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A educação clássica é a opressão da ignorância

O recital, 1862, por Gustave Léonard de Jonghe

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Tempo de leitura: 40 minutos.

Texto retirado do capítulo 2 do livro Desconstruindo Paulo Freire, organizado por Thomas Giuliano Ferreira do Santos (org), Editora: História Expressa, 2017.

2 A educação clássica é a opressão da ignorância, por Clístenes Hafner Fernandes [*]

A alegria não chega apenas no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca. E ensinar e aprender não pode dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria.
(Paulo Freire, Pedagogia da Autonomia) 

Quis miles sine certamine coronabitur? Quis agricola sine labore abundat panibus? Nonne vetus proverbium, radices litterarum esse amaras, fructus autem dulces? Igitur et noster orator in Epistula ad Hebreos idem probat. Omnis quidem disciplina in praesenti non videtur esse gaudii sed moeroris; postea vero pacatissimum fructum exercitatis in ea affert iustitiae.
(Alcuinus, De Grammatica) [**]

O tema deste capítulo é a educação clássica no contexto da educação no Brasil, cujo patrono é Paulo Freire. Por mais que o título do livro seja Desconstruindo Paulo Freire, o que quero aqui é pôr algo no terreno que fica baldio depois da demolição; vamos ver, sim, o porquê de não seguirmos certas diretrizes dos órgãos responsáveis pelas instituições educacionais que são profundamente influenciadas por uma só doutrina em sua quase totalidade, mas queremos antes de tudo propor algo bastante concreto. E essa proposta não tem nada de própria e nenhum mérito deve a mim, mas a toda a cultura ocidental, que há milênios deixa registrados muitos de seus erros e acertos. O que queremos então é olhar para trás e ver o que deu certo. Isso por termos a firme convicção de que é somente assim, com verdadeira educação tradicional, que é possível não termos que, a cada nova geração, descobrir novamente como fazer fogo. As gerações passadas já nos ensinaram tal arte, e podemos gastar nossas mentes com problemas de outra ordem, isto é, de alguma forma ininterrupta, chegou até nós a arte do fogo. Assim é com todo o desenvolvimento cultural, pois nós vivemos em uma cultura específica que só é possível quando temos conhecimentos adquiridos por gerações passadas que, através da linguagem humana, chegaram até nós, que também temos a responsabilidade de não deixar que as próximas gerações sejam privadas das conquistas dos mais antigos.

Não foi só o fogo, foram também os números, as técnicas agrícolas e pastoris, a organização social e, principalmente, a esperança inabalável na vida post mortem que através de um instrumento muito humano, a linguagem, faz com que vivamos e gozemos das conquistas passadas. A linguagem possibilita que não só os contemporâneos possam ajudar uns aos outros, mas também permite a comunicação com os antigos. Para atingir maior eficácia nessa transmissão da cultura, a língua surge, desenvolve-se e morre junto com a música e o verso, que são, na verdade, a mesma coisa. Vejam que a língua surge para a transmissão da cultura, sim, da cultura inteira e não somente daquilo que chamamos de Kultur com k maiúsculo ou alta-cultura. Também as técnicas com as quais devemos fazer fogo e cozinhar os alimentos e a forma com a qual devemos construir casas e confeccionar roupas dependem da língua para seu próprio aprimoramento, pois a máxima “duas cabeças pensam melhor do que uma” é irrevogável. Ao referir-me à língua, faço-o em seu sentido mais amplo; numa língua, está contido todo o conjunto das experiências sonoras e corporais propriamente humanas: além das palavras, a música e a poesia, a história, a oratória, as regras gramaticais também são língua.

Por tudo isso que foi dito e muito mais, a língua sempre ocupou o lugar supremo da educação. Sendo as sociedades letradas ou não, sempre é importante ensinar os mais jovens a falar – para que possam conhecer os costumes e melhor agirem – e a conhecer as realidades materiais – para melhores coisas fazerem. Enfim, é com a língua que nos é possível a transcendência, nos é possível ser não só animal, mas também animal racional. Quero dizer que um ser humano por qualquer problema físico, ou até mesmo mental, não se encaixaria na definição aristotélica de homem? Obviamente, não; isso é coisa para especialistas, mas mesmo assim sabemos que não há ser humano sem língua; por mais que latente, todos são capazes de abstrações verbais; um homem com um vocabulário reduzido não é menos homem que Coelho Neto [1]; é importante usar a língua da melhor forma, mas disso independe a definição de homem.

