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Educação Clássica e S. Vicente Ferrer

Detalhe de São Vicente Ferrer em Virgem apocalíptica e São Vicente
Ferrer com dois doadores
, por Pedro García de Benabarre -
Museu Nacional de Arte da Catalunha, Barcelona (Espanha).


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Tempo de leitura: 63 minutos. 

A sapientia christiana e a analogia das artes liberais em um Sermão de São Vicente Ferrer (1350-1419), por Gustavo Cambraia Franco e Ricardo da Costa In: CORTIJO OCAÑA, Antonio; MARTINES, Vicent (orgs.). Mirabilia/Medtrans 04 (2016/2). New Approaches in the Research on the Crown of Aragon, p. 01-26. Disponível no LINK.

***

Resumo: O presente artigo contém uma exposição e análise do tema das Artes Liberais em um sermão de São Vicente Ferrer, renomado pregador dominicano valenciano da passagem entre os séculos XIV e XV. Pretende-se demonstrar que as Artes Liberais são abordadas pelo sermonista dentro do escopo teórico tradicional da classificação das ciências no período medieval, como ramos de conhecimento destinados ao serviço da ciência maior, a Teologia, a valer-se da máxima escolástica philosophia ancilla theologiae. A exposição do autor segue os princípios didáticos medievais do pensamento analógico, da hermenêutica figurativa e da exegese alegórica da Bíblia, mediante os quais enreda os significados e propriedades de cada ciência ou Arte Liberal, quais sejam, a Gramática, a Lógica e a Retórica, ciências do Trivium, e a Música, a Aritmética, a Geometria e a Astrologia, ciências do Quadrivium, em uma teia de relações metafóricas e analógicas que visam, ao fim, conferir um sentido e utilidade espiritual, religiosa e moral à cada uma delas e subordiná-las ao domínio régio da sapientia christiana.

Abstract: This article contains an exposition and an analysis on the theme of the Liberal Arts in a sermon of Saint Vincent Ferrer, renowned Dominican Valencian preacher during the passage between the fourteenth and fifteenth centuries. We intend to show that the Liberal Arts are addressed by the sermonist within the traditional theoretical scope of classification of sciences in the medieval period, as branches of knowledge for the service of the higher science, Theology, to avail the scholastic dictum philosophia ancilla theologiae. In his exposition, the author follows the medieval didactic principles of analogical thinking, the figurative hermeneutics and the allegorical exegesis of the Bible, by which he ensnares the meanings and properties of each science or Liberal Art, namely Grammar, Logic and Rhetoric, the Trivium sciences, and Music, Arithmetic, Geometry and Astrology, Quadrivium sciences, in a web of metaphorical and analogical relations aimed, at the end, to confer spiritual, religious and moral meaning and utility to each of them, as well as subordinate them to the royal domain of the sapientia christiana.

Palavras-chave: São Vicente Ferrer – Artes Liberais – Pensamento Analógico – Sermão Medieval – Ciência Medieval.

Keywords: Saint Vincent Ferrer – Liberal Arts – Analogical Thinking – Medieval Sermon – Medieval Science.

I. Introdução

Vicente Ferrer (1350-1419), renomado pregador dominicano de Valência, na Catalunha medieval, consagra um de seus sermões integralmente a tratar das Artes Liberais, a partir de uma estruturação quase matemática (e poética) de seus conteúdos. As sete disciplinas profanas e básicas do currículo escolar medieval são comparadas pelo pregador à Prudentia cristã, não sem motivo a primeira das quatro virtudes morais clássicas, relacionadas, no sermão, à ciência e sabedoria de Cristo [1].

Para compreender seus postulados sobre a matéria devemos inseri-los no quadro geral da perspectiva medieval acerca da noção de scientia e das ciências como um todo, bem como das transformações que o conceito de Artes Liberais experimentou durante a Idade Média, sobretudo a partir do século XIII, em um momento no qual o quadro geral das disciplinas tradicionais e as noções filosóficas acerca da ciência e do saber passavam por um câmbio radical.

II. As sete Artes Liberais no contexto da ciência medieval

Desde Santo Agostinho (354-430) [2], a tradição intelectual ocidental cristã concedeu um lugar privilegiado às chamadas Artes Liberais e aos saberes profanos no sistema de educação cristã e em seu programa de estudos, como etapas propedêuticas ao estudo da Sagrada Escritura. A organização dos estudos nas escolas medievais obedecia ao padrão que havia sido estabelecido por Santo Agostinho.

Até o século XII, o currículo de ciências profanas se limitava ao estudo das sete Artes Liberais como etapa preparatória ao conhecimento e exegese da Bíblia, ou seja, a leitura e interpretação crítica da divina pagina [3]. Apenas no século XIII é que as antigas escolas de artes liberais se transformaram em faculdades de artes liberais (facultas artium), uma seção das universidades na qual se ensinava as sete artes e na qual os estudantes recebiam uma formação literária e científica ordenada aos estudos superiores da Filosofia, da Teologia, do Direito e da Medicina.

As Artes Liberais não constituíam, com efeito, as únicas ciências profanas a fazer parte do amplo cabedal de disciplinas científicas na Idade Média. Santo Agostinho já havia numerado uma grande quantidade de matérias que formalmente deveriam fazer parte da formação intelectual cristã e que eram úteis no aprofundamento dos estudos bíblicos: línguas, ciências naturais, Aritmética, Música, História, Geografia, Botânica, Geologia, Astronomia, as Artes Mecânicas, Dialética, Retórica, Matemática, doutrinas filosóficas relativas à moral e a religião.

Boécio (c. 480-525) [4], que conhecia profundamente a estrutura completa da filosofia aristotélica, escreveu importantes tratados relativos à Dialética e ao Quadrivium e, a partir dele, a importância das Artes Liberais se acentuou no Ocidente. Escritores como Cassiodoro (485-580) [5], autor de De artibus ac disciplinis liberalium litteratum, Isidoro de Sevilha (556-636) [6] e suas Etimologias e João Escoto Eriúgena (815-877) [7], em seu Divisione naturae inseriram as sete artes no quadro geral da sabedoria filosófica que, em suma, era propriamente a sabedoria cristã que havia absorvido da cultura pagã seus recursos de investigação racional, postos agora à serviço da contemplação divina e da Palavra de Deus [8].

Antes do século XIII, nos ambientes do claustro monástico e das escolas catedralícias episcopais, as Artes Liberais e disciplinas profanas eram claramente concebidas como estudos meramente preparatórios ao estudo da scientia divina, considerada o cume da sabedoria. Entendia-se as Artes Liberais como diferentes divisões da Filosofia, essa considerada o conjunto e síntese completa do saber profano, em oposição à ciência sagrada. Os ramos básicos da Filosofia eram aqueles propostos e aprovados por Santo Agostinho e Orígenes (c. 185-253) [9], uma divisão tripartida em física, ética e metafísica/teologia.

A subordinação, portanto, das Artes Liberais às disciplinas superiores era de ordem pedagógica, pois deviam ser estudadas antes delas, de modo a preparar os espíritos e a inteligência para o ingresso intelectual em matérias mais difíceis.

No entanto, após a introdução no Ocidente das obras traduzidas de Aristóteles (384-322 a. C.) [10] e de sua adaptação ao currículo universitário medieval, um choque inevitável entre a cultura pagã renascente e a cultura da revelação cristã ocorreu novamente no meio acadêmico sob os olhares da autoridade eclesiástica.

Os medievais questionavam se, fato, era possível aderir a uma síntese de saber racional profano tal como fora concebido na Antiguidade grega, sem que por isso se arruinasse a unidade do saber e da inteligência cristã e o compromisso intelectual e espiritual com o primado do saber sagrado [11], o que espíritos e gênios mais equilibrados do medievo souberam pacientemente, e a seu tempo, resolver.

A assimilação das ciências e do saber profano foi possível, no plano teórico, mediante o trabalho de classificação e ordenamento hierárquico das ciências. Os medievais aspiravam e tinham uma necessidade de universalidade, de unidade e de ordem que se refletia não apenas na política e na organização social, mas também na ciência [12].

Inúmeros autores procederam em suas obras a determinados tipos de classificação das ciências e do saber, como é o caso, por exemplo, de Hugo de São Vítor (1096-1141) [13], de Roberto Grosseteste (1168-1253) [14], de Santo Tomás de Aquino (1225-1274) [15], São Boaventura (1221-1274) [16], Ramon Llull (1232-1316) [17], Duns Scot (1266-1308) [18] e Dante Alighieri (1265-1321) [19], que também se refere à classificação das ciências no início de seu tratado De Monarchia e no Convivio [20]. Todos eles buscaram, de alguma forma, ordenar os ramos do conhecimento e estabelecer sua finalidade e propósito.

Embora autores como Santo Tomás de Aquino tivessem estabelecido o grau  de independência metodológica própria da Filosofia, a classificação das ciências e dos saberes profanos obedecia a uma busca de harmonia orgânica e vital com a mentalidade geral da época, sobretudo no que diz respeito à sua ordenação e submissão à Teologia.

Havia uma clara distinção hierárquica feita entre a Filosofia (Humana scientia), que incluía as Artes Liberais, e a Teologia, a ciência sagrada (Divina scientia) ou a ciência da Revelação contida nos livros sagrados (Divina Scriptura), em uma ordem de apreciação na qual a “ciência humana” estava subordinada, como um meio instrumental, à “ciência divina”, considerada o fim de seu(s) objeto(s).

Aceitava-se a ideia de uma sapientia ou sabedoria humana e racional distinta da sapientia christiana, a qual, por sua vez, detinha o primado na ordem do saber. Nesse sentido, as Artes Liberais e todos os outros ramos da Filosofia não podiam se constituir em um saber integral e suficiente, mas eram unicamente etapas, meios e instrumentos destinados ao serviço da ordem teológica e da visão cristã do universo, da qual estavam impregnados os homens e a cultura do medievo [21].

Francesco de Stefano, Il Pesellino (1422-1457). As Sete Artes Liberais (c. 1450). Têmpera no painel. 41,6 x 147,3 cm. Birmingham Museum of Art, Alabama. As artes do Quadrivium (Aritmética, Geometria, Música e Astrologia) e as do Trivium (Lógica, Retórica e Gramática) aparecem neste painel decorado personificadas por figuras femininas, cada qual a segurar os objetos particulares de sua ciência, e sentadas sobre mestres e sábios da antiguidade e do medievo. No período medieval, as Artes Liberais formavam as disciplinas profanas de caráter propedêutico, que compunham a grade de estudos introdutórios às ciências superiores, Teologia e Filosofia, e eram a base do currículo escolar medieval, a enkuklios paidea ou círculo da educação, termo do qual se derivou o nome de enciclopédia. As Artes Liberais foram também teorizadas e estudadas, como parte do projeto medieval de hierarquização e classificação das ciências, por diversos autores e filósofos, como Boécio, Raimundo Lúlio e Dante Alighieri.


III. As Artes Liberais em um Sermão de São Vicente Ferrer

A visão de Vicente Ferrer acerca da Artes Liberais e da Filosofia como um todo abrange os mesmos princípios que inspiravam a organização dos estudos medievais, e reflete a intenção que subjaz a todos eles, qual seja, a de suprimir a ideia de autonomia e independência da Filosofia como síntese de saber e como sabedoria de vida autônoma, tal como erigida pelo paganismo.

São Vicente Ferrer ordena tal síntese ou sistema de saber racional em proveito do sistema teológico geral, isto é, da ciência divina, a fonte de conhecimentos especulativos e morais pertencente ao universo intelectual cristão.

Na visão rigidamente religiosa de São Vicente, a sabedoria secular não é suficiente para se alcançar a perfeição de vida e a salvação, se esta não for repleta das virtudes sobrenaturais e da sabedoria cristã. Nolite esse prudentes apud vosmet ipsos [22]. “Ninguém seja sábio aos seus próprios olhos” ou “que ninguém considere a si mesmo sábio” é a recomendação de São Paulo que o autor escolhe como a passagem-tema de seu sermão sobre as Artes Liberais.

A partir dela, argumenta o santo em favor da sabedoria cristã e enfatiza o caráter de insuficiência e mesmo os perigos que advém de uma valorização excessiva da “ciência dos filósofos” e dos saberes seculares profanos.

