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Este é um blog sobre Matemática em geral, com ênfase no período clássico-medieval, também sobre as Artes liberais (Trivium e Quadrivium), so...

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A divisão da Aritmética - por Boécio


Alegoria da aritmética, de Margarita
 Philosophica por Gregor Reisch, 1503

Trecho retirado do livro Coleção de Artes Liberais Vol. 9: Aritmética do Instituto Hugo de São Vitor.

Proêmio: no qual está divisão da Aritmética

Anício Mânlio Torquato Severino Boécio

Todos os homens de antiga autoridade que, tendo o próprio Pitágoras como guia, floresceram com um tino mais puro de mente, convêm em que não é dado alcançar o cume da perfeição filosófica a qualquer um, mas somente àquele que, por nobreza e bom senso, é capaz da trilhar como que um caminho de quatro vias [quadrivium], o que, por certo, não escapará ao engenho do bom observador.

O entendimento da verdade é a sabedoria das coisas que são e das divisões da substância imutável. Dizemos que estas coisas nem crescem por expansão, nem diminuem por retração, nem se transformam por variações, mas se preservam, sempre apoiadas na força própria de sua natureza. São estas, no entanto, qualidades, quantidades, formas, magnitudes, pequenezas, igualdades, hábitos, atos, disposições, lugares, tempos e o que quer que se encontre unido aos corpos de alguma maneira. Apesar de unidas aos corpos, elas são de natureza incorpórea, carregam a noção de substância imutável; porém, pela participação no corpo, se transformam e pelo contato com coisas variáveis se sujeitam à inconstância cambiável.

As coisas, portanto, que participam da natureza da substância imutável, como foi dito, são as que de fato propriamente existem. A sabedoria lucra com a ciência destas coisas, isso é, coisas que propriamente existem, cada uma levando o nome de sua essência. Tais essências são partes semelhantes: mas uma é contínua e ligada por suas partes sem dividir-se por fim algum, como é uma árvore, uma pedra e todos os corpos deste mundo; esses tipos se chamam magnitudes; outra parte é disjunta de si, determinada por partes e trazida a uma assembleia quase que por acumulação, como um grupo, um povo, um coro, um monte e o que quer que tenha as partes limitadas por extremidades próprias e descontínuas aos términos de outra quantidade. Desta última, o nome próprio é multidão. Dentre elas, as multidões que não carecem de nada são per se, como três, ou quatro, ou o tetrágono ou o número que for. Outras quantidades, no entanto, não subsistem por si só, mas se referem a um outro, como o duplo, a metade, a sesquiáltera, o sesquiterço e tudo que, se não estivesse relacionado a outra quantidade, não subsistiria. Certas magnitudes, no entanto, são inertes, carecem de movimento, enquanto outras não descansam em tempo algum, sempre giram em rotação móvel. A aritmética, portanto, examina as multidões que por si só subsistem. Já aquelas quantidades que estão relacionadas a outras, as medidas da harmonia musical bem conhecem. Já o conhecimento da magnitude imóvel é a geometria, que promete, ao passo em que a experiência da astronomia reivindica para si a ciência da quantidade móvel.

Se a um examinador faltar essas quatro partes, ele não poderá encontrar o que é verdadeiro, pois sem esse exame da verdade não se conhece coisa alguma com acerto. Logo, o conhecimento destas coisas que realmente são, é entendimento e compreensão completa. E àquele que despreza tais coisas, ou seja, as sementes da sabedoria, declaro que não pode filosofar corretamente, se filosofia é mesmo o amor a sabedoria, pois, desdenhadas estas coisas, também é ela própria desdenhada.

Julgo dever adicionar que toda força da multidão cresce na progressão de um término e vai ao infinito. A magnitude, porém, começa de uma quantidade finita e sua divisão é sem medida, pois tem partes infinitas em seu corpo. A filosofia deixa de lado tal potência infinita e indeterminada da natureza. O que é infinito não pode ser captado pela ciência ou compreendido pela mente, de ter sido destas coisas que a própria razão extraiu a noção do infinito para si, para que pudesse exercitar sua argúcia indagatória da verdade. Ela tomou para si dentre a pluralidade da multidão infinita uma porção finita da quantidade, e da magnitude interminável uma seção de quantidade finita para o conhecimento do espaço. Logo, consta que quem negligencia tais coisas, deixa escapar a doutrina da filosofia.

