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Apresentamos o Prefácio e a Introdução do livro A Técnica do Livro Segundo São Jerônimo, por Dom Paulo Evaristo Arns, traduzido por Cleone Augusto Rodrigues e publicado pela Editora Cosac Naify, 2007.

Prefácio

Paulo Evaristo, leitor de São Jerônimo

É como professor de Literatura e velho amigo dos livros — esses companheiros singulares que só nos falam quando nos dirigimos a eles e ao abrirmos o segredo de suas páginas — que desejo comentar a reedição pela Cosac Naify de um notável trabalho universitário composto por um inveterado amigo dos livros. O que lembramos hoje é a obra com que o estudante de Filosofia e Letras da Sorbonne se doutorou há mais de cinqüenta anos: A técnica do livro segundo São Jerônimo. Essa tese, vertida para o português em 1993, quando a publicou a editora Imago, intitula-se, no original francês La technique du livre d'après Saint Jérôme.

Qual foi a gênese, a motivação primeira que levou o jovem sacerdote Paulo Evaristo a embrenhar-se na selvo selvaggia de um dos maiores escritores cristãos de todos os tempos — São Jerónimo —, que costuma ser citado, sobretudo, pela sua versão latina das Escrituras, a Vulgata, fonte de quase todo o conhecimento bíblico no Ocidente durante mais de um milênio? É Dom Paulo que nos conta com a sua bela simplicidade franciscana:

No dia de minha profissão religiosa, estava iniciando os vinte anos de vida e me perguntava como faz todo mundo: ”que será do meu futuro?’. Nesse momento, me entregaram a carta de meu irmão padre, dizendo “dedique-se à literatura cristã dos primeiros séculos, porque você gosta de latim e grego e o Brasil precisa de informações sobre esta era tão rica e tão desconhecida”.

O jovem levita seguiu à risca o conselho do irmão. E atirou-se a um trabalho ingente de pesquisa erudita, que começava simplesmente pela decifração das 10 mil colunas dos tomos 22 a  29 da célebre Patrologia Latina de Migne, dedicada aos textos dos primeiros cristãos.

O objetivo da tese era descrever com exatidão filológica todo o longo processo de composição da escritas acionado nos primeiros séculos da era cristã. O que comportava o estudo de uma série de elementos que vão desde o tipo de suporte usado (o papiro, o pergaminho, as tabuletas de cera com o estilete), até, na outra ponta, aspectos ligados à difusão da obra, passando metodicamente pelas etapas da redação e das várias modalidades da edição. Os cinco capítulos da tese estão ordenados com clareza exemplar: o material, a redação, a edição, a difusão, o livro e os arquivos. A tese inclui uma bibliografia geral sobre o tema, que é um precioso guia para o leitor que deseje prosseguir seus estudos nesse mundo fascinante em que a técnica jamais foi um fim, em si mesma, mas, no caso de Jerónimo, apenas um instrumento apto para transmitir a palavra divina da revelação e as palavras humanas sobre a revelação.

Não é preciso dizer que, desde as primeiras linhas da tese, o leitor leigo, como eu, em cultura patrística, tem tudo a aprender. Cada parágrafo do pesquisador Paulo Evaristo dá uma informação nova, exata e sempre calçada pela nota erudita ao final de cada capítulo. Tratando, por exemplo, do papiro, que serviu de principal suporte à escrita no período em questão, o autor nos lembra a dificuldade de obtê-lo entre os monges do deserto, que se escusavam de escrever pouco por falta da rara planta egípcia. Adiante, esclarece-nos sobre o sentido do termo charta, que é a folha de papel-papiro, e não o texto inteiro que se envia a alguém, o qual tinha por nome epístula.

Ficamos sabendo que, como nós outros de hoje, São Jerónimo às vezes lançava mão de pedacinhos de. folha, as chartulae, para rascunhar alguma frase que só depois seria desenvolvida, e confessa modestamente: “Volo in chartulis meis quaslibet ineptias scribere, commentari de scripturis..'’ [“Quero escrever umas bobagens em minhas fichinhas, comentários sobre as escrituras”]. Mas a ficha, mesmo, era scheda, palavra que o italiano conservou, e nela Jerónimo fazia, de fato, os seus rascunhos, isto é, os manuscritos que precedem a redação definitiva. Mas quem. continuar lendo o tópico, vê que schedula não só vale para rascunho e acha, como também cobre, às vezes, por metonímia, o texto inteiro. Lembro que, na acepção de lista de anotações, ou agenda, o termo está vivo no inglês schedule.

Chega, enfim, à obra acabada, o codex ou códice, termo consagrado na bibliologia para o “livro” até a invenção da imprensa no século XV. De todo modo, na competição que houve entre o papiro e o pergaminho da tradição bíblica e judaica, é este que acaba vencendo; e da sua durabilidade é testemunho, até hoje, a conservação dos códices medievais.

