] O Papa destacou a originalidade da visão de Dante na qual se comunica poeticamente a novidade da experiência cristã, decorrente do mistério da Encarnação: «A novidade dum amor que impeliu Deus a assumir um rosto humano; mais, a assumir carne e sangue, o ser humano inteiro».[7]

Por minha vez, na primeira Encíclica,[8] fiz referência a Dante para expressar a luz da fé, citando um verso do Paraíso onde ela é descrita como «a cintila / que se dilata em chama então vivaz, / e qual astro no céu, em mim rutila» (Par. XXIV, 145-147). Pelos 750 anos do nascimento do Poeta, quis honrar a sua memória com uma mensagem, almejando que «a figura de Alighieri e a sua obra sejam novamente compreendidas e valorizadas»; e propunha que se lesse a Divina Comédia como «um grande itinerário, aliás como uma verdadeira peregrinação, tanto pessoal e interior, como comunitária, eclesial, social e histórica»; com efeito, «ela representa o paradigma de cada viagem autêntica para a qual a humanidade está chamada a abandonar a terra que Dante define “a jeira que nos torna tão ferozes” (Par. XXII, 151), para chegar a uma nova condição, marcada pela harmonia, a paz, a felicidade».[9] Por isso, apresentei a figura do insigne Poeta aos nossos contemporâneos, propondo-o como «profeta de esperança, anunciador da possibilidade de resgate, da libertação, da mudança profunda de cada homem e mulher, de toda a humanidade».[10]

Por fim, no dia 10 de outubro de 2020, ao receber a Delegação da Arquidiocese de Ravena-Cervia por ocasião da abertura do Ano de Dante e anunciar este documento, sublinhei como a obra de Dante pode ainda hoje enriquecer a mente e o coração de muitos, sobretudo jovens, que, abeirando-se da sua poesia «numa forma acessível a eles, constatam, por um lado, inevitavelmente toda a distância do autor e do seu mundo; mas, por outro, captam uma ressonância surpreendente».[11]

2. A vida de Dante Alighieri, paradigma da condição humana

Com esta Carta Apostólica, desejo também eu abeirar-me da vida e obra do ilustre Poeta, para captar precisamente esta ressonância, manifestando tanto a atualidade como a sua perenidade, e recolher aquelas advertências e reflexões que ainda hoje são essenciais não apenas para os crentes mas para toda a humanidade. Com efeito, a obra de Dante é parte integrante da nossa cultura, remete-nos para as raízes cristãs da Europa e do Ocidente, representa o património de ideais e valores que também hoje a Igreja e a sociedade civil propõem como base da convivência humana, na qual podemos e devemos reconhecer-nos todos irmãos. Sem me embrenhar na complexa história pessoal, política e judiciária de Alighieri, gostaria de lembrar apenas alguns momentos e factos da sua existência, pelos quais ele aparece extraordinariamente próximo de muitos dos nossos contemporâneos e que são essenciais para compreender a sua obra.

À cidade de Florença, onde nasceu em 1265 e se casou com Gema Donati gerando quatro filhos, esteve primeiramente ligado por um forte sentimento de pertença, o qual, por causa de dissensões políticas, com o tempo se transformou em aberto contraste. Contudo nunca morreu nele o desejo de lá regressar, não só pelo afeto que continuou em todo o caso a nutrir pela sua cidade, mas sobretudo para ser coroado poeta lá onde recebera o Batismo e a fé (cf. Par. XXV, 1-9). No cabeçalho de algumas das suas Cartas (III, V, VI e VII), Dante define-se como «florentinus et exul inmeritus – florentino imerecido no exílio», enquanto na carta XIII, dirigida a Cangrande della Scala, especifica «florentinus natione non moribus – florentino de nascimento, não de costumes». Guelfo da fação branca, vê-se envolvido no conflito entre Guelfos e Gibelinos, entre Guelfos brancos e negros, e depois de ter ocupado cargos públicos cada vez mais importantes até se tornar Prior, em 1302, devido às vicissitudes políticas adversas, é exilado por dois anos, banido dos cargos públicos e condenado ao pagamento duma multa. Dante rejeita a sentença, em sua opinião injusta, e o julgamento contra ele torna-se ainda mais severo: exílio perpétuo, confiscação dos bens e pena de morte em caso de regresso à terra natal. Assim começa a dolorosa história de Dante, que tenta em vão poder regressar à sua amada Florença, pela qual lutara com paixão.