Ferrer primeiro prossegue a uma definição dos significados do conceito de prudentia, tal como aparece no texto bíblico para, então, esclarecer qual o significado da segunda expressão apud vosmet ipsos. Segundo o autor, três são as virtudes intelectuais, a ciência (scientia), a prudência (prudentia) e a sabedoria (sapientia). A ciência é o conhecimento que se tem das criaturas.

A prudência é a cognição intelectual dos atos humanos. A sabedoria é o conhecimento especulativo que se tem do divino, com sabor de devoção. Embora se possa falar de maneira comum da sabedoria, da prudência e da ciência como sendo a mesma virtude, de modo estrito elas se diferem, pois alguém pode ter uma delas e faltar com as outras.

Pode-se ter o conhecimento das criaturas, isto é, a ciência, mas não ter sabedoria, ou seja, a cognição e devoção ao divino. Ao contrário, pode-se conhecer a Deus e ter devoção espiritual, mas faltar com a prudência, virtude que regula os atos humanos em relação a Deus e ao próximo, e não governar a si próprio, enquanto ser racional, segundo a ordem estabelecida por Deus.

Desta forma, não basta ao homem simplesmente possuir tal ou tal virtude intelectual, mas possui-las todas e de forma ordenada, de modo que sejam efetivas. Assim como a mulher diligente é a coroa de seu marido [23], assim a sabedoria é a coroa da prudência virtuosa [24].

O termo ciência deve ser entendido de duas formas. Uma é a ciência que está em nós, a outra é a ciência que está acima de nós. A ciência que se encontra em nós mesmos, é aquela descoberta pelo intelecto e engenho humano, como é o caso das Sete Artes Liberais. Acima de nós está a ciência que não é descoberta por ação do intelecto humano, mas que foi revelada por Deus, como é o caso da ciência do Antigo e do Novo Testamento. “Não sejais sábios aos vossos próprios olhos”, como diz o tema, significa não se preocupar em ter muito ou pouco da ciência humana, mas desejar e buscar a ciência que se encontra acima do homem, a ciência sobrenatural revelada por Deus.

A razão é que a ciência, a arte e o engenho criados pelo intelecto humano são pequenos e módicos, mas a ciência de Deus é alta, elevada e magnífica. O pregador apresenta uma similitude para ilustrar a natureza das duas ciências e suas diferenças e compara o mundo com um palácio celestial visitado pelos filósofos. Os sábios deste mundo tiveram acesso ao conhecimento de alguns de seus elementos, mas, no entanto, não tiveram acesso às câmaras ou aposentos mais elevados e próximos de Deus e sua infinita sabedoria, cujo acesso é restrito aos sábios cristãos.

Et hoc potest videre per quandam similitudinem, quam tangit August. De rustico seu pastore, intrante palatium et dicente: illa est camera regis, et illa reginae, et illa filiorum, et illa fenestrae, etc., sed ipse non intrat cameram regis, nec videt regem, nec scit quid faciat, sed hoc sciunt cubicularii, consiliarii et Barones, qui intrant cameram, etc. Ideo isti judicantur sapientes, et non pastor seu rusticus. Iste mundus est palatium Dei, quod ipse fabricavit et creavit. O Israel, quam magna est domus Dei, etc. Baruch 3.

Hoc palatium intraverunt Philosophi, Pythagoras, Anaxagoras, Plato, Aristot., etc., et nihil sciverunt, nisi quod in illa camera, scilicet in coelo sit prima intelligentia cum suis consiliaris, scilicet Angelis, disputabant de fenestris, scilicet lune, solis, stellis, de motibus orbium, de animabus, etc. Sed ipse non viderunt Regem Deum, sed secretarii Dei, scilicet Sancti Patriarchae, Prophetae, Apostoli et Doctores sancti, isti habuerunt scientiam ex divina revelatione, scientes, quomodo Deus regat et gubernet mundum. Patet diferentia inter antiquos Philosophos et SS. Apostolos, etc., quibus dixit sic: Jam non dicam vos servos, ut Philosophi fuerunt, quia servus nescit, quid faciat dominus eius. Vos autem dixi amicos, quia quacunque audivi a Patre meo, nota feci vobis. Joan. 15 [25].

***

E isto se pode ver por uma similitude, de que trata Agostinho. Um pastor rústico entrou no palácio e disse: esta é a câmara do rei; esta a da rainha; esta a dos filhos, e estas são as janelas, etc., mas ele mesmo não entrou na câmara do rei, nem viu o rei, nem sabia o que ele estava fazendo. Mas isto sabiam os camareiros, os conselheiros e os Barões, pois eles entravam na câmara real. Por isso, estes são considerados sábios e não o pastor rústico. Este mundo é o palácio de Deus, que ele próprio fabricou e criou. Ó Israel, quão grande é a casa do Senhor, etc. Br 3, 24.

Neste palácio entraram os filósofos, Pitágoras, Anaxágoras, Platão, Aristóteles, etc., e nada conheceram senão o que estava naquele aposento, isto é, no céu no qual está a primeira inteligência com seus conselheiros, isto é, os Anjos, a disputar sobre as janelas, ou seja, a lua, o sol, as estrelas, o movimento do orbe, os animais, etc. Mas eles mesmos não viram a Deus Rei, mas somente os secretários de Deus o viram, isto é, os Santos Patriarcas, os Profetas, os Apóstolos e os Doutores santos, pois estes receberam a Ciência por divina revelação e sabem o modo com que Deus rege e governa o mundo. Eis a diferença entre os antigos filósofos e os Santos Apóstolos, etc., para os quais se disse: Já não vos chamo servos, como foram os filósofos, pois o servo não sabe o que faz o seu Senhor. Eu vos chamo amigos, pois vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai. Jo 15, 15.

A similitude tem o propósito de ilustrar o caráter de insuficiência da Filosofia face à plenitude de conhecimento cabível somente no âmbito da fé cristã e da amizade com Deus. Os filósofos antigos entreveram à luz da razão natural apenas alguns aspectos e porções do mundo criado. Eles entraram na primeira câmara do palácio de Deus e se entretiveram com a primeira inteligência celestial, com os “conselheiros” de Deus, os Anjos, por meio de disputas e argumentos sobre a natureza dos elementos do mundo, os astros, a lua, o sol, o movimento do orbe, sobre os animais, etc.

Mas eles, os filósofos, não visitaram a câmara do rei e não viram a Deus, um privilégio que coube apenas aos seus secretários, isto é, os Santos Patriarcas, os Profetas, os Apóstolos e Doutores da Igreja, os quais possuem a ciência da divina revelação e do modo como Deus rege e governa o mundo. Os antigos filósofos e a ciência filosófica são servos de Deus e de sua revelação, ao passo que os Apóstolos e Doutores cristãos são amigos de Cristo, que os deu a conhecer todos os mistérios que ouviu de Deus Pai.

Vicente Ferrer tem uma visão das Artes Liberais como uma ciência que, por ser um produto do engenho e intelecto humano, é limitada e deve, por isso, estar ordenada aos princípios mais elevados da virtude divina da Sabedoria, algo que se impõe pela própria estrutura cognitiva do intelecto humano, tal como concebido pelos escolásticos na divisão tripartida das virtudes intelectuais.

No entanto, o método analógico de raciocínio usado pelo pregador o leva a explicar, qualificar e comparar os elementos teóricos, técnicos e estruturais de cada arte liberal com doutrinas e exemplos morais extraídos da natureza da vida religiosa, da sua correspondência com o que é ensinado nos exemplos da Sagrada Escritura e que se remetem, por fim, à própria natureza de Cristo e à virtude da Sabedoria.

Em primeiro lugar, está a Gramática, chamada por Ferrer de “a primeira ciência dos filósofos”, a qual consiste no “falar com congruência ou concordância”. Três são suas características, a concordância entre o substantivo e o adjetivo, entre o nome e o verbo e entre relativos e antecedentes, as quais, na Gramática de Cristo, consistem em atribuir a Deus todas as coisas, guardar a boa fama do nome de si próprio e do próximo, manter sempre a honra e a reverência no falar e, por fim, ter sempre a verdade nos lábios, pois a oração verdadeira é aquela na qual não se encontra mentira ou falsidade nas palavras.

Prima scientia Philosophorum est Grammatica, quae docet loqui congrue, scilicet ut substantivum et adjectivum, nomem et verbum, relativum et antecedens conveniant. Ita in Grammatica Christi substantivum est Deus cuncta sustinens. Adjectiva autem quae in eo suppositantur, seu sustentantur, sunt omnia opera bona, sive mala poenalia, quae omnia a Deo sunt. [...] Nostra autem opera Deo sunt attribuenda, quia ipse facit omnia et sic substantiatur in Deo. Et ista est bona congruitas attribuire illa, quae fiunt et non creaturis quia incongruum esset. [...] Secundo debent convenire nomem et verbum in Grammatica Christi. Nomem est fama [...] verbo est sermo tuus.

Tunc nomem et verbum concordant quando tu non difamas nec mordes publicum peccatum nec secretum personae nominatae, sed cum reverentia et honore loquis vis de eis. [...] Tertio: relativum et antecedens est negotium de quo loquimini. Et conveniunt quando homo dicit veritatem de illo facto vel negocio, quia abe o, quod res est, vel non est, oratio vera vel falta dicitur. Omne mendacium est contra Grammaticam Christi, quia res extra non conveniunt [26].

***

A primeira ciência dos filósofos é a Gramática, que ensina a falar de forma congruente, isto é, para que o substantivo e o adjetivo, o nome e o verbo, o relativo e o antecedente sejam convenientes. Na Gramática de Cristo o substantivo é Deus, que tudo sustenta. O adjetivo, por sua vez, que ele supõe e sustenta são todas as boas obras, ou as penas, pois todas pertencem a Deus. [...] Nossas obras devem ser atribuidas a Deus, pois Ele tudo fez e, assim encontram sua substância em Deus. E é boa congruência atribuir-lhe as coisas feitas, e não às criaturas, o que é uma incongruência. [...] Em segundo lugar, deve-se convir o nome e o verbo na Gramática de Cristo. O nome é a fama [...] o verbo é a sua palavra.

Dessa forma, o nome e o verbo concordam quando tu não difamas nem atacas em público o pecado ou segredo da pessoa nomeada, mas com reverência e honra falas dela. [...] Terceiro, relativo e antecedente são os negócios dos quais falas. E eles concordam quando o homem diz a verdade sobre aquele fato ou negócio, que coisa é, que coisa não é, de modo que se diz que a oração é verdadeira ou falsa. Toda mentira é contra a Gramática de Cristo, pois uma coisa que vai além da verdade não é conveniente.

O cristão deve atribuir todas as coisas a Deus como ao substantivo de todas as coisas, menos a má vontade e o pecado. Se todos os entes derivam e são causados pelo Primeiro Ente, Deus, conforme estabelecido por Aristóteles na Metafísica, segue-se que todas as obras boas ou mesmo certos males relativos, destinados à punição do homem pelo pecado, são obras de Deus.

Assim como a beleza de uma carta não se atribui à pena, mas ao escritor, a beleza e harmonia da natureza devem ser atribuídas a Deus como uma boa Gramática, pois as criaturas, a natureza e as constelações são apenas instrumentos e não origem e causa de si mesmas.

Assim a chuva, a abundância, e mesmo a esterilidade, a fome e a mortalidade, as enfermidades, as dores e adversidades, tudo deve ser atribuído a Deus, como adjetivos que se relacionam ao substantivo na oração gramatical divina. A Gramática de Cristo encontra-se nas Escrituras, no exemplo da resposta de Jacó à Esaú: E levantando Esaú os olhos, viu as mulheres e os meninos, e perguntou: Quem são estes contigo? Respondeu-lhe Jacó: Os filhos que Deus bondosamente tem dado a teu servo [27]. Jacó foi exemplo da boa Gramática que estabelece a necessidade de tudo atribuir a Deus.

A “segunda ciência dos Filósofos”, a Lógica, é a ciência que ensina a definir, disputar e raciocinar por silogismos, induções e enthymemata, isto é, o conjunto clássico de silogismos retóricos que deve ser usado na prática oratória. A finalidade da Lógica definida por São Vicente Ferrer deixa mais preciso o escopo religioso do conhecimento adquirido pelas luzes da razão e sua natureza instrumental em relação à ordem das coisas divinas e de certas práticas religiosas.

