Loading [MathJax]/extensions/tex2jax.js

Postagem em destaque

COMECE POR AQUI: Conheça o Blog Summa Mathematicae

Primeiramente quero agradecer bastante todo o apoio e todos que acessaram ao Summa Mathematicae . Já são mais de 100 textos divulgados por a...

Mais vistadas

Mostrando postagens com marcador Filosofia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Filosofia. Mostrar todas as postagens

A Educação e a Verdade

 

RECEBA NOSSAS ATUALIZAÇÕES

DIGITE SEU EMAIL:

Verifique sua inscrição no email recebido.


Tempo de leitura: 7 minutos.

Texto retirado do livro A ideia de verdade e a educação de Ruy Afonso da Costa Nunes, publicada pela editora Kírion, em 2019.

O conceito de verdade através do tempo

João Pedro da Fonseca
O Estado de São Paulo, 28 de janeiro de 1979.

Quando lemos jornais ou revistas e conhecemos várias versões de um mesmo fato, quando confrontamos opiniões divergentes a respeito de um mesmo assunto, quando lemos a exposição de motivos de uma lei e o editorial de um jornal a respeito do mesmo documento, quando tomamos conhecimento de dados estatísticos, contestados por especialistas, quando estudamos doutrinas divergentes a respeito dos mais diferentes problemas, quando comparamos as "verdades” da situação e da oposição, enfim, quantas vezes não teremos perguntado a nós mesmos: onde está a verdade? O que é a verdade? 

Que relação existe entre a verdade e a educação? Em que consiste o papel da escola e do professor diante da verdade?

Ruy Afonso da Costa Nunes nos apresenta neste livro um denso estudo a respeito das concepções de verdade de vários autores da Antigüidade, da Idade Moderna e Contemporânea. O autor declara que "não tivemos a intenção de elaborar uma exposição exaustiva a respeito das concepções de verdade através dos tempos. Dada a dimensão do tema e a extensão deste trabalho, procuramos cingir-nos ao essencial".

O livro é dividido em três partes, em que são tratados sucessivamente os seguintes temas: a concepção clássica da verdade, as concepções modernas da verdade e as concepções contemporâneas da verdade. Na conclusão, o autor correlaciona a verdade e a educação, sobre verdade e educação e magistério e verdade, sendo que este último merece destaque especial.

Os principais autores estudados são: na concepção clássica da verdade, Platão, Aristóteles e Santo Tomás de Aquino; na concepção moderna: Bacon, Descartes, Hegel, Marx, William James, John Dewey e Kierkegaard; na concepção contemporânea, Husserl, Karl Jaspers, Heidegger, Sartre, Gabriel Marcel, os do Círculo de Viena, Ayer, Bertrand Russell e Tarski.

Pela relação de nomes, é fácil perceber a impossibilidade de se aprofundar estudo de cada filósofo, mas, com as limitações reconhecidas do autor, temos uma visão geral muito boa das concepções de verdade ao longo dos tempos. Isso é conseguido, principalmente, graças à clareza de pensamento, ao caráter didático da obra, à quantidade de pesquisas efetuadas, à riqueza de informações e ainda à veia crítica presente nos comentários, não faltando, às vezes, boa dose de ironia.

O autor não poupa severas críticas a alguns filósofos, por exemplo, aos do Círculo de Viena: "augustos cientistas que resolveram fazer filosofia das ciências sem a filosofia", a Ayer:

Nessa obra de juventude [Linguagem, verdade e lógica], escrita com o fervor adquirido no Círculo de Viena, Ayer pontifica que nada existe na natureza da filosofia que justifique a existência de 'escolas' filosóficas rivais, e assegura, do alto de sua insuficiência juvenil, que ele, Alfred Jules Ayer, vai apresentar a solução definitiva dos problemas que no passado causaram controvérsias entre os filósofos. Durmam tranquilos Platão e Aristóteles, Duns Scotus, Descartes, Hume, Kant, e tantos outros, pois Alfred Jules Ayer chegou para acabar com as dúvidas e resolver para sempre a questão da filosofia.

Ao discorrer sobre Heidegger, além de criticar sua linguagem arrevesada, não poupa seus endeusadores:

Fala-se muito do grande momento representado pelo opúsculo Sobre a essência da verdade, como se Heidegger tivesse feito uma descoberta do outro mundo, e como se a concepção clássica da verdade tivesse sido exorcizada para sempre como puro avantesma. Além disso, há quem chegue ao delírio, ao tecer ditirambos à incalculável profundeza desse opúsculo heideggeriano. De fato, parece-me que a coisa é mais simples do que freqüentemente se quer fazer acreditar.

Esses exemplos dão uma idéia do estilo franco e aberto do professor Ruy Afonso que pode agradar ou não agradar aos leitores. Louve-se, porém, o fato é um autor que interpreta e que assume posições elogiando, criticando, de que às vezes, ironizando, como faz ainda ao comentar Ayer:

É pena que o filósofo não tenha percebido, e nenhum dos seus consultores o tenha advertido antes da publicação do livro, o engano filosófico de sua concepção de verdade [...]. Até mesmo um filósofo inglês não consegue, às vezes, ter senso de humor para rir dos próprios enganos.

Quanto à correlação entre verdade e educação, o autor trata do tema em dois capítulos, tendo apresentado algumas idéias gerais que precisam ser mais aprofundadas e merecem momentos de reflexão, principalmente o segundo. Neste capítulo, o problema do magistério é tratado de forma quase dramática, com muita felicidade, equilíbrio e lucidez. Às vezes, o capítulo tem o caráter de denúncia:

Os governos, pelo menos em nossa pátria, preocupados com o desenvolvimento econômico, e apesar das numerosas advertências feitas pelos educadores, continuam de ouvidos moucos aos apelos do professorado, de tal modo que os mestres não dispõem de recursos que lhes permitam uma vida tranquila e consagrada ao estudo e ao ensino.

Não são apenas os direitos do professorado que o autor defende, mas chama a atenção também para os seus deveres. Se afirma que o professor "precisa ganhar um salário que lhe permita trabalhar tranqüilo", adverte que ninguém "pode almejar tornar-se um argentário através do magistério".

Apresentando a fragilidade humana, a má vontade e a má fé como as principais responsáveis pela derrota da verdade, diz que precisamos de mestres de "mente límpida e de personalidade retilínea". Condena a hipocrisia, a duplicidade, a dissimulação, as criaturas de natureza viscosa e conclui:

O erro e o dolo provêm principalmente das nossas paixões, do amor-próprio, do espírito de campanário, da inveja, da preguiça, da sensualidade e do ódio, muito mais que dos desvios lógicos, do pensamento, da falta de atenção ou da acuidade intelectual.

*

Sobre o Autor: Ruy Afonso da Costa Nunes nasceu em Sorocaba no dia 13 de maio de 1928, filho de Heitor José da Costa Nunes e Cassilda Lobo da Costa Nunes. Realizou os primeiros estudos no Colégio Santa Escolástica — onde, muitos anos mais tarde, viria a lecionar —, e fez ali sua primeira comunhão. Com a morte do pai, em 1934, a família transferiu-se para Belém do Pará, onde residiam os familiares da mãe. Aos 12 anos, ingressou no Seminário Metropolitano Nossa Senhora da Conceição, dirigido pelos salesianos, e concluiu, em 1947, o estudo de humanidades e filosofia. Aos 19 anos decidiu regressar para a terra natal: mudou-se para São Paulo — onde vivia o tio Carlos Alberto da Costa Nunes — e iniciou o curso de filosofia na Universidade de São Paulo, no Centro Universitário Maria Antônia. Bacharel e licenciado em filosofia, Doutor em educação e Livre-docente de filosofia e ciências da educação da Faculdade de Educação da USP, foi também catedrático de filosofia do Instituto de Educação Dr. Júlio Prestes de Albuquerque, professor fundador da antiga Faculdade de Ciências e Letras de Sorocaba, hoje UNISO, e membro da Academia Sorocabana de Letras; proferiu as aulas inaugurais da Faculdade de Filosofia de Brusque e da Universidade São Judas Tadeu. Além dos quatro volumes de sua História da Educaçãona Antigüidade Cristã (1978), na Idade Média (1979), no Renascimento (1980), e no Século XVII (1981) — publicou A formação intelectual segundo Gilberto de Tournai (1970), Gênese, significado e ensino da filosofia no século XII (1974), A idéia de verdade e a educação (1978), além de inúmeros ensaios e artigos para os principais jornais do país e para as revistas culturais mais relevantes de sua época. Em fevereiro de 2006 celebrou as bodas de ouro com sua esposa Leonor Bruneli da Costa Nunes e suas filhas Maria Cecília, Maria Eleonor e Maria Heloísa, e faleceu no mesmo ano aos 11 de setembro, com 78 anos de idade. Ruy Nunes deixou uma imensa e rara biblioteca, de aproximadamente 30.000 volumes.

***

Leia mais em Definição de educação

Leia mais em A verdadeira filosofia da educação



Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram @summamathematicae e YouTube.




Platão Educador

Texto retirado de MARROU, Henri-Irénée. História da Educação na Antigüidade. 4ª Impressão, São Paulo, Editora Pedagógica Universitária Ltda. e Editora da Universidade de São Paulo, 1973. (Esta obra foi reeditada pelas Edições Kírion, em 2017).


A PROCURA DA VERDADE

A obra pedagógica de Platão ultrapassou de muito em importância histórica, o papel propriamente político que ele lhe havia designado. Opondo-se ao pragmatismo dos Sofistas, demasiado apegados à eficácia imediata, Platão edifica todo o seu sistema educacional sobre a noção fundamental da verdade, sobre a conquista da verdade pela ciência racional.

O verdadeiro homem de Estado, este dirigente, este "rei" ideal que urge plasmar, distinguir-se-á de todas as suas contrafações por possuir a ciência [23], a ciência crítica e direta do comando [24], no sentido técnico que, no grego de Platão, reveste a palavra ἐπιστήμη, a saber, o de ciência verdadeira, fundada em razões, por oposição à δόξα, a opinião vulgar.