Torna-se assim o exilado, o «peregrino pensativo», caído numa condição de «penosa pobreza» (Convívio, I, III, 5) que o impele a procurar refúgio e proteção junto de alguns suseranos locais, entre os quais os Scaligeri de Verona e os Malaspina na Lunigiana. Nas palavras de Cacciaguida, antepassado do Poeta, intuem-se a amargura e o desconforto desta nova condição: «Deixarás toda a cousa que é dileta / mais caramente; e este é dardo tal / que o arco do exílio antes projeta. / Tu provarás assim sabor a sal / do alheio pão e como é duro mal / se desça escada alheia ou já se escale» (Par. XVII, 55-60).

Depois, não aceitando as condições humilhantes da amnistia que lhe teria permitido o regresso a Florença, em 1315 foi de novo condenado à morte, desta vez, juntamente com os seus filhos adolescentes. A última etapa do seu exílio foi Ravena, onde foi acolhido por Guido Novello da Polenta, e lá faleceu – regressava duma missão a Veneza – aos 56 anos, na noite de 13 para 14 de setembro de 1321. A sua sepultura num sarcófago em São Pedro Maior, por trás do muro externo do antigo claustro franciscano, foi posteriormente transferida para a adjacente Capela do século XVIII, onde em 1865, depois de atribuladas vicissitudes, foram colocados os seus restos mortais. O lugar é ainda hoje meta de inúmeros visitantes e admiradores do insigne Poeta, pai da língua e literatura italianas.

No exílio, o amor à sua cidade, traído pelos «celerados florentinos» (Epist. VI, 1), transformou-se em triste saudade. A profunda desilusão pela queda dos seus ideais políticos e civis, juntamente com a penosa peregrinação duma cidade para outra à procura de refúgio e apoio não são alheias à sua obra literária e poética; pelo contrário, constituem a sua raiz essencial e a motivação de fundo. Quando Dante descreve os peregrinos que se põem a caminho para visitar os lugares sagrados, de certo modo descreve a sua condição existencial e manifesta os seus sentimentos mais íntimos: «Oh peregrinos que partis pensativos...» {Vita Nova, 29 [XL (XLI), 9], v. 1}. O motivo reaparece mais vezes, por exemplo nestes versos do Purgatório: «Como romeiros pensativos lançam, / cruzando pela via gente ignota, / apenas um olhar e não descansam» (XXIII, 16-18). A pungente melancolia de Dante peregrino e exilado adivinha-se também nos famosos versos do canto VIII do Purgatório: «Era hora em que a saudade aos navegantes / regressa e os enternece já de cor / o adeus a amigos doces dito antes» (VIII, 1-3).

Dante, refletindo profundamente sobre a sua situação pessoal de exílio, incerteza radical, fragilidade, mobilidade contínua, transforma-a, sublimando-a, num paradigma da condição humana, que se apresenta como um caminho – mais interior que exterior – sem paragem alguma enquanto não atingir a meta. Deparamo-nos, assim, com dois temas fundamentais de toda a obra de Dante: o ponto de partida de todo o itinerário existencial, o desejo, presente no ânimo humano, e o ponto de chegada, a felicidade, dada pela visão do Amor que é Deus.

O insigne Poeta, embora atravessando vicissitudes dramáticas, tristes e angustiantes, nunca se resigna, não sucumbe, nem aceita suprimir a ânsia de plenitude e felicidade que está no seu coração, e muito menos se resigna a ceder à injustiça, à hipocrisia, à arrogância do poder, ao egoísmo que faz do nosso mundo «a jeira que nos torna tão ferozes» (Par. XXII, 151).