Hoje, a poesia, a música e muitas outras artes parecem estar só nos âmbitos do entretenimento, no máximo como um diletantismo, mas é por existir uma tradição educacional, que depois chamaremos de clássica, que o homem foi capaz de libertar-se da opressão de sua própria ignorância, ganhando assim autonomia não só do espírito, mas também do corpo através do domínio cada vez maior sobre a matéria. Sem a linguagem, que por questões práticas deve revestir-se de música e verso para melhor proveito da memória, não seria possível que o homem fizesse coisa alguma e seria sim necessário, a cada nova geração, descobrirmos uma vez mais como fazer fogo.

A quem duvida da praticidade e da eficácia da poesia para questões práticas, sugiro que busque em qualquer livro de culinária a receita de arroz de carreteiro. Tente memorizar todo o texto e, além disso, saiba exatamente o quod non est, saiba qual o gênero próximo e a diferença específica do carreteiro para os outros tipos de pratos com arroz. Depois de alguns longos anos, tente preparar um carreteiro com o texto que tiver na memória. Provavelmente, não estará mais lá, pois o texto em prosa, sem o auxílio da melodia que possui o texto em verso, é infinitamente mais difícil de ser decorado, e você não saberá mais como fazer o prato. Ora, pegue o poema de Jayme Caetano Braun intitulado “Arroz de Carreteiro” e o memorize. Não será fácil. Talvez precise de muitos dias para isso, mas, como que por mágica, esse texto virá a sua cabeça durante toda a vida, e daqui a muitos anos, você poderá fazer o arroz como se estivesse com o livro de receitas na mão; você estará livre e autônomo para fazer algo de útil e saboroso. Se é assim com uma simples e rústica receita culinária, quanto mais com questões espirituais como a ética, a política e a religião. Precisamos nos libertar, precisamos de autonomia, precisamos da educação clássica, cujas raízes são amargas, mas os frutos, doces.

A educação dita clássica é a verdadeira educação para a liberdade, pois oprime dolorosamente a ignorância e habilita os alunos à participação ativa na sociedade. Capitalismo versus socialismo, patrões versus empregados, oprimidos versus opressores. O mundo parece ser tão simples se observado por essa ótica. Mas tenhamos cuidado; o mundo é sempre simples se percebido por um só homem ou mesmo por um conjunto de homens que não observam o mundo, mas apenas repetem as conclusões de um único observador. Desde que se tem notícia, existiram homens à procura de observadores que lhes pudessem entregar os resultados de suas observações para se pouparem do árduo trabalho de observarem por si mesmos: sábia decisão. Porém, há os que, apegando-se ao relato de um único observador e levados pela preguiça constituinte de todo animal racional, passam a defender com unhas e dentes qualquer fiapo de opinião minimamente bem apresentada. É o que vemos ter acontecido com o patrono da educação brasileira, e é o que queremos evitar ao propormos neste capítulo o cultivo do que de melhor, mais belo e mais próximo da verdade o homem já conquistou. Propomo-nos a ouvir os relatos e as conclusões do maior número possível de observadores; propomos a educação de sempre; propomos a educação clássica.

Mas não sou eu, um professor de nível médio, quem propõe nada. Não proponho nada porque sei que muitos outros já propuseram, outros com mais talento, mais leituras e mais maturidade do que eu. Vou deixar que esses homens falem. Sejamos democráticos e levemos em consideração a opinião alheia não só de nossos contemporâneos, mas de toda a res publica litteraria, aquela comunidade humana que deixou por escrito o que deveríamos conhecer, o que deveríamos fazer e como deveríamos agir; que, consciente da própria existência, criou monumentos. Um monumento é tudo aquilo que nos monet, que nos instiga e move ao bem ou ao mal, à beleza ou à feiura, à verdade ou ao erro. Participemos da democracia dos mortos; ouçamos a Tradição [2].