Mas esta "ciência real" qualificará, também, aquele que, ao invés de uma cidade, tem apenas sua família e sua casa para reger [25]. Mais ainda: é o mesmo critério, ou seja, a posse da verdade, que definirá o verdadeiro orador, por oposição ao sofista [26], como também o verdadeiro médico [27], e, evidentemente, também o verdadeiro filósofo [28]. Por conseguinte, o tipo de educação que Platão concebe com vistas à formação do dirigente político é um tipo de educação dotado de valor e alcance universais: qualquer que seja o campo da atividade humana para o qual alguém se oriente, não há mais que uma alta cultura válida: a que aspira à Verdade, à possessão da verdadeira ciência. Todo o pensamento de Platão é coroado por esta alta exigência; ela se afirma, já, com a máxima nitidez, na famosa réplica do Hipias Maior [29]:

-- Sócrates, será que esta distinção escapará ao nosso adversário?
De qualquer modo, Hípias, juro que ela não escapará àquele homem perante o qual eu me ruborizaria, mais do que perante qualquer outro, se disparatasse e falasse sem dizer nada!
-- Que homem?
-- Eu mesmo, Sócrates, filho de Sofronisco, que não mais me permitirei fazer levianamente uma afirmação não verificada do que me permito crer que sei o que ignoro.
 
A norma não é mais o sucesso, mas a verdade: daí o valor conferido ao saber verdadeiro, fundado em rigor demonstrativo, cujo símbolo é a verdade geométrica que o Ménon oferece como exemplo. Por toda a obra de Platão insinua-se este mesmo tema: o Protágoras, e mesmo os primeiros Diálogos Socráticos, fazem-nos descobrir que a ἀρετή, isto é, a nobreza espiritual, pressupõe, ainda que não se identifique com ele, o conhecimento, a ciência do Bem; no sétimo livro da República [30], o célebre mito da Caverna proclama o poder emancipador do saber, que delivra a alma desta incultura (ἀπαιδευσία), já no Górgias [31] denunciada como o maior dos males. 

Esta educação "científica", Platão não a sonhou apenas: durante cerca de quarenta anos (387-348), subministrou-a aos discípulos reunidos ao seu redor na Academia.

ORGANIZAÇÃO DA ACADEMIA

Os modernos arguem-se no afã de determinar se esta era uma "associação para o progresso da ciência" ou, antes, um estabelecimento de ensino superior (8). Discussão um tanto vã: o entusiástico realismo da Escola e a bonomia desta idade arcaica impedem-nos de transferir para esse ambiente a idéia moderna de ciência em evolução e contínuo desenvolvimento: a ciência existe, constituída fora de nós, ao nível das Idéias, e o problema é adquiri-la, antes que construí-la. Somente com Aristóteles [32] se manifestará, no pensamento grego, a distinção, tão nitidamente realçada entre os modernos por Max Scheler, entre a alta Ciência e sua réplica pedagógica, o Saber configurado nos programas escolares. Não se poderia contar com uma pedagogia autônoma, servindo para transmitir esta pubescente ciência platônica, fremente ainda de sua novel descoberta: o sino aí coincide com o método de investigação.

Tudo o que os Diálogos nos permitem entrever mostra-nos Platão como um partidário dos métodos ativos: seu método dialético é bem o contrário de uma doutrinação passiva. Longe de inculcar a seus discípulos o resultado, já elaborado, de seu próprio esforço, ao Sócrates pintado por Platão apraz, ao contrário, fazê-los trabalhar, fazê-los descobrir por si mesmos, de início, a dificuldade, e depois, à custa de aprofundamento progressivo, o meio de superá-la. A Academia era, pois, ao mesmo tempo, uma Escola de Altos Estudos e um instituto de educação.

Começamos agora a visualizar, de maneira bastante nítida, os quadros de sua organização; a Academia tem uma sólida estrutura institucional: ela não se apresenta como uma empresa comercial, mas na forma de uma confraria, de uma seita, cujos membros se acham estreitamente unidos pela amizade (sempre este vínculo afetivo, senão passional, entre mestre e alunos). Do ponto de vista legal, ela é, como a seita pitagórica, uma associação religiosa (Θίασος), uma confraria votada ao culto das Musas (9) e, após a morte do mestre, ao culto de Platão heroificado: precaução útil para açaimar as suscetibilidades da beatice democrática, sempre disposta a acusar os filósofos de impiedade (10), como o haviam mostrado os processos intentados contra Anaxágoras (432), Diágoras e Protágoras (415), para não falar no

de Sócrates (399), e na expectativa dos de Aristóteles (entre 319 e 315) e Teofrasto (307). Este culto corporificava-se em festas: sacrifícios e banquetes, meticulosamente regulamentados. Tinha por sede um santuário consagrado às Musas, e depois ao próprio Platão, situado à sombra do bosque sagrado dedicado ao herói Acádemos, lugar afastado e solitário da zona norte de Atenas, perto de Colona, e que Platão havia escolhido não por sua comodidade -- pois nos é dito [33] que era, ao contrário, um sítio insalubre -- mas pelo prestígio religioso que o cercava (11), pois era um lugar santo, ilustrado por muitas lendas, pretextos para jogos fúnebres regulares, e onde havia vários outros santuários, consagrados aos deuses infernais -- a Posídon, Adrasto ou Dioniso. A propriedade de Acádemos encontrava-se no termo de um caminho retilíneo saindo de Atenas para o Dípilon, caminho ao qual uma dupla fila de túmulos e monumentos comemorativos conferia um caráter religioso; o bosque sagrado, propriamente dito, devia estar sem dúvida reduzido a um pequeno arvoredo, emoldurado nesse conjunto incôndito, em que as áreas consagradas, circundando templo e altares, repletas de monumentos votivos, se justapunham a campos de esporte cercados de colunatas. Era num desses ginásios [34] que o Mestre ensinava, sentado no centro de uma êxedra [35] (12).

Não imaginemos este ensino sob uma forma demasiado doutoral: paralelamente às lições, concedamos um lugar bastante amplo a entretenimentos familiares durante as "patuscadas em comum" (συμόσια): estas, habilmente conduzidas representavam, para Platão, um dos elementos constitutivos da educação [36]. A vida da Academia implicava, com efeito, certa comunidade de vida entre mestre e discípulos, mas não uma organização propriamente colegial (pois não está seguramente estabelecido que eles tenham habitado, juntos, um edifício vizinho).

Infelizmente, conhecemos melhor, desta escola, o estatuto jurídico, o local e até o mobiliário (havia ali quadros murais, ilustrativos da classificação dicotômica dos seres) (13) do que a vida quotidiana. Alguns raros testemunhos -- como o do cômico Epicrates, mostrando os jovens platônicos em busca da definição da abóbora [37], ou o de Aristóteles sobre a orientação do ensino oral de Platão em sua velhice [38] -- não bastariam para proporcionar-nos uma imagem precisa do conteúdo da educação platônica, se não possuíssemos os programas, tão notavelmente detalhados, contidos nas grandes utopias da República e das Leis.

UTOPIA E ANTECIPAÇÕES

Naturalmente, não se trata de pretender que Platão haja executado, de maneira sistemática, no âmbito restrito de sua Academia, os planos que elaborou nessas duas obras, com plena liberdade teórica: ele próprio salienta bastante, que a realização do seu ideal pedagógico teria exigido uma transmutação completa do Estado. Com efeito, o lugar de primeira plana que reinvindico para Platão, nesta história da educação, não é apenas função de educador por ele desempenhado, concretamente, na Academia: foi todo o seu pensamento, inclusive sob os aspectos paradoxais que ele conscientemente lhe deu, que exerceu profunda influência sobre a educação antiga.

Nem tudo, aliás, era pura utopia, mesmo em tais aspectos: eles encerram muitas antecipações proféticas; digamos, para racionalizar, que esses paradoxos representavam o reconhecimento de aspirações profundas da consciência grega, aspirações às quais as instituições do período seguinte deviam, em ampla medida, satisfazer. Citarei dois exemplos:

Antes de tudo, a exigência fundamental: a educação deve -- diz ele -- tornar-se coisa pública; os mestres serão escolhidos pela cidade, controlados por magistrados especiais... [39]. Em sua época, este anseio não era realizado quase senão nas cidades aristocráticas, como Esparta; por toda parte, alhures, a educação era livre e privada. Ora, veremos que a Grécia helenística adota- ria, muito genericamente, um regime bastante análogo

àqueles que recomendam as Leis. Do mesmo modo, a igualdade rigorosa que ele preceitua, entre a educação dos rapazes e a das moças [40] (educação paralela, mas não co-educação: a partir de seis anos, os dois sexos têm mestres e classes distintos [41]), assume, nas tintas de sua pena, o exagero de um paradoxo: ela reflete apenas um fato real, qual seja a emancipação das mulheres na sociedade do quarto século, e, também nisto, antecipa as realizações da época helenística.

Utopia ou antecipações, a teoria platônica da educação merece, porém, ser estudada, por si mesma, em seu conjunto.

EDUCAÇÃO ELEMENTAR TRADICIONAL

No topo do sistema alcandoram-se os altos estudos filosóficos, reservados a um escol de indivíduos especialmente dotados. Esses estudos supõem a prévia aquisição de uma sólida formação básica: aquela que, na República (livros II-III), Platão dispensa a todos os membros da aristocracia militar dos φύλακες; é a mesma que descrevem as Leis, com mais detalhes, e reduzindo suas exigências àquilo que permitia o estado real da civilização grega. Esta "educação preparatória" (προπαιδεία) [42] não pretende conduzir à verdadeira ciência: contenta-se com tornar o ser humano capaz de ter-lhe acesso um dia, desenvolvendo-lhe harmoniosamente o espírito e o corpo; paralelamente, ela o predestina e o predispõe a tal aquisição, incutindo-lhe hábitos salutares. É notável que Platão não tenha elaborado um programa original para este primeiro ciclo de estudos; no momento de empreender-lhe a análise, faz Sócrates [43] dizer:

Qual será, pois, essa educação? Parece difícil descobrir uma melhor do que a adotada pelos Antigos: ginástica para o corpo, "música" para a alma...

E, de fato, é ao quadro da "antiga educação" ateniense, pintado por Aristófanes [44], que nos remete outra vez a pitoresca evocação das Leis [45], mostrando-nos, ao romper

do dia, as crianças que se dirigem juntas para a escola, sob a guarda dos "pedagogos". Ter Platão assim alojado, na base do seu sistema pedagógico, a educação grega tradicional, eis um fato que se revestiu de considerável importância para o desenvolvimento da tradição clássica, cujas continuidade e homogeneidade ela reforçou: por um lado, a cultura filosófica, longe de romper com a educação anterior, apresentou-se como um prolongamento, um enriquecimento desta; por outro lado, esta educação primeira veio a constituir um denominador comum entre a cultura filosófica e a cultura rival, que Isócrates lhe opunha -- uma e outra apresentando-se como duas variedades de uma mesma espécie, como dois ramos divergentes oriundos de um tronco comum.