3. A missão do Poeta, profeta de esperança

Deste modo, relendo a sua vida sobretudo à luz da fé, Dante descobre também a vocação e a missão que lhe foram confiadas, de modo que, paradoxalmente, de homem aparentemente falido e desiludido, pecador e desanimado, transforma-se em profeta de esperança. Na Carta a Cangrande della Scala, com extraordinária nitidez, deixa claro o objetivo da sua obra, que se concretiza e explicita, já não através de ações políticas ou militares, mas graças à poesia, à arte da palavra que, dirigida a todos, tudo pode mudar: «É preciso dizer brevemente que a finalidade do todo e da parte é tirar os viventes nesta existência dum estado de miséria e conduzi-los a um estado de felicidade» [XIII, 39 (15)]. Tal finalidade desencadeia um caminho de libertação de todas as formas de miséria e degradação humanas (a «selva escura») e simultaneamente aponta para a meta derradeira: a felicidade, entendida quer como plenitude de vida na história quer como bem-aventurança eterna em Deus.

Desta dupla finalidade, deste audacioso programa de vida, Dante é mensageiro, profeta e testemunha, confirmado na sua missão por Beatriz: «Por isso, em prol do mundo que mal vive, / ao carro põe os olhos e o que vês / lá regressado, a tua escrita o arquive» (Purg. XXXII, 103-105). Também o seu antepassado Cacciaguida o exorta a não desfalecer na sua missão. Ao Poeta, que recorda brevemente o seu caminho nos três reinos do Além e assinala a dificuldade de comunicar as verdades que doem e incomodam, o ilustre antepassado responde: «… A consciência fusca / ou já da própria ou de alheia vergonha / bem sentirá tua palavra brusca. / E tu porém, sem que a mentir se ponha, / toda tua visão faz manifesta; / e deixa que se cocem onde hão ronha» (Par. XVII, 124-129). Um idêntico incitamento a viver com coragem a sua missão profética é dirigido a Dante, no Paraíso, por São Pedro, quando o Apóstolo, depois duma tremenda invetiva contra Bonifácio VIII, se dirige ao Poeta desta forma: «E tu, filho, que voltarás aonde o / mortal peso há de pôr-te, abre a boca, / e não escondas o que eu não escondo» (Par. XXVII, 64-66).

Assim, na missão profética de Dante, inserem-se também a denúncia e a crítica contra os crentes, tanto Pontífices como simples fiéis, que atraiçoam a adesão a Cristo e transformam a Igreja num instrumento em prol dos próprios interesses, esquecendo o espírito das Bem-aventuranças e a caridade para com os pequenos e os pobres e idolatrando o poder e a riqueza: «Que quanto a Igreja guarda, é atributo / todo da gente que por Deus demande; / não de parentes nem de outro mais bruto» (Par. XXII, 82-84). Mas, através das palavras de São Pedro Damião, São Bento e São Pedro, o Poeta, ao mesmo tempo que denuncia a corrupção dalguns setores da Igreja, faz-se porta-voz de uma renovação profunda e invoca a Providência para que a favoreça e torne possível: «Mas a alta providência, que a Cipião / foi a romana glória nas mãos pondo, / cedo virá, em minha conceção» (Par. XXVII, 61-63).

E assim Dante exilado, peregrino, frágil, mas agora forte pela profunda e íntima experiência que o transformou, renascido graças à visão que, das profundezas dos infernos, da mais degradada condição humana, o elevou à própria visão de Deus, ascende a mensageiro duma nova existência, a profeta duma nova humanidade que anseia pela paz e a felicidade.

4. Dante cantor do desejo humano

Dante é capaz de ler o coração humano em profundidade; e em todos, mesmo nas figuras mais abjetas e molestas, consegue vislumbrar uma cintila de desejo de alcançar alguma felicidade, uma plenitude de vida. Detém-se a escutar as almas que encontra, dialoga com elas, interpela-as para se adentrar e participar nos seus tormentos ou na sua beatitude. Assim, partindo da sua condição pessoal, o Poeta faz-se intérprete do desejo que todo o ser humano tem de continuar o caminho enquanto não chegar ao destino final, não encontrar a verdade, a resposta aos porquês da existência, enquanto o coração – como já afirmava Santo Agostinho[12] – não encontrar repouso e paz em Deus.