São Jerônimo aprecia essas membranas tiradas da pele dos carneiros, mas, fiel ao espírito da sua missão de transmitir a Escritura, denuncia no seu comentário a Isaías aqueles que entesouram pergaminhos e os guardam em arcas sem interiorizar as mensagens neles escritas: “Legunt enim Scriptural sed non intelligunt, tenent membranas et Christuin, qui in membranis est, perdiderunt” [“Lêem, pois as Escrituras, mas não as compreendem; guardam as membranas, mas perderam a Cristo, que está nas membranas”].

Seria, para mim, um grande prazer acompanhar todos os passos deste livro ao mesmo tempo erudito e ameno. Fiquei apenas com passagens do primeiro capítulo, certo de que a curiosidade vai levar muitos a ler toda a obra.

Gostaria apenas de espicaçar essa natural curiosidade acenando para alguns temas superiormente tratados nos outros capítulos da obra. Dom Paulo estuda a maneira de Jerônimo compor as suas cartas, traduções e comentários: o ditado a verdadeiros taquígrafos, que iam velozmente preenchendo tabuinhas de cera, operação que se tornou cada vez mais necessária à medida que o grande escritor foi perdendo a luz dos olhos; os sistemas de sinais que esses taquígrafos e os copistas inventaram; a remuneração que recebiam, os defeitos das cópias; a vitória do liber-codex sobre o rolo (volumen); os problemas de divulgação dos escritos, os problemas de sua conservação em arquivos etc.

Quero terminar citando mais uma frase de Jerónimo, que vale muito especialmente para entender o espírito da carreira pastoral do seu comentador Dom Paulo Evaristo. O pensamento é este. As letras são belas, mas quando transformadas em um culto, podem impedir o seu devoto de voltar-se para o outro, o pobre, que é a efígie de Cristo padecente: “Tinge-se o pergaminho de cor de púrpura, traçam-se letras com outro líquido, revestem-se de gemas os livros, mas diante das suas portas, totalmente nu, Cristo esta morrendo”. Antevejo nessa pungente reflexão de São Jerónimo o traçado de um longo roteiro que Dom Paulo percorreu intrepidamente: primeiro, abeirando-se da cultura letrada, não por si mesma, mas enquanto estímulo para a ação inteligente; depois, voltando-se, no Brasil, para o pobre, o marginal, o oprimido. Dom Paulo soube, como poucos, ouvir o apelo de Jerônimo. E esta é a razão profunda da homenagem que lhe estamos prestando neste memento.

Alfredo Bosi


Introdução 

A palavra técnica, aos olhos dos modernos, toma um sentido cada vez mais complexo. Em geral, é empregada significando o conjunto dos procedimentos de uma arte, de um ofício. Se nos permitimos dar à nossa tese o título de Técnica do livro, não é, porém, nossa intenção nos determos na arte da composição nem na manufatura do livro. De fato, vamos tentar nos aproximar de um grande escritor cristão do fim do século IV e surpreender seus esforços para reunir o material, compor seus escritos, dar-lhes uma forma, assegurar-lhes a vitória, e prover-lhes a sobrevivência. Seria então o caso de pensar que toda nossa pesquisa vai consistir em captar o desenvolvimento de seu gênio. Não. Vamos apenas trazer à luz o que passa despercebido aos olhos da maior parte dos homens que lêem os volumosos escritos do santo Doutor. O material, em nossa tese, só apresentará o papiro, o pergaminho, a tabuleta e o estilete. A redação se resumirá para nós no ditado, na transcrição e no acabamento do exemplar-modelo. A edição, onde nos esforçaremos para definir em que consiste a publicação, recordará algumas formas do livro com suas subdivisões. A difusão nos evocará o esforço dos amigos e dos inimigos para garantir uma sorte mais ou menos feliz à obra literária. O livro e os arquivos nos mostram enfim os lugares onde serão conservados os manuscritos já bem modificados pelas reproduções sucessivas.

***

Por que nos limitamos agora a examinai os textos de São Jerônimo? O quadro que eles ajudarão a traçar será forçosamente imperfeito, porque incompleto, e isto por vários motivos. Primeiro, o autor jamais fez um tratado sobre uma dessas cinco partes; todas as nossas indicações foram colhidas na leitura, Citando apareciam aqui ou ali no texto. Depois, a interpretação textual fornecida pelo autor corre o perigo de ser vaga ou falsa, na medida em que não pôde ser confrontada com as indicações de outros escritos da mesma época. É também por essas duas razões que o desenvolvimento dado segundo os textos às diversas partes deste trabalho não é forçosamente proporcional a importância real delas.

Apesar de tudo, ficamos presos unicamente a São Jerônimo porque, no estado atual de nossos conhecimentos, os estudos em profundidade preparam as sínteses do futuro. Segundo o axioma dos filósofos, o trabalho ganhará em compreensão o que perde em extensão.

