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Progresso e Tradição em Pedagogia

Avô contando uma história - Albert Anker (1884)

Por P. Leonel Franca

Entre extremos igualmente funestos nem sempre é fácil encontrar o equilíbrio sensato de justo meio. Há amigos da tradição que a comprometem, confundindo-a com a invariabilidade das coisas mortas. Há bajuladores do progresso que não compreendem o benefício das renovações salutares sem o radicalismo das revoluções destruidoras. Como preservar o fiel da balança dos extremos destas oscilações perigosas?

Quer-me parecer que um justo conceito do progresso é a primeira condição para formar a justeza moderada do critério. Da marcha evolutiva da humanidade não raro se apresenta uma noção inteiramente falsa. O homem, ao que se diz, avança na história pelas sendas de um progresso indefinido; o diagrama deste movimento poderia representar-se por uma linha ininterruptamente ascensional. O que para trás ficou não tem mais que um valor histórico; hoje representa um peso morto que devemos alijar; que o presente se desvencilhe do passado; a condição do progresso é a ruptura com a tradição.

Visão precipitada e insuficiente das coisas. Nas ciências há dois domínios nitidamente distintos: o das ciências da natureza -- e consequentemente da técnica -- e o das ciências do homem nos seus valores mais altos e específicos. No campo da observação dos fenômenos naturais o progresso é função quase exclusiva do tempo que multiplica os observadores e as observações. Os que foram grandes outrora, conservam hoje o direito à nossa admiração e reconhecimento pelos serviços prestados à causa científica. Mas já nos não sentamos à sua escola; não vamos estudar astronomia em KEPLER nem química em LAVOISIER; foram, já não são mestres .

Há, porém, outro domínio muito diverso das ciências positivas e suas aplicações técnicas: é o das ciências do espírito. Aqui, o progresso não é a função principal do tempo; do valor de uma obra decide em primeira linha o gênio do seu autor, a profundeza dos seus conhecimentos da vida interior das almas, a capacidade de discernir, sob a superfície das aparências que passam e mudam, a natureza humana no que ela tem de essencial, eterno e imutável. Por isso, na religião, na filosofia, no direito, nas artes, na pedagogia, a tradição não tem só o valor de história do que já se foi, mas ainda o de ensino perenemente vivo do que deve ser. Os mestres nestas disciplinas do homem não se sucedem, eliminando-se; superpõem-se, completando-se. PLATÃO e ARISTÓTELES continuam a ensinar-nos filosofia ao lado de S. AGOSTINHO e de S. TOMÁS; BERGSON [1] e HUSSERL [2] não suprimem KANT ou LEIBNIZ, HOMERO e VIRGÍLIO sobrevivem ao lado de DANTE e de CAMÕES. Nos monumentos de Atenas e de Corinto, como nas obras de BERNINI ou de MICHELANGELO, vamos ainda educar o nosso sentimento estético. Porque lemos BOURGET ou DOSTOIÉVSKI, não deixamos de aprender os refolhos do coração humano em GOETHE ou SHAKESPEARE. Todos estes foram e são mestres, ainda que separados por intervalos de séculos e milênios.

Em todo este imenso domínio em que entra no que tem de mais profundo a pedagogia, a tradição não só continua como mestra viva que quer e deve ser escutada, mas é ainda a cláusula necessária do verdadeiro progresso. Triste e mesquinha concepção esta que faz da ruptura com o passado a condição de vida para o presente e de salvação para o porvir. Neste corte de fio que nos liga às gerações de ontem, querem ver um enriquecimento onde na realidade não há mais que uma dilapidação temerária que nos empobrece. O que é a sociedade no espaço, é a tradição no tempo. A comunhão com os contemporâneos amplia-nos o campo visual, opulentando a nossa experiência própria que é de um só, com a experiência dos que vivem ao nosso lado e são muitos. Sem esta solidariedade no trabalho, seria a esterilidade do isolamento. A tradição vem alargar no tempo os benefícios desta sociedade das inteligências. Já não são somente as vozes contemporâneas, são as vozes de todos os séculos que nos vêm trazer a experiência de sua sabedoria.