No Convívio, analisa precisamente o dinamismo do desejo. «O desejo supremo de todas as coisas, conferido de início pela natureza, é retornar ao seu princípio. E como Deus é princípio das nossas almas, (...) a alma deseja intensamente retornar a Ele. E como um peregrino, que segue um caminho nunca antes percorrido por ele – quando avista de longe uma casa espera que seja a hospedaria, acabando depois por verificar que não o é, então deposita a sua esperança noutra e assim, de casa em casa, até encontrar finalmente a hospedaria –, a nossa alma, ansiosa por ter entrado no novo e nunca percorrido caminho desta vida, dirige o olhar para a meta do seu bem supremo, acreditando encontrá-lo em tudo o que vê e lhe parece ter em si algum bem» (IV, XII, 14-15).

O itinerário de Dante, ilustrado sobretudo na Divina Comédia, é verdadeiramente o caminho do desejo, da necessidade profunda e interior de mudar a sua própria vida para poder alcançar a felicidade e, assim, mostrar a estrada a quem se encontra, como ele, numa «selva escura» e perdeu «a direita via». Além disso, é significativo que, desde a primeira etapa deste percurso, o seu guia – o grande poeta latino Virgílio – lhe indique a meta aonde deve chegar, incitando-o a não ceder ao medo nem ao cansaço: «Mas porque volves ao ansioso enleio? / Porque não vais ao deleitoso monte / que é razão da alegria e dela cheio?» (Inf. I, 76-78).

5. Poeta da misericórdia de Deus e da liberdade humana

Trata-se de um caminho que não é ilusório nem utópico, mas realista e possível, onde todos podem entrar, porque a misericórdia de Deus oferece sempre a possibilidade de mudar, converter-se, encontrar-se a si mesmo e encontrar a via para a felicidade. A propósito, são significativos alguns episódios e personagens da Divina Comédia, que mostram como tal via não esteja vedada a ninguém na terra; exemplo disso é o imperador Trajano, pagão mas colocado no Paraíso. Dante justifica esta presença assim: «Regnum coelorum a violência há de / sofrer de quente amor, viva esperança, / que vence assim a divinal vontade; / não de homem que homem a vencer se lança, / mas vence-a, pois quer ela ser vencida, / para vencer então benigna e mansa» (Par. XX, 94-99). O gesto de caridade de Trajano para com uma «viúva» (Par. XX, 45) ou a «lagrimeta» de arrependimento derramada à hora da morte pelo Buonconte de Montefeltro (Purg. V, 107) não só mostram a infinita misericórdia de Deus, mas confirmam também que o ser humano pode sempre, com a sua liberdade, escolher qual caminho seguir e qual sorte merecer.

Sob esta luz, é significativo o rei Manfredo, colocado por Dante no Purgatório e que assim recorda o seu fim e a sentença divina: «Depois que se rompeu minha pessoa / de feridas mortais, eu me rendi, / chorando, a quem de bom grado perdoa. / Eu horríveis pecados cometi; / mas bondade infinita tanto abraça / que quem se a ela volta aceitar vi» (Purg. III, 118-123). Parece quase vislumbrar-se a figura do pai da parábola evangélica, com os braços abertos pronto a acolher o filho pródigo que volta para ele (cf. Lc 15, 11-32).

Dante faz-se paladino da dignidade de todo o ser humano e da liberdade como condição fundamental tanto das opções de vida como da própria fé. O destino eterno do homem – sugere Dante ao narrar-nos as histórias de tantas personagens, ilustres ou pouco conhecidas – depende das suas escolhas, da sua liberdade: os próprios gestos diários, aparentemente insignificantes, têm um alcance que se estende para além do tempo, são projetados na dimensão eterna. O maior dom de Deus ao homem, para que possa alcançar a meta última, é precisamente a liberdade, como afirma Beatriz: «O maior dom que Deus em tal largueza / já fez criando e à sua bondade / mais conformado e esse que mais preza, / foi ter-se de vontade liberdade» (Par. V, 19-22). Não são afirmações retóricas e vagas, visto que brotam da existência de quem conhece o preço da liberdade: «Liberdade ele busca, que é tão cara, / e sabe-o quem por ela a vida enjeita» (Purg. I, 71-72).