É buscando ouvir a Tradição que, ao depararmo-nos com a frase de Paulo Freire que está na epígrafe, podemos ver o quão longe pode-se estar de uma verdadeira doutrina pedagógica. Alcuíno de Iorque foi para Carlos Magno e para todo o Sacro Império Romano Germânico o que Paulo Freire é para nós brasileiros. Na virada do século VIII para o IX, tudo estava por ser feito, e a figura de pai ou mesmo de patrono da educação de todo um império é uma ótima analogia para descrevermos o mestre Albinus, que usava esse pseudônimo para manter-se humilde diante de tudo o que construiu e que ficou conhecido como a Renascença Carolíngia. E notamos a grande diferença nas citações: o primeiro propõe o céu na terra, um aprendizado sem dor, que sabemos ser possível, mas que gera amargas ervas daninhas, o segundo simplesmente observa a realidade e vê que a educação dói, mas gera frutos doces.

“Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. (Paulo Freire)

“Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. (Paulo Freire) 

Podemos concordar com muitas das frases soltas de qualquer autor, até mesmo de Paulo Freire. É impressionante a nossa tendência a abraçarmos uma doutrina por termos lido umas poucas frases. Fora o estilo e o uso de neologismos totalmente desnecessários, não há quem possa discordar de tudo contido numa doutrina qualquer. Essa é uma lição, ou até mesmo um dos princípios, não só da educação clássica, mas também do argumento bíblico (Que digo? A Bíblia só existe pela educação clássica e não o contrário, como alguns podem pensar, mas isso é matéria para outro texto.): spiritum nolite extinguere, prophetias nolite spernere, omnia autem probate quod bonum est, tenete [3].

A educação de sempre é a educação para o trabalho. Falar da educação clássica é falar da educação de sempre, da educação que não só, simplesmente, vê e imita tudo aquilo que vem dando certo nos últimos três mil anos, mas também que olha para o que não deu certo e que por isso deve ser repudiado. Pronto! Nada além disso! Mas há de se reconhecer que é algo muito duro. Primeiro, porque três mil anos de cultura, desde Homero e Moisés até os nossos dias, são inabarcáveis por uma pessoa só. Segundo, porque se não houver uma profunda mudança para melhor na personalidade dos alunos e dos professores, a educação clássica é só um passatempo um pouquinho mais erudito do que fazer palavras cruzadas. Terceiro, porque há no mercado formas muito mais fáceis e menos dolorosas de se cumprir a exigência de estudar, afinal, todos temos de estudar em certa época da vida, e não importa o quê.

E por que devemos estudar? “Para podermos trabalhar, conseguir um emprego, fazer um concurso.” Normalmente, quem fala sobre educação clássica responde que não, que não é a atividade profissional o fim da verdadeira educação. Mas neste capítulo, vou juntar-me ao coro dos que dizem que sim, que precisamos de educação para podermos trabalhar e trabalhar bem, pois é aí, no trabalho, que tiraremos a prova real da eficácia dos métodos empregados na formação clássica. É no trabalho que empenhamos os anos da vida em que maturidade e gravidade de caráter se servem da força física e da esperança próprias da juventude para mexermos na natureza das coisas. Mesmo que, por uma visão macrocósmica, o homem só seja capaz de ser aquele pardal tentando apagar o fogo de uma casa com o pouco de água que consegue carregar no bico.

Mas há a visão microcósmica, a visão dos grandes homens de ciências, de letras ou de artes, que é o objeto principal da educação clássica, a educação que forma os homens de dentro para fora e permite que aquele que olha para dentro, ao emergir desse mergulho na alma, enxergue o quão importante é moldar e mudar a si mesmo. O trabalho é a oportunidade que temos para mudarmos a nós mesmos.

