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Este é um blog sobre Matemática em geral, com ênfase no período clássico-medieval, também sobre as Artes liberais (Trivium e Quadrivium), so...

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Prática x Teórica: Educação Isocrática e Educação Platônica

Busto de Isócrates por
William Jennings Bryan e
Francis Whiting Halsey, 1906

Isócrates (não confundir com Sócrates) nasceu em Atenas, no ano de 436 a.C e  foi, essencialmente, um professor de eloqüência. Contemporâneo de Platão e dos socráticos, a tradição afirma que, além de aluno dos sofistas Górgias e Pródico, também acompanhou as andanças de Sócrates pelos ginásios e praças de sua cidade.*

Isócrates contra Platão

Eis nos já bem distantes da filosofia, e, mormente, da filosofia platônica. A atitude de Isócrates com relação a esta e ao programa de educação que ela preceitua faz-me lembrar o julgamento sumário de Pascal sobre Descartes: "Inútil e incerto!" Para compreendê-la é necessário, sem dúvida, colocar-nos no plano que Isócrates jamais consente em deixar, a saber, o da vida quotidiana e da eficácia prática. Platão pretende impor-nos um imenso ciclo de estudos, tão complexo e difícil que elimina, de princípio, a maioria dos candidatos, e isto com o quimérico objetivo de fazer-nos assomar à ciência perfeita. Mas na vida prática não há ciência possível, a tomar-se a palavra no sentido preciso que assume, em Platão, o termo πιστήμη: conhecimento racional e demonstrado (74). Situamo-nos diante de um problema concreto: trata-se de saber o que fazer e o que dizer. Jamais haverá uma ciência teórica bastante exata para ditar-nos a conduta a seguir. O homem "verdadeiramente culto" (πεπαιδευμένος) é, segundo professa Isócrates, o que tem o dom de "atinar" com a boa solução (πιτυγχάνειν) ou, então, com a menos má, com a mais adequada à conjuntura (καιρός), e isto pelo fato de ter uma "opinião" justa (δόξα) (75). Esta palavra, depreciada por Platão, define, ao contrário, para o modesto Isócrates, o horizonte efetivamente acessível, a única ambição que o homem possa realizar.

Se a ciência é inacessível, de que vale, na perspectiva de um resultado tão incerto, esforçar-se tanto e blasonar tantas pretensões?! Conforme o próprio Platão o declara, a ciência do filósofo é inútil, porquanto este, falto de uma cidade verdadeira e sadia, está condenado a voltar-se para a cidade ideal, para este sonho que ele transporta no bojo de sua alma, por isso que, na cidade real, está, como o vimos, fadado ao ridículo, ao malogro, à perseguição -- à morte!

Já Isócrates resolveu consagrar-se a uma tarefa de eficácia mais certa e cuja urgência é, ademais, imediata: plasma seus discípulos na experiência, na prática da vida política, preferindo ensiná-los a formarem uma opinião razoável sobre as coisas úteis, a fazê-los queimarem as pestanas em busca de certeza sobre questões perfeitamente inúteis (76), como a duplicação do cubo ou a classificação dicotômica do pescador de anzol (77). Não se cogita de ascender ao céu das Idéias nem de brincar com paradoxos: a conduta da vida reclama não idéias admiráveis e novas, mas comprovado bom senso, o bom senso da tradição (78).

"ESPRIT DE FINESSE, ESPRIT GÉOMÉTRIQUE"

Em última análise, a oposição de Isócrates a Platão é a do "esprit de finesse" ao "esprit géométrique". Isócrates procura desenvolver em seu discípulo o espírito de resolução, o sentido da intuição complexa, a percepção destes imponderáveis que dirigem a "opinião" e a tornam justa. A cultura literária, a arte (e não ciência) da palavra constituem o instrumento que pode servir para aguçar o senso de julgamento. O instrumento, por si só, não basta, mas é necessário, ainda, o dom, porque no domínio da realidade moral e humana não pode existir procedimento coercitivo que permita obter, de um espírito qualquer, desde que seja racional, um resultado certo. Nada de mais absurdo, aos olhos de Isócrates, que a pretensão socrática de fazer da "virtude" um conhecimento, uma ciência do gênero das matemáticas, e passível, por conseguinte, de ser ensinada (79).