Mas a liberdade – lembra-nos Alighieri – não é fim em si mesma; é condição para subir continuamente. E o percurso nos três reinos ilustra-nos plasticamente esta subida até tocar o Céu, alcançar a plena felicidade. O «alto desejo» (Par. XXII, 61), suscitado pela liberdade, não pode extinguir-se senão em presença da meta, na visão última e na bem-aventurança: «E eu que ao termo da ânsia toda vi / me aproximava, tal como devia, / o fim de tal ardor em mi senti» (Par. XXXIII, 46-48). Depois o desejo faz-se também oração, súplica, intercessão, canto que acompanha e assinala o itinerário de Dante, tal como a oração litúrgica cadencia as horas e os momentos da jornada. A paráfrase do Pai Nosso, que o Poeta propõe (cf. Purg. XI, 1-21), entrelaça o texto do Evangelho com a experiência pessoal, com as suas dificuldades e sofrimentos: «Venha a nós do teu reino assim tamanho / a paz, que só por nós não vamos ter (…). Dá-nos hoje a maná quotidiana, / sem a qual por este áspero deserto, / atrás vai quem avante mais se afana» (7-8.13-15). A liberdade de quem acredita em Deus como Pai misericordioso não pode senão confiar-se a Ele na oração, não sendo por isso minimamente lesada, mas antes reforçada.

6. A imagem do homem na visão de Deus

No itinerário da Divina Comédia, como já sublinhava o Papa Bento XVI, o caminho da liberdade e do desejo não traz consigo – como porventura se poderia imaginar – uma redução do humano na sua realidade concreta, não aliena a pessoa de si mesma, não anula nem negligencia o que constituiu a sua existência histórica. Com efeito, mesmo no Paraíso, Dante representa os bem-aventurados – as «alvas» (Par. XXX, 129) – no seu aspecto corpóreo, evoca os seus afetos e emoções, os seus olhares e gestos, em resumo, mostra-nos a humanidade na sua perfeição completa de alma e corpo, prefigurando a ressurreição da carne. São Bernardo, que acompanha Dante no último trecho do caminho, mostra ao Poeta as crianças presentes na rosa dos bem-aventurados e convida-o a observá-las e ouvi-las: «Dos rostos podes vê-lo se os perscrutas / e também pelas vozes pueris, / se já os bem contemplas e os escutas» (Par. XXXII, 46-48). Resulta comovente ver como esta manifestação dos bem-aventurados na sua luminosa humanidade integral é motivada não só por sentimentos de afeto pelos seus entes queridos, mas sobretudo pelo desejo explícito de voltar a ver os seus corpos, as feições terrenas: «Seus corpos desejando antes da morte; / talvez não só por si, mas pela mãe, / pelo pai, pelos mais que cada amava, / antes de eterna chama ser também» (Par. XIV, 63-66).

E, finalmente, no centro da visão última, no encontro com o Mistério da Santíssima Trindade, Dante vislumbra precisamente um Rosto humano, o de Cristo, da Palavra eterna feita carne no seio de Maria: «E na profunda e clara subsistência / do alto lume três círculos vi vir / de três cores e de uma continência (...). Nessa circulação, que assim concepta / parecia em ti lume refletido, / dos olhos meus um pouco circunspecta, / dentro de si, do próprio colorido, / me apareceu pintada nossa efígie» (Par. XXXIII 115-117.127-131). Só na visão de Deus se aplaca o desejo do homem, e termina todo o seu fatigoso caminho: «Então a mente me era percutida / por um fulgor em que seu querer veio. / Foi a alta fantasia aqui colhida» (Par. XXXIII, 140-142).

O mistério da Encarnação, que hoje celebramos, é o verdadeiro centro inspirador e o núcleo essencial de todo o poema. Nele realiza-se o que os Padres da Igreja chamavam «divinização», admirabile commercium – o prodigioso intercâmbio, pelo qual, ao mesmo tempo que Deus entra na nossa história fazendo-Se carne, o ser humano, com a sua carne, pode entrar na realidade divina, simbolizada pela rosa dos bem-aventurados. A humanidade, na sua realidade concreta, com os gestos e as palavras diárias, com a sua inteligência e afetos, com o corpo e as emoções, é assumida em Deus, no Qual encontra a verdadeira felicidade e a realização plena e última, meta de todo o seu caminho. Dante havia desejado e previsto esta meta no início do Paraíso: «Mais o desejo aceso então surgiu / de ver aquela essência em que se vê / como nossa natura e Deus se uniu. / Lá se verá o que se tem por fé, / não demonstrado, mas por si é noto / qual verdade primeira que o homem crê» (Par. II, 40-45).