No princípio era o ócio – poderiam dizer alguns –, era aquela ocupação à qual se dedicava Adão no paraíso, ou a ocupação dos homens de ouro em Hesíodo. Era um tempo quando não havia trabalho – dizem outros –, e a Bíblia vê o trabalho como algo feio, algo a que o homem é condenado após o pecado original. Antes era o ócio, e Adão passava os dias de sua até então imortalidade dedicando-se à poesia, à literatura e à filosofia; dava nome às coisas. Mas dar nome às coisas já não é trabalhar? E ter de ser o senhor da criação não é uma responsabilidade grande demais para ociosos? Sim, e Adão não foi condenado a trabalhar, mas, sim, a suar. E como todos os que estudam os clássicos sabem, qualquer um poderia ter escrito sobre a criação do homem, já que ali não há nada que não possa ser concluído por alguém que olhe para si mesmo. E como ensina o vulgo: o ruim não é o trabalho, mas, sim, ter de trabalhar.

A palavra escola quer dizer justamente isso, σχολή, otium que se opõe a negócio, nec otium, negotium. A escola é originariamente o momento em que eu não trabalho, só estudo… Não, na escola, trabalha-se sem suor! E aqui, chegamos para dizer que o estudo é um trabalho, que a atividade de jardineiro, advogado, pintor, diplomata, bancário, pedreiro, presidente da república, monarca ou qualquer outra não é diferente daquela exercida na escola. Se para alguns é, nós precisamos falar sobre a escola.

Como pode ser que todas as pessoas, sem distinção alguma, devam aprender as mesmas coisas entre os cinco e os 18 anos de idade? Pode ser, sim, pois há uma cultura que deve ser comum a todos os homens livres. Dizendo de outro modo, há uma cultura – um cultivo da alma – que torna os homens livres. Essa liberdade, que passam a possuir todos aqueles que verdadeiramente cultivam a alma, é um grande valor, ou melhor, uma grande virtude que nunca saiu de moda, a diferença é que em cada período histórico o vocábulo liberdade foi aplicado a realidades materialmente distintas. Do tirano ao povo, do senhor ao escravo, dos íncolas aos imigrantes, todos encheram a boca para falar de liberdade. Hoje, só Hitler é lembrado pelo Arbeit macht frei, provando que até nos piores casos é possível haver concórdia se isolamos os termos.

Estudem-se não os contemporâneos e aqueles que têm as nossas mesmas tendências, mas os grandes homens do passado, cujas obras adquiriram há séculos um valor sempre igual e igual renome… Estude-se Molière, estude se Shakespeare, mas, antes de mais nada, os antigos gregos, e sempre os gregos! (Goethe) 

Não estudamos os antigos porque eram melhores do que nós. Surgiu na Alemanha uma ideia paradisíaca sobre o homem grego. Winkelmann, um iluminista historiador da arte, desenhara a Grécia Antiga como uma espécie de Jardim do Éden ou, para ficarmos na mesma cosmovisão, uma espécie de Campos Elíseos. Mas o erro histórico e antropológico de enxergar a perfeição em um tempo passado é recorrente nos espíritos que por vontade própria ou necessidade espacial e temporal estão fora da solução do problema judaico-cristão. Talvez tenha sido aí que começamos a encarar os estudos de línguas mortas e de textos antigos como deleite e passatempo. Antes disso, era o que tínhamos para fazer. Precisávamos ser capazes de conversar uns com os outros; não só com os contemporâneos, mas também com todos os que tiveram algo de importante a dizer. Precisávamos ser capazes de oprimir nossa ignorância para que ela nos libertasse. Ninguém possui a ignorância, é ela que nos possui. Inscitia nos tenet. A partir de então, quando pensávamos estar voltando-nos para as origens mais profundas de nossa civilização, criamos a falsa ilusão de um céu na terra que teria existido no Peloponeso, invertendo completamente a finalidade transcendental e libertadora da educação clássica, que passou a igualar-se a idas a museus.

A educação clássica não é um museu. Certa vez, assisti a um filme dirigido por Woody Allen chamado “Meia-Noite em Paris”. É interessante ver que certos movimentos da alma criativa se repetem sempre e parecem não se resolver nunca. No filme, o personagem principal está na Paris de nossos dias e sofre daquela saudade de um tempo que não viveu, que é típica dos escritores; ele gostaria que a cidade tivesse se conservado ou até permanecido nos anos vinte. Por mágica, o protagonista acaba tendo a oportunidade de voltar no tempo e viver algumas horas na sua década amada, e conhece uma jovem que por sua vez sofre de saudade da Belle Époque. Os dois têm a oportunidade de voltar no tempo e viver também algumas horas em Paris no século XIX. Só que ali, sofre-se de saudade do iluminismo. Enfim, o filme, de cuja qualidade não posso dizer nenhuma palavra por não entender nada de cinema, convida-nos a esquecermo-nos do passado, pelo menos de um passado em que haja uma perfeição ideal.