Com efeito, a Lógica dos filósofos consiste em um espírito diletante que faz os homens se oporem a outros homens. A Lógica de Cristo, no entanto, é a ciência que ensina os cristãos a disputarem e argumentarem contra as insídias, tentações e arguições do Diabo.

Secunda scientia Philosophorum est Logica, quae docet definire, disputare et rationes facere per silogismos vel consequentias, vel enthymemata, vel inductiones. Hanc invenerunt Philosophi ad disputandum, scilicet, ut homo cum homine, sed non cum diabolo disputet. Sed Logica Christi docet modum disputandi contra Diabolum. Diabolus magnus sofista facit multa argumenta contra illud, quo debemus credere, vel contra illa quae debemus facere, vel contra e aquae debemus sperare [28].

***

A segunda ciência dos filósofos é a Lógica, que ensina a definir, disputar e fazer raciocínios por silogismos ou consequências, ou enthymemata, ou induções. Ocorre que a descobriram os filósofos para disputarem, isto é, disputar homem contra homem e não contra o Diabo. Mas a Lógica de Cristo ensina o modo com o qual disputar contra o Diabo. O Diabo é um grande sofista e faz muitos argumentos contra aquilo que devemos crer ou contra aquilo que devemos fazer ou contra aquilo que devemos esperar.com o qual disputar contra o Diabo. O Diabo é um grande sofista e faz muitos argumentos contra aquilo que devemos crer ou contra aquilo que devemos fazer ou contra aquilo que devemos esperar.

O Diabo argumenta contra aquilo em que o cristão deve crer, isto é, contra os dogmas de fé como, por exemplo, a Santíssima Trindade, a Encarnação de Cristo, a transubstanciação da hóstia consagrada, a virgindade perpétua de Maria, entre outras matérias de fé em relação as quais a Lógica de Cristo impõe responder com São Paulo: Et autem, qui potens est Deus, omnia facere superabundanter quam petimus aut intelligimus.

O diabo argumenta, ainda, contra aquilo que se deve fazer, isto é, a penitência e contra aquilo que o homem deve esperar, isto é, ser elevado ao céu. A disputa implica responder contra a astúcia e os sofismas do inimigo com os ensinamentos de Cristo, das Escrituras e da doutrina da Igreja.

Vicente Ferrer cita a disputa de argumentos entre Eva e a serpente descrita no livro de Gênesis. Ante a replicação da serpente, que a incitou a comer do fruto proibido, Eva deveria responder fundada na vontade de Deus e naquilo que O agrada, porém responde de outra forma e confirma o argumento do Diabo. O autor mostra, assim, que a Sagrada Escritura contém exemplos não somente do bom, mas também do mau uso da Lógica.

A terceira ciência, a Retórica, ensina a fazer petições e súplicas a Deus de forma apropriada e prudente. Erram aqueles que, como o fariseu, gabam-se dos dons recebidos por Deus como se fossem virtudes próprias. A Retórica de Cristo consiste, segundo o santo, em reconhecer que a prática das boas obras não é fundada na bondade do homem, mas de Deus. De nada vale pedir a graça de jejuar, de dar esmolas, de visitar os hospitais para saciar a vaidade e o amor próprio. São Vicente dá um exemplo da boa retórica, ao dizer

Ideo Rethorica Christi docet proprie allegare dicens: Domine vos fecistis mihi tot gratias, in creatione ad imaginem et similitudinem vestram. Similiter in nativitate, quia inter Christianos nati sum. Quia baptizatus, etc. Ideo Domine compleatis et faciatis mihi hanc gratiam. Ecce ista bona Rethorica, alegando ex parte Dei et non tua [29].

***

Por isso, a Retórica de Cristo ensina a alegar devidamente, dizendo: Senhor, vós me destes toda graça, e na criação me fez à sua imagem e semelhança. Do mesmo modo em meu nascimento, pois nasci entre cristãos. Por meu batismo, etc. Por isso, o Senhor cumpriu e fez em mim esta graça. Eis o que é a boa Retórica, alegar da parte de Deus e não da tua.

Na Retórica cristã, há uma dupla alegação ou petição a ser feita, uma da parte de Deus, ao alegar suas excelências ou da parte de si mesmo, ao agradecer os benefícios divinos recebidos. São Vicente distingue as quatro formas de oração, ou seja, a obsecração, que consiste no pedido feito através dos méritos do nascimento ou da Paixão de Cristo, a oração, que é a elevação da mente a Deus, a ação de graças, que consiste no agradecimento feito pelas graças recebidas e, por fim, a petição ou o ato de pedir algum benefício.

À ciência do discurso e da fala, Ferrer acrescenta um componente ético e uma forte tonalidade religiosa. Todas as formas de se dirigir a Deus, de maneira apropriada e prudente, são partes da boa retórica, da Retórica de Cristo, a qual não se resume, como no classicismo, na arte de embelezar o discurso, mas de fazê-lo de tal modo que seja justo e agradável a Deus.

Aos medievais, sobretudo entre os pregadores, era cara a noção de que a eloquência e a verdadeira Retórica deveriam estar ao serviço da Ética e das virtudes. Seus alicerces deveriam ser a Verdade, o Bem, a Justiça e a Prudência. O discurso deveria agradar a Deus antes que aos homens. A utilidade do discurso não residia no mero deleite pessoal, mas em sua capacidade de mover o homem para o que é justo e bom.

A tradição medieval manteve a validade e o cariz ético da retórica clássica, incorporando nela as virtudes cristãs ou teologais (Fé, Esperança e Caridade). A retórica era concebida como um instrumento à serviço da palavra de Deus, pois compreendia-se que a finalidade da eloquência é a verdade. Os oradores deveriam valorizar mais “a verdade da doutrina que a beleza das palavras” [30].

Na visão de Ferrer, a tônica religiosa e espiritual que impõe às regras do discurso e da fala, é ainda maior que em outros autores, que de uma forma geral, no entanto, tendiam a direcionar a função das Artes e instrumentalizá-las inevitavelmente à um fim espiritual e moral [31]. São Vicente não se deixa conduzir a uma efetiva explicação e teorização técnica e conceitual das ciências e das Artes Liberais, mas tão somente pretende, no sermão apresentado, inseri-las no quadro geral de sua perspectiva teológica e ética [32].

Assim, ele define a quarta ciência, a Música, como a concordância e harmonia do canto e apresenta uma série de analogias extraídas da interpretação alegórica da Bíblia. A harmonia das vozes muito agrada a Deus, diz o pregador. A Música de Cristo consiste na harmonia da penitência, a qual possui três vozes ou notas musicais: a terça, que é a dor do peito e a compunção, a quinta, que são os suspiros e gemidos e a oitava, que consiste em suplicar a misericórdia divina.

Sume citharam, quae est poenitentia, cithara enim est lignum aridum et vacum, alias non faceret sonum. Ita persona poenitens est arida per abstinentia et vacua, quia sine praesumptione de Dei misericordia, neque stulte confidet. Cithara poenitentia habet octo chordas, facientis acutum sonum. Prima est paccatorum cognitio et emendanti propositum, et sic de aliis. Circui civitatem [...] quae circuire debet per vicos et plateas, scilicet ad Deum et ad Sanctos recurrendo [33].

Primo coram palatio Trinitatis dicendo: Domine opus vestrum sum, ideo Domine parcatis mihi. Ecce una cantilena. Deinde coram Virgine Maria, dicendo illud: nec abhore peccatores, sine quibus nunquam fores tanto digna filio. Deinde ad plateas Patriarcharum et Prophetarum, etc. Bene cane, frequenta canticum. Ista musica placet Deo, ideo dicit: Qua habitas in hortis, amici auscultant, fac me audire vocem tuam. Cant. 8. Horti dicuntur Ecclesiae. Amici, sancti qui auscultant quemadmodum de nocte homo auscultat cantus.

***

Tome a cítara, que é a penitência, a cítara tem a madeira árida e vazia, pois de outra forma não emitiria som. Da mesma forma, a pessoa penitente é árida pela abstinência e vazia, pois é sem presunção da misericórdia de Deus, nem estultamente confiante. A Cítara da penitência tem oito cordas, que fazem som agudo. A primeira é a cognição do pecado e o propósito de emendar-se, e assim com as outras. Rodeie a cidade [...] pois deves circular pelas vias e ruas, isto é, a Deus e aos Santos recorrendo.

Primeiro diante do palácio da Trindade, dizendo: Senhor, sou obra sua, por isso o Senhor me poupa. Eis uma cantilena. Depois, diante da Virgem Maria, dizendo a ela: não abomines os pecadores, sem os quais não seria a digna Mãe de teu filho. Depois às ruas dos Patriarcas e Profetas, etc. Faça belas melodias, cante muitos cânticos. Esta música agrada a Deus, por isso foi dito: Ó vós que habitais os jardins, os amigos estão atentos para ouvir tua voz; faze-me, pois, também ouvi-la [34]. O jardim significa a Igreja. Os amigos são aqueles que escutam como de noite o homem escuta um cântico.

A passagem citada decorre da interpretação alegórica da passagem do profeta Isaías e procura estabelecer um vínculo bíblico entre a música e a penitência: Sume tibi citharam, circui civitate meretrix oblivioni tradita. Bene cane, frequenta canticum, ut memoria sit tui [35]. A meretriz esquecida é uma figura da alma pecadora desposada por Cristo no batismo e que deve a Ele retornar, a percorrer a cidade de Deus, cantar cânticos e fazer belas melodias de penitência, para que sua memória não seja esquecida.

O instrumento musical citado pelo profeta, a cítara, é uma figura da penitência e das cantilenas de arrependimento feitas pelos filhos de Deus nos diversos coros do palácio da Cidade de Deus, conforme esboça São Vicente Ferrer na bela analogia citada.

No caso da Aritmética, a ciência da numeração, São Vicente Ferrer procede a uma minuciosa e detalhada exposição da doutrina penitencial, por meio da analogia entre a arte da numeração com a prática sacramental da confissão. A Aritmética de Cristo consiste na numeração e divisão dos gêneros e espécies de pecados cometidos contra Deus e seus preceitos e contra as obras de misericórdia, por vício nos sentidos corporais. Na confissão, não basta enumerar ao confessor os pecados mortais, mas também os veniais, pois, caso contrário, esta seria uma aritmética do Diabo [36].

Existem três tipos de confissão: a primeira é chamada confissão especial ou confissão sacramental, que é aquela na qual o pecador enumera seus pecados ao sacerdote; a segunda é chamada confissão geral, a qual se faz no introito da Missa ou aquela confissão de culpa que fazem os religiosos na reunião do capítulo da Ordem; e a terceira é a confissão generalíssima, pela qual se diz a Deus “sou pecador”.

São Vicente Ferrer utiliza o exemplo dos vícios capitais para ensinar que não basta, na confissão oral, dizer o nome genérico do pecado, como por exemplo, a soberba, mas é necessário descer até suas espécies, qual seja, se o pecado da soberba e desprezo foi contra o pai ou a mãe, contra um Prelado ou Senhor, contra um maior ou menor em dignidade e honra, ou um igual, ou ainda, se foi contra um santo ou contra Deus.

A avareza também é uma designação genérica que comporta muitas espécies de pecado, como a simonia, a usura, a rapina ou o furto ou, ainda, se foi cometida comprando, vendendo, caluniando ou julgando.

Da mesma forma com a luxúria, é necessário enumerar na confissão se foi um ato de fornicação, ou adultério, rapto, incesto ou sacrilégio ou um pecado contra a natureza. Não se deve dizer o nome do indivíduo, isto é, nominar as pessoas, mas dizer a espécie de cada pecado mortal.

São Vicente cita o exemplum ilustrativo de um italiano que dizia ter somente três pecados parvíssimos: a usura, a luxúria e não crer em Deus. Ele enumera mal os pecados, diferente do rei de Judá, Manassés que, de acordo com a Aritmética de Cristo, bem enumera seus pecados dizendo: peccavi super numerum arena maris et multiplicata iniquitates meae [37].