Os primeiros anos da criança deveriam, segundo Platão, ser ocupados por jogos educativos [46] praticados em comum, pelos dois sexos, e sob vigilância, em jardins de crianças [47]; mas, para ele, como para todos os gregos, a educação propriamente dita só começa aos sete anos. Ela compreende, pois (as Leis [48] retomam a distinção da República), ginástica para o corpo, e "música" -- ou melhor: cultura espiritual para a alma.

No referente à ginástica, Platão reage, violentamente [49], contra o espírito de competição que, como o lembrei, causava já tantos danos ao esporte do seu tempo. Queria ele reduzi-la à sua finalidade original, a preparação para a guerra: eis por que, no atletismo puro, interessa-se ele sobretudo pela luta [50], que é preparação direta para o combate. Sem dúvida, o programa dos jogos que deverão constituir a sanção da educação física não exclui os outros esportes: compreende a gama normal das corridas a pé: estádio, duplo estádio, etc. [51]; mas Platão aí introduz, também, combates de esgrima, combates de infantaria pesada e de infantaria leve [52] e, de maneira geral, insiste particularmente nos exercícios de caráter militar [53] (que destina tanto às mulheres como aos homens: a cidade platônica inclui mulheres-solda-

dos): o arremesso de flecha com arco, o dardo, a funda, a esgrima, as marchas e manobras táticas, a prática do acampamento. Anexa, enfim, a esta formação-tipo, o aristocrático esporte hípico (que será, igualmente, obrigatório para as moças), com seu acompanhamento normal, a caça [54]: outros tantos traços arcaicos recebidos diretamente da mais velha tradição nobre. Mas eis que, aqui, ao contrário, orienta-nos para o porvir e para as instituições helenísticas: toda esta formação pré-militar será instilada nos ginásios, estádios e picadeiros públicos, sob a direção de monitores profissionais assalariados pelo Estado [55].

Outro traço arcaizante: a preocupação de dar ao esporte seu valor propriamente educativo, seu alcance moral, seu papel, em pé de igualdade a cultura intelectual, e, em estreita colaboração com ela, na formação do caráter e da personalidade [56]. Mas, também aqui, o arcaísmo associa-se intimamente ao "modernismo": em sua concepção da ginástica, Platão inclui todo o domínio da higiene, as prescrições concernentes ao regime de vida e, notadamente, ao regime alimentar, assunto tratado com predileção pela literatura médica de seu tempo. A influência da medicina foi muito profunda sobre o pensamento de Platão, pelo menos igual à da matemática (14). Ora, a medicina grega, por um progresso notável, cujas etapas podemos acompanhar ao longo do quinto e do quarto séculos, havia chegado a considerar que seu objeto fundamental era não o cuidado imediato com a doença, mas, principalmente, a manutenção da saúde, por meio de um regime adequado. Daí uma estreita aproximação entre os domínios do médico e do treinador esportivo, que a dupla carreira de Heródico de Selímbria simboliza a nossos olhos [57].

À ginástica, as Leis acrescentam ainda a dança, que, inseparável do canto coral [58], pertenceria também à música: Platão insiste, longamente, sobre seu ensino e sua prática [59]; reserva-lhe um lugar nos concursos e nas festas, ao lado das procissões solenes para as quais a juventude é convidada [60]. Salienta-lhe, igualmente, as virtudes educativas: a dança é o meio de disciplinar, de submeter à harmonia de uma lei a necessidade, espontânea em todo ser jovem, de exaurir-se, de agitar-se [61]; ela contribui assim, da maneira mais direta e mais eficaz, para a disciplina moral [62]. (...)

Todavia, o lugar que Platão concede, em sua discussão, aos aspectos propriamente espirituais da cultura, mostra claramente ter já o papel da educação física passado para segundo plano: lentamente, a cultura helênica se distancia de suas origens cavalheirescas e evolui na direção de uma cultura de letrados. Sem dúvida, a mutação não está ainda concluída: a música, no sentido preciso em que a entendemos, ocupa, sempre, um lugar na honra educação [65], e, para Platão, um lugar de (κυριωτάτη): a criança aprenderá, pois, do mestre de música (κιθαριστής), o canto e o manejo da lira [67]. Sempre fiel às velhas tradições, ele gostaria, à custa de uma regulamentação severa, de preservar o ensino artístico na via traçada pelos antigos clássicos, ao abrigo das inovações e das tendências dissolventes da música "moderna", suspeita de veicular alguma debilidade, espírito anárquico e relaxamento moral [68]: pois aqui, como em toda parte, a ambição moralizadora domina todo o esforço do educador.

Mas já a música propriamente dita, "o canto e as melodias [69]" , começa a ceder o passo às letras -- λόγοι [70], γράμματα [71]; a criança deverá aprender a ler e a escrever [72], depois passará aos autores clássicos, estudando-os integralmente [73] ou em antologias [74] (é a primeira vez que a história menciona este recurso aos "trechos escolhidos", destinados a tão frutífera carreira); aos poetas, únicos autores estudados outrora, Platão junta autores em prosa [75]; os estudos literários serão, naturalmente, sancionados em concursos ou jogos musicais [76].

Quais serão estes autores? É sabido que Platão critica violentamente os poetas reputados clássicos em seu tempo, começando pelo velho Homero (mas sua crítica atinge também os Trágicos, e, de maneira geral, o papel desempenhado pelos mitos na educação tradicional da criança grega): formulada pela primeira vez nos livros II-III da República [77], essa crítica é retomada, em profundidade, no livro X [78] e será repetida nas Leis [79]. Seu caráter paradoxal não deve escamotear o quanto ela se prende à essência mesma da doutrina platônica.

Ela condena os poetas porque seus mitos são mentiras, apresentando da divindade ou dos heróis uma imagem falaciosa, indigna de sua perfeição. Sua arte, repassada de ilusão, é perniciosa por ser contrária à Verdade -- essa verdade a que toda a pedagogia deve estar subordinada --, por desviar o espírito de seu fim, que é a conquista da ciência racional. Opondo com tal vigor a poesia e filosofia [80], rompendo com a mais constante tradição, que, como vimos, situava Homero na base de toda educação, Platão punha a alma grega diante de uma opção difícil: devia a educação permanecer basicamente artística e poética ou devia tornar-se científica? Este problema não deixou, desde Platão, de apresentar-se à consciência de todo educador, e nunca foi resolvido de maneira definitiva: nosso próprio ensino não se acha sempre dividido entre as reivindicações opostas das "letras" e das "ciências"?

Sabe-se que, de modo geral, a civilização antiga não subscreveu essa condenação de Homero e não aceitou as soluções radicais propostas por Platão [81]: submeter os textos poéticos a uma severa censura, expurgá-los, corrigi-los, ainda que para isto fosse necessário reescrevê-los! A própria obra de Platão depôs contra ele: seus Diálogos não são bem o modelo mesmo duma poesia magnífica,

que não renuncia a nenhum dos procedimentos da arte, que termina por servir-se do próprio mito para instilar a persuasão por um encantamento quase mágico? Disso, sem dúvida, Platão, antes de todos, tinha consciência: "Também nós somos poetas", brada ele, dirigindo aos Trágicos um desafio cheio de ousadia [82]; e, meio sério, meio jocoso, propõe adotar-se o próprio texto de suas Leis, para explicação nas aulas [83].

Mas não somente isto: cada página de seus Diálogos testemunha, de maneira brilhante, quanto a cultura pessoal de Platão se havia nutrido e beneficiado do ensino tradicional dos poetas: a citação de Homero, dos líricos, dos trágicos, brota espontaneamente de sua pena, serve para exprimir seu pensamento profundo, que ela sustenta tanto quanto o ilustra. Pelo uso que dela faz, Platão demonstra, contra si mesmo, não apenas a fecundidade dessa cultura literária, mas também o proveito que o espírito filosófico podia dela tirar.

Entretanto, não se deveria considerar essa crítica como uma facécia vã: ela não foi suficiente para banir Homero da cidade, assim como a crítica do Emilio não expulsou o deleitoso La Fontaine das nossas escolas -- mas não deixou de infiltrar-se, por sua vez, na tradição antiga, como uma interrogação levantada, um repto, um desafio, e cada geração, cada letrado teve, por sua vez, de reconsiderá-la.


Notas:

[23] [PLATÃO] O Político, 259b. 
[24] Idem, 292b. 
[25] Idem, 259bc. 
[26] Fedro, 270a s. 
[27] Idem, 270b.
[28] O Sofista, 267e.
[29] Hipias Maior, 298b. 
[30] A República, VII,
[31] Górgias, 527e. 514a s.
[32] ARISTÓTELES, Partes dos Animais, 639 a 1 s.
[33] ELIANO DE PRÊNESTO, Histórias Variadas, IX, 10; PORFÍRIO, Da Abstinência, 36, 112; SÃO BASÍLIO DE CESARÉIA, Sermões, XXII, 9. 
[34] EPIGRATES ap. ATENEU, Banquete dos Sofistas, II, 59 D, 10. 
[35] DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas dos Filósofos, IV, 19. 
[36] PLATÃO, As Leis, I, 41cd; II, 652a.
[37] Ap. ATENEU, Banquete dos Sofistas (ed. Casaubon), II, 59 D. 
[38] ARISTÓTELES, Metafisica, VI-VIII. 
[39] PLATÃO, As Leis, VI, 754cd; 765d; VII, 801d; 804c; 813e; 809a.
[40] A República, V, 451d-457b; As Leis, VII, 804d-805b; 813b. 
[41] Idem, 794c; 802e; 813b.
[42] A República, VII, 536d. 
[43] Idem, II, 376e; cf. VII, 521de. 
[44] ARISTÓFANES, As Nuvens, 961 s. 
[45] PLATÃO, As Leis, VII, 808d.
[46] Idem, I,  643bc.
[47] Idem, VII, 793e-794b. 
[48] Idem, 795d-796d. 
[49] Idem, 796a, d; VIII, 830a. 
[50] Idem, VII, 795d-796a; VIII, 814cd. 
[51] Idem, 832d-833d. 
[52] Idem, 833d-834a. 
[53] Idem, VII, 794c; 804d-806c; 813b; VIII, 829e; 833cd.
[54] Idem, VII, 823c; 824a.
[55] Idem, 804cd; 813e. 
[56] A República, III, 410c-412a.  
[57] Idem, 406ab; Protágoras, 316e; Fedro, 227d. 
[58] As Leis, II,  654b. 
[59] Idem, 653d s.; VII, 795e; 814e-816d.
[60] Idem, 796c. 
[61] Idem, II, 653de. 
[62] Idem, 654a-655b. 
[65] PLATÃO, A República, III, 398c-403c.
[66]. Idem, 401d. 
[67] As Leis, VII, 812be. 
[68] Idem, II, 656ce; III, 700a-701c. 
[69] A República, III, 398 c.  
[70] Idem, II, 376e.
[71] As Leis, VII, 809b. 
[72] Idem, 810b. 
[73] Idem, 810e. 
[74] Idem, 81la.
[75] Idem, 809b.
[76] Idem, VIII, 834e-835b.
[77] A República, 377a-392b.
[78] Idem, 595a-608b. 
[79] As Leis, VII, 810c-811b.
[80] A República, X, 607b. 
[81] Idem, III, 386c; 387b; As Leis, VII, 801d-802b; cf. VIII, 829de.
[82] As Leis, VII, 817b. 
[83] Idem, 811ce. 