Tudo isso para dizer que a educação clássica não é um museu como muitas vezes é não só vista, mas até mesmo idealizada, por alguns. Ninguém tem de aprender latim para conservar certas citações de autores célebres em um canto da memória. A língua oficial da república literária ajuda-nos a viver com liberdade e com autonomia, pois temos para onde recorrer para dirimir nossas dúvidas.

O primeiro passo para uma educação clássica é o domínio da linguagem em todas as suas quatro habilidades, ou four skills, como dizem os de língua inglesa. Por dois mil anos, essa língua a ser dominada foi o latim, e eu acho cedo demais para pensarmos que já deixou de ser. A educação clássica, a educação para o trabalho em todas as suas dimensões, para a liberdade e para a autonomia passa inevitavelmente pelo aprendizado da língua latina. É isso que quero dizer neste capítulo, pois o fim do ensino do latim marca o início da decadência da educação clássica.

O uso do latim como língua escrita, posto que não se identifique de todo com a causa […] da cultura greco-latina e mediterrânea, é, contudo, o indício mais seguro de uma comunicação vital entre o mundo antigo e o moderno. Quando cessar esse uso, cessará também, necessariamente, o aporte contínuo de ideias que nos vêm da antiguidade. Pode ser que a nossa civilização moderna não tenha mais necessidade disso. Mas eu não diria que essa sua nova independência contribuirá para torná-la melhor.
(Giovanni Battista Pighi) 

A Gramática ou Literatura ou, simplesmente Litterae, letras, frequentemente foi simbolizada por uma palmatória. Talvez não usemos mais palmatórias em nossos alunos, mas o símbolo continua muito válido como bem nos lembra mestre Alcuíno. Isso porque nada é mais doloroso para o intelecto do que aprender. Ao dedicarmo-nos ao domínio de uma fonética diferente daquela que ouvimos desde a gestação no seio materno, à aquisição de vocabulário, às regras de sintaxe e ao aprimoramento do estilo através de incessantes leituras, podemos ver o quanto aprender qualquer coisa dói. Dói porque nossos olhos estão acostumados à escuridão.

Por que é mais importante estudar latim e grego do que línguas modernas? Não há como ler bem textos antigos em traduções para o português! Ou inglês, ou espanhol, ou francês, ou italiano. Em alemão, teria sido possível se essa língua tivesse tomado um rumo diferente ao longo de sua história, mas isso é questão para artigo focado mais em filologia e menos em pedagogia. Dou-vos um exemplo simples propondo o seguinte exercício: 

Leia este verso da Sequência de Corpus Christi, Lauda Sion, de Santo Tomás de Aquino: Noctem lux eliminat.

Sempre que lemos uma frase, uma série daquilo que o filósofo chamou de fantasmas aparece em nossa imaginação na mesma ordem em que os vocábulos estão dispostos. Na frase noctem lux eliminat, temos noite e luz. Tente imaginar essas duas realidades, porém em ordens diferentes: imagine a noite. Agora, imagine a luz. Por fim, faça o contrário, imagine a luz e depois a noite.

A questão é: Santo Tomás quis que, quando lêssemos esse verso, pensássemos na noite antes de pensarmos na luz. Assim, o verbo eliminat é praticamente desnecessário. Quando traduzimos para o português, o melhor que temos é A luz elimina a noite. A luz vem antes, e aí temos um problema, pois o autor não quis que nós víssemos o fantasma da noite antes do da luz. Mas e a voz passiva? Como diz o nome, é passiva. Se disser noite é eliminada pela luz, está suavizando o sujeito, que em gramática não se chama mais sujeito, e sim agente da passiva, e acabamos dando maior valor à noite do que à luz.

