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Lista de Livros Clássicos, segundo o Instituto Hugo de São Vitor

Um bom livro - Walther Firle

Continuando nossas listas de livros, temos uma excelente que foi retirada do livro Coleção de Artes Liberais Vol. 2: Gramática do Instituto Hugo de São Vitor, 2020. Estes livros moldaram e formaram a Civilização Ocidental. Recomendo fortemente que leia também as lições (contida no vol. 2 do livro citado) que estão diretamente atreladas a esta lista. Essas lições trazem consigo comentários e justificativas para leitura de tais livros.

Abaixo segue algumas listas já publicadas.

Lista de livros sobre a Educação verdadeira - parte 1

Lista de livros sobre a Educação verdadeira - parte 2

Lista de livros sobre a Educação verdadeira - parte 3

Lista de livros sobre a Educação verdadeira - parte 4

Livros para aprender bem Matemática


1. Os Lusíadas, de Luiz Vaz de Camões.

2. Ilíada, de Homero. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 

3. Odisseia, de Homero. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 

4. Eneida, de Virgílio. Tradução de Carlos Alberto Nunes.

5. O Mundo de Homero, de Andrew Lang.

6. A Teogonia e Os Trabalhos e os Dias, Hesíodo.

7. História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides.

8. Fábulas, de Esopo

9. Contos dos Irmãos Grimm.

10. Sete contra Tebas, de Ésquilo.

11. Édipo Rei, de Sófocles.

12. As Bacantes, de Eurípedes.

13. Trilogia das Barcas, de Gil Vicente.

14. Divina Comédia, de Dante Alighieri.

15. Confissões, de Santo Agostinho.

16. Dom Casmurro, de Machado de Assis.

17. Quincas Borba, de Machado de Assis.

18. Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.

19. Metamorfoses, de Ovídio.

20. As Odes, de Horário.

21. Gênesis em latim e em português, livro da Bíblia.

22. Salmos, livro da Bíblia.

23. Rimas, de Luiz Vaz de Camões.

24. As Poesias Satíricas, de Gregório de Matos.

25. Segundo volume das obras de Manuel Maria Barbosa Du Bocage, editado por Theophilo Braga.

26. Mensagem, de Fernando Pessoa.

27. A Cinza das Horas, de Manuel Bandeira.

28. Os Escravos, de Castro Alves.

29. Últimos Cantos, de Gonçalves Dias.

30. Evangelho segundo Mateus, livro da Bíblia.

31. Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto.

32. Folhas Caídas, de Almeida Garret.

33. Rei Lear, de William Shakespeare.

34. Dom Quixote, de Miguel Cervantes.

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Leia mais em O que é educação clássica

Leia mais em A Educação em Ilíada e Odisseia

Leia mais em Matemática Sagrada na Divina Comédia de Dante



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Carlos Magno e a expansão da Educação Clássica

Imperador Carlos Magno
- Albrecht Dürer, 1512

30 min de leitura.

Carlos Magno e os Pilares da Civilização Ocidental por Thiago Brum Teixeira.

Ao longo da história da humanidade surgem de tempos em tempos luzes e inspirações que fecundam a cultura e a promove a patamares mais altos. Dentre os maiores desenvolvimentos culturais que impactaram de forma positiva e decisiva o curso dos acontecimentos da civilização ocidental até os dias de hoje, figuram com destaque especial o judaísmo, a filosofia grega, o direito romano e o cristianismo. Carlos Magno, considerado o Pai da Europa, tem papel fundamental na conservação desses pilares da Civilização Ocidental.

A Grécia da antiguidade, local de passagem de viajantes e encontros de culturas, recebeu por herança influências de diversos povos, como hebreus, árabes, egípcios, mesopotâmios e hindus e, foi terreno fértil para o florescimento de uma cultura das mais ricas que já se teve notícia, constituída esta por uma profunda mitologia, um refinamento nas artes, uma substancial literatura e, sobretudo, sua filosofia que abrange nada menos que as mais altas conquistas da razão humana.

No período conhecido como Grécia clássica (entre 500 a.C. e 328 a.C.), aconteceu esta fusão cultural, catalisada e sintetizada por ilustres como Platão e Aristóteles, sob influências de sábios como Pitágoras e Sócrates. Vale lembrar que este período, apesar de profícuo, já anunciava a decadência da cultura grega. O império de Alexandre o Grande conquistou grandes extensões territoriais e difundiu o helenismo, que já não era só a mais fina flor da filosofia grega, o materialismo se difundiu com seus antagonismos no confronto entre estoicos e epicuristas. O império de Alexandre só durou durante sua vida, mas numa perspectiva histórica mais distanciada foi muito mais que um conquistador  ambicioso, foi um eficiente polinizador da cultura grega.

Paralelamente à constituição e difusão da filosofia da Grécia, já vinha em desenvolvimento milenar, entre o povo hebreu, a religião judaica, que era o conjunto de ensinamentos e revelações de uma sucessão impressionante de profetas, dentre estes: Abraão, Isaac, Jacó, José, Moisés, Josué, Sansão, Samuel, Davi, Salomão, Elias, Isaías e Daniel só para mencionar alguns principais dentre tantos nomes de destaque entre os judeus. E foi no seio de uma família judia da casa de Davi que surgiria, então, o cristianismo. De Joaquim e Ana, Maria, de sua prima Izabel e Zacarias, veio João Batista, de Maria e José, veio o Emanuel messias, Deus entre nós, anunciado nas sagradas escrituras: Jesus de Nazaré.

Com a ascensão do Império romano, este desenvolve meios de organização política e militar nunca dantes conhecidas, que possibilitaram a conquista e administração de um extenso e longo domínio. As culturas judaica e grega abrigadas sob o estandarte romano presenciaram o advento do cristianismo, com a presença e ensinos do Divino Mestre Jesus e sua posterior transmissão por apóstolos e santos. A longa duração do império romano permitiu a lenta interpenetração e difusão destas ricas e robustas elaborações culturais: o judaísmo, o cristianismo, o direito romano e a filosofia grega.

Após a dissolução do império romano, houve um tempo que o cristianismo e toda cultura da antiguidade estavam fragmentados em pequenas ilhas de resistências em mosteiros e reinados e, ameaçavam ser página virada na história da humanidade. Nesta época sombria para os cristãos, a expansão do império islâmico tomou todo o oriente, norte da África, península ibérica e pretendia dominar todo continente europeu, já enfraquecido pelas terríveis invasões germânicas.

Neste ínterim houve um rei que teve o mérito de unir com maestria as culturas judaico-cristã e greco-romana e se fazer soberano sobre árabes e bárbaros. Impôs seu domínio e a paz entre os seus com sua espada e se consagrou na história como o pai da Europa.

Carlos Magno foi um rei franco que conquistou um amplo império na região onde hoje são os países da França, Alemanha, Holanda, Bélgica, Suíça, Áustria, Hungria, as repúblicas Tcheca, Eslovaca e partes da Itália e Espanha.

Ele constituiu um enorme exército para a época, desenvolveu novas táticas militares, como a unidade militar da cavalaria. Tinha uma guarda pessoal com os doze melhores cavaleiros e espadachins, seus doze pares de França, assim chamados por serem à semelhança de Carlos Magno e entre si em excelência militar e virtude. Para empunhar uma espada não bastava a força e habilidade, mas, sobretudo a virtude e uma série de preceitos morais que o cavaleiro deveria ser digno. Muitas histórias e lendas foram escritas e contadas das aventuras destes bravos cavaleiros e constituem uma extensa literatura chamada por matéria de França.

Carlos Magno premiava seus cavaleiros por seus méritos com terras e títulos hereditários, criou os títulos de nobreza de duque, marquês, conde e visconde e a base da sociedade feudal fundamentada na confiança entre os homens e na obediência ao monarca, a vassalagem. A palavra feudal vem daí, de fé, de confiança entre soberanos e vassalos.

A partir desses princípios estabeleceu um eficiente sistema administrativo, dividindo as regiões em condados governados por condes e seus assistentes e substitutos, os viscondes (vice-conde). O cargo de missi dominici (enviado do senhor) tinha atribuição de fiscalizar a atuação dos condes em determinada região, na aplicação das leis e cobrança de impostos. O título de marquês era reservado aos governantes e protetores das marcas, regiões mais inóspitas e de fronteiras do reino. O duque governava um ducado que era uma região maior e mais independente. Assim como um condado estava para uma diocese, um ducado estava para uma arquidiocese. Numa comparação apenas ilustrativa, mas um tanto anacrônica, um condado seria como uma cidade e um ducado um estado, porém nas devidas proporções da época, um ducado chegava a ter uma população de aproximadamente 300 mil pessoas, o que seria equivalente hoje a uma pequena cidade brasileira.

O reinado não tinha uma capital fixa, ela se fixava no local onde a corte do palácio estava. A corte palatina era o centro administrativo e era integrada por pessoas de confiança do rei. O principal cargo nessa corte era o de conde palatino, um conselheiro, ministro e administrador do palácio, castelos e terras sob domínio direto do rei.

Foi de Carlos Magno as primeiras leis escritas da idade média, chamadas “Capitulares” por serem organizadas em capítulos. As leis eram estabelecidas de acordo com a necessidade e não na tentativa de prever e controlar situações futuras, como é a tendência moderna. Dentre as 65 “Capitulares” se destacam a criação de juízes, de recursos ao tribunal do palácio, o fortalecimento do uso de testemunhas como provas e a estruturação da educação com base na unificação da cultura grega com a cristã.

Carlos Magno reuniu em sua corte os maiores intelectuais da época que promoveram o que ficou conhecido como Renascimento Carolíngio, dentre eles: o mestre de latim Pedro de Pisa; o diácono Paulo; o grande gramático e poeta Paulino de Aquiléia; o bispo Isidoro de Sevilha, escritor das Etimologias, uma riquíssima enciclopédia de diversos conhecimentos adquiridos pelos gregos e romanos até então; e o homem mais culto de sua época, o monge britânico Alcuíno de Yorque.

O monge era como um braço direito de Carlos Magno na corte, uma espécie de ministro da educação do reinado, que por pedido do rei, organizou as Sete Artes Liberais da antiguidade no Trivium e no Quadrivium e contribuiu para edificar em sua época uma Academia, segundo ele, superior à de Atenas, pois além da ciência das sete artes da Academia de Platão, estava enriquecida com os ensinamentos cristãos, os Sete Dons do Espírito Santo, em analogia às sete artes.