7. As três mulheres da Divina Comédia: Maria, Beatriz, Luzia

Cantando o mistério da Encarnação, fonte de salvação e alegria para toda a humanidade, Dante não pode deixar de cantar os louvores de Maria, a Virgem Mãe que, com o seu «sim», com a sua aceitação plena e total do projeto de Deus, torna possível que o Verbo Se faça carne. Na obra de Dante, encontramos um tratado estupendo de mariologia: com acentuações líricas sublimes, particularmente na oração pronunciada por São Bernardo, sintetiza toda a reflexão teológica sobre Maria e a sua participação no mistério de Deus: «Virgem e mãe, que és filha de teu filho, / humilde e alta mais que criatura, / de eterno querer termo fixo e brilho, / aquela és que a humanal natura / tanto nobilitaste, que o fator / não desdenhou fazer de si feitura» (Par. XXXIII, 1-6). O oximoro inicial e a sucessão de termos antitéticos destacam a originalidade da figura de Maria, a sua beleza singular.

São Bernardo, mostrando os bem-aventurados colocados na rosa mística, convida Dante a contemplar Maria, que deu as feições humanas ao Verbo Encarnado: «Contempla agora a face tal que a Cristo / mais se assemelha, pois sua clareza / só te pode dispor a veres Cristo» (Par. XXXII, 85-87). O mistério da Encarnação é de novo evocado pela presença do Arcanjo Gabriel. Dante pergunta a São Bernardo: «Quem é esse anjo em tão festivo jogo / que na nossa rainha o olhar atina, / e tão enamorado é quase fogo?» (Par. XXXII, 103-105). E o Santo responde: «Ele é esse que levou a palma / lá a Maria quando o Filho de Deus / quis carregar com toda a nossa xalma» (Par. XXXII, 112-114). A referência a Maria é constante em toda a Divina Comédia. Ao longo do percurso no Purgatório, é o modelo das virtudes que se opõem aos vícios; é a estrela da manhã que ajuda a sair da selva escura para se encaminhar rumo ao monte de Deus; é a presença constante, através da sua invocação («Nome da bela flor que sempre rogo, / manhã e tarde, …»: Par. XXIII, 88-89), que prepara para o encontro com Cristo e com o mistério da Deus.

Dante, que nunca está sozinho no seu caminho, mas se deixa guiar primeiro por Virgílio, símbolo da razão humana, e depois por Beatriz e São Bernardo, agora, graças à intercessão de Maria, pode chegar à pátria e gozar a alegria plena desejada em cada momento da existência: «… e ainda me distila / ao coração dulçor que lhe começa» (Par. XXXIII, 62-63). Não nos salvamos sozinhos (parece repetir-nos o Poeta, consciente da sua insuficiência): «Por mim próprio não venho» (Inf. X, 61); é necessário que o caminho seja empreendido em companhia de quem nos possa apoiar e guiar com sabedoria e prudência.

Neste contexto, resulta significativa a presença feminina. No início do fatigoso itinerário, Virgílio – o primeiro guia – conforta e encoraja Dante a prosseguir, porque três mulheres intercedem por ele e o hão de guiar: Maria, a Mãe de Deus, figura da caridade; Beatriz, símbolo de esperança; Santa Luzia, imagem da fé. Com palavras comoventes, assim se apresenta Beatriz: «Eu sou Beatriz, ora a fazer-te andar; / do lugar venho a que voltar pretendo, / e amor me move, que me faz falar» (Inf. II, 70-72), afirmando que a única fonte que nos pode dar a salvação é o amor, o amor divino que transfigura o amor humano. Depois Beatriz remete para a intercessão doutra mulher, a Virgem Maria: «Uma gentil senhora no céu plange / o impedimento a que enviar-te entendo, / e o mais duro juízo assim confrange» (Inf. II, 94-96). Depois intervém Luzia, que se dirige a Beatriz: «Beatriz, divina loa verdadeira, / pois não socorrerás quem te amou tanto, / que abandonou por ti vulgar fileira?» (Inf. II, 103-105). Dante reconhece que somente quem é movido pelo amor pode verdadeiramente apoiar-nos no caminho e levar-nos à salvação, ao renovamento da vida e, consequentemente, à felicidade.