A Geometria, a sexta na ordem das Artes Liberais e a terceira do Quadrivium, é a ciência dos filósofos que trata das medidas e proporções. De acordo com São Vicente, a Geometria de Cristo ensina a medir, de forma correta e prudente, a própria vida, os bens temporais e o serviço que se deve prestar a Deus. Se bem medir-se a vida humana nesta terra, ver-se-á que ela é insignificante e transitória, quase um nada, pois o que é passado nada é e o que seria o futuro, não existe.

A vida humana consiste em um ponto, pois do tempo o homem não tem senão o presente. Assim bem conhecia a medida desta vida Tiago Apóstolo, que afirmou: Quae enim est vita vestra? Vapor ad modicum parens et deinceps exterminabitur [38].

Por ser a vida tão módica, devemos ter os méritos da humildade. Em segundo lugar, diz São Vicente Ferrer, devemos medir os bens temporais, as honrarias, os ofícios, as dignidades e prelações. Se bem medidos, nenhum desses bens parece bom, pois o mérito não reside no fato de ser um rei ou um papa, mas em prestar contas a Deus das almas e fazer o bem a todos sob pena de danação eterna.

O rei deve prestar conta do bem de todos os seus súditos e o papa das almas de seu rebanho. Possuir muitas riquezas é um grande bem, o qual, no entanto, é frequentemente mal medido, conforme ilustrado por uma outra similitude apresentada por São Vicente Ferrer, que faz alusão à tolice de se acumular riquezas em proveito próprio.

Item videtur vobis, quod habere multas divitias sit Magnum bonum, sed male mensuratis, quia asinus potest esse auro oneratus, quod nec potest ipsum secum portare, ita quilibet dives oneratus est bonis divitiarum ipsius mundi, qui est Dominus divitiarum. Si vultus scire, quis divitiarum est Dominus, vos, an mundus? [...] Ideo onerate vos virtutibus et meritis, quae sequuntur hominem. Item videtur vobis, quod perfectae et purae, consolationes, vel etiam transitoriae et momentaneae voluptates carnis sint magnae delectationes, sed debemus mensurare servitium Dei [39].

***

Vede vós, que ter muitas riquezas é um grande bem, mas mal mensurado, pois como o asno pode ser onerado pelo peso do ouro, mas não pode ele mesmo possui-lo, assim é qualquer rico que esteja onerado com os bens e riquezas desse mundo, que são riquezas de Deus. Se queres saber, quem é o senhor da riqueza, vós ou o mundo? Por isso, onerai-vos de virtudes e méritos, que seguem o homem. Também vede vós, quão perfeitas e puras são suas consolações, e quão transitórios e momentâneos são os deleites e prazeres da carne, mas, por isso, devemos mensurar o serviço de Deus.

O homem tolo é como um asno que carrega ouro nas costas, mas não é o dono da riqueza. Os bens temporais são dádivas que pertencem a Deus e que a Ele devem ser remetidas. A Geometria de Cristo ensina ao homem a não se onerar de riquezas vãs e mundanas, bem como dos falsos, transitórios e momentâneos deleites da carne, mas a medir o serviço de Deus e acumular-se de virtudes e méritos, pela prática de obras puras e perfeitas. A medida justa é aquela de quem se humilha: Quanto magnus est, humilia te in omnibus et coram Deo invenies gratiam [40].

Vicente Ferrer conclui sua exposição sobre as Artes Liberais com a sétima das artes e última do Quadrivium. O pregador define a Astrologia como a ciência dos motores celestes, da ordenação dos planetas e da influência que eles exercem sobre a terra e os homens. Os astros, com o sol e a lua e suas caraterísticas naturais são considerados por São Vicente Ferrer como figuras analógicas da Santíssima Trindade, da Igreja e da Virgem Maria.

De acordo com a Astrologia que se aprende na escola de Cristo, assim como não há senão um só sol no céu, o qual possui três atributos, a substância, a radiação e o calor, também não há no céu empíreo senão um só Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. O sol circula pelo mundo desde o princípio do ano até o seu final, num círculo formado pelos doze signos, e ilumina, aquece e faz frutificar a terra.

Assim, também, o Sol de Justiça, Cristo, circula na terra e entre os homens pela fé nos doze artigos do Credo, dos quais alguns tratam de sua divindade e outros de sua humanidade. Ferrer alegoriza a figura da lua e de seus estágios, primeiro, ao compará-los com as idades da Igreja cristã, e depois, com os estágios de vida da Virgem Maria.

Item luna totam claritatem recipit a sole, ita Ecclesia totam claritatem habet a Deo. Nota septem conditiones lunae, quae reperiuntur in Ecclesia. Primo fuit nova tempore Christi et Apostolorum. Secundo fuit crescens tempore martyrum. Tertio fuit plena tempore Doctorum. Quarta fuit minuta tempore confessorum. Quinto fuit girata. Nam totus mundus est giratus et versus ad vanitatem. Sexto eclypsabitur cito, scilicet tempore Antichristi. Septimo in die judicii erit perfecta in aeternum. [...]

Et sicut in sole sunt tria, substantia, radius et calor, ita in Christo substantia corporis et radius divinitatis et calor dilectionis. Luna est Virgo Maria, quae fuit nova in nativitate, crescens in templi habitatione, plena in filii Dei conceptione, minuta secum portans Dominum in Aegypti fugatione, et girata in passione Christi, eclypsata in corporis defunctione et tandem perfecta in corporis et animae glorificatione [41].

***

Da mesma forma que a lua recebe toda a sua claridade do sol, assim a Igreja recebe sua claridade de Deus. Observe as sete condições da lua, que se encontram na Igreja. A primeira foi o tempo novo de Cristo e dos Apóstolos. A segunda foi o tempo crescente dos mártires. A terceira foi o tempo pleno dos Doutores. A quarta foi o tempo minguante dos Confessores. A quinta foi o retorno. Pois todo o mundo retornou verso à vaidade. A sexto é o rápido eclipse, isto é, o tempo do Anticristo. A sétima condição no dia do juízo, quando será perfeita e eterna. [...]

E assim como no sol encontram-se três atributos, isto é, substância, radiação e calor, assim em Cristo há a substância de seu corpo, a radiação de sua divindade e o calor de seu amor. A lua é a Virgem Maria, que foi nova em seu nascimento, crescente na habitação do templo, cheia na concepção do Filho de Deus, minguante ao carregar o Senhor na fuga do Egito, virada na Paixão de Cristo, eclipsada na morte do corpo e, então, perfeita na glorificação do corpo e da alma.

A conclusão da exposição não poderia ser mais significativa dessa relação especular. O bom astrólogo é aquele que contempla os planetas e considera-os análogos aos Anjos, os quais exercem influência constante no mundo e nos custodiam na terra. Mesmo no estudo das ciências naturais, humanas e filosóficas, a razão do cristão deve estar sempre embebida do espirito de contemplação, segundo a palavra de São Paulo: nostra conversatio in coelis est [42].

Deve o homem evitar estimar em demasia a prudência e a sabedoria do mundo e da carne, mas buscar e desejar a contemplação claríssima das coisas celestes, pela virtude da Sabedoria divina, infinita e incriada que Deus concederá ao seus na sua glória [43].

Para São Vicente, há nos astros e na composição da esfera celeste um conjunto de significados alegóricos e simbólicos que estão estampados imageticamente em sua natureza e em seus atributos. O pensamento analógico mais uma irriga a visão religiosa e providencial que se tem da ciência. Há uma Astrologia científica, assim como há uma Astrologia cristã.

Os elementos da esfera natural são sacramentalizados e sacralizados, e transpostos pelo santo em uma linguagem simbólica e figural. O speculum naturae mais uma vez é entrelaçado com a doutrina religiosa e com a visão cristã do universo, em um sistema analógico de referências construído através do jogo especular entre o âmbito da fé e da razão, entre a Teologia e a Filosofia, e entre o mundo das realidades e entidades sobrenaturais e naturais.

Em sua abordagem das ciências profanas, Ferrer age como o construtor de um dique que tem por propósito separar e distinguir o âmbito da cultura filosófica do âmbito da ciência divina. No embate entre a cultura secular e a do paganismo renascente em face da ordem e da tradição intelectual e religiosa cristã medieval, a visão sacralizada do mundo e do conhecimento é amplamente favorecida pelo pregador.

O autor não admite a tendência de se insuflar os métodos tradicionais de exegese e a consciência estritamente religiosa do conhecimento e da sabedoria, fundada nas fontes da Sagrada Escritura, em favor da valorização excessiva e imprudente da Filosofia e da sapientia pagã que, aos seus olhos, consistiria sempre numa ocasião de perigo e perda do sentido de fé, ocasião diante da qual nenhum homem possui imunidade.

Nesse sentido, a missão de Vicente Ferrer, como legatus a latere Christo, o impelia a agir na sociedade como reformador dos costumes e, consequentemente, da própria cultura. O pregador estava ciente de que era um porta-voz do céu, um catequista e moralizador que devia necessariamente direcionar e vincular seu discurso ao seu objetivo maior e final, qual seja, a de formar o povo e o clero em uma vida cristã modelar e efetiva.

Baseava-se em uma visão de mundo particular e essencialmente religiosa, e afastava-se o tanto quanto lhe era capaz do paganismo renascentista que já despertava, em seu tempo, inúmeras inquietações e profundas mudanças na cultura medieval.

Se os humanistas viam e desfrutavam da cultura clássica com um espírito de prazer e deleite e julgavam, como cristãos, que eram maduros e conscientes o suficiente para não deixá-la suplantar-lhes a fé, Vicente Ferrer, pelo contrário, enxergava a cultura pagã de uma forma geral e seu reflorescimento como uma perigosa e mortal investida do demônio contra a ordem cristã e contra as ovelhas do rebanho de Cristo [44].

Por esse motivo, embora o pregador se aproxime e trate frequentemente da “ciência dos filósofos”, valendo-se de muitos de seus postulados e ensinamentos, o faz apenas de maneira instrumental. Serve-se da Filosofia e medita a natureza das Artes Liberais dentro do escopo do verdadeiro sentido de sua existência, como servas da ciência sagrada.

O cristão, salienta, deveria se ocupar mais das Sagradas Escrituras, da obra dos Padres cristãos antigos e do magistério da Igreja e menos com os artifícios da Lógica, da Retórica e das demais ciências profanas, cujo uso e significado devem ser vertidos em proveito do evangelho e da autêntica vida cristã.

Conclusão

Na concepção ferreriana, a scientia divina é a única verdadeiramente necessária, ao passo que a humana scientia serve apenas para o consolo e conforto da inteligência. Não sem razão, vemos abundar no sermão analisado, por um lado, matérias e disciplinas que tratam da prática da religião, como a temática dos sacramentos, da penitência, das virtudes e dos vícios, da oração, das ordens e dos estados eclesiásticos e civis, da teologia trinitária, cristológica e mariana, bem como das relações do homem para com Deus e o próximo baseadas em uma concepção feudal e sacralizada.

Por outro lado, todas essas matérias são expostas tendo como recipiente intelectual o bojo da mentalidade simbólica medieval, profundamente imersa na visão alegórica, metafórica, figural e analógica da realidade, na qual a doutrina se faz compreensível por meio do exemplum, da similitude, do jogo especular entre o mundo físico, natural e o mundo sobrenatural e, sobretudo, pelo uso abundante do metaforismo e da exegese alegórica da Bíblia, considerada a fonte principal e inesgotável da ciência e do saber.

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Notas

[1] Daqui o sugestivo nome do sermão, De Christiana prudentia, quae certo modo septe artes liberales complectitur. Cf. SANCTI VICENTII FERRERII. “Dominica III Post Epiphaniam. Sermo III”. In: Opera Seu Sermones de Tempore. Tomus primus. Augsburg: Strötter, 1729, p. 114. Trata-se de um sermão modelo, de uma peça oratória repetida a ser usada em diversas ocasiões, provavelmente durante a campanha castelhana de sua pregação, e que se encontram, além da versão latina, também em catalão e castelhano, como atesta Ysern i Lagarda em sua análise de um outro sermão semelhante, no qual o autor versa, do mesmo modo, sobre as Artes Liberais. Cf. YSERN I LAGARDA, Josep-Antoni. “Sobre el Sermo unius confessoris et septem arcium spiritualium de Sant Vicent Ferrer”. In: Revista de Lengua y Literatura Catalana, Gallega y Vasca 6 (1999), p.117.