Compõe o Trivium as três disciplinas da linguagem ligadas à natureza humana que compreendem ler, escrever, falar e pensar bem: a Gramática, que abarcava também as artes literárias; a Retórica, que incluía o valor da virtude na oratória; e a Dialética (Lógica), que compreendia o rigor e a coerência do raciocínio e sua expressão. O Quadrivium consiste nas disciplinas ligadas ao mundo natural: a Aritmética, a ciência do número e suas propriedades simbólicas; a Geometria, o estudo do número no espaço; a Música, o estudo do número no tempo; e a Astronomia, aplicação do número no espaço e no tempo. Esta englobava ainda a Cosmologia e a Astrologia. Para rei e Alcuíno, o conhecimento destas sete artes era fundamental para o melhor entendimento dos ensinamentos sagrados, sendo a ciência material uma base para edificação espiritual.

Alcuíno de Yorque trabalhou na formação da liderança religiosa e política da época através da alfabetização, do ensino das sete artes e das sagradas escrituras. Criou a minúscula carolíngia. Na época os escritos eram todos em maiúsculas e sem espaçamento, o que dificultava muito a leitura. O trabalho de mandar reescrever as grandes obras diferenciando maiúsculas e minúsculas e dando espaçamento entre as palavras foram simples e geniais contribuições que permitiram a popularização da leitura.

No natal do ano 800, Carlos Magno foi coroado pelo Papa Leão III imperador do Sacro Império Romano Germânico. A partir da data de sua coroação ele instituiu um novo calendário e estabeleceu como referência para o início da contagem do tempo o nascimento de Jesus. Até então cada reino tinha sua própria contagem dos anos a partir do nascimento de seu rei ou outro marco importante do reinado. Foi Carlos Magno que unificou o calendário, colocando em sua base a referência cristã que perdura até os dias de hoje.

Carlos Magno integrou, consolidou e difundiu as mais altas realizações culturais, morais e espirituais de seu tempo, criando a identidade de seu império, que posteriormente seria a própria identidade da Europa, da Idade Média e da própria civilização ocidental, que estaria destinada à expansão, ao domínio e à absorção de outras culturas.


Bibliografia

HOLLAND, Tom. Milênio: a construção da Cristandade e o medo da chegada do ano 1000 na Europa.

LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval.

RIVAS, R. Alcuíno de York: Obras Morales. Introdução, tradução e notas.

WOODS Jr., Thomas E. Como a Igreja Católica construiu a civilização Ocidental

Fonte: LINK

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Carlos Magno e as Artes Liberais por Isabela Abes Casaca

Afinal, como o Renascimento Carolíngio contribuiu para evolução da intelectualidade medieval? Qual dos intelectuais do reinado de Carlos Magno foi o grande responsável pela consolidação do ensino das Artes Liberais? Quais eram os graus e os conteúdos estudados durante a aprendizagem?

Como já explicitado no texto Carlos Magno e os Pilares da Civilização Ocidental [texto acima], o Imperador do Sacro Império Romano-Germânico reuniu em sua corte os maiores intelectuais da época, dentre eles: o mestre de latim Pedro de Pisa; o diácono Paulo; o grande gramático e poeta Paulino de Aquiléia; o bispo Isidoro de Sevilha, escritor das Etimologias, uma riquíssima enciclopédia de diversos conhecimentos adquiridos pelos gregos e romanos até então; e o homem mais culto de sua época, o monge britânico Alcuíno de York.

Desta união de inteligências, ascendeu no horizonte histórico o que hoje conhecemos como Renascimento Carolíngio, que preservou e expandiu a Cultura Clássica juntamente com o Cristianismo, em um tempo de invasões bárbaras destruidoras. O rei sabiamente percebeu que, para fortalecer e unificar seu Império precisaria valorizar a educação e a instrução. Quem capitaneou essa ação foi o monge Alcuíno, sendo quase um espécie de ministro da educação do reinado.

Dentre as muitas inovações desse período, podemos iniciar mencionando a Minúscula Carolíngia, uma caligrafia desenvolvida visando estabelecer um padrão caligráfico europeu. Antes dessa simples medida, era muito complicado estudar os textos antigos. Com esse advento, cresceu a uniformidade, clareza e legibilidade da caligrafia, assim o alfabeto latino foi compreendido com mais facilidade. As letras passaram a ser melhor desenhadas e as palavras separadas umas das outras.

O primeiro exemplo datado dessa nova forma de escrita, é o Evangeliário de Godescalco, escrito entre 781 e 783, por um escriba franco, a pedido de Carlos Magno. Esse mesmo manuscrito é também um dos primeiros exemplos da Iluminura Carolíngia, uma forma de arte igualmente nascida no reinado de Carlos Magno, caracterizada por um naturalismo decorativo com a fusão de influências cristãs primitivas, bizantinas e insulares, fazendo uso de uma sugestão de tridimensionalidade nas figuras através de técnicas de sombreado.

Carlos Magno fez da escrita um meio de propagação do conhecimento, valorizando também a poesia e o canto. Incentivava o estudo de alguns autores da Idade Antiga, dentre eles Platão, que tornou-se muito conhecido. A questão da instrução era tão importante para o imperador, que ele recomendou aos monges primazia pelo seu aperfeiçoamento intelectual, a fim de ensinarem a doutrina cristã com consistência e expertise.

Porém, a maior realização acontecida sob a tutela do rei, juntamente com o monge beneditino Alcuíno, foi o reavivamento do saber clássico acrescido da doutrina cristã, através do ensino das Artes Liberais.

Inicialmente se aprendia o Trivium: Gramática, Retórica e Dialética/Lógica; na sequencia o Quadrivium: Aritmética, Geometria, Astrologia/Astronomia e Música. Adquirido o domínio dessas sete esferas do conhecimento, ganhava-se o título de Mestre em Artes Liberais. Então, estava-se preparado para aprender as Artes Liberais Superiores: Teologia, Medicina e Direito. Concluído o estudo superior, ganhava-se o título de Doutor.

O designo precípuo e maior dessas Artes é a busca pela Verdade Superior; auxiliando no caminho de liberação humana. Fazendo triunfar as virtudes dos homem, elevando seu espírito e promovendo a transcendência de sua consciência. O estudo das Artes Liberais é um fim em si mesmo. Por amor a ciência, elas são ensinadas, estudadas e aprendidas. Ampliando-se o conhecimento. Por esse motivo, são chamadas de “Liberais”, pois não há uma obrigatoriedade, o homem as estuda pelo arbítrio de seu próprio querer, procurando sua libertação e engrandecimento espiritual.

Esclarecido isso, percebemos que o notório rei está estritamente ligado as Artes Liberais, sendo um dos grandes responsáveis por essa expressão da Alta Cultura chegar ao nosso tempo.

Fonte: LINK

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Alcuíno de Yorque e a Escola Palatina por Thiago Brum Teixeira

O Rei Carlos Magno reuniu em sua corte os mais diversos sábios, artistas e intelectuais, que promoveram uma renovação cultural conhecida como Renascimento Carolíngio, responsável por consolidar no mundo ocidental o cristianismo, integrado e apoiado pela filosofia grega. Dentre estes o mais destacado foi Alcuíno de Yorque, reconhecido como um dos homens mais cultos do ocidente cristão do século VIII. Alcuíno, Alcuin ou Albinus Flaccus, como assinava suas obras (todas escritas em latim), nasceu entre os anos 730 e 735 d.C., na Bretanha, hoje território da Inglaterra, foi monge em York, capital do reino da Nortúmbria, onde recebeu instrução do mestre e abade Alberto, que foi discípulo de Egberto e este por sua vez de Beda, o Venerável.

Numa época não existia computador, nem prensa móvel de Gutenberg, nem mesmo máquina de escrever, o papel era artigo de luxo, a tinta tinha que ser meticulosamente preparada e as letras com pena e tinteiro eram caprichosamente desenhadas sob o papel. Escrever um livro era um imenso trabalho e era preciso copiá-lo diversas vezes para preservá-lo ao longo do tempo. Tanto para ter cópias de segurança quanto colocá-lo em papel e encadernações em melhores estados. Tudo isso era necessário para que o conhecimento sobrevivesse às intempéries, à umidade, ao mofo, aos incêndios, saques de inimigos e chegasse até o século XV (700 anos depois de Alcuíno) quando a prensa de tipos móveis foi inventada.

No mundo ocidental eram os monges beneditinos que se dedicavam a preservação e cópia dos textos, principalmente na antiga Inglaterra. Foi neste ambiente que Alcuíno viveu. A regra beneditina valorizava o estudo e a cultura, o cristianismo celta com influências irlandesas era mais flexível, também era comum o ensino do canto gregoriano e a valorização do latim na liturgia e nos costumes. Nestes mosteiros foram construídas as mais importantes bibliotecas, abrigavam os mais notáveis professores e o que podemos chamar de as escolas da época, estavam entre os maiores centros intelectuais da época.

Em 781, Alcuíno foi convidado por Carlos Magno para ser diretor da Escola Palatina (o mesmo que escola do palácio), em Aquisgrán, e chega a corte no ano de 782 com uns 50 anos de idade. A escola palatina funcionava desde os tempos do rei Carlos Martel, avô de Carlos Magno, mas foi com Alcuíno que a conduziu a seu pleno desenvolvimento, quando este serviu de ponte entre o tesouro guardado nos mosteiros beneditinos e o reinado de Carlos Magno.

Como diretor da Escola Palatina implementou o Trivium e o Quadrivium, organizando  a ciência e artes da antiguidade no que veio a ser os alicerces da instrução medieval e da renascença posterior. As disciplinas do Trivium e Quadrivium já existiam desde a antiguidade, presentes principalmente nas obras de Platão, Aristóteles e dos filósofos e matemáticos pitagóricos. Porém foram difundidas na cultura latina por autores como Quintiliano, Agostinho, Boécio, Cassiodoro, Isidoro e Beda. A partir de Alcuíno as Sete Artes Liberais são difundidas no Reino Franco e deste para todo o mundo ocidental.

Importante entender que Alcuíno não inovou e sim, selecionou, organizou e transmitiu fielmente o que de melhor encontrou na cultura antiga e “pagã” (não cristã). Alcuíno considerava tudo que era bom e verdadeiro inspirado por Deus, e sendo, as artes liberais inspiradas por Deus elas deviam ser estudadas pelos cristãos, mesmo sendo um conhecimento considerado pagão.