Cumpre aprofundar a conexão empírica que estabelecemos entre retórica e moral e retomar, em um sentido muito mais sutil, a relação íntima que se estabelece, na arte oratória, entre a forma e o fundo. Estes dois aspectos são, como dizíamos, inseparáveis. Com efeito, o esforço para conseguir a expressão adequada exige e desenvolve uma agudeza de pensamento, um senso dos matizes que o pensamento conceptual não explicitaria sem esforço e que nem sempre é, talvez, capaz de explicitar. A idéia é familiar a todo leitor de Valéry ou de Bremond: há coisas que o poeta sente e faz sentir, e que o sábio, com seu passo lento, busca, em vão, alcançar. Conquanto esta educação oratória, de aparência puramente estética, vise formar apenas "virtuoses da frase", ela é, na realidade, entre todas, a mais eficaz para desenvolver a sutileza de pensamento.

"A palavra adequada é o mais seguro indício do pensamento reto" (80): esta idéia, fundamental em Isócrates, tem uma profundidade e um alcance de que ele próprio, talvez, não haja suspeitado. Teria sido bom fosse ele dotado ainda de mais "esprit de finesse", fosse menos prosaico e mais consciente dos valores propriamente poéticos da prosa de arte: teria, então, podido invocar, contra Platão, o exemplo do próprio Platão, e opor, ao cientificismo renitente de sua teoria, a prática do escritor; vimos tudo aquilo que, na pena de Platão, exprimem, como valores, o mito, a poesia, a arte pura -- a da preparação psicológica, do ritmo dos diálogos, a arte da frase, do vocábulo. Não terá sido aí, muitas vezes, mais que nos passos de dialética ressequida e laboriosa, que Platão alojou a essência mesma de sua mensagem, aquilo que há de mais sutil, de mais fino e de mais verdadeiro em todo pensamento?

AS DUAS COLUNAS DO TEMPLO

Tais são os dois tipos fundamentais de educação, as duas orientações rivais que Platão e Isócrates imprimiram à pedagogia grega, àquilo que se vai tornar a tradição clássica. Para defini-los, fui levado  a esquematizar e a enrijar um pouco a oposição entre um e outro. Com efeito, o ensino platônico e o ensino isocrático, paralelos e contemporâneos, jamais se defrontaram com tal rigor, como rivais e adversários.

Seria extremamente interessante -- mas, creio que, no estrado atual de nossa documentação, isto seja, de fato, impossível -- reconstituir a história, presumivelmente complexa e matizada, de suas relações [14]. Elas passaram por uma evolução. Cada um deles não tinha apenas um adversário único. Isócrates não era toda a retórica: vimo-lo opor-se à pura sofística de um Alcídamas. Platão não era toda a filosofia: os "erísticos" que Isócrates combate talvez sejam também, ou sobretudo, o Megára ou Antístenes. Entre os chefes das duas facções foi possível estabelecerem-se aproximações e alianças, para a luta contra um mesmo inimigo: uma frente comum dos Dogmáticos contra a crítica dissolvente da escola de Mégara, e mesmo uma frente dos "Ideólogos" ou apóstolos da alta cultura contra o espírito estreio dos políticos realistas.

Notar-se-á, sobretudo, que tais aproximações táticas foram acompanhadas, certamente, de troca de influências mútuas. Isócrates parece, realmente, receber influência de Platão ao conceder, às matemáticas e à filosofia, tão honroso lugar em sua cultura propedêutica. Não haverá, por outro lado, uma concessão de Platão a Isócrates, na forma de um reconhecimento de legitimidade da arte literária, neste manifesto em prol de uma retórica filosófica que é o Fedro, e que, no seio mesmo da Academia, precisamente o jovem Aristóteles, "docente-livre" de retórica, será incumbido de aplicar? [15].

Entre Isócrates e Platão há, portanto, não apenas rivalidades, mas emulação, e isso interessa ao desenvolvimento da nossa história: aos olhos da posteridade, a cultura filosófica e a cultura oratória aparecem, realmente, como rivais, mas também como irmãs; elas têm não apenas uma origem comum, mas também ambições paralelas e, por vezes, idênticas; são, como dizíamos, duas variedades de uma mesma espécie; o debate que mantiveram enriqueceu a tradição clássica, sem comprometer-lhe a unidade. À porta do santuário em que vamos entrar postam-se, de um lado e de outro como dois pilares, como dois robustos atlantes, as figuras destes dois grandes mestre, "equilibrando-se como que respondendo-se mutuamente" (ἀντιστρόφους καὶ σύζυγας)(81).