[2] Agostinho de Hipona, ou Santo Agostinho, foi um dos mais importantes teólogos e filósofos dos primeiros anos do Cristianismo, cujas obras foram muito influentes no desenvolvimento do cristianismo e da filosofia ocidental. Foi Bispo de Hipona, uma cidade na província romana da África. Escreveu na era patrística, e é amplamente considerado como o mais importante dos Padres da Igreja no Ocidente. Cf. GILSON, Etiénne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 2006. Entre suas principais obras, está a Cidade de Deus (Civitate Dei) e um tratado de Exegese Bíblica (De Doctrina Christiana) muito difundido na Idade Média. Cf. SANTO AGOSTINHO. A Doutrina Cristã. Manual de exegese e formação cristã. São Paulo: Paulus, 2002. O Cristianismo levou a cabo um processo de revisão do espírito pagão antigo e de seu programa educacional. A obra De Doctrina Christiana, de Santo Agostinho, marcou o ponto culminante nesse processo de revisão, no qual se deu o encontro decisivo entre a Revelação cristã com a visão de mundo outrora elaborada pelo paganismo e influenciou sobremaneira o plano de organização de estudos nas escolas cristãs. A obra, usada por padres e bispos para a catequese, é composta de uma introdução à leitura e exegese das Sagradas Escrituras e contém a concepção agostiniana acerca do saber cristão que veio substituir a Filosofia e sabedoria pagã. A sabedoria cristã é concebida como uma síntese de saberes que se centram e atingem seu cume na ciência dos livros sagrados, na Bíblia. Agostinho demonstra que todas as ciências profanas devem ser utilizadas pelo cristão na exegese da Bíblia, em um programa de estudos que ia além dos limites das Sete Artes Liberais. Cf. VAN STEENBERGHEN, Fernand. “L'organisation des études au moyen âge et ses répercussions sur le mouvement philosophique”. In: Revue Philosophique de Louvain. Troisième série, tome 52, n°36, 1954, p. 577.

[3] Cf. DUBY, Georges. O Tempo das Catedrais. A arte e a sociedade (980-1420). Lisboa: Estampa, 1993, pp. 118-119.

[4] Filósofo, estadista, musicólogo e teólogo romano que se notabilizou pela sua tradução e comentário do Isagoge de Porfírio, obra que se transformou em um dos textos mais influentes da Filosofia medieval europeia. Traduziu, comentou e resumiu, entre obras dos clássicos gregos, vários tratados sobre Matemática, Lógica e Teologia. Enquanto aguardava sob prisão a execução, escreveu De Consolatione Philosophiae (A Consolação da Filosofia), obra que versa, entre outros temas, sobre o conceito de eternidade e na qual tenta demonstrar que a procura da sabedoria e do amor de Deus é a verdadeira fonte da felicidade humana. Ver BOÉCIO. A Consolação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998; e COSTA, Ricardo da; ZIERER, Adriana. “Boécio e Ramon Llull: a Roda da Fortuna, princípio e fim dos homens”. In: Revista Convenit Internacional  (Editora Mandruvá), 5 (2000).

[5] Político, historiador, musicólogo e filósofo latino, fundador do mosteiro de Vivarium, no sul da Itália. Ver LEJAY, Paul. “Cassiosorus”. In: The Catholic Encyclopedia, vol 13 (1913).

[6] Isidoro de Sevilha (em latim: Isidorus Hispalensis; nascido provavelmente em Cartagena) foi um eclesiástico católico erudito polímata hispanogodo. Foi Arcebispo de Sevilha durante mais de três décadas (599-636) e canonizado pela Igreja Católica, por isso conhecido habitualmente como Santo Isidoro de Sevilla. Foi um escritor prolífico e um infatigável compilador. Compôs numerosos trabalhos históricos e litúrgicos, tratados de Astronomia e Geografia, diálogos, enciclopédias, biografias de pessoas ilustres, textos teológicos e eclesiásticos, ensaios e comentários sobre o Antigo e Novo Testamento, e um dicionário de sinônimos. Sua obra mais importante são as Etimologias, uma extensa compilação na qual sistematiza e condensa todo o conhecimento da época. Ver SAN ISIDORO DE SEVILLA. Etimologías. Madrid: BAC, 2004; para uma biografia mais detalhada, ver ROS, C. “Isidoro de Sevilla”. In: LEONARDI, C.; RICCARDI, A.; ZARRI, G. (dir.). Diccionario de los Santos. Volumen 1. Madrid: San Pablo, 1998, pp. 1119-1124.

[7] Filósofo, teólogo e tradutor irlandês, expoente máximo do renascimento carolíngio no século IX, Eriúgena concentrou seus estudos nas relações entre a filosofia grega e os princípios do Cristianismo. Na corte, ensinou Gramática e Dialética, e traduziu diversas obras teológicas e filosóficas dos Padres da Igreja. Ver FREMANTLE, Anne (ed.). “John Scotus Erigena”. In: The Age of Belief. The Medieval Philosophers. Boston: Houghton Mifflin Company, 1955, pp. 72-87.

[8] VAN STEENBERGHEN, Fernand. “L'organisation des études au moyen âge et ses répercussions sur le mouvement philosophique”, op. cit., p. 579.

[9] Teólogo, filósofo neoplatônico grego, nascido em Alexandria, é um dos Padres gregos. Escreveu uma série de obras exegéticas e comentários à Bíblia.

[10] Filósofo grego, aluno de Platão e professor de Alexandre, o Grande (356-323 a. C.). Seus escritos abrangem diversos assuntos, como a Física, a Metafísica, a Poesia, o Drama, a Música, a Lógica, a Retórica, a Política, a Ética, a Biologia e a Zoologia. Juntamente com Platão e Sócrates (professor de Platão), Aristóteles é visto como um dos fundadores da filosofia ocidental. Para uma edição de suas obras completas, Cf. ARISTÓTELES. Obras Completas. 20 vols. Madrid: Gredos, 1987; o estudo de António Pedro Mesquita (Aristóteles. Obras Completas. Introdução Geral. Lisboa: Impensa Nacional-Casa da Moeda, 2005); bem como a obra de Giovanni Reale (Introduzione a Aristotele. Roma-Bari: Editori Laterza, 1977).

[11] VAN STEENBERGHEN, Fernand. “L'organisation des études au moyen âge et ses répercussions sur le mouvement philosophique”, op. cit., p. 581.

[12] DE WULF, Maurice. Philosophy and Civilization in the Middle Ages. Princeton: Princeton University Press, 1922, p. 151.

[13] Filósofo, teólogo, cardeal, monge e autor místico da Idade Média. Seu tratado intitulado Didascalicon serviu como referência tanto aos estudantes como aos professores das recém-abertas escolas catedralícias da Europa medieval. O tratado divide e classifica, sistematicamente, as formas de conhecimento. Neste trabalho, ele também desenvolve a chave para entender as Escrituras distinguindo entre o significado literal (historia) e o profundo significado para além da letra (alegoria). Cf. HUGONIS DE S. VICTORE. “De Scripturis et Scriptoribus Sacris”. In: J. –P. MIGNE. Patrologiae cursus completus: series latina. Paris: Migne, 1861-1864, v. 175, c. 09-28; HUGO DE SÃO VÍTOR. Didascálicon. Da Arte de Ler. VI, 2. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 235; COSTA, Ricardo da. “A Ciência no Pensamento Especulativo Medieval”. In: Sinais 5, vol. 1, setembro/2009, p. 135 ss.

[14] Roberto Grosseteste foi uma figura central do importante movimento intelectual da primeira metade do século XIII na Inglaterra. Foi apelidado de Grosseteste (cabeça grande) pela sua enorme capacidade intelectual. Escreveu sobre Astronomia, Geometria e, especialmente, Óptica. Primeiro estudioso europeu a dominar as línguas grega e hebraica. Sua influência foi bastante significativa numa época em que o novo conhecimento da ciência e da filosofia gregas produziam efeitos profundos na filosofia cristã. Ver BOEHNER, P; GILSON, E. História da Filosofia Cristã. Petrópolis, Vozes, 1970, pp. 363- 376; e LOPEZ CUÉTARA, José Miguel. El aristotelismo en el pensamiento de Robert Grosseteste. DF, México: Verdad y Vida, 2005.

[15] Tomás de Aquino foi um frade da Ordem dos Pregadores (dominicanos) italiano, cujas obras tiveram enorme influência na Teologia e Filosofia, principalmente na tradição conhecida como Escolástica, e que, por isso, é conhecido como Doctor Angelicus, Doctor Communis e Doctor Universalis. Tomás abraçou diversas ideias de Aristóteles – a quem ele se referia como "o Filósofo" – e tentou sintetizar a filosofia aristotélica com os princípios do Cristianismo. As obras mais conhecidas de Tomás são a Suma Teológica (Summa Theologiae) e a Suma contra os Gentios (Summa contra Gentiles). Seus comentários sobre as Escrituras e sobre Aristóteles também são parte importante de seu corpus literário. Além disso, Tomás se distingue por seus hinos eucarísticos, que ainda hoje fazem parte da liturgia da Igreja. Sobre sua vida e obra, Cf. ALARCÓN, E.; FAITANIN, P. (eds.). Atualidade do tomismo. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2008; e PIEPER, Josef. Introducción a Tomás de Aquino. Rialp: Centenario, 1948.

[16] Um dos mais importantes teólogos e filósofos escolásticos medievais, nascido na Itália no século XIII. Sétimo Ministro-Geral da Ordem dos Frades Menores, foi também cardeal-bispo de Albano. Ver BOUGEROL, J. G. Introduzione a S. Bonaventura. Vicenza: LIEF, 1988.

[17] Raimundo Lúlio foi o mais importante escritor, filósofo, poeta, missionário e teólogo da língua catalã. Foi um prolífico autor também em árabe e latim, bem como em langue d'oc. Ao longo de sua obra, Ramon Llull formulou uma extensa classificação das ciências e das Artes Mecânicas e Liberais e conferiu a elas um sentido pedagógico e educacional, mas também instrumental, ou seja, pretende abarcar todos os conhecimentos humanos e ramificações do saber sem abandonar as aquisições da sabedoria cristã, que ao longo dos séculos conceberam a busca do saber como uma amorosa e desinteressada busca da felicidade e da contemplação de Deus, seu cume. Ver COSTA, Ricardo da. “Las definiciones de las siete artes liberales y mecánicas en la obra de Ramon Llull”. In: Anales del Seminario de Historia de la Filosofia. Vol. 23 (2006), pp. 131-164.

[18] Membro da Ordem Franciscana, filósofo e teólogo da tradição escolástica, chamado o Doutor Sutil, foi mentor de outro grande nome da filosofia medieval: Guilherme de Ockham (1285-1347). Para Scotus, as verdades da fé não poderiam ser compreendidas pela razão. A filosofia, assim, deveria deixar de ser uma serva da teologia e adquirir autonomia. Ver FERRATER MORA, José. “Duns Scoto”. In: Diccionario de Filosofia. Buenos Aires: Sudamericana, 1965, pp. 488-490.

[19] Dante Alighieri foi um escritor, poeta e político italiano. É considerado o primeiro e maior poeta da língua italiana, definido como il sommo poeta.

[20] A filosofia de Dante sobre as Artes Liberais foi analisada por COSTA, Ricardo da. “‘Entendo por ‘céu’ a ciência e por ‘céus’ as ciências’: As Sete Artes Liberais no Convívio (c. 1304-1307) de Dante Alighieri”. In: Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF. Anpof, 2015, p. 353.

[21] VAN STEENBERGHEN, Fernand. “L'organisation des études au moyen âge et ses répercussions sur le mouvement philosophique”, op. cit., p. 592.

[22] Rm 12, 16.

[23] “Mulier diligens corona est viro” (Pv 12, 4).

[24] SANCTI VICENTII FERRERII. “Dominica III. Post Epiphaniam. Sermo III”. In: Opera Seu Sermones de Tempore. Tomus primus, op. cit., pp. 113-114.

[25] Ibidem, p. 114.

[26] Ibidem, p. 115.

[27] Gn 33, 5.

[28] SANCTI VICENTII FERRERII. “Dominica III. Post Epiphaniam. Sermo III”. In: Opera Seu Sermones de Tempore. Tomus primus, op. cit., p. 115.