A luz, no verso de Santo Tomás, é Cristo, e a noite é o pecado. O que é mais importante, o pecado ou Cristo? Certamente, Cristo! Mas por que devemos ler (e imaginar) o pecado primeiro? Muito simples: o pecado antecede a Cristo tanto historicamente quanto espiritualmente. Assim, não só na eucaristia, que vem eliminar a escuridão do pecado, como também nos demais sacramentos, em que Cristo sempre se faz presente, primeiro tens o pecado, depois vem Cristo e o elimina.

Podemos entender isso lendo a frase em português? Sim, claro, pois é uma frase curta e fácil, que trata de uma realidade simples como o próprio cristianismo. Mas os textos antigos são sempre assim, e se não puser os fantasmas na ordem certa, talvez acabe por não entender o texto. 

Portanto, a posição das palavras diz muito sobre o conteúdo de uma frase, e numa língua sem declinações de substantivos e adjetivos, não temos todos os recursos para que o leitor ou ouvinte crie os fantasmas na ordem que queremos e de que precisamos. Em português, foram precisos diversos parágrafos para explicar um verso que deveria ser entendido à primeira vista; em latim, o próprio verso é autoexplicativo. É preciso, portanto, ler no original, coisa muito elementar e evidente até poucos anos, até o dia em que passamos a encarar a cultura ocidental como um museu e deixamos de estudar a língua que era o principal veículo de nosso culto.

Uma língua é uma língua. O latim é uma língua. Existem métodos bons e ruins para ensinar línguas. Quanto mais o método se esquece de que o latim é uma língua, pior fica. A Gramática Latina de Napoleão Mendes de Almeida, por exemplo, é um grande livro, mas, como o nome diz, serve para que aprendamos gramática, e não língua.

Se perguntássemos a Erasmo de Rotterdam, um dos maiores prosadores do latim em épocas em que este já era uma língua morta, o que é um adjunto adnominal restritivo, ele não saberia responder. E um genitivo? Sim, isso sim. Mas isso ele aprendeu depois de entender bem a diferença entre filius Deus e filius Dei. E ninguém tentou ensinar tal diferença explicando o que era um genitivo e muito menos um adjunto adnominal restritivo.

Nem só de latim vive o homem, alguns frequentemente me dizem, e é verdade, mas é o latim o instrumento da liberdade e da autonomia. Foi assim durante séculos e é cedo demais para afirmarmos que deixou de ser o caminho mais seguro. Mesmo que depois de termos oprimido nossa ignorância pelas longas horas de exercícios de morfologia, sintaxe e estilo nunca peguemos num livro latino, teremos infinitamente mais facilidade para o aprendizado de outras línguas que venham a ser diretamente mais úteis, teremos aprendido a estudar e a aprender, teremos sofrido sob a palmatória da gramática e nos tornado autônomos e livres para seguir qualquer caminho dentro da sociedade, independentemente da classe social, raça, nacionalidade ou credo; pertenceremos à república das letras e teremos o direito e o dever de participar da verdadeira democracia, aquela que ouve a todos, até os mortos; participaremos da Tradição.

Um dia deixamos de ter uma língua comum com interlocutores de todas as épocas e, a partir daí, também por não termos essa matéria que é uma verdadeira palmatória espiritual se bem ensinada, o caminho estava aberto para que usurpassem o vocabulário e, através de métodos alternativos, pudessem inverter os valores da educação realmente voltada para a autonomia e a liberdade.

Sim, liberdade, pois não foram só homens virtuosos a sair dos bancos escolares clássicos. Se a educação tivesse sido opressora, não no sentido real da palavra, mas no sentido freiriano, os franciscanos não teriam Ockham, nem os jesuítas – verdadeiros patronos da educação no Brasil – teriam Diderot, Rousseau ou até Descartes.

Não é possível pensar em transformar o mundo sem sonho, sem utopia, sem projeto. (…) Os sonhos são projetos pelos quais se luta (Freire). Não é mesmo possível, sr. Freire, mas o nosso sonho, a nossa utopia, o nosso projeto é muito mais antigo e valoroso do que os seus. Nosso sonho é o de São José; pega sua esposa e seu filho e vai para o Egito, pega tudo o que merece ser conservado e garante a sua sobrevivência. Nossa utopia é a de São Tomás Moro, nosso projeto é o de Sócrates.