Notas Complementares

(8) O que era Academia: P. BOYANCÉ, Le Culte des Muses chez les Philosophes grecs, p. 261, resume o debate: uma associação de sábios (U. VON WILAMOWITZ-MÖLLENDORF, Platon 2, Berlim, 1920, ps. 270 segs; Antigonos von Karystos, Philogische Untersuchungen, IV, Berlim, 1881, ps. 279 segs.; H. USENER, Organisation der Wissenschaftlichen Arbeit, Vorträge und Aufsatze, Leipzig-Berlim, 1907, ps. 67 segs.), ou uma Universidade (E. HOWALD, Die Platonische Akademie und die moderne Universitas litterarum, Berna, 1921)?

(9) A Academia como tíase das musas: P. BOYANCE, ibid., ps. 261-267; sobre a heroificação de Platão, ibid., ps. 259-261, 267-275, e O. REVERDIN, La Religion de la Cité platonicienne, Paris, 1945.

(10) Sobre Les Procès d'impiété intentés aux Philosophes à Athènes aux Ve.-IVe siècles, cf. o trabalho, publicado sob este título, de E. DERENNE, ap. Bibliothèque de la Faculté de Philosophie et Lettres de l'Université de Liège, XLV. Liège, 1930.

(11) Caráter sagrado do sítio da Academia: CH. PICARD, Dans les Jardins du héros Académos, Institut de France, Séance publique annuelle des cinq Académies du jeudi 25 octobre 1934, Discours, Paris, 1934. Por iniciativa, e com o patrocínio de P. ARISTOPHRON (L'Académie de Platon, Paris, 1933), a Academia de Atenas empreendeu, no sítio, escavações que, infelizmente, foram interrompidas no momento em que começavam a tornar-se frutíferas: ver-lhe a crônica ap. Bulletin de Correspondance hellénique, de 1930 (t. LIV, ps. 459-460) a 1937 (t. LXII, ps. 458-459), ou Jahrbuch des Deutschen archäologischen Instituts, Archäologischer Anzeiger, notadamente 1934, c. 137-140 (plano: Abb. 8).

(12) A êxedra de Platão: para ajudar o leitor moderno na "composição de lugar", lembrarei os mosaicos (que embora romanos reproduzem um original helenístico) do museu de Nápoles e da cidade Torlonia-Albani, representando uma assembléia de filósofos (os Sete Sábios?): G. W. ELDERKIN, American Journal of Archaeology, XXXIX (1935), ps. 92-111; O. BRENDEL, Römische Mitteilungen, LI (1936), ps. 1-22 e ainda ELDERKIN ibid., LII (1937), ps. 223-226.

(13) Quadros murais usados na Academia para os exercícios práticos de classificação (cf. ARISTT., P. A., I, 639 a): A. DIES, Notice em sua edição do Politique, coleção "Budé", Paris, 1935, p. XXVII.

(14) Influência da medicina e, notadamente, da ciência higiênica sobre o pensamento de Platão: cf. W. JAEGER, no admirável capítulo que abre o tomo III de sua Paideia, ps. 3-45, "a medicina grega como paideia".


***



Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.




A interpretação tomista da Física de Aristóteles


Sobre a imagem: O triunfo de São Tomás de Aquino sobre Averroes por Benozzo Gozzoli, representando Aquino (centro superior), um dos principais críticos de Averroes, “triunfando” sobre Averroes (abaixo), retratado aos pés de Aquino.


A INTERPRETAÇÃO TOMISTA DA FÍSICA DE ARISTÓTELES

por M. AMELIA M. DANTES

O pensamento antigo não se perdeu completamente no Ocidente, permanecendo pela Alta Idade Média uma coleção de fragmentos de filósofos gregos e romanos que se transmitiram por enciclopédias como as de Boécio (480-524 d.C.), Isidoro de Sevilha (560-636 d.C.), Cassiodoro (490-580 d.C.) e Beda (673-735 d.C.).

No século IX, com o reatamento comercial do Ocidente com o Oriente, começaram a chegar à Europa textos inéditos que haviam sido preservados, assimilados e criticados pelos pensadores árabes. Às cidades italianas voltadas para o comércio foram as primeiras cidades européias a entrar em contato com estes textos, porem, a sua difusão só se deu depois da tomada de Toledo pelos cruzados em 1085 e da Sicília em 1091.

O número extraordinário de obras traduzidas do árabe para o latim, nos séculos XII e XII, testemunha o entusiasmo com que o mundo ocidental recebeu os textos greco-árabes. Já por 1250, estava assimilado quase tudo o que se transmitira pela Espanha e sul da Itália.

As obras que foram traduzidas neste período compreendiam principalmente textos de filosofia e filosofia natural.

A redescoberta da obra de Aristóteles.

Da extensa obra de Aristóteles, até o século XII, era conhecida na Europa apenas a primeira parte do tratado de lógica, o Organum, em tradução de Boécio. Este texto passou a ser conhecido como a logica vetus quando, por volta de 1250, a tradução latina da logica nova tornou conhecida a parte final do Organum.

Ainda no século XII alguns textos filosóficos de Aristóteles tornaram-se conhecidos, por meio de traduções feitas diretamente do grego. Porem, as traduções mais difundidas foram as de Gerardo de Cremona e as de Miguel Escoto, do início do século XIII, que eram traduções de textos árabes, que por sua vez eram traduções de versões siríacas da obra original. Neste processo os textos aristotélicos sofreram deformações, tendo sido transmitida uma fusão da filosofia aristotélica com a filosofia dos neoplatônicos árabes. O interesse pelos textos aristotélicos puros motivou uma segunda etapa de traduções. Guilherme de Moerbeke, de 1260 a 1271, fez uma revisão das traduções existentes, partindo de manuscritos gregos. No último quarto do século XIII, já era conhecida praticamente toda a obra de Aristóteles.

A reação à entrada dos textos aristotélicos foi diversificada. Ao mesmo tempo em que os intelectuais se entusiasmavam com a riqueza contida nestes textos, um clima de apreensão crescia na Europa.

Havia razões para esta apreensão: de um lado a redescoberta das obras de Aristóteles e de outros pensadores gregos como Euclides, mostrava a riqueza dos sistemas construídos racionalmente. Já no século XII, os dialéticos embrenhavam-se pela sofística. Santo Anselmo e Fulberto pregavam o uso da dialética como a forma mais eficaz de se chegar à verdade, gerando temores em relação à pretensão de se incorporar a dialética à Teologia.

Além disso, os textos aristotélicos apresentavam idéias, como a da eternidade do mundo, que estavam em oposição ao pensamento cristão. Estas idéias foram em parte modificadas por alguns comentadores neoplatônicos árabes, como Avicena. Porem, na obra de Averróes, cujos comentários sobre a obra de Aristóteles foram traduzidos para o latim no início do século XIII por Miguel Escoto, o aristotelismo era apresentado mais puro, o que tornava mais críticas as contradições.

Devido à amplitude do problema, já que foi grande a receptividade à obra de Aristóteles, não tardaram medidas oficiais do Papado, no sentido de limitar a transmissão da obra de Aristóteles.

A proibição de 1210 testemunha a apreensão da Igreja. Neste ano, o conselho provincial de Paris, então o mais importante centro de ensino teológico e reduto dos dialéticos, proibiu, sob pena de excomunhão, o ensino público ou privado dos textos aristotélicos de filosofia natural ou seus comentários.

Porem, se uma parte do clero se orientou para uma repulsa à obra de Aristóteles e uma valorização do misticismo, houve paralelamente a preocupação pela incorporação do aristotelismo ao Cristianismo, com a Teologia enriquecida pelas formas de pensamento racional.

Pela segunda década do século XIII, no entanto, a posição oficial da Igreja continuou sendo de repulsa à obra filosófica de Aristóteles. Os estatutos da Universidade de Paris, sancionados em 1215 só autorizavam o ensino do Organum, proibindo o ensino da Metaphysica, da Physica e outras obras de filosofia natural e de seus comentadores, como David de Dinant e Amalrico de Bena.

Porém, a proibição não conseguiu barrar a corrente que se desenvolvia, tanto que em 1228 Gregório IX dirigiu-se especialmente aos professores de Teologia de Paris, chamando a atenção para os abusos da Filosofia e reiterando a crença em que a Teologia estava além da razão humana.

Uma mudança de atitude já transparece numa mensagem do próprio Gregório IX, em 1231, em que esclarece que o ensino da Physica permaneceria proibido, até que este texto fosse submetido à censura e purgado de seus erros. Poucos dias depois Gregório IX já nomeava uma comissão que deveria fazer uma revisão da filosofia natural aristotélica, a fim de torna-la utilizável no ensino. Este ato iniciou uma nova fase, em que o Papado incentivou os magistri para o comentário do corpus aristotélico, tendo em vista sua assimilação ao pensamento cristão.