[29] Ibidem, p. 116.

[30] SAN AGUSTÌN. “De la doctrina christiana, Libro IV, 28, 61”. In: MARTÌN, O. S. A., Fr. Balbino (ed.). Obras de San Agustín. Tomo XV. Madrid: BAC, 1957, p. 343; e COSTA, Ricardo da. “A Educação na Idade Média: a Retórica Nova (1301) de Ramon Llull”. In: LAUAND, Luiz Jean (coord.). Revista NOTANDUM, n. 16, Ano XI, 2008, pp. 29-38. Editora Mandruvá - Univ. do Porto.

[31] Ramon Llull, por exemplo, valorizava o aspecto ornamental e os atributos de beleza da linguagem, mas entendia que a Retórica e a beleza do discurso deviam servir à conversão das almas, para o que era sempre proveitoso o uso abundante de variados recursos, como vocábulos e expressões belas, analogias belas, ornamento adequado, conjunções e disjunções apropriadas, provérbios, exempla e moralidades. Cf. COSTA, Ricardo da. “La Retórica Nueva (1301) de Ramón Llull: la Belleza a servicio de la conversión”. In: eHumanista/IVITRA 8 (2015), p. 31.

[32] Cf. COSTA, Ricardo da; FRANCO, Gustavo Cambraia. “São Vicente Ferrer (1350-1419) e a eficácia filosófico-retórica do sermão: Arte e Filosofia”. In: SANTOS, Bento Silva (org.). Mirabilia 20 (2015/1). Arte, Crítica e Mística – Art, Criticism and Mystique. Barcelona: Institut d’Estudis Medievals, UAB, Jan-Jun 2015, p. 100 ss.

[33] SANCTI VICENTII FERRERII. “Dominica III. Post Epiphaniam. Sermo III”. In: Opera Seu Sermones de Tempore. Tomus primus, op. cit., pp. 116-117.

[34] Ct 8, 13.

[35] Is, 23.

[36] Ibidem, p. 117.

[37] Esta oração, chamada de Oração de Manassés, é de origem apócrifa e encontra-se nas bíblias gregas e eslavas. Ela foi colocada, tardiamente e em separado, como apêndice do Livro das Crônicas na Bíblia Vulgata, que era o texto utilizado por nosso autor. Idem.

[38] Iacobi 3, 14.

[39] SANCTI VICENTII FERRERII. “Dominica III. Post Epiphaniam. Sermo III”. In: Opera Seu Sermones de Tempore. Tomus primus, op. cit., p. 117.

[40] Eccles. 3, 20.

[41] SANCTI VICENTII FERRERII. “Dominica III. Post Epiphaniam. Sermo III”. In: Opera Seu Sermones de Tempore. Tomus primus, op. cit., p. 118.

[42] Phil. 3, 20.

[43] SANCTI VICENTII FERRERII. “Dominica III. Post Epiphaniam. Sermo III”. In: Opera Seu Sermones de Tempore. Tomus primus, op. cit., p. 118.

[44] Um esboço geral da oposição de São Vicente Ferrer à cultura clássica pagã encontra-se em ENRIC RUBIO, Josep. “Intelectuales y eclesiásticos en la Valencia tardomedieval”. In: JOSEP ESCARTÍ, Vicent (coord.). Escribir y persistir. Estudios sobre la literatura en catalán de la Edad Media a la Renaixença. Volumen I. Buenos Aires; Los Angeles: Argus-a, 2013, p. 3 ss.

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Leia mais em A diferença entre a Educação Clássica e a atual

Leia mais em As artes liberais são a base da educação católica



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Sobre o papel da Literatura na Educação

Detalhe de São Domingo em A zombaria de Cristo
com a Virgem e São Domingos
, Fra Angelico, 1442.

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CARTA DO SANTO PADRE FRANCISCO
SOBRE O PAPEL DA LITERATURA NA EDUCAÇÃO

1. Inicialmente, tinha escrito um título alusivo à formação sacerdotal, mas depois pensei que o que se segue pode ser dito, de modo semelhante, em relação à formação de todos os agentes pastorais e de qualquer cristão. Refiro-me ao valor da leitura de romances e poemas no caminho do amadurecimento pessoal.

2. Muitas vezes, no tédio das férias, no calor e na solidão dos bairros desertos, encontrar um bom livro para ler torna-se um oásis, afastando-nos de outras escolhas que são nocivas. Na verdade, não faltam momentos de cansaço, irritação, desilusão, fracasso e, quando nem sequer na oração conseguimos encontrar o sossego da alma, pelo menos um bom livro ajuda-nos a enfrentar a tempestade, até que possamos ter um pouco mais de serenidade. Talvez essa leitura abra novos espaços interiores, capazes de evitar o encerramento naquelas poucas ideias obsessivas que nos enredam inexoravelmente. Antes da onipresença dos media, das redes sociais, dos telemóveis e de outros dispositivos, esta era uma experiência frequente, e quem a viveu sabe bem do que estou a falar. Não se trata de algo ultrapassado.

3. Ao contrário dos meios audiovisuais, onde o produto é mais completo, e a margem e o tempo para “enriquecer” a narrativa ou para a interpretar são geralmente reduzidos, o leitor é muito mais ativo quando lê um livro. De certo modo, reescreve-o, amplia-o com a sua imaginação, cria um mundo, usa as suas capacidades, a sua memória, os seus sonhos, a sua própria história cheia de dramatismo e simbolismo; e assim surge uma obra muito diferente daquela que o autor pretendia escrever. Uma obra literária é, portanto, um texto vivo e sempre fértil, capaz de falar de novo e de muitas maneiras, capaz de produzir uma síntese original com cada leitor que encontra. Este, enquanto lê, enriquece-se com o que recebe do autor, mas isso permite-lhe, ao mesmo tempo, fazer desabrochar a riqueza da sua própria pessoa, pois cada nova obra que lê renova e expande o seu universo pessoal.

4. Isto leva-me a avaliar muito positivamente o fato de, pelo menos em alguns Seminários, se ultrapassar a obsessão dos ecrãs – e das venenosas, superficiais e violentas fake news –, dedicando-se tempo à literatura, a momentos de leitura serena e livre, a falar dos livros que, novos ou antigos, continuam a dizer-nos tanto. Mas, em geral, é preciso constatar, com pesar, a falta de um lugar adequado da literatura na formação daqueles que se destinam ao ministério ordenado. Efetivamente, esta é, muitas vezes considerada como uma forma de passatempo, ou seja, como uma expressão menor de cultura que não faria parte do caminho de preparação e, portanto, da experiência pastoral concreta dos futuros sacerdotes. Com poucas exceções, a atenção à literatura é considerada como algo não essencial. A este respeito, gostaria de afirmar que tal perspectiva não é boa. Ela está na origem de uma forma de grave empobrecimento intelectual e espiritual dos futuros sacerdotes, que ficam assim privados de um acesso privilegiado, precisamente através da literatura, ao coração da cultura humana e, mais especificamente, ao coração do ser humano.

5. Com esta carta, desejo propor uma mudança radical de atitude em relação à grande atenção que deve ser dada à literatura no contexto da formação dos candidatos ao sacerdócio. A este respeito, considero muito eficiente o que diz um teólogo:

«A literatura [...] brota da pessoa no que tem de mais irredutível, no seu mistério [...]. É a vida que se torna consciente de si mesma quando, utilizando todos os recursos da linguagem, atinge a plenitude da expressão» [1].

6. De uma forma ou de outra, a literatura tem a ver com o que cada um de nós deseja da vida, uma vez que entra numa relação íntima com a nossa existência concreta, com as suas tensões essenciais, com os seus desejos e os seus significados.

7. Aprendi isto nos tempos da juventude, com os meus alunos. Entre 1964 e 1965, quando tinha 28 anos, fui professor de literatura numa escola jesuíta, em Santa Fé. Ensinava aos dois últimos anos do liceu e tinha de fazer com que os meus alunos estudassem El Cid. Mas eles não gostavam. Pediam para ler García Lorca. Por isso, decidi: em casa, estudariam El Cide, durante as aulas, abordaria os autores de que aqueles jovens mais gostavam. Claro que eles queriam ler obras literárias contemporâneas; porém, à medida que fossem lendo o que os atraía no momento, iriam adquirindo em geral o gosto pela literatura, pela poesia, e depois passariam a outros autores. Afinal, o coração procura mais e, na literatura, cada um encontra o seu próprio caminho [2]. Por exemplo, eu gosto muito dos artistas das tragédias, porque todos podemos sentir as suas obras como nossas, como a expressão dos nossos próprios dramas. No fundo, ao chorar o destino das personagens, estamos a chorar por nós mesmos: o nosso vazio, as nossas falhas, a nossa solidão. Naturalmente, não estou a pedir para fazerdes as mesmas leituras que eu fiz. Cada um encontrará os livros que falarão à sua própria vida e que se tornarão verdadeiros companheiros de viagem. Não há nada mais contraproducente do que ler por obrigação, fazendo um esforço considerável só porque alguém disse que é essencial. Não, devemos selecionar as nossas leituras com abertura, surpresa, flexibilidade, orientação, mas também com sinceridade, tentando encontrar o que precisamos em cada momento da vida.

Fé e cultura

8. Além disso, para um crente que deseja sinceramente entrar em diálogo com a cultura do seu tempo ou, simplesmente, com a vida de pessoas concretas, a literatura torna-se indispensável. Com grande razão, o Concílio Vaticano II afirma que «a literatura e as artes […] procuram dar expressão à natureza do homem» e «dar a conhecer as suas misérias e alegrias, necessidades e energias» [3]. Na verdade, a literatura inspira-se na cotidianidade vivida, suas paixões e acontecimentos reais, como «a ação, o trabalho, o amor, a morte e todas as pobres coisas que enchem a vida» [4].

9. Perguntemo-nos: como será possível alcançar o núcleo das culturas antigas e novas se ignorarmos, descartarmos e/ou silenciarmos os símbolos, mensagens, criações e narrativas com que se captaram e se quiseram mostrar e evocar os seus feitos e ideais mais belos, tal como as suas violências, medos e paixões mais profundas? Como falar ao coração dos homens se ignorarmos, relegarmos ou não valorizarmos “essas palavras” com que quiseram manifestar e, porque não, revelar o drama do seu viver e sentir através de romances e poemas?

10. A missão eclesial soube desenvolver toda a sua beleza, frescura e novidade no encontro com diversas culturas – e muitas vezes graças à literatura – nas quais se enraizou, sem medo de arriscar e de extrair o melhor daquilo que encontrou. É uma atitude que a libertou da tentação do solipsismo ensurdecedor e fundamentalista que consiste em acreditar que uma certa gramática histórico-cultural tem a capacidade de exprimir toda a riqueza e profundidade do Evangelho [5]. Muitas das profecias de desgraça que hoje tentam semear desespero radicam precisamente neste aspecto. O contato com diferentes estilos literários e gramaticais permitirá sempre aprofundar a polifonia da Revelação, sem a empobrecer ou reduzir quer às próprias exigências históricas quer às próprias estruturas mentais.

11. Não é por acaso que o cristianismo primitivo tenha percebido bem a necessidade de uma relação estreita com a cultura clássica da época. Um Padre da Igreja Oriental como, a título de exemplo, Basílio de Cesareia, no Discurso aos Jovens, que escreveu entre 370 e 375, e provavelmente dirigiu aos seus sobrinhos, exaltava a preciosidade da literatura clássica – produzida pelos éxothen (“os de fora”) como ele chamava aos autores pagãos – tanto para a argumentação, ou seja, para os lógoi (“discursos”) a utilizar na teologia e na exegese, como para o próprio testemunho de vida, ou seja, para os práxeis (“atos, comportamentos”) a ter em conta na ascética e na moral. E concluía exortando os jovens cristãos a considerarem os clássicos como um ephódion (“viático”) para a sua instrução e formação, obtendo deles “proveito para a alma” (IV, 8-9). É precisamente deste encontro, do acontecimento cristão com a cultura daquele tempo, que emerge uma original reelaboração do anúncio evangélico.

