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Este é um blog sobre Matemática em geral, com ênfase no período clássico-medieval, também sobre as Artes liberais (Trivium e Quadrivium), so...

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Educação (Paideia) na Antiguidade Cristã

Três Santos Hierarcas da Igreja:
São Basílio, o Grande,
São João Crisóstomo e
São Gregório, o Teólogo

CRISTIANISMO E PAIDÉIA

Desde a obra famosa de Werner Jaeger, o termo paidéia sugere de imediato o conceito de ideal formativo do homem, descoberto e formulado pelos gregos. A paidéia seria, então, o ideal de educação do homem completo, bem desenvolvido física e espiritualmente, isto é, amadurecido com o auxílio da arte e a colaboração dos adultos experientes no pleno exercício das suas potencialidades físicas, intelectuais e morais. Acontece, entretanto, que esse ideal formativo, formulado de modo clássico e com valor perene, por se assentar na realidade e no conceito de personalidade humana, revestiu na prática certos aspectos muito discutíveis e dignos de censura. Assim, por exemplo, a clara percepção da existência do poder intelectual e do papel da lei na vida física, social e moral foi sombreada pelos raptos imaginativos que engendravam quimeras, como as figuras mitológicas dos deuses que se apresentavam como seres reais, e ela não foi apenas entenebrecida, como também conspurcada, pelos vícios que degradaram o povo que soube espargir pelo mundo ideias tão luminosas. Por isso, quando o Cristianismo surgiu, houve de início um choque entre os representantes da paidéia clássica e os mensageiros da Boa Nova anunciada por Nosso Senhor Jesus Cristo. Os discípulos do Verbo Salvador receberam do Mestre divino a mesma noção da eminente dignidade do ser humano e, ainda mais, com uma idéia muito superior dessa dignidade, quando tomaram consciência de que o homem não é só imagem de Deus pela sua inteligência e pela sua liberdade, como por ter sido elevado ao plano da vida sobrenatural mediante a posse da graça divina que lhe foi outorgada com a criação, perdida pelo pecado e recuperada por meio do sacrifício redentor de Cristo. Por conseguinte, havia uma identidade de concepção greco-cristã quanto ao valor da personalidade humana, mas com vantagem para os cristãos, que tiveram acesso, pela Revelação, ao conhecimento do valor superior do homem, enquanto ser participante da vida divina. Ora, essa concepção do homem criado íntegro, decaído e redimido, mas que deve lutar para se conservar no estado de graça que lhe abre as portas para o reino que não é deste mundo, vinha impor novas condições para a educação do ser humano, sobre ser a nova paidéia inteiramente refratária aos desvarios da fantasia, que se permitia construir o mundo lúcido e fabuloso dos mitos sem consistência real, e aos vícios que corrompiam e enfeavam os homens já enfraquecidos pelo pecado original. Daí, segundo a concepção educacional cristã, a necessidade da ascese, o perpétuo combate espiritual, enquanto dura a existência, a necessidade da penitência, da metanoia, a contínua conversão da pessoa no rumo do Senhor Deus, o abandono do velho fermento do pecado, do homem velho, num contínuo esforço de renovação espiritual. Por isso, os cristãos podiam assumir valores naturais da paidéia grega, mas não podiam admitir os extravios do seu espírito e da sua mentalidade. Em virtude deste último aspecto do espírito grego, muitos pensadores cristãos julgaram, de início, inconciliável a paidéia grega com a doutrina cristã condenando os pagãos ou gentios idólatras e imorais e recusando o que tomavam como pretensa sabedoria deste mundo oposta à sabedoria de Deus, revelada através dos Profetas e dos Apóstolos. Ora, foi exatamente o alto feito educacional de Clemente de Alexandria, nas pegadas do mártir São Justino, ter concorrido para harmonizar a paidéia grega com o espírito cristão, a filosofia pagã com o Evangelho, procurando demonstrar que a filosofia não é "pagã" por natureza, mas uma decorrência da natureza, mas uma decorrência da natureza intelectual do ser humano do ser humano e, por conseguinte, uma dádiva de Deus ao homem, como as artes e as ciências, dons subjetivos, mas dons como os bens externos representados pela variedade e pela beleza das criaturas, como o mar, as montanhas, as flores e as estrelas. Com essa convicção, Clemente de Alexandria aprofunda a idéia de São Justino quanto ao Logos que se fez homem e é o princípio de toda sabedoria, e procura demonstrar que a plenitude da razão e da vida espiritual só se encontra na vida cristã.

[...]

A PAIDÉIA GREGA E A VIDA CRISTÃ

O ínclito helenista Festugière O. P. escreveu páginas notáveis a respeito da paidéia grega e da vida cristã, tomando por base a cidade de Antioquia no século IV e as figuras cimeiras do retórico Libânio e do maior orador cristão do Oriente, São João Crisóstomo. Este, como teremos ocasião de estudar detidamente num capítulo especial, nutria a convicção de que os jovens deviam recolher-se sem pestanejar a um mosteiro, para se dedicarem à religião e ao estudo da santa doutrina, livres dos perigos da sociedade mundana. São João Crisóstomo demonstrava com isso um excessivo e feroz rigorismo, tal como São Jerônimo, ódio por tudo que fosse humano, desconhecimento das verdadeiras condições da vida religiosa e uma ausência de tato espiritual, diz Festugière, que nos aflige e aborrece [19]. Nessa época cultivou-se um erro, que durou muito tempo: o de poderem os pais constranger os filhos a seguir a vida religiosa num mosteiro, embora estes não tivessem a mínima inclinação para este gênero de vida.