Para Alcuíno, o objetivo maior da educação era o conhecimento e a sabedoria, em que o estudante devia ser conduzido por degraus de ensinamentos, sendo os primeiros sete degraus da sabedoria, as Sete Artes Liberais do Trivium e Quadrivium. Alcuíno compara as setes artes às sete colunas do templo de Salomão e, afirma que a sabedoria é fortalecida pelas Sete Artes Liberais, constituindo estas o currículo da Escola Palatina, onde eram admitidas crianças que já sabiam ler, escrever e realizar as quatro operações. O programa de estudos que durava entre 7 e 9 anos, sendo equivalentes ao atual 6º ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio, constituí durante a idade média aos estudos preparatórios para os estudos superiores de Teologia, Direito e Medicina.

O ensino da época se fundamentava na lectio (lição; leitura), na disputatio (diálogo; perguntas e respostas) e no diálogo socrático. A lectio era a exposição didática de um assunto seguido de comentário às opiniões dos autores clássicos, autoridades no assunto. A disputatio era um livre diálogo entre mestre e discípulo composto de perguntas e respostas sobre determinado assunto, ora podendo o mestre fazer as perguntas e o discípulo respondê-las, ora o discípulo fazer as perguntas e o mestre respondê-las. Também podia ter proposições controvertidas como num debate, onde se apresentam argumentos prós e contras, buscando a melhor solução. O diálogo socrático é quando o professor através de perguntas conduzia o aluno à solução de problemas, a definições, ao exame e esclarecimentos.

Para Alcuíno o ensino devia ser divertido e por isso ensinava também por meio de jogos, enigmas, anedotas e adivinhas. Na Escola Palatina cada um tinha um apelido, pelo qual se comunicavam por meio de cartas, Alcuíno era o poeta Horácio e Carlos Magno o Rei Davi. Pelos diálogos e cartas da época é possível perceber o clima descontraído e lúdico da corte, sem em nenhum momento ser desrespeitoso ou grosseiro, pelo contrário, imperava o cavalheirismo, a cortesia e a admiração entre os pares.

Também era de grande importância educacional o canto coral, a música e a recitação de poesias. A pedagogia de Alcuíno se inicia no som, em seu tratado de gramática ele escreve que é pelo som que se inicia a arte da Gramática, pois a linguagem escrita vem da linguagem falada. A cultura medieval está fundamentada na oralidade, mesmo os poemas, leis e textos escritos, eles eram escritos de forma “oralizada”, ou seja, com objetivo não que fosse lidos, mas que fossem ouvidos. Quando se fala, por exemplo, que as leis da época eram publicadas, quer dizer que eram lidas em praça pública. Da mesma forma os trovadores, bardos e menestréis narravam os acontecimentos heroicos em versos e rimas. A voz era então o fundamento da literatura que se  transformou quando passamos a ler com os olhos, sem soletrar e sem ouvir.

A Escola Palatina era a escola modelo, sua didática e seu currículo eram copiados por todo o reinado. O rei recomendava a construção de escolas em paróquias, catedrais, monastérios e palácios. Geralmente a alfabetização se dava na família ou nas paróquias, para continuidade dos estudos as crianças eram mandadas a mosteiros sob os cuidados dos monges, a escolas catedrais ou mesmo à própria Escola Palatina, que, apesar de, inicialmente servir à instrução dos nobres da corte, também recebia pessoas do povo, selecionadas por interesse, vocação e mérito. Não é incomum encontrar na biografia de cavaleiros, nobres e sacerdotes da época, uma descendência de pessoas das mais simples do povo, como artesãos e até mendigos. Durante o reinado de Carlos Magno as escolas que mais se desenvolveram foram a Escola Palatina e as abrigadas em monastérios. Porém foram a partir do desenvolvimento das escolas catedrais, dirigidas por bispos e que ficavam dentro das cidades, que nasceram as universidades 4 séculos depois.

O rei e o monge valorizam muito a instrução dos sacerdotes e como eles iriam instruir as crianças e jovens, bem como os povos conquistados e incorporados ao reino. Deixaram isso escrito em leis e cartas e trabalharam juntos em prol da unidade cultural, legal e religiosa do reinado e a construção de uma identidade cultural dentre diversos povos diferentes em línguas, história e costumes.

Alcuíno escreveu uma extensa obra de mais de 40 trabalhos e tratados e 320 cartas da qual chegou até nós pela tradução de Migne pertencente a sua Patrologia Latina. Além das cartas sua obra pode ser dividida em obras didáticas, obras teológicas, obras poéticas. Escreveu tratados didáticos de cada uma das artes liberais, que respondiam as necessidades da Escola Palatina. Também era poeta, e deixou uma coletânea de poesias, sendo sua principal obra uma poesia épica que narra a história do reino da Nortúmbria em 1657 versos.

As obras teológicas são as mais numerosas, escreveu a cerca do ensino e da interpretação de partes da bíblia, escreveu diversas obras de ensinamentos para uma conduta moral e virtuosa, se dedicou a refutação de heresias e a defesa da fidelidade da doutrina cristã, redigiu inúmeras obras litúrgicas que tiveram importante impacto na organização e unificação dos cerimoniais religiosos no reinado e ainda escreveu biografias da vida de “santos” e figuras que deixaram como legado uma conduta moral exemplar.

Em 796 quando em idade mais avançada Alcuíno se retirou da vida pública e Carlos Magno o nomeou abade de San Martin, em Tours, dos mais importantes monastérios do reino Franco, onde Alcuíno se dedicou a impulsionar o trabalho da scriptorium monástica, que é a aquisição, conservação e cópias de manuscritos constituindo uma importante biblioteca em Tours.

Alcuíno instruía os copistas no uso e desenvolvimento da minúscula carolíngia e da iluminura. A minúscula carolíngia era um tipo de letra que se destacava por sua beleza, clareza e facilidade de leitura. O latim era escrito apenas com letras maiúsculas, sem espaçamentos, parágrafos e pontuação, o que dificultava o entendimento e o aprendizado de leitura. A partir da minúscula carolíngia se desenvolveu a letra minúscula, os espaçamentos entre as palavras, parágrafos e pontuação, como a criação do ponto de interrogação, por exemplo. O que facilitou muito o aprendizado da leitura, que até então era para poucos sacerdotes que tinham acesso e que, a partir de então, foi difundido entre os nobres, governantes, líderes religiosos e daqueles que demonstravam interesse e vocação.

A iluminura era a ilustração dos livros com belas imagens em um estilo clássico e a ornamentação das letras, com desenhos, arabescos, miniaturas e estilos de grafismos. A palavra iluminura vem de iluminar por conta das cores vibrantes e luminosas que eram utilizadas, principalmente a decoração com ouro e prata, chamada de douração. Também eram utilizadas predominantemente as cores azul, vermelho e amarelo, por conta da disponibilidade dos pigmentos.

Alcuíno viveu até 19 de março de 804 e foi sepultado em San Martin de Tours como abade. Não ocupou altos cargos na igreja e permaneceu como diácono por toda vida. Porém aconselhou patriarcas, reis, arcebispos, abades e monges durante sua vida, teve muitos discípulos, os quais foram os mais renomados professores e escritores da geração seguinte.  Foi religioso, erudito, poeta, pedagogo, político e conselheiro. Foi amigo e braço direito de Carlos Magno na área cultural, religiosa e educacional. Junto com o rei construíram a identidade do reino franco que veio a ser as bases da própria identidade europeia e ocidental.


Bibliografia

[1] ALCUINO DE  YORK. De Grammatica. in: ALCUIN, Opera Omnia, 2 vols. Paris, 1851. (Migne, Patrologia Latina, C, CI).

[2] FRENK, Margit. Entre la voz y el silencio. Centro de Estudos Cervantinos, 1997. (citação: Paul Valéry. Oeuvres. Pleiade: Paris, 1957.)

[3] OLIVEIRA, Priscila Sibim de. Alcuíno e a educação de governantes: Final do Século VIII e Início do Século IX. 2008. 120 f. Dissertação (Mestrado)-Universidade Estadual de Maringá. Orientadora: (Dra.: Terezinha Oliveira). Maringá, 2008.

[4] RIVAS, R. Alcuíno de York: Obras morales. Introdução, tradução e notas. Espanha:(EUNSA), 2004.

[5] ROSZAK, Piotr. La práctica exegética de Alcuino de York. Facies Domini: Revista alicantina de estudios teológicos, n. 3, p. 503-514, 2011.

Fonte: LINK.

Leia mais em: Alcuíno de York: difusor do Trivium e Quadrivum

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Institutiones, um livro que preservou a Educação Clássica

 

O copista Jean Mielot (1448-68) trabalhando em seu
scriptorium na página de um manuscrito do século XV

Tempo de leitura: 8 min.

O texto abaixo é a Apresentação do livro de Institutiones: introdução às letras divinas e seculares, de Cassiodoro, publicado pelas Edições Kírion, 2018.

APRESENTAÇÃO

Flávio Magno Aurélio Cassiodoro Senador viu a luz deste mundo pela primeira vez por volta de 485 na cidade de Scyllaceum, atual Squillace, localizada nas terras quentes do sul da Península Itálica e beijada docemente pelas águas do Mar Jônio. Quando nasceu, o Império Romano do Ocidente já estava morto e enterrado, e com ele todo aquele período que séculos mais tarde os historiadores chamariam de Idade Antiga. Na segunda metade da década de oitenta do séc. V, a porção ocidental da Europa já se havia tornado uma enorme colcha de retalhos de reinos germânicos que se esforçavam em manter-se de pé sobre os escombros do colossal edifício civilizacional construído pelos romanos ao longo de mais de mil anos.