8. Francisco, esposo da senhora Pobreza

Na cândida rosa dos bem-aventurados, em cujo centro brilha a figura de Maria, Dante coloca também numerosos santos, cuja vida e missão esboça, para os propor como figuras que, na realidade concreta da sua existência e mesmo através de numerosas provações, alcançaram a finalidade da sua vida e da sua vocação. Mencionarei brevemente apenas a figura de São Francisco de Assis, ilustrada no canto XI do Paraíso, onde se fala dos espíritos sapientes.

Existe uma profunda sintonia entre São Francisco e Dante: o primeiro, juntamente com os seus companheiros, saiu do convento e foi para o meio do povo, pelas estradas de aldeias e cidades, pregando ao povo, parando nas casas; o segundo fez a escolha, então incompreensível, de usar no grande poema do Além a linguagem de todos e povoando a sua narração com personagens conhecidos e menos conhecidos, mas completamente iguais em dignidade aos poderosos da terra. Outro traço une os dois personagens: a abertura à beleza e ao valor do mundo das criaturas, espelho e «vestígio» do seu Criador. Como não reconhecer nestes versos da paráfrase de Dante ao Pai-Nosso – «sejas louvado em nome e em valor / por toda a criatura…» (Purg. XI, 4-5) – uma referência ao Cântico das Criaturas de São Francisco?

No canto XI do Paraíso, essa consonância aparece com um novo aspecto, que os torna ainda mais semelhantes. A santidade e a sabedoria de Francisco sobressaem precisamente porque Dante, olhando do céu a nossa terra, vislumbra a tacanhez de quem confia nos bens terrenos: «Ó cuidar insensato dos mortais, / por quantos defetivos silogismos / fazem que asas ao fundo a dar tu vais!» (Par. XI, 1-3). Toda a história ou, melhor, a «vida admirável» do santo assenta sobre a sua relação privilegiada com a senhora Pobreza: «Mas por que eu não pareça assaz escuso, / Francisco e a Pobreza por amantes / entendas ora em meu falar difuso» (Par. XI, 73-75). No canto de São Francisco, recordam-se os momentos salientes da sua vida, as suas provações e por fim o acontecimento no qual a sua configuração a Cristo, pobre e crucificado, encontra a sua extrema, divina confirmação na marca dos estigmas: «Porque de mais azeda já observa / a gente à fé, por não ficar em vão, / ao fruto regressou da ítala erva, / e entre Arno e Tibre em cru penedo então / foi ter de Cristo o último sigilo, / que dois anos seus membros levarão» (Par. XI, 103-108).

9. Acolher o testemunho de Dante Alighieri

No final deste olhar sintético à obra de Dante Alighieri, uma mina quase infinita de conhecimentos, experiências, considerações em todos os campos da pesquisa humana, impõe-se uma reflexão. A riqueza de figuras, narrações, símbolos, imagens sugestivas e atraentes que Dante nos propõe suscita certamente admiração, maravilha, gratidão. Nele podemos quase entrever um precursor da nossa cultura multimediática, na qual palavras e imagens, símbolos e sons, poesia e dança se fundem numa única mensagem. Assim se compreende por que o seu poema tenha inspirado a criação de inúmeras obras de arte de todo o género.

Mas a obra do insigne Poeta suscita também alguns desafios para os nossos dias. Que poderá ela comunicar-nos, no nosso tempo? Terá ainda algo a dizer-nos, a oferecer-nos? Terá a sua mensagem alguma função a desempenhar também para nós na atualidade? Poderá ainda interpelar-nos?

Hoje Dante – tentemos fazer-nos intérpretes da sua voz – não nos pede para ser simplesmente lido, comentado, estudado, analisado. Pede-nos sobretudo para ser escutado, ser de certo modo imitado, fazer-nos seus companheiros de viagem, porque quer-nos mostrar também hoje qual é o itinerário para a felicidade, a direita via para viver plenamente a nossa humanidade, superando as selvas escuras onde perdemos a orientação e a dignidade. A viagem de Dante e a sua visão da vida além da morte não são simplesmente objeto duma narração, não constituem apenas um acontecimento pessoal, embora excecional.