Referências:

(74) Isócrates, Sobre a Troca, 184.
(75) Idem, 271; Panatenaica, 30-32.
(76) Elogio de Helena, 5.
(77) Cf. PLATÃO, O Sofista, 218e s.
(78) ISÓCRATES, A Nícocles, 41.
(79) Contra os Sofistas, 21; Sobre a Troca, 274.
(80) Nícocles, 7; Sobre a Troca, 255.
(81) Cf. ISÓCRATES, Sobre a Troca, 182.

Notas complementares:

[14] As relações entre Isócrates e Platão foram objeto de inúmeros e contraditório estudos: a lista deles pode ser encontrada ap. A. DIÈS, Autour de Platon, II, p. 407, n. 1; MATHIEU, BREMOND, Introduction à sua edição de Isocrate, t. I, p. IX, n. 3 (cf. ps. 155-157); G. MÉRIDIER, em sua edição do Euthydème, ps. 133 segs., p. 137, n. 1; DIÈS, Introduction à La République, ps. LVI segs.; L. ROBIN, em sua edição do Phèdre, p. XXII segs., CLXI segs.; acrescentar: R. FLACELIÈRE, L'Éloge d'Isocrate à la fin du Phèdre, Revue des Études Grecques, XLVI (1933), ps. 224-232; G. MATHIEU, Les Premiers Conflits entre Platon et Isocrate et la date de l'Euthydème, Mélanges G. Glotz, Paris, 1932, II, ps. 555-564; Notice à sua edição de Antídosis, edição "Budé" de Isocrate, III, Paris, 1942, ps. 90-94; e, por último, W. JAEGER, Paideia, III, Londres, 1945, pass. (cf. p. 364, s. v. Isocrates and Plato).
Não ouso considerar incorporadas à ciência as conclusões de nenhum destes eruditos, Notem-se as razões por que tal pesquisa, aventurosa, está, até nova ordem, condenada ao fracasso: 1. Imprecisão da cronologia respectiva das obras dos dois autores; quaisquer que sejam os progresso realizados, particularmente no que tange aos Diálogos platônicos, desde Campell e Lutislawski, muitas incertezas subsistem: o Busiris é anteriores ou posterior a A República? Cf. A. DIÈS, Autour de Platon, II, p. 247.
   2. Imprecisão das alusões de Isócrates: um dos traços característicos de sua estética (e ele será largamente imitado por seus sucessores!) é evitar as designações precisas; ele fala de seus adversários, empregando fórmulas vagas, tais como "aqueles que se dedicam a discussões" ou "à filosofia". Tratar-se-á de Platão? De Antístenes? De ambos simultaneamente? Estão abertas as apostas. Também é possível que Isócrates esboce um retrato compositivo, cujos traços sejam tirados ora a um certo grupo de filósofos, ora a outro, quando não a sofista do tipo de Alcídamas.
    3. Finalmente, incerteza quanto ao valor que se deva atribuir aos juízos de Platão. Assim, no fim de Fedro (278d-279b), ele faz Sócrates pronunciar um elogio de Isócrates: cabe tomá-lo a sério (FLACELIÈRE, e já o próprio Isócrates, Ep., V)? Mas, não se trataria de ironia (ROBIN)? E mesmo a tomá-lo literalmente, que significa ele exatamente? Tratar-se-ia de um elogia ao Isócrates da data em que Platão escreve (WILAMOWITZ, Platon², II, p. 212), ou de uma nostálgica alusão às belas promessas que Isócrates justificativa em sua juventude, no momento em que Sócrates falava (suponhamos que por volta de 410) e que teriam falido (TH. GOMPERZ, Penseurs de la Grèce, II, p. 438)?

[15] Aristóteles e o ensino da retórica no seio da Academia: cf. por último W. Jaeger, Paideia, III, ps. 147, 185-186, que remete ao trabalho de seu discípulo F. SOLMSEN, Die Entwicklung der aristotelischen Logik und Rhetorik, Neue Philologische Untersuchungen, IV, Berlim, 1929.

* http://www.hottopos.com/mirand12/euzeb.htm

Texto retirado de MARROU, Henri-Irénée. História da Educação na Antigüidade. 4ª Impressão, São Paulo, Editora Pedagógica Universitária Ltda. e Editora da Universidade de São Paulo, 1973. (Esta obra foi reeditada pelas Edições Kírion, Campinas, 2017).


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