A Itália dos antigos césares, pátria de Cassiodoro, se encontrava naquele momento sob o domínio dos ostrogodos, de jure subordinados à corte de Constantinopla; de facto, porém, independentes. Em outras palavras, isso significava que os ostrogodos tinham em suas mãos a hercúlea missão de encontrar o tênue equilíbrio entre a manutenção do legado romano (ainda muito vivo na população nativa remanescente) mediante a conservação de diversas instituições e leis do extinto Império do Ocidente, e a preservação dos costumes típicos dos próprios ostrogodos. Falhar no primeiro ponto poderia lançar a península em uma guerra contra Constantinopla, aquela porção do Império Romano ainda muito viva, de conseqüências inimagináveis naquele momento; falhar no segundo seria agir para o progressivo embotamento da própria identidade. A esse caldeirão fervente devemos acrescentar também o ingrediente inflamável da divisão religiosa. Ora, os ostrogodos aderiram em sua maioria ao arianismo, enquanto a população nativa da Península Itálica era majoritariamente adepta da fé católica proclamada com solenidade pelo Concílio de Nicéia em 325. Por cerca de cinqüenta anos os ostrogodos tiveram governantes — como Teodorico, o Grande — que souberam dar bases sólidas à ponte do presente que haveria de unir o passado ao futuro. A partir da década de trinta do séc. VI, no entanto, crises políticas agudas romperam o frágil equilíbrio das coisas e a intervenção inevitável das forças de Constantinopla sepultaram o reino ostrogodo. Cassiodoro não só testemunhou todos esses eventos como também, de certa forma, deixou-se moldar por eles.

Assim como seu pai, Cassiodoro ocupou altos cargos entre os ostrogodos. Sob Teodorico, o Grande, foi sucessivamente questor, cônsul e magister officiorum, isto é, ministro para a política interna. Atalarico, sucessor de Teodorico, fez dele prefeito do pretório da Itália. De suas mãos correram rios de tinta que deram forma a diversas obras nesta etapa de sua vida, entre as quais citamos: Chronica, Historia Gothorum e Variae. As crises que culminaram na eclosão da guerra entre os ostrogodos e o Império Romano do Oriente levaram Cassiodoro à desesperança na política e, por conseguinte, ao abandono da vida pública. Por volta de 545, Cassiodoro fundou nos arredores de sua cidade natal o monastério de Vivarium, destinado a tornar-se o embrião dos centros culturais monásticos da Idade Média. Ali viveria o restante de seus dias, emigrando deste mundo com aproximadamente noventa anos de idade.

No Vivarium, Cassiodoro tomou em suas mãos a tarefa de preservar os monumentos da literatura ameaçados pelos conflitos que percorriam as terras da Itália com a impetuosidade de fogo em palha seca. Assim, foram realizados ali os trabalhos de cópia e tradução de tudo o que se pudesse encontrar de gregos e latinos. Para este fim, criaram-se métodos e estabeleceram-se preceitos rigorosos a fim de que os textos produzidos fossem os mais fidedignos possíveis. A biblioteca que se estruturou no Vivarium tornou-se, como se pode imaginar, verdadeiro tesouro das preciosíssimas jóias do mundo greco-romano. Como uma espécie de prolongamento dessa atividade, instituiu-se naquele local uma escola voltada ao estudo de assuntos sagrados e humanos.

Ora, em decorrência dos trabalhos realizados no Vivarium, o grande engenho de Cassiodoro produziu as célebres Institutiones, que o leitor tem agora nas mãos em uma bela edição traduzida para o português. Escritas em torno do ano de 550, as Institutiones possuíam como objetivo primeiro a instrução dos monges residentes no Vivarium. Entretanto, a posteridade demonstrou que a grandeza das Institutiones não podia ficar circunscrita a este modesto escopo e fez delas uma das obras mais influentes do medievo.

O tratado se divide em duas partes bastante distintas. Na primeira, o autor discorre sobre os livros sagrados e aproveita a oportunidade para tratar de seus principais comentadores, conduzindo o leitor por veredas suaves à introdução daquilo que hoje chamamos Patrística. A mensagem de Cassiodoro é clara: a leitura das Sagradas Escrituras deve sustentar-se na autoridade da Igreja — manifestada, por exemplo, através dos Concílios — e nos comentários dos grandes sábios cristãos. Ademais, o autor salienta que a educação não deve ser vista como um fim em si, mas como um meio que fornece os instrumentos adequados para a reta compreensão das Sagradas Escrituras. Por fim, abordam-se questões referentes à arte de copiar e à ortografia. A segunda parte, por sua vez, versa sobre cada uma das artes que compõem o trivium e o quadrivium, percorrendo, portanto, cada uma das sete artes liberais, consideradas, como já mencionado há pouco, suportes para o estudo da Teologia.

Embora as Institutiones não tenham sido escritas para eruditos e especialistas, Cassiodoro não deixou de empregar em seu texto o melhor do estilo latino de seu tempo. Podemos mesmo conjecturar que talvez o êxito de seu escrito se explique justamente pelo fato de o autor conciliar de maneira magistral a simplicidade didática na exposição dos temas com um bom estilo latino que se empenha em seguir os cânones da literatura clássica. O que não quer dizer que o seu latim não se ressinta aqui e acolá do cenário conturbado e decadente daqueles tempos de incertezas e miscigenação cultural que empurravam a língua latina para províncias cada vez mais distantes daquelas freqüentadas outrora por Cícero, Virgílio e Horácio. Assim, o tradutor de Cassiodoro enfrenta não poucas dificuldades para determinar se tal termo foi empregado em sua acepção clássica ou de acordo com um significado mais recente. Além disso, o uso de termos técnicos e neologismos se torna outro campo minado mesmo para o tradutor mais experiente. Entretanto, nenhuma dessas coisas é suficiente para ofuscar a beleza e a relevância das páginas que logo se abrirão aos olhos do leitor.

Para concluir, é preciso ressaltar que todo aquele que estiver realmente empenhado em resgatar a essência das artes liberais sob um viés cristão não pode de forma alguma ignorar o conteúdo destas Institutiones, verdadeira espinha dorsal de tal projeto pedagógico.

William Bottazzini Rezende
Pouso Alegre, abril de 2018

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Leia mais em Boécio e Cassiodoro.

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As artes liberais são a base da educação católica

Carlos Magno, cercado por seus
principais oficiais, recebe Alcuíno
que o presenteia com manuscritos,
obras de seus monges,
por Jean-Victor Schnetz, 1830

O professor, marido e escritor Derek Rotty escreveu o artigo abaixo em fevereiro de 2023, por ocasião de um popular evento de escolas católicas nos Estados Unidos. Ele nos mostra como as artes liberais ainda são a melhor base para a educação católica. Apesar da concorrência de pedagogias modernas bastante atrativas, porém incompletas, as artes liberais são a melhor opção.

A educação católica atual

Estamos nos aproximando do fim de semana das escolas católicas. Esta é a semana em que as escolas paroquiais e independentes se reúnem para destacar todas as coisas valiosas que proporcionaram para a vida dos seus alunos e familiares, bem como sua contribuição para as comunidades. 

Anualmente, ouvimos dados sobre como os alunos das escolas católicas superam consistentemente os alunos de outras escolas e têm um melhor desempenho no nível universitário. Embora esses dados sejam verdadeiros e contribuam para a nossa perspectiva, também devemos reconhecer que houve tendências nas gerações recentes que nos afastaram da visão da Igreja para uma educação holística. Portanto, se queremos que as escolas católicas e seus alunos prosperem, devemos recuperar a visão da Igreja para a educação, que se baseia nas artes liberais.

A educação segundo o Vaticano II

Ora, para captar a visão da Igreja para a educação, basta olhar para a declaração sobre a educação cristã do Segundo Concílio do Vaticano, Gravissimum Educationis. Na sessão de abertura desta declaração, a Igreja pediu que:

As crianças e os adolescentes sejam ajudados em ordem ao desenvolvimento harmônico das qualidades físicas, morais e intelectuais, e à aquisição gradual dum sentido mais perfeito da responsabilidade (…) na busca da liberdade. 

E, certamente, não existe forma ou método de educação que ajude os estudantes e comunidades a buscar a verdadeira liberdade como as artes liberais. Desde aprender a pensar logicamente a apresentar um argumento racional e convincente, essas artes fomentam uma vida realizada em qualquer pessoa que as pratique.

As artes liberais

Diante disso, quais são essas artes liberais que a Igreja nos apresenta? Em primeiro lugar, há o trivium clássico, composto por gramática, lógica e retórica. Este é o conjunto fundamental de disciplinas que promove o pensamento básico e claro, e a comunicação. Ensinam-se essas três disciplinas fundamentais de forma mais eficaz no ensino fundamental e, em seguida, habituadas e reforçadas ao longo dos anos seguintes de escolaridade.

Em segundo lugar há o quadrivium; trata-se do conjunto de quatro disciplinas que consistem em aritmética, geometria, astronomia e música. Essas disciplinas tornam-se mais robustas e centrais nos currículos à medida que os estudantes envelhecem e amadurecem. 

Não só o trivium, como também o quadrivium são disciplinas conhecidas há milênios. Mesmo antes do advento de Jesus Cristo e da Igreja, já se sabia que as artes liberais são a melhor base para formar seres humanos que pensam, se expressam e levam vidas verdadeiramente boas.

A fé no centro da educação

Além disso, nossa fé católica nos lembra que a educação envolve mais do que médias de notas e bolsas de estudo. De tal forma que o ponto focal crucial de uma educação católica é a “perfeição equilibrada da personalidade humana” nos estudantes. Pois é nesse equilíbrio que os alunos se tornam virtuosos e suas vidas inteiras, da escola ao esporte, ao serviço cívico, são “inspiradas pelo espírito de Cristo”.

Em resumo, a educação católica pretende cultivar pessoas virtuosas, “pequenos Cristos”, que possam ir ao mundo e mudá-lo. As artes liberais abrem o caminho para a conversão e a virtude de uma forma melhor do que qualquer outro método educacional.

Com esse propósito, os pais conciliares proclamam que uma escola católica que cumpra sua missão e propósito “orienta toda a cultura humana para a mensagem da salvação, de modo que o conhecimento que os alunos adquirem sobre o mundo, a vida e os homens seja iluminado pela fé”. 

Atraídos pelas promessas das pedagogias modernas

Infelizmente, tanto a luz da fé quanto a mensagem da salvação têm sido amplamente rejeitadas por aqueles imbuídos com o espírito moderno do cientismo. Por exemplo, Charles Darwin alegou que só os avanços na ciência proporcionam a melhor “iluminação da mente dos homens”. Assim, existe uma tendência na educação, mesmo nas escolas católicas, de se render ao movimento da cultura moderna. 

As correntes pedagógicas modernas são tão variadas quanto são atrativas, e muitos acreditam que a chamada STEM [1] — ciência, tecnologia, engenharia e matemática — seja a proverbial onda do futuro. Além disso, essa abordagem parece ser o caminho para atrair (tão necessários) investimentos para as escolas. 

Como encarar as novas tendências? 