O que se sabe a respeito da educação clássica em Antioquia no século IV vale igualmente para outros grande centros escolares do Oriente. A essência da educação antiga consistia da leitura assídua dos famosos autores gregos, os clássicos, de Homero a Demóstenes. O método seguido era o de ler os grande textos e decorá-los, a fim de recitar trechos poéticos ou em prosa diante do mestre, do pedagogo ou para si mesmo. Depois vinha as composições escritas, e as declamações feitas em classe perante mestres e colegas e, às vezes, diante dos pais e dos amigos. Evidentemente, só os meninos e jovens de famílias dotadas de recursos recebiam esses tipo de formação em gramática e retórica, uma vez que os pobres aprendiam um ofício manual que passavam de artesão a artesão numa tradição imemorial.

Festugière traça com mestria o quadro das oposições de vantagens e perigos da paidéia grega. Inegavelmente, a paidéia propunha ao homem um tipo de vida decente que a pessoa bem educada devia levar. As regras de conduta iam da epieiqueia, modéstia e conveniência, e da filantropia, generosidade (ajuda às pessoas em desgraça), até a civilidade pueril e honesta. Esse código de boas maneiras assemelhava-se ao do honnête homme do século XVII ou do gentleman inglês, e Libânio denominava-o maneira grega de viver, ellênikón esti, de tal modo que iniciar-se na cultura grega significava estudar os autores da Grécia e adotar o estilo de vida helênico, Ellênikos Bios, sem os seus vícios tradicionais. Quando se compara a moral grega com a cristã verifica-se que há uma diferença radical entre ambas, mas que podem congraçar-se numa obra de plena realização humana. A moral grega baseia-se na noção de prépon, ou seja, um homem para ser homem, e portanto para viver como ser racional, tem o dever para consigo mesmo de ser belo aos próprios olhos e aos olhos dos outros, isto é, deve procurar alcançar um alto nível de vida moral que constituí a beleza por excelência.

A moral cristã baseia-se na noção de pecado, de ofensa ou falta contra Deus e que por Ele é punida, de modo que o temor de Deus, o temor do seu juízo e da sua punição, constitui a mola primordial dessa moral. Ora, podem conciliar-se perfeitamente os dois ideais, de forma objetivo natural e humano enaltecido pelos gregos seja coroado pela meta sobrenatural e pelo critério evangélico da moral cristã.

Festugière aponta, finalmente, duas classes de perigos da paidéia grega: a indecência de algumas lendas mitológicas e certa aliança dos ierá e dos lógoi, da religião pagã com o estudo das letras, relação que não era necessária mas se fazia na prática habitualmente. Ora, os próprios pagãos perceberam, denunciaram e condenaram a indecência de muitas lendas mitológicas tanto que, desde a Stoa, pelo menos, existiam interpretações físicas ou morais desses mitos que lhes retiravam o veneno. Aliás, observa Festugière, se havia algum perigo em certos mitos gregos, não era nos livros que ele se achava mas na sua representação no teatro sob a forma de pantomimas. Além disso, adotava-se nas escolas o uso de antologias, em que se omitiam as passagens escabrosas. O recurso às antologias já fora recomendado por Platão, que nas Leis afirma ser de boa prática educacional levar os jovens à leitura de longos trechos seletos e à sua recitação de memória quando se pretende que tais jovens se tornem bons e sábios à custa de experiência e de erudição. Diz ainda Platão que existem nos livros dos poetas muita coisa para louvar e muito para censurar [20]. 

Uma vez que no século IV não existiam colégios para a educação da juventude, e já que também a autoridade paterna decaíra por completo em muitos lares, havia cristãos que condenavam de uma vez os templos, os espetáculos e os livros pagãos, repudiando desse modo a cultura pro- fana. Assim pensaram os monges do Oriente, máxime em Antioquia, e moralistas rigorosos, como São João Crisóstomo, que haviam recebido educação monástica e que, preocupados com a salvação eterna das pessoas, achavam que elas deviam ser preservadas das tentações das cidades e dos perigos dos espetáculos. Por isso, tratavam de arrancar os jovens aos encantos da paidéia e só lhes recomendavam a leitura da Bíblia, a recitação dos salmos e a existência recolhida dos mosteiros. Apesar desse exagero, a obra de São João Crisóstomo contém muitos e valiosos ensinamentos a respeito da educação dos filhos.


Referências:

[19] Festugière O. P., Antioche Païenne et Chrétienne, p. 212.

[20] Platon, Lois, 1. 7, 811 a - 811 b, vol. III, pp. 44-45.

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Texto retirado de História da Educação na Antigüidade Cristã de Ruy Afonso da Costa Nunes de 1978 e republicado em 2018 pelas Edições Kírion.


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