Se Dante conta tudo isto (e fá-lo de maneira admirável), usando a linguagem vulgar do povo, a língua que todos podiam compreender, elevando-a a língua universal, é porque tem uma mensagem importante a transmitir-nos, uma palavra que quer tocar o nosso coração e a nossa mente, destinada a transformar-nos e mudar-nos já agora, nesta vida. É uma mensagem que pode e deve tornar-nos plenamente conscientes daquilo que somos e daquilo que vivemos dia após dia na tensão interior e contínua para a felicidade, para a plenitude da existência, para a pátria última onde estaremos em plena comunhão com Deus, Amor infinito e eterno. Embora Dante seja um homem do seu tempo e possua sensibilidade diferente da nossa em alguns assuntos, todavia o seu humanismo é ainda válido e atual e pode certamente constituir um ponto de referência para aquilo que queremos construir no nosso tempo.

Por isso, aproveitando esta ocasião propícia do centenário, é importante que a obra de Dante seja dada a conhecer ainda melhor e de maneira mais adequada, isto é, seja tornada acessível e atraente não só para alunos e estudiosos, mas também para todos aqueles que, ansiosos por dar resposta às questões interiores, desejosos de realizar em plenitude a sua existência, querem viver o seu itinerário de vida e de fé de forma consciente, acolhendo e vivendo com gratidão o dom e o compromisso da liberdade.

Congratulo-me naturalmente com os professores que são capazes de comunicar com paixão a mensagem de Dante, introduzir no tesouro cultural, religioso e moral contido nas suas obras. Mas este património pede para ser tornado acessível fora das aulas das escolas e universidades.

Exorto as comunidades cristãs, sobretudo as estabelecidas nas cidades que conservam as memórias de Dante, as instituições académicas, as associações e os movimentos culturais a promoverem iniciativas visando o conhecimento e a difusão da mensagem de Dante na sua plenitude.

De maneira particular encorajo os artistas a dar voz, rosto e coração, a dar forma, cor e som à poesia de Dante, ao longo da via da beleza que ele percorreu magistralmente; e assim comunicar as verdades mais profundas e, com as linguagens próprias da arte, difundir mensagens de paz, liberdade, fraternidade.

Neste momento histórico particular, marcado por muitas sombras, por situações que degradam a humanidade, por falta de confiança e de perspectivas para o futuro, a figura de Dante, profeta de esperança e testemunha do desejo humano de felicidade, pode ainda dar-nos palavras e exemplos que estimulam o nosso caminho. Pode ajudar-nos a avançar, com serenidade e coragem, na peregrinação da vida e da fé que todos somos chamados a realizar até o nosso coração encontrar a verdadeira paz e a verdadeira alegria, até chegarmos à meta última de toda a humanidade, «o amor que move o sol e as mais estrelas» (Par. XXXIII, 145).

Vaticano, na solenidade da Anunciação do Senhor, 25 de março do ano de 2021, nono do meu pontificado.

Francisco

Notas:

[*] Usou-se a tradução portuguesa da obra bilingue de VASCO GRAÇA MOURA, A Divina Comédia de Dante Alighieri, Bertrand Editora – Venda Nova, 52000.

[1] Carta enc. In praeclara summorum (30 de abril de 1921): AAS 13 (1921), 209-217

[2] Cf. ibidemo. c. 210

[3] Epistola Nobis, ad Catholicam (28 de outubro de 1914): AAS 6 (1914), 540.

[4] Discurso ao Sacro Colégio e à Prelatura Romana (23 de dezembro de 1965): AAS 58 (1966), 80

[5] Cf. AAS 58 (1966), 22-37.

[6] Discurso aos participantes no Encontro promovido pelo Pontifício Conselho «Cor Unum» (23 de janeiro de 2006): Insegnamenti 2006, II/1, 92-93.

[7] Ibidemo. c., 93.

[8] Cf. Carta enc. Lumen fidei (29 de junho de 2013), 4: AAS 105 (2013), 557.

[9] Mensagem ao Presidente do Pontifício Conselho para a Cultura (4 de maio de 2015): AAS 107 (2015), 551-552.

[10] Ibidemo. c., 552.

[11] L’Osservatore Romano (10 de outubro de 2020), 7.

[12] Cf. Confissões, I, 1, 1: PL 32, 661.

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