No entanto, devemos nos perguntar se essas disciplinas, divorciadas da filosofia, teologia e humanidades, não causam um bloqueio nas almas dos estudantes. E, ainda mais, como a Igreja deve se posicionar diante das tendências modernas na educação, especialmente o movimento em nossa cultura para se concentrar intensamente em programas STEM? 

Ora, antes de mais nada, deve-se ter em mente que o quadrivium clássico — ou seja, as quatro disciplinas que compõem o segundo plano do currículo — está intimamente alinhado com a STEM. Posto que a aritmética e a geometria são matemáticas, e a astronomia (que inclui a física) é uma ciência. A tecnologia e a engenharia são aplicações práticas do conhecimento adquirido nas disciplinas anteriores. Ainda assim, uma pessoa terá mais facilidade em aplicar o conhecimento a partir de uma base sólida em boa gramática, lógica e retórica.

O Dr. Jeremy Rotty é diretor do laboratório de pesquisa biomédica da Universidade de Serviços Uniformizados. Ele esclarece esse ponto ao reconhecer o lugar indispensável das artes liberais, mesmo nas áreas STEM:

Eu acredito que muitos dos meus colegas bem-sucedidos têm uma formação em artes liberais, porque é um ambiente que ensina como pensar, como escrever e como convencer os outros de sua posição. Eu digo aos meus alunos que cada coisa que eles produzem é um artigo de opinião, mesmo que seja baseado em dados empíricos sólidos. Você tem que criar uma narrativa. Pessoas que não tiveram prática nisso em um currículo de artes liberais provavelmente terão dificuldade, pois essas habilidades são aplicadas, mas não ensinadas, em muitas disciplinas STEM.

Não há oposição entre fé e ciência

A declaração da Igreja, juntamente com declarações como esta de acadêmicos de alto nível, nos lembram que matemática, ciência, engenharia e tecnologia só prosperam quando construídas a partir da gramática, lógica e retórica. A fé católica apoia plenamente a matemática, a ciência e a engenharia, em seus lugares apropriados. Lembremos que a participação e inovação de católicos possibilitou a maioria dos avanços do mundo moderno em diversas disciplinas. 

No entanto, esses avanços vieram depois que seus inovadores tinham uma base sólida nas artes liberais clássicas. Somente os matemáticos e cientistas que possuíam uma forte base na gramática, lógica e retórica foram capazes de se destacar nessa próxima camada de busca intelectual e acadêmica.

Contribuições católicas

Com efeito, a fé católica ainda tem algo inestimável a contribuir para a sociedade e a cultura, especificamente por meio da educação. E, de fato, essas contribuições podem ocorrer — e já ocorreram — em todas as áreas do conhecimento, inclusive na engenharia, na tecnologia, na física, ou na biologia. 

No entanto, é necessário desenvolver e apresentar qualquer contribuição com clareza e coerência, e, acima de tudo, em um bom quadro moral. Retomar as artes liberais como base da educação é a única maneira de fornecer essa clareza moral e coerência. Trata-se da melhor e mais robusta maneira de educar nossos filhos para se tornarem a próxima geração de grandes pensadores, inovadores e líderes.

Referências

1. Nota do Tradutor: Usa-se a sigla STEM em Inglês para designar as quatro matérias escolares consideradas de suma importância nos currículos atuais e na pedagogia moderna. Tratam-se da ciência, da tecnologia, da engenharia e da matemática; se pegarmos as primeiras letras de cada uma delas, science, technology, engineering, and mathematics temos STEM. A palavra stem, em letras minúsculas, entretanto, tem outros significados, como tronco ou caule. 

Tradução: Equipe Instituto Newman [Instagram]

Texto retirado do link. Original em inglês link.

Para mais informações sobre o autor: https://derekrotty.com/

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Matemática e Teologia


Sobre a imagem acimaDeus criador do Universo. Observe que Ele, muito atento, manuseia cuidadosamente um imenso compasso (representação da Geometria, arte do Quadrivium, e do puro pensamento matemático do Criador) na circular “massa informe e vazia” para que, como disse Teodorico de Chartres, com amor e bondade, Deus, que é a Sabedoria, ordenasse a desordem e fosse a causa formal e eficiente do mundo, e assim as coisas criadas fossem partícipes de Sua felicidade através de Seu amor. Bíblia moralizante (séc. XIII), cód. 1779, folio 1v (Gênesis), Biblioteca Nacional da Áustria. In: Las biblias más bellas. Taschen, 2008, p. 215.


A ESCOLA DE CHARTRES E A TRADIÇÃO DO QUADRIVIUM

por Jorge Filipe N. S. Teixeira Lopes (*)

Cuestiones Teológicas, Vol. 41, No. 96 (julio - diciembre, 2014)

INTRODUÇÃO

Quando a obra Ars Fidei Catholicae foi oferecida ao papa Clemente III, entre 1187 e 1191, por Alain de Lille ou Nicolau de Amiens – os estudiosos modernos não são unânimes [1] – o seu autor procurara demonstrar como o ensino da teologia se tornara uma forma elevada da aritmética, com um modus operandi próprio na estruturação do pensamento. Esta oferenda evidenciava o progresso da teologia nesse século que findava. Entre outros subsídios, este progresso tinha passado pela intenção de explicar o mundo de forma racional, através de relações numéricas com as quais se pretendia revelar não só as leis da natureza, mas inclusive a própria essência divina. Nesse contexto, é de se realçar a abstração que o quadrivium permitira, ao longo da Idade Média, no conhecimento das coisas, e a importância que tivera na formação do homem medieval. De facto, essas quatro artes permitiriam ao homem conhecer as realidades celestes, ao mesmo tempo que o afastavam das coisas terrestres, conforme nos é relatado num trecho de um manuscrito anónimo (Per hoc quadrivium scimus caelestium contemplationem, terrestrium abiectionem) (Ghellinck, 1948, p. 16).

Cerca de meio século antes, por volta de 1141, o chanceler da escola de Chartres, Thierry de Chartres tinha escrito uma obra que ficaria conhecida como a ‘bíblia das artes liberais’, Heptateuchon, onde exprimira a sua concepção do saber e o papel das artes liberales no processo de conhecimento humano. O título da obra, alusivo ao número sete (επτά), fazia uma analogia entre as artes liberalesTrivium (Gramática, Dialética, Retórica) e Quadrivium (Astronomia, Música, Geometria, Aritmética) e os sete primeiros livros da Escritura (Génesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué e Juízes) (Jeauneau, 2009, pp. 67-68). No prólogo, Thierry afirmava que os dois instrumentos básicos do filosofar eram a reflexão – ou compreensão intelectual – e a expressão adequada. A reflexão intelectual seria proporcionada pelo quadrivium, que deveria iluminar o intelecto; o trivium, por sua vez, seria o meio pelo qual se permitiria a manifestação conveniente do pensamento (Jeauneau 1954, p. 174) [2]. Esta era, sem dúvida, a clássica divisão das ciências que fazia parte substancial do curriculum medieval das sete artes liberales.

O QUADRIVIUM COMO FORMA DE ABORDAR A NATUREZA

O desenvolvimento expositivo destes homens do século XII, que ficariam conhecidos como os primeiros ‘intelectuais’ do ocidente (LE GOFF 1951), denota um esforço em alinhavar argumentos claros e coerentes, apoiados em dados obtidos a partir da natureza. Para o pensamento chartriano, esta era chamada por ‘universo das coisas’ (rerum universitas) (Maccagnolo, 1976), pois englobava todo o universo criado, desde os coros angélicos até ao universo físico. As disciplinas das artes liberales proporcionavam ao intelectual a objetividade necessária, não somente na forma de abordar as ciências experimentais, mas também no processo lógico-argumentativo, a fim de melhor sustentar a clareza expositiva e organizar a sequência dos raciocínios.

O escopo do pensamento chartriano era provar que a ordenação do mundo criado exigiria um Criador. Essa preocupação já S. Agostinho tivera quando procurara dar uma noção filosófica de ordem (ordo) e procurado entender de que modo o nosso universo está sapiencialmente ordenado. Que instrumentos terá Deus utilizado para o conceber? Por vias do neoplatonismo agostiniano, uma tradição promovida pouco mais tarde em Boécio dizia que quatro eram as vias da sabedoria e quatro eram também os meios de estudar o universo: Astronomia, Música, Geometria e Aritmética. Seria, portanto, pelo quadrivium, isto é, pelas quatro disciplinas que proporcionam o estudo intelectual da natureza, que o homem poderia chegar até Deus.

Está claro então que, para a escola de Chartres, o universo das coisas (rerum universitas) é motivo para uma procura racional dos princípios em que a fé cristã acredita. Mas, além desse aspecto, cumpre compreender que estudar o cosmos pelo quadrivium é estudar a ciência do número, isto é, da aritmética combinada com as considerações metafísicas ensinadas pelos antigos e transmitidas ao mundo latino em grande medida por Boécio. Por exemplo, as arithmeticae probationes aplicadas por Thierry de Chartres à teologia no Tractatus de sex dierum operibus, são prova disso, bem como, em certo modo, a especulações teológicas da Dialectica, de Pedro Abelardo. Portanto, para se entender a importância destas scientiae rerum, deve-se proceder a uma análise histórica e, digamos assim, genealógica do quadrivium, em busca das fontes do pensamento chartriano para um estudo racional acerca do mundo.

O quadrivium nas fontes da tradição neoplatônica

Foi nas fontes do neoplatonismo latino que o chamado ‘pensamento racional’ ou ‘pensamento científico’ dos homens de Chartres se foi abeberar. E se a escola de Chartres foi um dos maiores bolsões de intelectualidade no século XII, sem embargo, a sua apreensão do cognoscível não deixa de passar pela ‘linguagem sagrada’ dos símbolos. Ela situa-se numa transição entre a visão simbólica e alegórica, patente em toda a alta Idade Média, e o pensamento científico da Alta Escolástica do século XIII. Como indicou o Prof. Gonzalo Soto (1999), o simbolismo é a inquirição in vestigium ire, isto é, a procura das marcas de Deus, e, portanto, o ponto onde se dá o encontro dos dois aspectos chave do conhecimento medieval: primeiro, a busca da semelhança, que lhe serve de configuração mental; depois o símbolo, que é o motor próprio dessa busca (pp.131-132). Há, portanto, toda uma variedade e gama de simbolismos que faz parte do misticismo medieval, e é nesse prisma que convém perceber a noção platónica de um universo racional, e, por conseguinte, os meios empreendidos para estudá-lo. Quer dizer, os seus métodos e ferramentas de estudo são repletos de pensamento religioso e mítico, que fazem-no interpretar o mundo de uma forma completamente distinta da do homem moderno.