Este contato benfazejo com os gênios de outras eras imuniza-nos ainda contra um perigo que não é quimérico: a ditadura da moda, a tirania da geração atual. Como todos os outros, o nosso século tem as suas paixões desorientadoras, sente a fascinação de influências efêmeras e naturalmente reveste-as com o rótulo sedutor de "progresso moderno", "de conquistas da ciência". Corrigir-lhes os desvios, temperar-lhe os excessos, ampliando no tempo o campo de observação, é uma verdadeira benemerência científica. O isolamento de cada geração das que a precederam é que é a verdadeira morte do progresso, a condenação a um recomeço indefinido. Não assistimos, porventura, nestas últimas gerações, ao nascimento, vida efêmera e morte precoce de tantos sistemas pedagógicos que se apresentavam em nome dos fatos e dos resultados definitivos das ciências positivas?

Muito larga e mais compreensiva é a pedagogia cató­lica. Sem renunciar a nenhuma inovação que se imponha em nome de um progresso real, ela não rompe os contatos com o passado. A sua experiência é mais ampla: a segurança dos seus fundamentos mais consolidada pela prova dos séculos.

Esta atitude sensata, preconizara-a, já há quase um século, um dos nossos grandes mestres: 

"Se importa não imobilizar ou prender a educação na rotina, se, pelo contrário, é necessário estudá-la sempre para melhorá-la, fortificá-la, torná-la mais e mais eficaz e fecunda, convém outrossim, nos acautelemos contra as inovações temerárias que vão quebrar a obra dos séculos, calcar aos pés as experiências do passado e lançar, neste grande trabalho da educação, as perturbações mais tempestuosas. O que a sabedoria das idades consagrou, o que a natureza das coisas -- regra suprema -- exige e impõe, convém respeitar profundamente, combinando-o sem o destruir, com o que podem exigir as necessidades novas, a marcha dos tempos, os progressos do espírito humano e as transformações sociais". (DUPANLOUP [4], De la haute éducation intellectuelle, t. III, p. 566.)

Eis uma visão mais compreensiva e justa da historia, colaboradora indispensável de todo progresso estável e duradouro. Fora daí, revoluções destruidoras, renovação perpétua de tentativas efêmeras .

Um grande pedagogo contemporâneo apontou na "transplantação da ideia de progresso contínuo, do domínio da técnica para o da atividade especificamente humana, a causa principal da tragédia de nossa cultura contemporânea. (FR. DE HOVRE [5], Le Catholicisme, ses pédagogues, sa pedagogie. Bruxelas, 1930, p. 403.).

Na lealdade de um esforço reconstrutor tentaremos conciliar as justas exigências da tradição e do progresso, ampliando incessantemente os tesouros do passado com as novas riquezas do presente. É a nobre, pacífica e fecunda missão da pedagogia católica.

Rio, julho de 1932.

Notas:

[1] N. da E.: Henri Bergson (Paris, 18 de outubro de 1859 - Paris, 4 de janeiro de 1941) foi um filósofo e diplomata francês, laureado com o Nobel de Literatura de 1927.

[2] N. da E.: Edmund Gustav Albrecht Husserl (8 de abril de 1859 - Friburgo em Brisgóvia, 27 de abril de 1938) foi um matemático e filósofo alemão que estabeleceu a escola da fenomenologia.

[3] N. da E.: Gian Lorenzo Bernini (Nápoles, 7 de dezembro de 1598 - Roma, 28 de novembro de 1680) foi um eminente artista do barroco italiano, trabalhando principalmente na cidade de Roma. Como arquiteto e escultor é autor de obras de arte presentes até os dias atuais em Roma e no Vaticano, como a Praça de São Pedro, a Capela Chigi, O Êxtase de Santa Teresa, Habacuc e o Anjo, etc.

[4] N. da E.: Mons. Félix Antoine Philibert Dupanloup (3 de janeiro de 1802 - 11 de outubro de 1878) foi um eclesiástico francês. Ele estava entre os líderes do catolicismo liberal na França.

[5] N. da E.: Frans de Hovre (1884-1958) foi um educador belga.

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Trecho retirado do livro A Formação da PersonalidadeP. Leonel Franca. Edições Hugo de São Vitor, 2019.


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