Entre 1240 e 1248, Alberto Magno (1206 ou 1207-1280) fez cinco comentários das obras de filosofia natural de Aristóteles, quando ainda era proibido tratar destas obras nas escolas parisienses. Ainda mais: Alberto Magno utilizou extensamente os comentários de Averróes, apesar das críticas que eram feitas ao aristotelismo averroista.

O franciscano Rogério Bacon (1210, 1214?-1294), então também na Universidade de Paris, foi outro teólogo que se dedicou ao comentário da filosofia natural aristotélica.

Porém, foi na obra de São Tomás de Aquino (1225-1274) que se atingiu o ápice deste trabalho de assimilação da filosofia aristotélica à Teologia. Seus comentários mostram a preocupação de demonstrar a afinidade das idéias aristotélicas e o pensamento cristão, chegando à concepção de sínteses teológicas.

Esta fase de assimilação da obra de Aristóteles tem seu ponto alto em 1255, quando os novos estatutos da Universidade de Paris liberaram à especulação filosófica os escritos de lógica, estética, metafísica e filosofia natural.

Já em 1277, uma condenação levantada por Étienne Tempier, chanceler da Universidade de Paris, proibia 219 teses, em sua maioria averroistas, o que atingia principalmente Siger de Brabante. Porém, 20 das teses eram tomistas, o que mostra uma reação do Papado à obra de harmonização do aristotelismo ao Cristianismo. Uma reafirmação dos princípios tomistas só se deu no fim do século XIX, com Leão XIII declarando ser o Tomismo a Filosofia oficial da Igreja.

*

O comentário dos 8 livros da "Física" por São Tomás de Aquino.

O trabalho sobre textos, em forma de comentários, foi extensamente utilizado pelos intelectuais do século XIII. Chenu (1) considera mesmo que o comentário foi o gênero de base da renascença cultural então ocorrida.

São Tomás dedicou-se extensamente a comentários de obras de autores gregos ou árabes, como Boécio, Amônio, Proclo, Pseudo-Dionísio, Temístio, Avicena, Averróes. Porem, seu interesse de comentarista se voltou mais para os textos de Aristóteles, que comentou em sua totalidade (2).

Os comentários tomistas de textos aristotélicos se caracterizam por uma procura constante da intentio Aristotelis (3), que segundo São Tomás havia sido deturpada pelos outros comentadores. Esta preocupação de expor as idéias de Aristóteles sem deformações, fez com que São Tomás optasse por comentários de tipo literal.

A figura mais constantemente visada em suas críticas é mesmo Averróes, cujos comentários haviam tido grande aceitação no Ocidente. São Tomás se refere depreciativamente em relação aos averroistas:

“Estas pessoas preferem errar em companhia de Averróes, do que partilhar uma ciência exata com os outros peripatéticos; Averróes, entretanto, foi menos um peripatético que o corruptor da filosofia peripatética” (4).

Apesar disso, foi grande a atração de São Tomás pelo filósofo árabe, cuja presença permanece em toda a obra tomista.

O comentário sobre a “Física” parece ter sido escrito entre 1268 e 1269 (5).

O comentário é extremamente esquematizado. Como as leituras se desenvolvem em geral sobre um tema determinado, o primeiro parágrafo de cada leitura apresenta uma subdivisão do tema em suas partes, com subdivisões secundárias quando necessário. O tema em questão é analisado minuciosamente em seus elementos. Isto faz com que, já de início, o leitor tenha uma visão geral do que Aristóteles vai tratar. Este comportamento analítico faz com que o comentário seja extremamente árido, já que os valores estéticos são preteridos nesta procura por uma apresentação objetiva do texto aristotélico.

São Tomás utilizou todo o seu conhecimento do corpus aristotélico para tornar mais claro o texto, em geral muito conciso, de Aristóteles. Sua familiaridade com a obra do Filósofo fica patenteada por todo o comentário.

Porém, se São Tomás torna mais claro, com seu comentário, o texto aristotélico, por outro lado não põe em dúvida os princípios básicos da física aristotélica. Sua física é aristotélica e mesmo os exemplos que utiliza para esclarecer o texto, enquadram-se perfeitamente nos princípios da filosofia natural aristotélica.

Somente em pontos em que o desenvolvimento lógico do estudo do movimento leva Aristóteles a conclusões que estão em oposição a crença cristã, é que as idéias do comentador aparecem. Estes pontos contraditórios da Física de Aristóteles já haviam sido levantados em sua maior parte, principalmente pelos comentadores árabes. Avicena, pela sua posição neoplatonizante não levantou tantas contradições como Averróes, que se aproximou muito mais do pensamento aristotélico puro, pondo a claro os pontos em que a filosofia aristotélica entrava em choque com o pensamento cristão.

A crítica que São Tomás fez a Averróes e a presença constante do filósofo árabe no comentário, mostram que um dos objetivos de São Tomás neste texto, foi de refutar as contradições levantadas por Averróes, mostrando assim a harmonia entre a filosofia aristotélica e a Teologia.

*    *
*

Nos três primeiros livros da Física, Aristóteles trata do embasamento conceitual e metodológico da filosofia natural. O comentário destes livros trata mais de um esclarecimento do exposto, sem que o comentador ponha em dúvida o exposto.

Mesmo nos livros 4.º, 5.º, 6.º e 7.º, em que Aristóteles trata de problemas mais específicos em relação ao estudo do movimento, são poucos os pontos polêmicos. Em geral São Tomás procura esclarecer as interpretações feitas por comentadores anteriores, como quando no comentário do livro 4.º, São Tomás refuta a interpretação averroista do movimento da primeira esfera, concluindo pela validade da interpretação de Temístio (6).

É no livro 8.º que estão contidos os trechos mais polêmicos do comentário e isso justamente pelo fato de ser neste livro que Aristóteles trata dos limites do real: sobre o ponto inicial ou final do tempo e do movimento ou sobre o Primeiro Motor.

Vejamos alguns destes pontos:

a eternidade do movimento.

No 1.º capítulo do livro 8.º da Física, Aristóteles postula a eternidade do movimento, que ele prova por 3 argumentos: um primeiro fundado sobre a definição do movimento, um segundo sobre a noção de movimento e um terceiro sobre a eternidade do tempo.

Iniciando o primeiro argumento, em um trecho compreendido entre 251a8 e 251a15 (notação Bekker), Aristóteles diz:

... o movimento é a enteléquia do móvel enquanto móvel. É portanto necessário que existam primeiramente as coisas que tem o poder de mover segundo cada movimento ..." (7).

O texto de Aristóteles é obscuro e Averróes no seu comentário extrapola o argumento de Aristóteles para o primeiro agente universal, força ativa da totalidade do ser, tocando assim na própria Criação: a matéria primeira seria anterior à Criação, já que a própria Criação seria uma forma de movimento. Portanto, a matéria primeira não teria sido criada por Deus, o que se opõe à concepção agostiniana da Criação.

No seu comentário São Tomás procura mostrar que Averróes interpretou mal o texto aristotélico, utilizando outros textos do corpus aristotélico. Este ponto São Tomás consegue esclarecer pela afirmação de Aristóteles na Metafisica II, de que a matéria também é derivada do primeiro principio do ser (9).

Este é um trecho bem característico deste comentário de São Tomás, que mostra sua fidelidade ao aristotelismo, partindo dele para refutar interpretações de filósofos anteriores.

*

— Ainda no capítulo 1 do livro 8.°, aparece um outro ponto controvertido, também ligado ao problema da Criação. Corresponde ao trecho que vai de 251a10 a 251b28, em que Aristóteles desenvolve a terceira prova da eternidade do movimento, baseada na eternidade do tempo. O argumento de Aristóteles para provar a eternidade do tempo é o seguinte: como o instante é um começo e um fim, começo do tempo futuro e fim do tempo passado, então necessariamente o tempo existiu sempre. Se é assim para o tempo, será também para o movimento, já que o tempo é uma manifestação do movimento (10). Este argumento leva a conclusões que são frontalmente contra o pensamento cristão e São Tomás procura esclarecê-lo.

A sua refutação do argumento aristotélico é brilhante, partindo da observação de que a definição que Aristóteles dá para o tempo é tendenciosa, o que a faz necessariamente levar à conclusão esperada. No parágrafo 983 do seu comentário São Tomás ressalta a analogia entre a relação instante-tempo e a ponto-reta, analogia que o próprio Aristóteles utiliza no livro 6.º da Física. Neste livro o Filósofo afirma que o ponto geométrico é um começo e um fim, somente se for parte de uma linha infinita, o que leva São Tomás a concluir que Aristóteles, na demonstração sobre a eternidade do tempo, pressupôs de início esta eternidade, quando queria prová-la. Além disso, São Tomás chama a atenção para o fato de que a concepção cristã da Criação como um começo do tempo, não entra em choque com a definição aristotélica de que todo o instante é um começo e um fim, já que o instante primeiro sendo tal que antes dele não existia tempo, além de ser um início, é também um fim, o fim do tempo não existente (11). Assim, a definição aristotélica do instante não leva necessariamente à eternidade do tempo, podendo ser mantida paralelamente à idéia de Criação.

*

Vem completar a visão tomista da Física aristotélica, a parte do comentário correspondente ao texto que vai de 251b28 a 252a5, em que o Filósofo prova a eternidade do movimento. O argumento usado por Aristóteles é o mesmo usado anteriormente, para provar a eternidade do tempo: de um encadeamento de movimentos, se chega à impossibilidade de um limite no passado remoto, o movimento sempre existiu e sempre existirá. Este argumento é construído essencialmente pelo raciocínio, partindo de considerações sobre o movimento como existe na Natureza.

Se os comentadores anteriores procuravam transformar esta prova aristotélica, procurando colocar o texto em acordo com as verdades da fé, São Tomás aceita completamente a prova aristotélica, dizendo que o texto expressava exatamente as idéias do autor, sendo também correto o raciocínio empregado. Se Aristóteles chega a uma conclusão falsa é simplesmente porque suas considerações se referem a uma concepção da Natureza como sendo regida apenas por leis naturais. Porém, esta não é uma concepção cristã da Natureza, já que o ato da Criação dos corpos por Deus não se enquadra no que se chama processo natural, pois Deus age pela Sua vontade e não pela natureza.