Voltando ao nosso tema, foi em De musica de S. Agostinho que se evidenciou o carácter científico das artes liberais, o qual teria grande importância nos curricula da formação medieval. Já em De Ordine, o bispo de Hipona Agostinho traçara-lhes uma genealogia racional, solidificando-as numa unidade e denunciado a presença de proporção e harmonia nestas disciplinas, razão pela qual podiam ser concebidas como scientias. As artes do trivium e quadrivium, podiam levar a razão à busca da Verdade, do corpóreo (corporea), a uma ordem superior, acima do meramente sensível (incorporea). Nesse contexto, a música tinha um especial papel, pois dividia a sua função com a gramática através do som (sonus), e podia ser submetida a uma medida e ordem de acordo com proporções e números, dada a sua correspondência direta com as proporções aritméticas (Correa, 2009, pp. 148-150).

A razão humana capta a unidade, ordem e simetria, ou, segundo expressão do mestre de Hipona, a modulação (modulatio) proporcionada das coisas que existem. É, portanto, através das matemáticas que a razão pode aceder do sensível ao inteligível e contemplar o esplendor da verdade divina refletida no mundo visível. A ciência das artes liberais prepara, portanto, a alma para a consideração das harmonias e proporções do universo (Correa, 2009, p. 151).

No século VI, Boécio insistiu também no quadrivium, como as quatro disciplinas que abarcavam o estudo da natureza e como quádrupla via rumo à sabedoria. Denominando-as artes reais (artes reales) – referentes às coisas da natureza (res) – as ciências matemáticas eram a luz para os olhos da alma, desempenhando uma função propedêutica em relação à teologia (Kijewska, 2003). Era por intermédio delas que a alma se podia abrir para uma hierarquia de abstração, por onde podia aceder das percepções sensíveis à pura razão, a um conhecimento em harmonia com a mente divina.

Boécio distinguiu dois tipos de quantidade nestas quatro disciplinas das coisas: quantidade discreta - daquilo que é contável, relativo, portanto, aos números – e quantidade contínua - relativo a linhas no espaço - como segue (Boethius, II 1) [3]:

Aritmética (estuda a quantidade discreta estática)
Música (estuda a quantidade discreta em movimento)
Geometria (estuda as grandezas estacionárias)
Astronomia (estuda as grandezas dinâmicas em movimento)

É de realçar que o pensamento boeciano teve um papel único no século XII, não sendo por acaso que Marie-Dominique Chenu chamou a este tempo de aetas boetiana (pp.142-158). Relevante indício da sua larga influência é o facto do místico Hugo de São Victor, da abadia homónima, ao escrever Didascalicon, um livro que é um autêntico compêndio das artes liberales, definir as disciplinas do quadrivium com a mesma terminologia de Boécio:

Um tipo de magnitude é móvel, como as esferas celestiais, outro, imóvel, como a Terra. Ora, a quantidade que permanece em si é examinada pela Aritmética, enquanto aquilo que está em relação a outra quantidade é observada pela Música. A Geometria toma conhecimento da magnitude imóvel, enquanto a Astronomia toma conhecimento daquilo que é móvel. A Matemática, por conseguinte, está dividida em aritmética, música, geometria e astronomia (Hugonis ST. Victore 755C) [4].

Mas, além de Boécio e Agostinho, outros autores há que também merecem ser destacados no âmbito do estudo das artes liberales, genericamente falando, ao longo da Idade Média: numa abordagem cronológica, temos, em primeiro lugar, Vitruvius, que em De Architectura destacou a necessidade de formação em geometria, música e no conhecimento das proporções celestes, facultado pela astronomia; mais tarde S. Isidoro de Sevilha, em Etymologiarum, verdadeira enciclopédia do saber medieval, lembrou o papel das artes liberales, e a importância dos números na demarcação da música, geometria e aritmética. Mais tarde, no século IX, o irlandês John Scott Eurigena, seguindo o pensamento agostiniano, considera as artes liberales como uma via para apreender a verdade da Revelação. Nos seus comentários às Institutiones gramaticae de Prisciliano, ele diz que elas brilham com a luz da sabedoria (sapientiae luce praefulgens) (O’Meara, 1992, p. 178).

No entanto, a maior influência nesta área foi a obra De Nuptiis Mercurii et Philologiae, de Martianus Capella, retórico do século V. Nela representam-se alegoricamente as artes liberais, como sete virgens que oferecem seus presentes no casamento entre Filologia e Mercúrio. A obra foi encontrada em muitos mosteiros e catedrais nos séculos XI, XII e XIII, e sabe-se que toda a personificação das artes liberais ao longo da Idade Média é-lhe conforme (Mâle, 2000, p. 79). Por exemplo, em Anticlaudianus, obra escrita por volta de 1180, Alain de Lille imagina a figura da sabedoria (philosophiae) tendo diante de si as sete artes liberales que, sobre uma carruagem, vão em busca de Deus (Alanus Ab Insulis, pp. 505-521).

De Nuptiis Mercurii et Philologiae foi indubitavelmente o compêndio de artes liberales mais popular da Idade Média. E é curioso que, apesar de não conhecer Euclides nem Ptolomeu, Capella tenha abordado cientificamente tanto a Geometria tanto como a Astronomia. Para ter sido levado tão a sério pelos medievais, tenha-se em conta o facto da obra ter sido escrita em tom alegórico, o que fazia convidar o espírito a contemplar temas tão difíceis como as ciências dos astros e a aritmética de forma fantasiosa.

Mas outras duas obras são de vivo interesse, pois foram bastante lidas no tempo de Chartres: são elas o Timaeus de Platão, traduzido e comentado por Calcidius no século IV, e o comentário in Somnium Scipionis, de Cícero, por Macrobius, provavelmente no início do século V. No seu comentário Macrobius trata largamente de temas científicos, abordando desde a natureza do número e sua presença no universo, à astronomia e geografia, escrevendo até sobre a vida humana. Repleto de descrições astronómicas, a obra serviu de base para a cosmologia do período carolíngio até ao século XII.

O quadrivium entre o período carolíngeo e o século XII

A divisão das artes em trivium e quadrivium era já usada no começo do século IX. Vários escolásticos pretenderam ver a sua utilização como fundamento para um perfeito conhecimento de Deus, como Alcuinus de York, na escola palatina de Aix-la-Chapelle, no tempo da corte de Carlos Magno. Em De vera philosophia, que constitui o início da sua Grammatica, Alcuinus apresenta o caminho rumo à sabedoria com sucessivas graduações, fazendo notar que em Provérbios IX, 1, a sabedoria ao construir a sua casa, fê-lo sobre sete pilares que não são senão as sete artes liberais (p.853) [5].

São de salientar nessa época os diagramas planetários baseados em vários autores latinos, como os já mencionados Martianus Capella e Macrobius, mas também Plínio o Velho (séc. I), Calcidius, na sua tradução e comentários do Timaeus de Platão. Entre eles, destaca-se o trabalho de Calcidius que ofereceu pela primeira vez um universo racional, geométrico e filosoficamente coerente (Eastwood, 2007, pp. 26-29):

As sete artes liberais

Trivium
(scientiae vocis)
Gramatica (Lua) - Linguagem
Dialectica (Mercúrio) - Lógica
Rethorica (Vénus) - Arte de falar
Quadrivium
(scientiae rerum)
Aritmethica (Sol) - Número
Musica (Marte) - Harmonia
Geometria (Júpiter) - Espaço
Astronomia (Saturno) - Movimento   


As sete artes liberales tinham uma relação com os sete planetas. As relações entre ambos remontam a tempos longínquos e seriam imortalizadas por Dante (1265-1361), no Livro II da Divina Comédia, “il Convivio”, onde se estabelece uma analogia entre as esferas celestes da cosmologia medieval e as ciências. Segundo Dante, envolvendo a Terra esférica, as sete esferas dos planetas, começando pela Lua até Saturno, podem ser comparadas com as sete ciências. Assim, a Gramática correspondia à Lua, Dialética a Mercúrio, Retórica a Vénus, Geometria a Júpiter, Música a Marte, Astronomia a Saturno e a Aritmética ao Sol. A oitava esfera, a do Firmamento, associava-se à Física e à Metafísica. Dante afirma, por exemplo, que o sol relaciona-se com a aritmética da seguinte maneira: primeiro, ele é fonte de luz para todas as outras estrelas. Segundo, o olho não pode olhar a luz pela sua luminosidade. Por analogia, a aritmética – o estudo das propriedades numéricas – é o fundamento de todas as outras ciências analíticas, pois apesar dos números serem infinitos e imateriais, o intelecto humano pode ver e compreender seus princípios fundamentais (Lansing, 2000, p. 736).

Pelo fato de trabalhar com números e proporções, o quadrivium seria o melhor meio de compreender a ordem do universo, enquanto obra primorosa concebida pelo divino arquiteto, pois acreditava-se que as distâncias entre os planetas – bem como seus movimentos espaciais – estavam ordenados matematicamente. Portanto, estudar o universo seria tarefa não só da astronomia, mas também da ciência geométrica que estudava as leis imutáveis do espaço dispostas harmonicamente por Deus, segundo as proporções aritméticas e os padrões da harmonia musical.

Entre os séculos X e XI, em Reims, Gerbert d’Aurillac (930-1003), futuro Papa Silvestre II, aprofunda as artes do quadrivium. Desde o norte da França à abadia de Ripoll, da Catalunha à Itália, Gerbert ensina música, astronomia e geometria. Conhecem-se pelo menos duas obras redigidas sob sua inspiração, nomeadamente De Geometrica e De Astrolabio, que fazem transparecer a trajetória dos seus ensinamentos e o objetivo dos seus estudos: o aprofundamento das ciências naturais e práticas. Dando primazia à astronomia, Gerbert considera contudo que a geometria não é uma ciência que se reduz somente à resolução de problemas práticos, mas constitui uma forma sapiencial de pensar e apreender o Universo (Levet, 1997, p. 3).