Esta é aquela via de quatro caminhos (Quadrivium), pela qual as almas mais excelentes são conduzidas, dos sentidos naturais às coisas mais certas da inteligência. São certos degraus e dimensões do progresso, pelas quais se pode ascender. O olho da alma, o qual, como diz Platão, é mais digno de se guarnecer que muitos olhos corporais, pois somente à luz dele pode-se investigar e inspecionar a verdade; digo que estas disciplinas sempre iluminam este olho, estes velado. Qual, dentre estas que está imerso nos sentidos corporais e e é por artes, se deve aprender primeiro, senão aquela que, de algum modo, serve como uma matriz de princípios às demais? Essa é a aritmética. Ela é anterior a todas as outras, não só porque Deus, fundador desta enorme massa terrena, a tomou como primeiro exemplar de seu raciocínio e segundo ela constituiu todas as coisas, as quais encontram harmonia na razão construtiva pelos números ordenados; mas a aritmética também é dita anterior porque, seja qual for a natureza das coisas anteriores, estas, se removidas, ao mesmo tempo removem as posteriores. Ao passo que, se o que é posterior perece, nada se altera no estado da substância anterior. Por exemplo, o animal, que antecede homem. Pois se removes o animal, imediatamente também a natureza de homem é destruída, mas se tirares homem, a natureza animal não perece. Por outro lado, o que traz consigo alguma outra coisa, é sempre posterior, enquanto aquilo que, quando dito, nada de posterior traz consigo, é anterior, como se ilustra com o homem. Se disseres 'homem', nomeias 'animal' ao mesmo tempo, pois 'homem' e 'animal' são o mesmo; se dizes 'animal', nada disseste da forma de homem, pois 'animal' e 'homem' não são o mesmo. Precisamente isso parece ocorrer na geometria e na aritmética. Se removes os números, de onde provém o triângulo e o quadrado ou qualquer outra coisa em geometria, todos os números são denominativos? Por outro lado, se removeres o quadrado e o triângulo, toda a geometria será destruída, mas o três e o quatro e o restante dos números não perecerão. Novamente, quando me pronuncio sobre alguma forma geométrica, simultaneamente há nisso o nome implícito dos números; quando falo de números, não nomeio nenhuma forma geométrica. Mas a música é anterior aos princípios dos números, e aqui podemos provar não somente que são anteriores as coisas que existem por si, ao que faz referência a alguma outra coisa. Mas a modulação musical dos números é designada com nomes, e o mesmo que foi dito da geometria pode acontecer aqui. O diatessaron [1], o diapente [2] e o diapason [3] são chamados por nomes que fazem referência ao número. Além disso, a proporção entre os sons não é encontrada somente nos números. O intervalo de oitava, por exemplo, se calcula na proporção de dois números. O intervalo de quarta perfeita é uma modulação composta de intervalos de segunda. O chamam de intervalo de quinta é também composto intervalos menores. que Aquilo que conhecemos como epogdous [4] nos números, é o mesmo tom na música; e para que não haja grandes dificuldades nesta obra, se mostrará, definitivamente, quão anterior é a aritmética às outras artes.

E precede a astronomia esférica tanto quanto as outras duas disciplinas antecedem esta terceira natureza. Na astronomia, há o círculo, a esfera, o centro e o eixo médio de um círculo paralelo, que são todas preocupações da doutrina geométrica. Pelo que se mostra que são anteriores os princípios da geometria, pois todo movimento vem depois do repouso e na natureza a imobilidade sempre precede o movimento. A astronomia é, pois, a doutrina das coisas móveis, como a geometria o é das imóveis; ou, pode-se dizer, a astronomia é a doutrina dos movimentos das estrelas, adornado por modulações harmoniosas.

Portanto, o curso dos astros precede os princípios da música pela antiguidade, tanto quanto sem dúvida supera, pela natureza, a aritmética, pois aquela parece mais antiga que esta. Racionalmente, porém, pela própria natureza dos números foram constituídos o curso de estrelas e o sistema astronômico. Pois assim calculamos o nascer e o ocaso, e medimos a lentidão e a velocidade dos astros errantes. Assim, reconhecemos os eclipses e as múltiplas variações da lua. Portanto, uma vez que os princípios da aritmética devem primeiro ser esclarecidos, comecemos por ela a discussão.


Notas:

[1] Um intervalo de quarta perfeito.

[2] Um intervalo de quinta perfeito.

[3] Um intervalo de oitava perfeito.

[4] Uma proporção musical de 9:8, ou um todo e mais um oitavo.

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