A libertação, por isto, é um parto. E um parto doloroso. O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição opressores oprimidos, que é a libertação de todos. (…) A superação da contradição é o parto que traz ao mundo este homem novo, não mais opressor; não mais oprimido, mas homem, libertando-se. (Paulo Freire) 

Sim, a educação é um parto, como diria não Paulo Freire, mas Sócrates, e só há parto depois da gestação. O ventre não oprime, ele guarda, nutre, protege, assim como a educação clássica guarda tudo o que pode ser guardado e faz com que a civilização se desenvolva desde o estado embrionário; nutre pela assimilação dos alimentos que necessariamente precisam nutrir primeiro a mãe; protege contra tudo o que possa prejudicar o processo longo e obstinado de parir. Após o parto, a civilização ainda não está livre. Tudo pode acontecer! A criança precisa de anos de ensinamentos para que aprenda simplesmente a fazer aquilo que no ventre acontecia de forma natural. Terá que aprender a guardar para conhecer, a nutrir-se para agir e a proteger-se se quiser fazer qualquer coisa.

Quando que deixamos de acreditar que o importante na escola é aprender a ler, a escrever e a contar? Acho que a grande maioria das pessoas nunca deixou. Quem deixou foram os pedagogos discípulos do mestre Freire. Se não é isso, o que deve ser a educação? Sempre houve discordâncias entre os pedagogos sobre como e por que ensinar leitura, escrita e matemática, mas não me parece ter havido, antes de Freire, alguém que propusesse a quase abolição dessas matérias. Como fazer para alcançarmos a tal liberdade? Como fazer para que cresçamos em autonomia se para tudo precisamos de um professor que nos ensine, pois não temos a habilidade necessária para ir a qualquer biblioteca, tomarmos um volume sobre determinado assunto e aprendermos sozinhos o que nos é necessário? Que liberdade? Que autonomia? Discutamos, sim, o método de ensinar e encontremos o mais eficaz para cada sociedade e para cada tempo, mas não nos iludamos serem possíveis a liberdade e a autonomia onde não há, através do suor seco das horas de ditados, cópias, leituras, recitações, memorizações e cálculos de cabeça, verdadeira opressão da ignorância.

Enfim, a educação clássica é a pedagogia do oprimido pela ignorância que busca a autonomia para que, por suas próprias pernas, possa buscar o que é bom, belo e verdadeiro; possa trabalhar, contemplar a realidade e ter cada vez mais certeza de que está no caminho certo, caminho sem fim, mas certo. E quando esse oprimido se sentir inseguro ao lutar bravamente contra a ignorância, pela sua libertação, terá a certeza de que não está sozinho; alguém antes dele deve ter deixado uma canção sobre como fazer fogo.


Notas:

[*] Professor de Artes Liberais no Instituto Hugo de São Vítor.

[**] Tradução: “Qual soldado será coroado sem uma batalha? Qual agricultor terá pão em abundância se não trabalhar? Não diz o velho ditado as raízes das letras serem amargas, mas os frutos doces? Assim sendo, também o nosso orador (São Paulo) comprova o mesmo na epístola aos hebreus. Pois ‘nenhuma correção é vista como alegria no presente, mas como sofrimento; no futuro, por sua vez, ela traz um fruto de paz pelo exercício da justiça.’” (Alcuíno de Iorque, Sobre a Arte Gramática) 

[1] Henrique Maximiano Coelho Neto foi contemporâneo de Machado de Assis e ficou conhecido por, dentre outras coisas, escrever valendo-se de um vocabulário enorme.

[2] Grafo Tradição com t maiúsculo referindo-me não ao que a Igreja Católica chama de Tradição, nem aos costumes mais simples e sujeitos a mudanças, como há no campo da etiqueta, da moda e do folclore. Com Tradição quero referir-me a todas as grandes conquistas da história humana que, por terem sido devidamente registradas, libertaram-se da lei da morte.

[3] Tradução: “Não extingais o espírito, não desprezeis as profecias, examinai tudo, abraçai o que é bom.” (I Tessalonicenses 5, 19-21)

 ***

Leia mais em Paulo Freire, patrono ou ídolo de barro?

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