12. Graças ao discernimento evangélico da cultura, é possível reconhecer a presença do Espírito na variegada realidade humana, ou seja, é possível captar a semente da presença do Espírito já plantada nos acontecimentos, sensibilidades, desejos, tensões profundas dos corações e dos contextos sociais, culturais e espirituais. Podemos reconhecer uma abordagem semelhante, por exemplo, nos Atos dos Apóstolos, onde é mencionada a presença de Paulo no Areópago (cf. At 17, 16-34). Falando de Deus, Paulo diz: «É nele, realmente, que vivemos, nos movemos e existimos, como também o disseram alguns dos vossos poetas: “Pois nós somos também da sua estirpe”» ( At 17, 28). Neste versículo, temos duas citações: uma indireta, na primeira parte, onde se cita o poeta Epiménides (séc. VI a.C.), e uma direta, citando Fenómenos do poeta Arato de Silo (séc. III a.C.), que canta as constelações e os sinais do bom e do mau tempo. Aqui neste ponto, «Paulo revela-se um “leitor” de poesia e deixa intuir o modo como se aproxima ao texto literário, o que não pode deixar de levar a refletir sobre um discernimento evangélico da cultura. Ele é definido pelos atenienses como spermologos, que significa “papagaio, tagarela, charlatão”, mas literalmente quer dizer “colecionador de sementes”. Assim, paradoxalmente, o que era um insulto parece uma verdade profunda. Paulo recolhe as sementes da poesia pagã e, abandonando uma atitude anterior de profunda indignação (cf. At 17, 16), chega a reconhecer os atenienses como “os mais religiosos dos homens” e, naquelas páginas da literatura clássica deles, vê uma verdadeira preparatio evangelica» [6].

13. O que é que Paulo fez? Entendeu que a «literatura descobre os abismos que habitam o homem, enquanto a revelação, e depois a teologia, os retoma para mostrar como Cristo vem atravessá-los e iluminá-los» [7]. Em direção a estes abismos, a literatura é um «caminho de acesso» [8], que ajuda o pastor a entrar num diálogo fecundo com a cultura do seu tempo.

Nunca um Cristo sem carne

14. Antes de entrar nas razões concretas, devido às quais se deve promover a atenção dada à literatura no percurso formativo dos futuros sacerdotes, quero recordar um pensamento sobre o atual contexto religioso: «O regresso ao sagrado e a busca espiritual, que caracterizam a nossa época, são fenômenos ambíguos. Mais do que o ateísmo, o desafio que hoje se nos apresenta é responder adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham de ir apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo sem carne» [9]. Portanto, a urgente tarefa de anunciar o Evangelho no nosso tempo exige, dos fiéis e dos sacerdotes em particular, o compromisso que permita a cada homem encontrar-se com um Jesus Cristo feito carne, feito homem, feito história. Todos devemos estar atentos para nunca perder de vista a “carne” de Jesus Cristo: aquela carne feita de paixões, emoções, sentimentos, histórias concretas, de mãos que tocam e curam, de olhares que libertam e encorajam, de hospitalidade, perdão, indignação, coragem, intrepidez; numa palavra, de amor.

15. E, precisamente a este nível, o recurso assíduo à literatura pode tornar os futuros sacerdotes e todos os agentes pastorais ainda mais sensíveis à plena humanidade do Senhor Jesus, na qual se derrama toda a sua divindade, e anunciar o Evangelho de tal modo que todos, realmente todos, possam experimentar como é verdadeiro o que diz o Concílio Vaticano II: «na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente» [10]. Não se trata do mistério de uma humanidade abstrata, mas do mistério daquele homem concreto com as feridas, os desejos, as recordações e as esperanças da sua vida.

Um grande bem

16. De um ponto de vista pragmático, muitos cientistas afirmam que o hábito de ler produz muitos efeitos positivos na vida de uma pessoa: ajuda-a a adquirir um vocabulário mais vasto e, consequentemente, a desenvolver vários aspectos da sua inteligência; estimula também a imaginação e a criatividade; simultaneamente, permite que as pessoas aprendam a exprimir as suas narrativas de uma forma mais rica; melhora também a capacidade de concentração, reduz os níveis de deficit cognitivo e acalma o stress e a ansiedade.

17. Mais ainda: prepara-nos para compreender e, assim, enfrentar as várias situações que podem surgir na vida. Ao ler, mergulhamos nas personagens, nas preocupações, nos dramas, nos perigos, nos medos de pessoas que acabaram por ultrapassar os desafios da vida, ou talvez, durante a leitura, demos às personagens conselhos que mais tarde nos servirão a nós mesmos.

18. Para tentar ainda encorajar à leitura, cito de bom grado alguns textos de autores conhecidos, que nos ensinam tanto em poucas palavras:

Os romances desencadeiam «em nós, no espaço de uma hora, todas as alegrias e desgraças possíveis que, durante a vida, levaríamos anos inteiros a conhecer minimamente; e, dessas, as mais intensas nunca nos seriam reveladas, porque a lentidão com que ocorrem nos impede de as perceber» [11].

«Ao ler as grandes obras da literatura, transformo-me em milhares de homens sem deixar, ao mesmo tempo, de permanecer eu mesmo. Como o céu noturno da poesia grega: vejo-o com uma miríade de olhos, mas sou sempre eu a ver. Neste ponto, como na religião, no amor, na ação moral e no conhecimento, ultrapasso-me a mim próprio e, no entanto, quando o faço, sou mais eu do que nunca» [12].

19. No entanto, não é minha intenção deter-me exclusivamente neste nível de utilidade pessoal, mas refletir sobre as razões mais decisivas para redespertar o amor pela leitura.

Ouvir a voz de alguém

20. Quando o meu pensamento se volta para a literatura, lembro-me do que o grande escritor argentino Jorge Luis Borges [13] costumava dizer aos seus alunos: o mais importante é ler, entrar em contato direto com a literatura, mergulhar no texto vivo que se tem diante de si, mais do que fixar-se em ideias e comentários críticos. E Borges explicava este pensamento aos seus alunos, dizendo-lhes que, talvez, no início compreendessem pouco do que estavam a ler, mas em todo o caso teriam escutado “a voz de alguém”. Aqui está uma definição de literatura que tanto me agrada: ouvir a voz de alguém. Não esqueçamos o quanto é perigoso deixar de ouvir a voz do outro que nos interpela! Caímos imediatamente no isolamento, entramos numa espécie de surdez “espiritual”, que também afeta negativamente a nossa relação conosco próprios e com Deus, por mais teologia ou psicologia que tenhamos conseguido estudar.

21. Neste caminho, que nos torna sensíveis ao mistério dos outros, a literatura faz-nos aprender a tocar os corações. Como não recordar aqui a palavra corajosa que, a 7 de maio de 1964, São Paulo VI dirigiu aos artistas e, portanto, também aos grandes escritores? Dizia: «Precisamos de vós. O nosso ministério precisa da vossa colaboração. Porque, como sabeis, o Nosso ministério é o de pregar e tornar acessível e compreensível, melhor, comovente, o mundo do espírito, do invisível, do inefável, de Deus. E vós sois mestres nesta operação, que transforma o mundo invisível em fórmulas acessíveis, inteligíveis» [14]. Eis o ponto: a tarefa dos fiéis, e dos sacerdotes em particular, é precisamente a de “tocar” o coração do homem contemporâneo para que se comova e se abra diante do anúncio do Senhor Jesus. Neste esforço, o contributo que a literatura e a poesia podem oferecer é de um valor inigualável.

22. T.S. Eliot, o poeta a quem o espírito cristão deve obras literárias que marcaram a contemporaneidade, descreveu corretamente a crise religiosa moderna como uma generalizada «incapacidade emocional» [15]. À luz desta leitura da realidade, o problema da fé nos dias de hoje não é, em primeiro lugar, o de acreditar mais ou acreditar menos em proposições doutrinais. Liga-se antes à incapacidade de tantos se comoverem perante Deus, a sua criação e os outros seres humanos. Por conseguinte, abre-se aqui a tarefa de curar e enriquecer a nossa sensibilidade. Por isso, no regresso da minha Viagem Apostólica ao Japão, quando me perguntaram o que é que o Ocidente tem a aprender com o Oriente, respondi: «creio que falte ao Ocidente um pouco de poesia» [16].

Uma espécie de ginásio de discernimento

23. O que é que o sacerdote ganha neste contato com a literatura? Porque é necessário tomar em consideração e promover a leitura dos grandes romances como uma parte relevante da paideia sacerdotal? Por que razão, na formação dos candidatos ao sacerdócio, é importante recuperar e implementar a intuição, esboçada pelo teólogo Karl Rahner, de uma profunda afinidade espiritual entre o sacerdote e o poeta? [17]

24. Tentemos responder a estas questões escutando as considerações do teólogo alemão [18]. As palavras do poeta, escreve Rahner, estão «cheias de saudade», são «portas que se abrem para o infinito, portas que se escancaram à imensidão. Evocam o inefável, tendem para o inefável». A palavra poética «olha para o infinito, mas não pode dar-nos este infinito, nem pode trazer ou esconder em si Aquele que é o Infinito». Efetivamente, isto é próprio da Palavra de Deus, e – continua Rahner – «a palavra poética invoca, portanto, a Palavra de Deus» [19]. Para o cristão, a Palavra é Deus, e todas as palavras humanas mostram traços de uma intrínseca saudade de Deus, tendendo para essa Palavra. Pode dizer-se que a palavra verdadeiramente poética participa analogicamente da Palavra de Deus, tal como a Carta aos Hebreus no-la apresenta de forma inovadora (cf. Heb 4, 12-13).

25. E é assim que Karl Rahner pode estabelecer um belo paralelo entre o sacerdote e o poeta: «só a palavra é intimamente capaz de libertar tudo o que mantém encarceradas as realidades não expressas: a mudez da sua orientação para Deus» [20].

26. Na literatura entram em jogo questões de forma de expressão e de sentido. Ela representa, portanto, uma espécie de ginásio de discernimento, que aguça as capacidades sapienciais de escrutínio interior e exterior do futuro sacerdote. O lugar onde se abre esta via de acesso à própria verdade é a interioridade do leitor, diretamente envolvido no processo de leitura. Aqui se descortina o cenário do discernimento espiritual pessoal, onde não faltarão angústias e até crises. Com efeito, são numerosas as páginas literárias que podem responder à definição inaciana de “desolação”.

27: «Chamo desolação a […] obscuridade da alma, perturbação, inclinação a coisas baixas e terrenas, inquietação proveniente de várias agitações e tentações que levam a falta de fé, de esperança e de amor; achando-se [a alma] toda preguiçosa, tíbia, triste, e como que separada de seu Criador e Senhor» [21].

28. A dor ou o tédio que se sentem ao ler certos textos não são necessariamente sensações más ou inúteis. O próprio Inácio de Loyola tinha observado que, «naqueles que vão de mal a pior», o bom espírito age causando inquietação, agitação, insatisfação [22]. Esta seria a aplicação literal da primeira regra inaciana do discernimento dos espíritos, reservada àqueles que «vão de pecado mortal em pecado mortal», ou seja, nessas pessoas a ação do bom espírito «punge-lhes e remorde-lhes a consciência pelo instinto da razão» [23], para as conduzir ao bem e à beleza.

29. Assim se entende que o leitor não seja o destinatário de uma mensagem edificante, mas uma pessoa que é ativamente solicitada a encaminhar-se para um terreno instável, onde as fronteiras entre salvação e perdição não estão a priori definidas e separadas. O ato de ler é, pois, como um ato de “discernimento”, graças ao qual o leitor é implicado na primeira pessoa como “sujeito” da leitura e, ao mesmo tempo, como “objeto” do que lê. Ao ler um romance ou uma obra poética, o leitor experimenta efetivamente “ser lido” pelas palavras que vai lendo [24]. Deste modo, o leitor é semelhante a um jogador em campo: faz acontecer o jogo, ao mesmo tempo que o jogo acontece através dele, na medida em que está totalmente envolvido naquilo que faz [25].

Atenção e digestão

30. No que diz respeito ao conteúdo, há que reconhecer que a literatura – segundo a célebre imagem cunhada por Proust [26] – é como “um telescópio” apontado para os seres e as coisas, indispensável para medir “a enorme distância” que o quotidiano abre entre a nossa percepção e o conjunto da experiência humana. «A literatura é como um laboratório fotográfico, no qual as imagens da vida podem ser processadas de modo a revelarem os seus contornos e nuances. Eis a “utilidade” da literatura: “desenvolver” as imagens da vida» [27], levar-nos a interrogar sobre o seu significado. Serve, em suma, a fazer eficazmente a experiência da vida.