Esta parte do comentário é muito significativa, pois mostra, num ponto de impasse, a posição de São Tomás: como Aristóteles foi um filósofo não cristão, é compreensível que em sua obra apareçam conclusões opostas às crenças cristãs, já que se trata de uma concepção cósmica distinta. Se vimos anteriormente, nas críticas à Averróes, São Tomás fiel ao aristotelismo, vemos aqui mais claramente sua posição frente à filosofia aristotélica: ela deve ser aceita quando não vai contra o testemunho do Evangelho. No caso de uma oposição é ao Evangelho que o cristão deve se prender.

sobre o Primeiro Motor.

No final do livro 8.º da Física, Aristóteles conclui que necessariamente há um Primeiro Motor, que é infinito e uno. Na Metafísica se completa a concepção deste Primeiro Motor, responsável pelo movimento da primeira esfera celeste: o Primeiro Motor é uma substância eterna e imóvel, separada dos seres, indivisível e divina (12). Encontram-se assim no corpus aristotélico, se bem que não especificamente na Física, os elementos para a extrapolação tomista de que existe necessariamente o Primeiro Motor, que pelos seus atributos só pode ser Deus:

“E então o Filósofo termina sua discussão geral sobre as coisas naturais com o primeiro princípio de toda a Natureza, que está sobre todas as coisas, Deus, abençoado para sempre, Amem” (13).

Esta prova da existência de Deus encontra-se já na obra de Alberto Magno e foi incorporada por São Tomás à Suma Teológica, questão II, art. II, quando São Tomás coloca que a existência de Deus é demonstrável a partir dos efeitos que conhecemos. (14).

São 5 as provas que São Tomás apresenta, da existência de Deus. A primeira é a aristotélica da existência do Primeiro Motor (15). Era a preferida por São Tomás que a qualificava de prima et manifestior via. Segundo Paulus (16), esta preferência se devia a acessibilidade desta prova à razão.

*    *
*

Conclusões.

A análise deste comentário de São Tomás de Aquino sobre a Física de Aristóteles, nos revela que o que norteia o texto é a preocupação do teólogo Tomás, por questões de filosofia natural. Isto quer dizer que o interesse pelo estudo do movimento existe, na medida em que esteja relacionado à ciência das coisas divinas. E neste comentário, se bem que São Tomás esteja constantemente preocupado no esclarecimento do texto aristotélico, seu interesse está acima de tudo no esclarecimento das oposições existentes entre a filosofia natural aristotélica e o pensamento cristão.

O esclarecimento destes pontos de atrito se fazia necessário, já que as contradições haviam se tornado mais agudas nos comentários dos filósofos árabes. Não foi por acaso que as constantes proibições decretadas quanto ao ensino e divulgação dos textos aristotélicos, se referia sempre aos textos de filosofia natural. Eram justamente estes textos que continham estes pontos contraditórios.

São Tomás, como escolástico, procurou resolver as contradições por meio do raciocínio, utilizado sempre de forma rigorosa. Porem, esta independência da dialética não é total, o que aparece bem claramente neste comentário sobre a Física: a verdade é uma só; portanto, o homem deve chegar racionalmente a resultados em harmonia com a crença cristã. No referente à conceituação básica da Física, São Tomás é totalmente aristotélico: sua física é aristotélica. Porem aqui também o aristotelismo de São Tomás se mantém enquanto não entra em choque com o pensamento cristão. Como diz Duhem (16), São Tomás não se importava de ser infiel ao aristotelismo, já que a Filosofia devia se subordinar à Teologia. A tarefa a que São Tomás se propõe é mesmo a de cristianizar o aristotelismo.

Por outro lado aos poucos a epistemologia aristotélica foi substituindo a platônica, trazendo a idéia de que se deve partir do sensível para se chegar ao conhecimento. Esta nova conceituação metodológica penetra na própria experiência religiosa, já que os objetos sensíveis guardam sinais da natureza divina e são assim ponto de partida para a experiência religiosa. É a partir desta nova concepção epistemológica que deve ser compreendida a aquisição, pela Teologia, da primeira prova da existência de Deus, a prova aristotélica da existência do Primeiro Motor.

*    *
*

MARIA AMELIA MASCARENHAS DANTES. — Nascida em São Paulo, Estado de São Paulo. Bacharel em Física pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (1964). Doutora em Ciências pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (1973). Professora Assistente-Doutora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Atualmente estagiando no Instituto de História da Ciência de Sorbonne, França.

Principais Trabalhos:

— Sobre a Medicina de Paracelso (tese de doutoramento). ed. mimeografada.
— Da Alquimia à Química Moderna in História da Ciência e Perspectiva Científica, coleção da Revista de História, nº 46, 1974.
— Física Auto-Instrutiva, em colaboração, 5 vols.
— Um Estudo do Comentário de São Tomás de Aquino Sobre a Física de Aristóteles, Ciência e Cultura, vol. 25, nº 6, 1972.
— (Sobre) a História das Invenções Mecânicas de Usher, Revista de História, vol. 51, n° 102, 1975.


Notas:

(1) M. D. Chenu, Introduction a l'étude de St. Thomas d'Aquin (Montreal, Publications de l'Institut d'études médievales, 1954), p. 176.

(2) São comentários de São Tomás sobre textos de Aristóteles: In perihermenian (até a IL 2); In posteriores analyticorum, In VIII libros physicorum, In VII libros de caelo et mundo (até III, 8), In II libros de generatione et corruptione (até I, 17), In IV livros meteorum (até II, 10), In III libros de anima, In librum de sensu et sensato, On librum de memoria et reminiscentia, In XII libros Metaphysicorum, In X libros Ethicorum e In libros Politicorum (até III, 6).

(3) P. Moraux et al., “Les sources de St. Thomas” artigo de D. A. Callus in Aristote et St. Thomas d’Aquin (Paris, Ed. Béatrice, 1967), p. 98.

(4) P. Duhem, Le systeme du monde, vol. V (Paris, 1973-1917), p. 536.

(5) St. Thomas d’Aquin, Commentary on Aristotle's Physics (Londres, Routledge & Kegan Paul, 1963), p. XXI, introd. de V. J. Bourke.

(6) Idem, ibidem, p. 214 e seg.

(7) Aristote, Physique (Paris, Les belles lettres, 1952), vol. 2, p. 102.

(8) St. T. Aquinas, Op. cit., pp. 475 e 476.

(9) Idem, ibidem, p. 476.

(10) Aristote, Op. cit., p. 104.

(11) St. T. Aquinas, Op. cit., p. 482.

(12). — Apud. R. Mondolfo, O pensamento antigo, vol. 2 (São Paulo, Ed. Mestre Jou, 1964-5), p. 40 e 41.

(13). — St. T. Aquinas, Op. cit., p. 592.

(14) S. Tomás, Suma Teológica (São Paulo, Ed. Fac. Fil. Sedes Sapientiae, 1944), p. 68.

(15) Idem, ibidem, p. 72 a 79.

(16) P. Duhem, Op. cit., p. 560.

***

Texto disponível aqui: link


Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.



Prática x Teórica: Educação Isocrática e Educação Platônica

Busto de Isócrates por
William Jennings Bryan e
Francis Whiting Halsey, 1906

Isócrates (não confundir com Sócrates) nasceu em Atenas, no ano de 436 a.C e  foi, essencialmente, um professor de eloqüência. Contemporâneo de Platão e dos socráticos, a tradição afirma que, além de aluno dos sofistas Górgias e Pródico, também acompanhou as andanças de Sócrates pelos ginásios e praças de sua cidade.*

Isócrates contra Platão

Eis nos já bem distantes da filosofia, e, mormente, da filosofia platônica. A atitude de Isócrates com relação a esta e ao programa de educação que ela preceitua faz-me lembrar o julgamento sumário de Pascal sobre Descartes: "Inútil e incerto!" Para compreendê-la é necessário, sem dúvida, colocar-nos no plano que Isócrates jamais consente em deixar, a saber, o da vida quotidiana e da eficácia prática. Platão pretende impor-nos um imenso ciclo de estudos, tão complexo e difícil que elimina, de princípio, a maioria dos candidatos, e isto com o quimérico objetivo de fazer-nos assomar à ciência perfeita. Mas na vida prática não há ciência possível, a tomar-se a palavra no sentido preciso que assume, em Platão, o termo πιστήμη: conhecimento racional e demonstrado (74). Situamo-nos diante de um problema concreto: trata-se de saber o que fazer e o que dizer. Jamais haverá uma ciência teórica bastante exata para ditar-nos a conduta a seguir. O homem "verdadeiramente culto" (πεπαιδευμένος) é, segundo professa Isócrates, o que tem o dom de "atinar" com a boa solução (πιτυγχάνειν) ou, então, com a menos má, com a mais adequada à conjuntura (καιρός), e isto pelo fato de ter uma "opinião" justa (δόξα) (75). Esta palavra, depreciada por Platão, define, ao contrário, para o modesto Isócrates, o horizonte efetivamente acessível, a única ambição que o homem possa realizar.

Se a ciência é inacessível, de que vale, na perspectiva de um resultado tão incerto, esforçar-se tanto e blasonar tantas pretensões?! Conforme o próprio Platão o declara, a ciência do filósofo é inútil, porquanto este, falto de uma cidade verdadeira e sadia, está condenado a voltar-se para a cidade ideal, para este sonho que ele transporta no bojo de sua alma, por isso que, na cidade real, está, como o vimos, fadado ao ridículo, ao malogro, à perseguição -- à morte!

Já Isócrates resolveu consagrar-se a uma tarefa de eficácia mais certa e cuja urgência é, ademais, imediata: plasma seus discípulos na experiência, na prática da vida política, preferindo ensiná-los a formarem uma opinião razoável sobre as coisas úteis, a fazê-los queimarem as pestanas em busca de certeza sobre questões perfeitamente inúteis (76), como a duplicação do cubo ou a classificação dicotômica do pescador de anzol (77). Não se cogita de ascender ao céu das Idéias nem de brincar com paradoxos: a conduta da vida reclama não idéias admiráveis e novas, mas comprovado bom senso, o bom senso da tradição (78).

"ESPRIT DE FINESSE, ESPRIT GÉOMÉTRIQUE"

Em última análise, a oposição de Isócrates a Platão é a do "esprit de finesse" ao "esprit géométrique". Isócrates procura desenvolver em seu discípulo o espírito de resolução, o sentido da intuição complexa, a percepção destes imponderáveis que dirigem a "opinião" e a tornam justa. A cultura literária, a arte (e não ciência) da palavra constituem o instrumento que pode servir para aguçar o senso de julgamento. O instrumento, por si só, não basta, mas é necessário, ainda, o dom, porque no domínio da realidade moral e humana não pode existir procedimento coercitivo que permita obter, de um espírito qualquer, desde que seja racional, um resultado certo. Nada de mais absurdo, aos olhos de Isócrates, que a pretensão socrática de fazer da "virtude" um conhecimento, uma ciência do gênero das matemáticas, e passível, por conseguinte, de ser ensinada (79).