Além do mais, uma leitura assídua da obra de Jerônimo nos convenceu de que é um dos autores mais atentos aos detalhes no que tange à cópia e à edição. Com o auxílio de suas próprias indicações, tentaremos reconstituir, em parte, a história do livro nos séculos IV e V.

***

Para facilitar uma futura síntese sobre a técnica do livro naquela época, julgamos necessário citar os textos latinos por inteiro. Pela mesma causa, não hesitamos em repetir as mesmas citações para ilustrar diferentes partes de nossa exposição.

O estudo dos manuscritos de São Jerônimo, sobretudo dos mais antigos, poderia ter esclarecido alguns dos problemas levantados por nossa tese. Esta longa e paciente pesquisa será grandemente facilitada no dia em que pudermos consultar a edição de toda a obra do autor.

***

Resta nos cumprir o dever mais agradável: agradecer a todos aqueles que nos ajudaram em nossa primeira pesquisa científica: Nosso superior provincial, o Reverendíssimo Padre Dr. Ludovico Gomes de Castro, um grande amigo da França, nos permitiu realizar neste país esta longa e frutuosa estada. Os professores da Faculdade de Letras da Universidade de Paris sempre nos receberam e aconselharam com a cortesia e gentileza francesas, tão conhecidas e estimadas em nosso país. Aos senhores Jean Bayet, Henri-Irenée Marrou, Marcel Durry, entre outros, toda a nossa gratidão. O Reverendíssimo Padre Ferdinand Cavallera aceitou gentilmente ler nosso trabalho, e nos encorajou a perseverar em nosso esforço para ajudar a compreender melhor São Jerônimo. A direção do Thesaurus Linguae Latinae nos deu, em Munique, a mais generosa acolhida; o sr. professor Bernhard Bischoff, em relação a nós, foi de uma amabilidade prestativa e calorosa. À Província Franciscana da França, o nosso reconhecimento pela amizade, pela atenção fraterna e pela ajuda preciosa de que nos cercou sem cessar, no Convento de Paris.

Enfim, nossa última homenagem e a mais fervorosa e devida a nosso mestre, professor Pierre Courcelle. E a seus conselhos e a sua simpatia que devemos o melhor deste trabalho. Que nos permita testemunhar-lhe nosso mais profundo reconhecimento.

Paris, janeiro de 1952

Paulo Evaristo Arns


SUMÁRIO

Paulo Evaristo, leitor de São Jerônimo, Alfredo Bosi 7
Introdução 11
Siglas 15


CAPÍTULO l
O MATERIAL 21
O PAPIRO 21
Charta 21
Scheda 24
O PERGAMINHO 26
AS TABULETAS DE CERA 29
O ESTILETE 31
NOTAS 32


CAPÍTULO 2
A REDAÇÃO 43
O DITADO 43
Dictare 43
As circunstâncias do ditado 46 
Os inconvenientes do ditado 48
Manu propria 50
O TAQUÍGRAFO 50
A rapidez 51 
Os sinais 52 
Excipere 53
As tabuletas do taquígrafo 54
Remuneração do taquígrafo 56 
Evolução da palavra notarius 56
A TRANSCRIÇÃO 56
A profissão de copista 57
Tarefa do copista 58
Defeitos do Copista 59
A CORREÇÃO 60
O EXEMPLAR 62
NOTAS 65


CAPÍTULO 3
A EDIÇÃO 83
A PUBLICAÇÃO 83
AS FORMA DO LIVRO 87
A EPÍSTOLA 89
O LIBER 94
O CODEX 103
NOTAS 106


CAPÍTULO 4
A DIFUSÃO 129
ALGUNS ASPECTOS DO PROBLMA 129 
INTERMEDIÁRIOS E DEPOSITÁRIOS 132 
A REMUNERAÇÃO 138
PUBLICAÇÃO À REVELIA DO AUTOR 140
INFORMAÇÕES LITERÁRIAS 144
O EMPRÉSTIMO DE LIVROS 147
CÓPIA PARTICULAR 148
NOTAS 149


CAPÍTULOS 5
O LIVRO E OS ARQUIVOS 169
A AUTENTICIDADE DOS LIVROS 169
Crítica externa 169
Crítica interna 171
ADULTERAÇÃO DOS ESCRITOS 172
Adulteração acidental 172
Adulteração intencional 173
Alguns princípios para a reconstituição de texto 175
OS ARQUIVOS 176
NOTAS 179


CONCLUSÃO 189
NOTAS 192


Bibliografia 193
Índice de nomes e assuntos 199 
Sobre o autor 203
Crédito das ilustrações 207

***

Leia mais em Educação (Paideia) na Antiguidade Cristã

Leia mais em Uma breve história do livro



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