31. Na verdade, a nossa visão ordinária do mundo é como que “reduzida” e limitada pela pressão que os objetivos operacionais e imediatos do nosso agir exercem sobre nós. O próprio serviço – cultual, pastoral, caritativo – pode tornar-se um imperativo que orienta as nossas forças e a nossa atenção apenas para os objetivos a alcançar. Mas, como nos recorda Jesus, na parábola do semeador, a semente precisa de cair em terra profunda para amadurecer frutuosamente ao longo do tempo, sem ser sufocada pela superficialidade ou pelos espinhos (cf. Mt 13, 18-23). Assim, o risco passa a ser o cair na busca duma eficiência que banaliza o discernimento, empobrece a sensibilidade e reduz a complexidade. Por isso, é necessário e urgente contrabalançar esta inevitável aceleração e simplificação da nossa vida cotidiana, aprendendo a distanciarmo-nos do imediato, a reduzir a velocidade, a contemplar e a escutar. Isto pode acontecer quando, de modo desinteressado, uma pessoa se detém para ler um livro.

32. É necessário recuperar formas hospitaleiras e não estratégicas de relacionamento com a realidade, não diretamente orientadas para um resultado; formas nas quais seja possível deixar emergir o infinito excesso do ser. Distância, lentidão, liberdade são características de uma abordagem da realidade que encontra precisamente na literatura uma forma de expressão, não exclusiva, mas privilegiada. A literatura torna-se, então, um ginásio onde se treina o olhar para procurar e explorar a verdade das pessoas e das situações como mistério, carregadas de um excesso de sentido, que só parcialmente se pode manifestar em categorias, esquemas explicativos, dinâmicas lineares de causa-efeito, meio-fim.

33. Uma outra bela imagem para contar o papel da literatura vem da fisiologia do corpo humano e, em particular, do ato da digestão. Neste caso, o modelo é a ruminatio bovina, como afirmavam o monge Guillaume de Saint-Thierry, do século XI, e o jesuíta Jean-Joseph Surin, do século XVII. Este último falava do “estômago da alma” e o jesuíta Michel De Certeau apontava para uma verdadeira «fisiologia da leitura digestiva» [28]. Ou seja, a literatura ajuda-nos a dizer a nossa presença no mundo, a “digeri-la” e a assimilá-la, captando o que vai para além da superfície da experiência; serve, portanto, para interpretar a vida, discernindo os seus significados e tensões fundamentais [29].

Ver através dos olhos dos outros

34. No que diz respeito à forma do discurso, acontece o seguinte: ao lermos um texto literário, colocamo-nos na condição de «ver com os olhos dos outros» [30], adquirindo uma amplitude de perspectiva que alarga a nossa humanidade. Isto ativa em nós o poder empático da imaginação, que é um veículo fundamental para essa capacidade de identificação com o ponto de vista, a condição, o sentimento dos outros, sem a qual não há solidariedade, partilha, compaixão, misericórdia. Ao ler, descobrimos que o que sentimos não é só nosso, é universal, e, por isso, até a pessoa mais abandonada não se sente só.

35. A maravilhosa diversidade do ser humano e a pluralidade diacrônica e sincrônica das culturas e dos saberes configuram-se, na literatura, numa linguagem capaz de respeitar e exprimir a sua variedade, e, ao mesmo tempo, traduzem-se numa gramática simbólica de sentido que as torna inteligíveis para nós, porque partilhadas, não estranhas. A originalidade da palavra literária consiste no fato de exprimir e transmitir a riqueza da experiência, sem a objetivar na representação descritiva do conhecimento analítico ou no exame normativo do juízo crítico, mas enquanto conteúdo de um esforço expressivo e interpretativo para dar sentido à experiência em questão.

36. Quando se lê uma história, graças à visão do autor, cada um imagina, à sua maneira, o choro de uma jovem abandonada, a idosa que cobre o corpo do neto adormecido, a paixão de um pequeno empreendedor que tenta ir para diante apesar das dificuldades, a humilhação de alguém que se sente criticado por todos, o rapaz que encontra no sonho a única saída para a dor de uma vida miserável e violenta. À medida que sentimos vestígios do nosso mundo interior no meio dessas histórias, tornamo-nos mais sensíveis às experiências dos outros, saímos de nós próprios para entrar nas suas profundezas, conseguimos compreender um pouco mais as suas lutas e desejos, vemos a realidade com os seus olhos e acabamos por nos tornar companheiros de viagem. Assim, mergulhamos na existência concreta e interior do vendedor de fruta, da prostituta, da criança que cresce sem pais, da mulher do pedreiro, da idosa que ainda acredita que vai encontrar o seu príncipe. E podemos fazê-lo com empatia e, por vezes, com tolerância e compreensão.

37. Jean Cocteau escreveu a Jacques Maritain: «A literatura é impossível, temos de sair dela, e é inútil tentar sair dela com a própria literatura, porque só o amor e a fé nos permitem sair de nós mesmos». [31] Será que saímos realmente de nós próprios se os sofrimentos e as alegrias dos outros não arderem no nosso coração? Prefiro lembrar-me que, como cristão, nada do que é humano me é indiferente.

38. Além disso, a literatura não é relativista porque não nos despoja de critérios de valor. A representação simbólica do bem e do mal, do verdadeiro e do falso, como dimensões que na literatura tomam a forma de existências individuais e de acontecimentos históricos coletivos, não neutraliza o juízo moral, mas impede-o de se tornar cego ou superficialmente condenatório. Pergunta-nos Jesus: «Porque reparas no argueiro que está na vista do teu irmão, e não vês a trave que está na tua vista?» (Mt 7, 3).

39. Na violência, na limitação ou na fragilidade dos outros, temos a possibilidade de refletir melhor sobre a nossa. Ao dar ao leitor uma visão alargada da riqueza e da miséria da experiência humana, a literatura educa o seu olhar para a lentidão da compreensão, para a humildade da não simplificação, para a mansidão de não pretender controlar a realidade e a condição humana através do julgamento. Este é certamente necessário, mas nunca se deve esquecer o seu alcance limitado: com efeito, jamais deve traduzir-se na sentença de morte, no cancelamento, na supressão da humanidade em prol de uma árida totalização da lei.

40. O olhar da literatura forma o leitor para o descentramento, para o sentido do limite, para a renúncia ao domínio cognitivo e crítico da experiência, ensinando-lhe uma pobreza que é fonte de extraordinária riqueza. Ao reconhecer a inutilidade e, talvez até, a impossibilidade de reduzir o mistério do mundo e do ser humano a uma polaridade antinômica de verdadeiro/falso ou de certo/errado, o leitor aceita o dever de julgar não como instrumento de domínio, mas como impulso para uma escuta incessante e como disponibilidade para se envolver nessa extraordinária riqueza da história que se deve à presença do Espírito, e também se dá como Graça, isto é, como acontecimento imprevisível e incompreensível que não depende da ação humana, mas redefine o humano enquanto esperança de salvação.

O poder espiritual da literatura

41. Com estas breves reflexões, espero ter evidenciado o papel que a literatura pode desempenhar na educação do coração e da mente do pastor ou futuro pastor, no sentido de um exercício livre e humilde da sua racionalidade, de um reconhecimento fecundo do pluralismo das linguagens, de um alargamento da sua sensibilidade humana e, finalmente, de uma grande abertura espiritual para escutar a Voz através de muitas vozes.

42. Neste sentido, a literatura ajuda o leitor a quebrar os ídolos das linguagens autorreferenciais, falsamente autossuficientes, estaticamente convencionais, que por vezes correm o risco de contaminar até o nosso discurso eclesial, aprisionando a liberdade da Palavra. A palavra literária é uma palavra que põe a linguagem em movimento, liberta-a e purifica-a; abre-a, por fim, às suas ulteriores possibilidades expressivas e exploratórias, torna-a hospitaleira à Palavra que vem habitar na palavra humana, não quando se entende a si mesma como conhecimento já pleno, definitivo e completo, mas quando se torna vigília de escuta e de espera d’Aquele que vem renovar todas as coisas (cf. Ap 21, 5).

43. A força espiritual da literatura recorda, por último, a primeira tarefa confiada por Deus ao homem: a tarefa de “dar nome” aos seres e às coisas (cf. Gn 2, 19-20). A missão de guardião da criação, atribuída por Deus a Adão, passa primeiramente pelo reconhecimento da sua própria realidade e do sentido da existência dos outros seres. Também o sacerdote está investido desta tarefa original de “dar nome”, dar sentido, fazer-se instrumento de comunhão entre a criação e a Palavra feita carne e o seu poder de iluminar todos os aspectos da condição humana.

44. A afinidade entre o sacerdote e o poeta manifesta-se assim nesta misteriosa e indissolúvel união sacramental entre a Palavra divina e a palavra humana, dando vida a um ministério que se torna serviço cheio de escuta e compaixão, a um carisma que se traduz em responsabilidade, e a uma visão do verdadeiro e do bem que se abre como beleza. Não podemos renunciar à escuta das palavras que nos deixou o poeta Paul Celan: «Quem realmente aprende a ver, aproxima-se do invisível» [32].

Dado em Roma, em São João de Latrão, no dia 17 de julho do ano 2024, décimo segundo do meu Pontificado.

FRANCISCO 


[1] R. Latourelle, «Letteratura», in R. Latourelle - R. Fisichella, Dizionario di Teologia Fondamentale (Assisi 1990), 631.

[2] Cf. A. Spadaro, «J. M. Bergoglio, il “maestrillo” creativo. Intervista all’alunno Jorge Milia», in La Civiltà Cattolica 2014 I, 523-534.

[3] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 62.

[4] K. Rahner, «Il futuro del libro religioso», in Nuovi Saggi II (Roma 1968), 647.

[5] Cf. Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 117.

[6] A. Spadaro, Svolta di respiro. Spiritualità della vita contemporanea (Milano), 101.

[7] R. Latourelle, «Letteratura», 633.

[8] São João Paulo II, Carta aos Artistas (4 de abril de 1999), 6.

[9] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 89.

[10] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 22.

[11] M. Proust, À la recherche du temps perdu – Du côté de chez Swann (Paris 1914), 104-105.

[12] C.S. Lewis, Lettori e letture Un esperimento di critica (Milano 1997), 165.

[13] Cf. J.L. Borges, Oral (Buenos Aires 1979), 22.

[14] São Paulo VI, Homilia durante a Santa Missa com os Artistas (Capela Sistina, 7 de maio de 1964).

[15] T.S. Eliot, The Idea of a Christian Society (London 1946), 30.

[16] Conferência de imprensa durante o voo de regresso da Viagem Apostólica de Sua Santidade Francisco à Tailândia e ao Japão, 26 de novembro de 2019.

[17] Cf. A. Spadaro, La grazia della parola. Karl Rahner e la poesia (Milano 2006).

[18] K. Rahner, «Sacerdote e poeta», in La fede in mezzo al mondo (Alba 1963), 131-173.

[19]  Ibid., 171 s.

[20]  Ibid., 146.

[21] Santo Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, 317.

[22] Cf. Ibid., 335.

[23]  Ibid., 314.

[24] Cf. K. Rahner, «Sacerdote e poeta», op. cit., 141.

[25] Cf. A. Spadaro, La pagina che illumina. Scrittura creativa come esercizio spirituale (Milano 2023), 46-47.

[26] M. Proust, À la recherche du temps perdu. Le temps retrouvé (Paris 1954), Vol. III, 1041.

[27] A. Spadaro, La pagina che illumina, op. cit., 14.

[28] M. De Certeau, Il parlare angelico. Figure per una poetica della lingua (Secoli XVI e XVII) (Firenze 1989), 139 s.

[29] Cf. A. Spadaro, La pagina che illumina, op. cit., 16.

[30] C.S. Lewis, Lettori e letture, op. cit., 165.

[31] J. Cocteau - J. Maritain, Dialogo sulla fede (Firenze 1988), 56. Cf. A. Spadaro, La pagina che illumina, op. cit., 11-12.

[32] P. Celan, Microliti (Milano 2020), 101.

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