Conhecido como o “papa matemático”, Gerbert não estudou somente o quadrivium, mas foi profundamente influenciado pelas ciências árabes, tendo reintroduzido na Europa o ábaco, como o demonstram as Regulae de numerorum abaci rationibus, e a esfera armilar. Dentre os seus alunos encontram-se figuras eminentes como Adalberon de Laon, João de Auxerre e o futuro fundador da escola de Chartres, São Fulberto de Chartres (c. 960-1028). Este último chega a Chartres por volta de 990, depois de ter estudado em Reims com Gerbert e tido por tutor Odon de Cluny, o qual fora aluno de Remigius de Auxerre. Mais tarde, torna-se mestre e chanceler, dirigindo as escolas da catedral que ele próprio manda reconstruir, após ser eleito bispo em 1006. Até à sua morte em 1028, Fulberto foi o grande impulsionador do estudo da filosofia, e quase todos os homens cultivados do seu século tiveram-no como mestre. Os ensinamentos dele situam o conhecimento do mundo não na percepção sensorial mas nas ideias; quer dizer, saber não significa um conhecimento ou mera classificação do universo, mas estudar sobretudo os seus princípios aparentes, isto é, as leis que o compõem (Brown, 2008, p. 237).

Entre os estudos de aprofundamento do quadrivium pelos seguidores de Gerbert, salienta-se a troca de oito cartas, cerca de 1025, entre Ragimbold de Colónia e Radolf de Liège – ambos alunos de Fulberto – que versam sobre uma questão de Boécio extraída das Categorias de Aristóteles, acerca de problemas de geometria. Apesar dessa troca de carteio revelar o diminuto e muito fragmentado conhecimento de ambos em Geometria,– além do que não conheciam nem grego nem as matemáticas árabes – é notável, sem dúvida, este vivo interesse por questões científicas e pelas obras antigas, o que viria a ter correspondência, um século mais tarde, na filosofia natural do Timaeus de Platão praticada pela escola de Chartres (Grant, 1977, pp.14-15).

O QUADRIVIUM NA ESCOLA DE CHARTRES

Se a cidade de Paris do século XII se tornou famosa pelos estudos de filosofia e teologia, as ciências, enquanto estudo da natureza e do que hoje chamamos comumente de ciências naturais, teve seu início com a escola de Chartres. Thierry de Chartres, por exemplo, ao interpretar o Génesis, propõe fazê-lo segundo as leis dos físicos (secundum rationem physicorum) (Häring, 1971, p. 562). Este modo racional de abordar a Criação reflete-se em outras obras suas: no prólogo do já mencionado Heptateucon, Thierry relaciona a sabedoria (sapientia) com a ciência das coisas (quadrivium); e no seu comentário ao De Trinitate de Boécio, faz um paralelo entre a sabedoria e a matemática, sublinhando que o costume dos antigos era aprender primeiro a matemática, de modo a poder aceder ao conhecimento de Deus ([…] quia mathematicam solebant prius antiqui discere ut ad divinitatis intelligentiam possent pervenire) (Häring, 1971, p. 62) [6]. O seu conceito de sabedoria está, portanto, relacionado com as artes do quadrivium, pelas quais, afirma ele, o universo pode ser estudado. Ter sabedoria significa compreender a racionalidade interna da natureza, que é alcançada por intermédio das ciências matemáticas, os quatro meios de ascender ao Deus criador (quattuor genera rationum ad cognitionem Creatoris), como o próprio Thierry afirma:

Assim, pois, existem quatro tipos de razões que levam o homem ao conhecimento do Criador, a saber: as provas aritméticas, musicais, geométricas e astronómicas. Nesta teologia devem-se empregar com prontidão ditas ferramentas, de maneira que se veja nas coisas a maestria do Criador e se manifeste racionalmente o que foi exposto (Häring, 1971, p. 568).

Na sua hermenêutica da Criação, Thierry tenta coadunar a narração evangélica com a experiência sensível e constatável pelas leis naturais, tentando fazer coincidir a exposição do autor sagrado com as exigências da ordem da natureza (ordo naturalis), nos momentos primeiros do mundo (Häring, 1971, p. 559). Na mesma linha, o seu contemporâneo e também mestre da mesma escola, Bernardo de Chartres, procurou fazer uma autêntica lectio physica da Criação, pois, na sua Glosae super Timaeus, obra na qual procura compreender a origem e ordem do universo, mostra como é possível inteligir as causas naturais através das ciências do quadrivium, pois é por intermédio dos números que se encontra a perfeição da ciência (scientia quadrivii […] est perfectio scientiae per numeros) (Dutton, 1991, p. 178).

Cabe aqui fazer uma indicação importante: existia na época uma concepção de que Deus governava o mundo através de uma lei, não no sentido moderno, mas a que chamavam alma do mundo (anima mundi), através da qual Deus mantinha ab extra todos os seres na sua devida ordem dentro do universo dos seres, ao mesmo tempo que lhes proporcionava as leis ab intra, que os faziam desenvolver conforme sua natureza. Vários chegaram inclusive a relacioná-la com o Espírito Santo, como Pedro Abelardo, que teve nesse assunto mais um motivo para a sua posterior condenação. De fato, era difícil distinguir entre o que era poder de Deus e lei da natureza, a qual ainda não se concebia enquanto tal. Sob esse aspecto, Thierry de Chartres, no seu comentário sobre a Criação, afirma que

em virtude daquele poder que opera sobre a matéria, existem todas as coisas que são ou podem ver-se no céu ou na terra. Com efeito, porque a própria matéria é por si mesma informe, não pode de modo algum obter a sua forma senão pelo poder do artífice que a trabalha e a ordena. (Häring, 1971, p. 566)

É pelo “espírito” de Deus, portanto que são governadas todas as espécies do mundo, cada qual segundo a natureza que Deus lhe conferiu (Häring, 1971, p. 566).

Seguindo a tradição neoplatônica, Thierry chama a essa força de (hyle), que é, em última análise, o mundo enquanto receptáculo de todas as coisas existentes, sejam as que se movem como as que vivem, e lembra que foi Platão, no Timaeus, que lhe chamou de anima mundi. Estas expressões filosóficas são depois relacionadas e justificadas com a frase do autor sagrado quando afirma no Génesis que “o Espírito do Senhor pairava sobre as águas” (Häring, 1971, pp. 566-567). Face à dificuldade de entender a origem e significado deste “poder”, o último dos grandes mestres de Chartres do século XII, João de Salisbury, deixou uma explicação sucinta mas clara sobre o seu significado:

O espírito criado [a anima mundi], isto é, o universal e natural movimento, toma uma forma que é em si mesma invisível numa matéria de si invisível, de uma tal maneira que o que é composto delas é transformado num género de substância atual e visível. O espírito é um movimento natural e universal, que contém os quatro elementos como se fossem ligados à matéria [hyle], e espalhados no firmamento pelas estrelas, no mundo sublunar pelo fogo, ar, água e terra, e em todas as outras coisas que naturalmente movem-se no mundo. A este movimento Mercúrio [Hermes] chama natureza, Platão chama de anima mundi, outros chamam destino e os teólogos chamam de providência divina. (Joannes Saresberiensis, 961D-962A)

Este poder da natureza foi o objeto principal do estudo de Chartres. Por isso se explica como era possível a crença de Bernardo de Chartres numa possibilidade de conhecer a ordem do universo através do quadrivium, e como ela se prendia ao facto de que a estabilidade do cosmos lhe fosse propiciada pela rigidez de leis métricas e por proporções matemáticas. Bernardo crê que esta firmeza e solidez do universo tem origem nos números 1, 2, 3 e 4, que são os que constituem a anima mundi, e, é importante recordar, são os mesmos da harmonia musical.

Com efeito, recorde-se que o medieval acreditava que a harmonia do mundo só podia existir porque era fundamentada na harmonia – do grego [ἁρμονία], que significava o princípio máximo de perfeição - das proporções musicais, isto é, da distâncias entre vários tons. Daí o fato, anteriormente mencionado, de se crer que os planetas estavam ordenados matematicamente segundo as tonalidades da escala musical. Razão pela qual eram capazes de produzir harmonias belíssimas ao movimentarem-se, que contudo não podiam ser captadas pelo ouvidos dos mortais – noção esta, de origem pitagórica, que ficou conhecida por teoria das esferas celestes. Para confirmar que o estudo da ordem do universo se faz pela música e por cálculos aritméticos, Bernardo lembra que Platão ensinara que a estrutura, ou a “sinfonia” do mundo partia dessa harmonia (Quibus simphoniis mundi fabricam constructam esse docebit) (Dutton, 1991, p. 146) [ver imagem 1].


IMAGEM 1. Escultura de Pitágoras (inferior esq.) tendo acima de si a Música (detalhe do Portal Royal de Chartres). À sua direita está Donato (ou Prisciano) que tem acima de si a Gramática.

Fonte: https://nibiryukov.narod.ru/nb_pinacoteca/nb_pinacoteca_sculpture/nb_sculpture_unknown_french_xii_chartres_cathedral_portal_statuettes.jpg


Essa ideia é largamente explorada pelos autores do século XII, como o inglês Adelard de Bath, que foi muito provavelmente um aluno de Thierry de Chartres. Em De eodem et diverso, recordando a Pitágoras, considerado o pai das matemáticas, Adelard ressalta a atração que a música exerce sobre homens e animais e lembra que isso se deve ao fato de que a harmonia da alma do mundo está presente em todos os seres do universo “o mesmo filósofo [Pitágoras] disse que a alma do mundo foi unificada destas consonâncias […] pois ela está em harmonia consigo mesma e alegre de colocar essa mesma harmonia nos corpos” (Burnett, 1998, p.54).

O estudo da música teve um papel fundamental nos mosteiros, ao longo da Idade Média. Na abadia de Cluny, que tinha na liturgia o centro gravitacional das suas atividades, a música estava no âmago da vida dos monges. Por isso, ao recitar o ofício, eles pretendiam entrar em consonância com a ordem do universo, que tinha na sua harmonia o mais belo hino de louvor da criação em relação ao seu Criador. Por isso, não é de admirar que o abade Hugo de Cluny tenha colocado nos capitéis do coro da basílica de Cluny uma representação dos tons musicais. Marie Thérèse D’Alverny deixou-nos um artigo bem significativo dessa mentalidade, que data de inicíos do século XII e reflete as influências de Calcidius, Capella, Macrobius e Boécio nas percepções musicais dos religiosos. Nele, ela comenta um curioso manuscrito intitulado De VII planetis et VIII musis, através do qual o autor - um anónimo monge - tenta suavizar os ensinamentos científicos com a arte poética. Para esse efeito, o método de ensino dos astros é dado através da leitura de uma prosa, que deve ser ao mesmo tempo cantada, e que faz corresponder para cada um dos sete tons da escala musical, um dos sete planetas (D’Alverny, 1964, pp. 7-20).