Cumpre aprofundar a conexão empírica que estabelecemos entre retórica e moral e retomar, em um sentido muito mais sutil, a relação íntima que se estabelece, na arte oratória, entre a forma e o fundo. Estes dois aspectos são, como dizíamos, inseparáveis. Com efeito, o esforço para conseguir a expressão adequada exige e desenvolve uma agudeza de pensamento, um senso dos matizes que o pensamento conceptual não explicitaria sem esforço e que nem sempre é, talvez, capaz de explicitar. A idéia é familiar a todo leitor de Valéry ou de Bremond: há coisas que o poeta sente e faz sentir, e que o sábio, com seu passo lento, busca, em vão, alcançar. Conquanto esta educação oratória, de aparência puramente estética, vise formar apenas "virtuoses da frase", ela é, na realidade, entre todas, a mais eficaz para desenvolver a sutileza de pensamento.

"A palavra adequada é o mais seguro indício do pensamento reto" (80): esta idéia, fundamental em Isócrates, tem uma profundidade e um alcance de que ele próprio, talvez, não haja suspeitado. Teria sido bom fosse ele dotado ainda de mais "esprit de finesse", fosse menos prosaico e mais consciente dos valores propriamente poéticos da prosa de arte: teria, então, podido invocar, contra Platão, o exemplo do próprio Platão, e opor, ao cientificismo renitente de sua teoria, a prática do escritor; vimos tudo aquilo que, na pena de Platão, exprimem, como valores, o mito, a poesia, a arte pura -- a da preparação psicológica, do ritmo dos diálogos, a arte da frase, do vocábulo. Não terá sido aí, muitas vezes, mais que nos passos de dialética ressequida e laboriosa, que Platão alojou a essência mesma de sua mensagem, aquilo que há de mais sutil, de mais fino e de mais verdadeiro em todo pensamento?

AS DUAS COLUNAS DO TEMPLO

Tais são os dois tipos fundamentais de educação, as duas orientações rivais que Platão e Isócrates imprimiram à pedagogia grega, àquilo que se vai tornar a tradição clássica. Para defini-los, fui levado  a esquematizar e a enrijar um pouco a oposição entre um e outro. Com efeito, o ensino platônico e o ensino isocrático, paralelos e contemporâneos, jamais se defrontaram com tal rigor, como rivais e adversários.

Seria extremamente interessante -- mas, creio que, no estrado atual de nossa documentação, isto seja, de fato, impossível -- reconstituir a história, presumivelmente complexa e matizada, de suas relações [14]. Elas passaram por uma evolução. Cada um deles não tinha apenas um adversário único. Isócrates não era toda a retórica: vimo-lo opor-se à pura sofística de um Alcídamas. Platão não era toda a filosofia: os "erísticos" que Isócrates combate talvez sejam também, ou sobretudo, o Megára ou Antístenes. Entre os chefes das duas facções foi possível estabelecerem-se aproximações e alianças, para a luta contra um mesmo inimigo: uma frente comum dos Dogmáticos contra a crítica dissolvente da escola de Mégara, e mesmo uma frente dos "Ideólogos" ou apóstolos da alta cultura contra o espírito estreio dos políticos realistas.

Notar-se-á, sobretudo, que tais aproximações táticas foram acompanhadas, certamente, de troca de influências mútuas. Isócrates parece, realmente, receber influência de Platão ao conceder, às matemáticas e à filosofia, tão honroso lugar em sua cultura propedêutica. Não haverá, por outro lado, uma concessão de Platão a Isócrates, na forma de um reconhecimento de legitimidade da arte literária, neste manifesto em prol de uma retórica filosófica que é o Fedro, e que, no seio mesmo da Academia, precisamente o jovem Aristóteles, "docente-livre" de retórica, será incumbido de aplicar? [15].

Entre Isócrates e Platão há, portanto, não apenas rivalidades, mas emulação, e isso interessa ao desenvolvimento da nossa história: aos olhos da posteridade, a cultura filosófica e a cultura oratória aparecem, realmente, como rivais, mas também como irmãs; elas têm não apenas uma origem comum, mas também ambições paralelas e, por vezes, idênticas; são, como dizíamos, duas variedades de uma mesma espécie; o debate que mantiveram enriqueceu a tradição clássica, sem comprometer-lhe a unidade. À porta do santuário em que vamos entrar postam-se, de um lado e de outro como dois pilares, como dois robustos atlantes, as figuras destes dois grandes mestre, "equilibrando-se como que respondendo-se mutuamente" (ἀντιστρόφους καὶ σύζυγας)(81).


Referências:

(74) Isócrates, Sobre a Troca, 184.
(75) Idem, 271; Panatenaica, 30-32.
(76) Elogio de Helena, 5.
(77) Cf. PLATÃO, O Sofista, 218e s.
(78) ISÓCRATES, A Nícocles, 41.
(79) Contra os Sofistas, 21; Sobre a Troca, 274.
(80) Nícocles, 7; Sobre a Troca, 255.
(81) Cf. ISÓCRATES, Sobre a Troca, 182.

Notas complementares:

[14] As relações entre Isócrates e Platão foram objeto de inúmeros e contraditório estudos: a lista deles pode ser encontrada ap. A. DIÈS, Autour de Platon, II, p. 407, n. 1; MATHIEU, BREMOND, Introduction à sua edição de Isocrate, t. I, p. IX, n. 3 (cf. ps. 155-157); G. MÉRIDIER, em sua edição do Euthydème, ps. 133 segs., p. 137, n. 1; DIÈS, Introduction à La République, ps. LVI segs.; L. ROBIN, em sua edição do Phèdre, p. XXII segs., CLXI segs.; acrescentar: R. FLACELIÈRE, L'Éloge d'Isocrate à la fin du Phèdre, Revue des Études Grecques, XLVI (1933), ps. 224-232; G. MATHIEU, Les Premiers Conflits entre Platon et Isocrate et la date de l'Euthydème, Mélanges G. Glotz, Paris, 1932, II, ps. 555-564; Notice à sua edição de Antídosis, edição "Budé" de Isocrate, III, Paris, 1942, ps. 90-94; e, por último, W. JAEGER, Paideia, III, Londres, 1945, pass. (cf. p. 364, s. v. Isocrates and Plato).
Não ouso considerar incorporadas à ciência as conclusões de nenhum destes eruditos, Notem-se as razões por que tal pesquisa, aventurosa, está, até nova ordem, condenada ao fracasso: 1. Imprecisão da cronologia respectiva das obras dos dois autores; quaisquer que sejam os progresso realizados, particularmente no que tange aos Diálogos platônicos, desde Campell e Lutislawski, muitas incertezas subsistem: o Busiris é anteriores ou posterior a A República? Cf. A. DIÈS, Autour de Platon, II, p. 247.
   2. Imprecisão das alusões de Isócrates: um dos traços característicos de sua estética (e ele será largamente imitado por seus sucessores!) é evitar as designações precisas; ele fala de seus adversários, empregando fórmulas vagas, tais como "aqueles que se dedicam a discussões" ou "à filosofia". Tratar-se-á de Platão? De Antístenes? De ambos simultaneamente? Estão abertas as apostas. Também é possível que Isócrates esboce um retrato compositivo, cujos traços sejam tirados ora a um certo grupo de filósofos, ora a outro, quando não a sofista do tipo de Alcídamas.
    3. Finalmente, incerteza quanto ao valor que se deva atribuir aos juízos de Platão. Assim, no fim de Fedro (278d-279b), ele faz Sócrates pronunciar um elogio de Isócrates: cabe tomá-lo a sério (FLACELIÈRE, e já o próprio Isócrates, Ep., V)? Mas, não se trataria de ironia (ROBIN)? E mesmo a tomá-lo literalmente, que significa ele exatamente? Tratar-se-ia de um elogia ao Isócrates da data em que Platão escreve (WILAMOWITZ, Platon², II, p. 212), ou de uma nostálgica alusão às belas promessas que Isócrates justificativa em sua juventude, no momento em que Sócrates falava (suponhamos que por volta de 410) e que teriam falido (TH. GOMPERZ, Penseurs de la Grèce, II, p. 438)?

[15] Aristóteles e o ensino da retórica no seio da Academia: cf. por último W. Jaeger, Paideia, III, ps. 147, 185-186, que remete ao trabalho de seu discípulo F. SOLMSEN, Die Entwicklung der aristotelischen Logik und Rhetorik, Neue Philologische Untersuchungen, IV, Berlim, 1929.

* http://www.hottopos.com/mirand12/euzeb.htm

Texto retirado de MARROU, Henri-Irénée. História da Educação na Antigüidade. 4ª Impressão, São Paulo, Editora Pedagógica Universitária Ltda. e Editora da Universidade de São Paulo, 1973. (Esta obra foi reeditada pelas Edições Kírion, Campinas, 2017).


Curta nossa página no facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.



Boécio e Cassiodoro

Cassiodoro, em um manuscrito
do século XII
PAPA BENTO XVI
AUDIÊNCIA GERAL
Sala Paulo VI
Quarta-feira, 12 de Março de 2008

Boécio e Cassiodoro

Amados irmãos e irmãs

Hoje, gostaria de falar de dois escritores eclesiásticos, Boécio e Cassiodoro, que viveram nos anos mais atormentados do Ocidente cristão e, em particular, da península itálica. Odoacre, rei dos Erulos, uma etnia germânica, revoltou-se, pondo fim ao império romano do Ocidente (a. 476), mas depressa teve que sucumbir aos Ostrogodos de Teodorico, que por algumas décadas mantiveram o controle da península itálica. Boécio nasceu em Roma por volta do ano 480, da nobre linhagem dos Anísios, e entrou ainda jovem na vida pública, alcançando já com vinte e cinco anos de idade o cargo de senador. Fiel à tradição da sua família, comprometeu-se na política, convencido de que se podiam conciliar as linhas fundamentais da sociedade romana com os valores dos novos povos. E neste novo tempo do encontro das culturas, considerou como sua missão reconciliar e unir estas duas culturas, a clássica romana com a cultura nascente do povo ostrogodo. Foi igualmente activo na política, mesmo sob Teodorico, que nos primeiros tempos o estimava muito. Apesar desta actividade pública, Boécio não descuidou os estudos, dedicando-se em particular ao aprofundamento de temas de ordem filosófico-religiosa. Mas escreveu também manuais de aritmética, de geometria, de música e de astronomia: tudo com a intenção de transmitir às novas gerações, aos novos tempos, a grande cultura greco-romana. Neste âmbito, ou seja, no empenho de promoção do encontro das culturas, utilizou as categorias da filosofia grega para propor a fé cristã, também aqui em busca de uma síntese entre o património greco-romano e a mensagem evangélica. Precisamente por isto, Boécio foi qualificado como o último representante da cultura romana antiga e um dos primeiros intelectuais medievais.