Como a música, as disciplinas que compõem o quadrivium são as scientiae princeps do estudo da natureza, ou seja, um modo científico que permite estudar o mundo criado, num caminho ascensional rumo ao Criador, como afirma Guilherme de Conches (100D) [7]. Uma edição de um tratado de autor anónimo Tractatus quidam de philosophia et partibus eius, publicado por Gilbert Dahan, revela bem como o homem platônico do século XII abordava os temas da natureza com base no quadrivium, dando-lhe um carácter científico (Dahan, 1983). Dahan é da hipótese do autor do texto ter sido discípulo de Guilherme de Conches. Este controverso mestre de Chartres compôs também uma Glosa super Platonem, onde seguiu os princípios geométricos e aritméticos dados por Boécio ao interpretar a ordem do mundo. Guilherme propõe uma autêntica ‘teologia musical’, pois para ele a anima mundi contém em si a harmonia arquetípica, que se reflete em todos os seres criados. E por isso os fenômenos que se podem contemplar na natureza têm leis próprias e inalteráveis. Essas leis Guilherme tentou explicar e interpretar nos três tratados filosóficos que nos chegaram: Glosae super Platonem, Philosophia mundi e Dragmaticon philosophiae.

É importante considerar como há na escola de Chartres um veio de busca sapiencial das causas da ordem do mundo criado, que suscita uma sinonímia entre scientia, sapientia e philosophia, isto é, entre aqueles que são considerados os instrumentos aptos para uma verdadeira interpretação da ordem do universo (Meirinhos, p. 4; Evans, 1993, pp. 7-8). Na verdade, a sabedoria é o fim último da filosofia (philosophia ergo est studium sapientiae), segundo Thierry de Chartres (Häring, 1971, p. 68), e a filosofia tem como instrumentos da sua análise as scientiae rerum, isto é, as ciências que estudam a verdade das coisas na imutabilidade dos números, como foi antes visto. Por isso, em Chartres, ciência e filosofia são os meios válidos, e porventura os únicos, para se alcançar a sabedoria. A imagem que mais bem expressa esse género de pensamento, e talvez também a mais bela, relacionando as artes liberales com a sabedoria, encontra-se no diagrama da filosofia da obra Hortus deliciarum, da mística Herrad de Landsberg, escrito após 1176 [ver imagem 2].

IMAGEM 2. A dama Philosophia tendo abaixo de si Sócrates e Platão e rodeada pelas sete artes liberais (as artes poéticas estão fora do círculo das ciências) © Strasbourg, Bibliothèque Municipale, (ms. perdido) Herrad de Hohenbourg, Hortus Deliciarum, f. 32r


CONCLUSÃO

Como foi visto, no século XII, a escola de Chartres pretendeu unir a teologia com as ciências matemáticas. Fruto de uma teologia de pendor platónico, desenvolvida sobretudo com base nos autores latinos dos séculos IV a VI, Chartres reúne e trabalha o pensamento físico e metafísico platónico - imbuído ainda de uma boa dose de matemáticas pitagóricas - que se encontra no Timaeus. No auge desta escola, estas teorias serviram tanto para a especulação teológica chartriana – de pendor naturalista - como para algumas aplicações científicas e práticas. Por isso, Winthrop Wetherbee afirmou que o século XII soube utilizar ferramentas na sua busca pelas causae e pelos principia, por onde é possível vislumbrar um gênero de pensamento que se poderia classificar como “ciência platónica” (Wetherbee, 1988, p. 26).

O seu pensamento teológico volta-se mais para a descoberta da natureza, afastando-se assim do ideal místico de sabedoria que perdurara ao longo da Idade Média, a imitatio christi. O pensamento chartriano demonstra um novo ideal que se traduz num esforço por compreender a estrutura matemática do universo, estabelecendo uma relação entre a teologia - mãe de todas as ciências - e o quadrivium.

A escola de Chartres criou métodos de estudo das universitas rerum, que são a base da sua particular cosmologia, isto é, da sua forma de fazer teologia e de conceber a Criação. Por isso, Thierry de Chartres, por exemplo, relaciona tão facilmente conceitos como sapientia e quadrivium, devido à semelhante imutabilidade que existe entre o Criador e a exatidão das ciências matemáticas. Pretende-se então fazer desta sabedoria uma teologia, isto é, unir razão e revelação, no intuito de encontrar nas universitas rerum aquilo que elas têm de mais verdadeiro pela vinculação com o Criador. E não é, portanto, de surpreender que uma das duas primeiras personificações em pedra das sete artes liberais, encontra-se no portail royal da catedral de Chartres, datado de cerca de 1150; era o momento em que a escola chartriana estava em pleno florescimento e Thierry de Chartres era seu chanceler [ver imagem 3].


IMAGEM 3. Portal Royal de Chartres

FONTE: https://employees.oneonta.edu/farberas/arth/Images/arth212images/gothic/Chartres/royport.jpg


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A escola de Chartres e a tradição do quadrivium 

Artículo recibido el 25 enero de 2014 y aprobado para su publicación el 1 de julio de 2014

Resumo

A escola de Chartres foi um importante pólo do conhecimento no século XII. O pensamento chartriano ficou conhecido devido ao seu veio científico que procurou estudar as leis da natureza baseando-se nas scientiae rerum, isto é, no quadrivium. Era por intermédio das ciências matemáticas que o homem poderia, fazendo uso da abstração, intelectualizar os fenómenos que via na natureza e interpretar as leis que discernia no universo. Este artigo procura fazer um elenco das principais fontes neoplatónicas desse pensamento por meio de um apanhado histórico e hermenêutico – num périplo que abarca desde os autores latinos neoplatónicos aos mestres do renascimento carolíngeo – no intuito de perceber como, por meio dessas quatro ciências das coisas (scientiae res), Chartres se tornaria um dos mais importantes centros de estudo das artes liberales e uma percursora das modernas ciências da natureza.

Palavras-chave

Escola de Chartres, Matemáticas, Quadrivium, Ciência, Idade Média.


La escuela de Chartres y la tradición del Quadrivium

Resumen

La Escuela de Chartres fue un importante centro de conocimiento en el siglo XII. El pensamiento chartriano quedó conocido por su intención científica de estudiar las leyes de la naturaleza, con base en las scientiae rerum, es decir, en el quadrivium. A través de las ciencias matemáticas, el hombre podía, con el uso de la abstracción, intelectualizar los fenómenos que veía en la naturaleza e interpretar las leyes que discernía en el universo. Este artículo procura hacer un elenco de las principales fuentes de este pensamiento neoplatónico a través de un recorrido histórico y hermenéutico -en un recorrido que abarca desde los autores latinos neoplatónicos a los maestros del renacimiento Carolingio- con el objeto de comprender cómo, a través de estas cuatro ciencias de las cosas (scientiae res), Chartres se convirtió en uno de los centros más importantes para el estudio de las artes liberales y una precursora de las modernas ciencias de la naturaleza.

Palabras clave:

Escuela de Chartres, Matemáticas, Quadrivium, Ciencia, Edad Media.


The School of Chartres and Quadrivium’s Tradition

Abstract

The school of Chartres was a relevant center of knowledge in the 12th century. Chartrian thought became renowned due to its scientific scope which aimed for the study of the laws of nature based on the scientiae rerum, i.e., the quadrivium. Through mathematical sciences and by making use of abstraction, men could intellectualize the phenomena they saw in nature and interpret the laws they observed in the universe. Following a historical and hermeneutical approach, the paper aims to list the main sources of such a neoplatonic thought, which range from Latin neoplatonic authors to Carolingian renaissance masters, in order to understand how, through these four sciences of things (scientiae res), Chartres became one of the most important centers for the study of the liberal arts and a forefather of modern nature sciences.

Key words

School of Chartres, Mathematics, Quadrivium, Science, Middle Ages.


Notas:

(*) Doctor Canónico en Filosofía (2012) por la Universidad Pontificia Bolivariana (Medellín, Colombia). Es sacerdote de la Sociedad Clerical de Vida Apostólica Virgo Flos Carmeli y miembro de la Asociación Internacional de Derecho Pontificio Heraldos del Evangelio. Correo electrónico: p.jorgefilipe.ep@gmail.com.

[1] Sobre esta problemática, veja-se D’Alverny, 1964, pp. 68-69.

[2] “Nam, cum sint duo praecipua phylosophandi instrumenta, intellectus eiusque interpretatio, intellectum autem quadruvium illuminet, eis vero interpretationem elegantem, rationabilem, ornatam trivium subministret, manifestum est heptatheucon totius phylosophiae unicum ac singulare esse instrumentum”.

[3] “Sed inmobilis magnitudinis geometria speculationem tenet, mobilis vero scientiam astronomia persequitur, per se vero discretae quantitatis arithmetica auctor est, ad aliquid vero relatae musica probatur obtinere peritiam”.

[4] “magnitudinis vero alia sunt mobilia, ut sphaera mundi, alia immobilia, ut terra. multitudinem ergo quae per se est arithmetica speculatur, illam autem quae ad aliquid est, musica. immobilis magnitudinis geometria pollicetur notitiam. mobilis vero scientiam astronomicae disciplinae peritia vindicat. mathematica igitur dividitur in arithmeticam, musicam, geometriam, astronomiam”.

[5] “Sapientia aedificavit sibi domum, excidit columnas septem […]. Divina praeveniente etiam et perficiente gratia faciam quod rogastis, vobisque ad videndum ostendam septem philosophiae gradus”.

[6] Ver em Guilherme de Conches. Glosae super Platonem (Jeauneau 1965 p. 61): [Mathematica vero quadrivium continent]. Também In Consolationem, I, pr. 1 (Nauta 1999 p. 34): [[…] per mathematicam et phisicam, usque ad caelestia; deinde ad contemplationem incorporeorum usque ad creatorem per theologiam. Et hic est ordo philosophiae].

[7] “[…] ad studium philosophiae debemus accedere. Cujus hic ordo est, ut prius in quadrivio, id est ipsa prius arithmetica, secundus in música, tertius in geometría, quartus in astronomía. Deinde in pagina divina. Quippe cum per cognitionem creaturae ad cognitionem Creatoris perveniamus”.

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