Sem dúvida, a sua obra mais conhecida é o De consolatione philosophiae, que ele compôs no cárcere para dar um sentido ao seu aprisionamento injusto. Com efeito, fora acusado de conspiração contra o rei Teodorico, por ter assumido a defesa em juízo de um amigo, o senador Albino. Mas este era um pretexto: na realidade Teodorico, ariano e bárbaro, suspeitava que Boécio tivesse simpatias pelo imperador bizantino Justiniano. De facto, processado e condenado à morte, foi justiçado no dia 23 de Outubro de 524, com apenas 44 anos. Precisamente por este seu fim dramático, ele pode falar do interior da sua experiência também ao homem contemporâneo e sobretudo às numerosas pessoas que padecem a sua mesma sorte por causa da injustiça presente em muitas partes da "justiça humana". Neste obra, no cárcere busca a consolação, a luz, a sabedoria. E diz que soube distinguir, precisamente em tal situação, entre os bens aparentes na prisão eles desaparecem e os bens verdadeiros, como a amizade autêntica que mesmo na prisão não desaparecem. O bem mais excelso é Deus: Boécio aprendeu e ensina-nos a não cair no fatalismo, que apaga a esperança. Ele ensina-nos que não é o caso que governa, mas sim a Providência, e que ela tem um rosto. Pode-se falar com a Providência, porque Ela é Deus. Assim, também no cárcere lhe permanece a possibilidade da oração, do diálogo com Aquele que nos salva. Ao mesmo tempo, também nesta situação, ele conserva o sentido da beleza da cultura e evoca o ensinamento dos grandes filósofos antigos gregos e romanos, como Platão, Aristóteles, começara a traduzir estes gregos em latim Cícero, Sêneca e inclusive poetas como Tibulo e Virgílio.

A filosofia, no sentido da busca da verdadeira sabedoria, é segundo Boécio o autêntica remédio da alma (cf. lib. I). Por outro lado, o homem pode experimentar a verdadeira felicidade unicamente na sua interioridade (cf. lib II). Por isso, Boécio consegue encontrar um sentido, pensando na sua tragédia pessoal à luz de um texto sapiencial do Antigo Testamento (cf. Sb 7, 30-8, 1), que ele cita: "Contra a sabedoria, a maldade não pode prevalecer. Ela estende-se de um confim ao outro com força e governa com bondade excelente todas as coisas" (lib III, 12: PL 63, col. 780). A chamada prosperidade dos malvados, portanto, revela-se falsa (cf. lib. IV) e evidencia-se a natureza providencial da adversa fortuna. As dificuldades da vida não somente revelam como ela é efémera e de breve duração, mas chegam a demonstrar-se úteis para reconhecer e manter os relacionamentos genuínos entre os homens. A adversa fortuna permite, efectivamente, discernir os amigos falsos dos verdadeiros e faz compreender que nada é mais precioso para o homem que uma amizade autêntica. Aceitar de modo fatalista uma condição de sofrimento é absolutamente perigoso, acrescenta o crente Boécio, porque "elimina pela raiz a própria possibilidade da oração e da esperança teologal, que se encontram na base da relação do homem com Deus" (lib. V, 3: PL 63, col. 842).

A peroração final do De consolatione philosophiae pode ser considerada uma síntese de todo o ensinamento que Boécio dirige a si mesmo e a todos aqueles que viessem a encontrar-se nas suas mesmas condições. Assim escreve na prisão: "Combatei portanto os vícios, dedicai-vos a uma vida virtuosa, orientada pela esperança que eleva o coração a ponto de alcançar o céu com as orações alimentadas de humildade. A imposição que padecestes pode transformar-se, se rejeitardes a mentira, na enorme vantagem de ter sempre diante dos olhos o juiz supremo que vê e sabe como as coisas verdadeiramente são" (lib. V, 6: PL 63, col. 862). Cada prisioneiro, independentemente do motivo pelo qual terminou no cárcere, intui como é pesada esta particular condição humana, sobretudo quando é embrutecida, como acontece com Boécio, pelo recurso à tortura. Particularmente absurda é, além disso, a condição de quem, ainda como Boécio que a cidade de Pavia reconhece e celebra na liturgia como mártir da fé, é torturado mortalmente, sem qualquer motivo que não seja o das suas próprias convicções ideais, políticas e religiosas. Boécio, símbolo de um número imenso de aprisionados injustamente de todos os tempos e de todas as latitudes, é com efeito a objectiva porta de entrada para a contemplação do misterioso Crucificado no Gólgota.

Contemporâneo de Boécio foi Marcos Aurélio Cassiodoro, um calabrês nascido em Squillace por volta do ano 485, que faleceu em idade avançada em Vivarium, por volta de 580. Também ele, homem de alto nível social, se dedicou à vida política e ao compromisso cultural como poucos outros no ocidente romano do seu tempo. Talvez os únicos que podiam comparar-se com ele neste seu dúplice interesse foram o já recordado Boécio e o futuro Papa de Roma, Gregório Magno (590-604). Consciente da necessidade de não deixar esquecer todo o património humano e humanístico, acumulado nos séculos de ouro do império romano, Cassiodoro colaborou generosamente, e nos níveis mais elevados da responsabilidade política, com os novos povos que tinham atravessado os confins do império, estabelecendo-se na Itália. Também ele foi modelo de encontro cultural, de diálogo de reconciliação. As vicissitudes históricas não lhe permitiram realizar os seus sonhos políticos e culturais, que visavam criar uma síntese entre a tradição romano-cristã da Itália e a nova cultura gótica. Porém, aquelas mesmas vicissitudes convenceram-no da providencialidade do movimento monástico, que se ia confirmando nas terras cristãs. Decidiu apoiá-lo, dedicando-lhe todas as suas riquezas materiais e forças espirituais.

Concebeu a ideia de confiar precisamente aos monges a tarefa de recuperar, conservar e transmitir à posteridade o imenso património cultural dos antigos, para que não se perdesse. Por isso, fundou o Vivarium, um cenóbio no qual tudo era organizado de tal maneira que o trabalho intelectual dos monges fosse considerado extremamente precioso e irrenunciável. Ele dispôs que também os monges que tinham uma formação intelectual não deviam ocupar-se somente do trabalho material, da agricultura, mas também transcrever manuscritos e assim contribuir para transmitir a grande cultura às gerações vindouras. E isto sem qualquer desvantagem para o compromisso espiritual, monástico e cristão, nem para a actividade caritativa aos pobres. No seu ensinamento, distribuído em várias obras, mas sobretudo no tratado De anima e nas Institutiones divinarum litterarum, a oração (cf. PL 69, col. 1108), nutrida pela Sagrada Escritura e particularmente pela leitura assídua dos Salmos (cf. PL 69, col. 1149), tem sempre uma posição central como alimento necessário para todos. Eis, por exemplo, como este doutíssimo calabrês introduz a sua Expositio in Psalterium: "Rejeitando e abandonando em Ravena as solicitações da carreira política assinalada pelo sabor amargo das preocupações mundanas, e tendo experimentado o Saltério, livro descido do céu como autêntico mel da alma, mergulhei ávido como um sedento para o perscrutar sem cessar e para me deixar permear inteiramente por esta docilidade salutar, depois de me ter saturado das numerosas amarguras da vida activa" (PL 70, col. 10).

A busca de Deus, orientada para a sua contemplação anota Cassiodoro permanece a finalidade permanente da vida monástica (cf. PL 69, col. 1107). Porém, ele acrescenta que, com a ajuda da graça divina (cf. PL 69, col. 1131-1142), uma melhor fruição da Palavra revelada pode ser alcançada através da utilização das conquistas científicas e dos instrumentos culturais "profanos" já possuídos pelos Gregos e pelos Romanos (cf. PL 69, col. 1140). Pessoalmente, Cassiodoro dedicou-se a estudos filosóficos, teológicos e exegéticos sem uma particular criatividade, mas atento às intuições que reconhecia válidas nos outros. Lia com respeito e devoção, sobretudo Jerónimo e Agostinho. Deste último, dizia: "Em Agostinho, há tanta riqueza que me parece impossível encontrar algo que não tenha já sido tratado abundantemente por ele" (cf. PL 70, col. 10). Citando Jerónimo, ao contrário, exortava os monges de Vivarium: "Alcançam a palma da vitória não somente aqueles que lutam até à efusão do sangue ou que vivem na virgindade, mas também todos aqueles que, com a ajuda de Deus, vencem os vícios do corpo e conservam a recta fé. Mas para que possais, sempre com a ajuda de Deus, vencer mais facilmente as solicitações do mundo e as suas seduções, permanecendo nele como peregrinos continuamente a caminho, procurai acima de tudo garantir para vós a ajuda salutar sugerida pelo primeiro Salmo, que recomenda meditar a lei do Senhor noite e dia. Com efeito, o inimigo não encontrará qualquer passagem para vos assaltar, se toda a vossa atenção for ocupada por Cristo" (De Institutiones Divinarum Scripturarum, 32: PL 70, col. 1147). É uma admoestação que podemos acolher como válida também para nós. De facto, agora vivemos num tempo de encontro de culturas, de perigo da violência que destrói as culturas e do necessário compromisso de transmitir grandes valores e de ensinar às novas gerações o caminho da reconciliação e da paz. Encontramos este caminho, orientando-nos para Deus com o rosto humano, o Deus que se nos revelou em Cristo.


Texto disponível aqui.


Curta nossa página no facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.



Total de visualizações de página