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A Pedagogia das artes liberais

Iluminura do livro Núpcias de Mercúrio e a Filosofia
de Marciano Capella, Biblioteca Nacional de São Marcos,
Veneza. 1485–1490. MS 4054


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Tempo de leitura: 40 minutos.

Texto retirado do LINK.

Josef Pieper: A pedagogia das artes liberais por Jean Lauand [1].

Introdução

Na primeira conferência deste evento [2] vimos como o abalo filosófico – e seus afins – movido pelo princípio da admiração, nos leva a transcender o mundo do trabalho. Nesta, prosseguiremos essa análise.

Essa situação do filosofar, que de início colocamos como algo negativo (não estar imerso no mundo do trabalho, não estar a serviço de nenhuma finalidade prática), é, na realidade, uma distinção de dignidade que é necessário reivindicar, afirmar e defender. Formulando de modo positivo, filosofar é algo que tem sentido em si mesmo, sua legitimidade não decorre de que sirva para isto ou para aquilo e, precisamente por isso, é livre. Aí tocamos um dos pontos mais fundamentais da filosofia da educação de Pieper: da afirmação da liberdade da Filosofia decorrerá boa parte da Filosofia da Educação pieperiana - a pedagogia das artes liberais.

É esse o sentido da “liberdade” das artes liberales em oposição às artes serviles, artes servis, as quais, como diz S. Tomás estão ordenadas para uma utilidade que se alcança pela atividade (In Met. I, 3, 59). A Filosofia sempre foi entendida como a mais livre dentre as artes liberais (PIEPER: 1980, 27).

É importante notar que Pieper, ao utilizar as expressões “artes liberais” e “artes servis”, não lhes dá nenhum sentido de discriminação social, referindo-se unicamente ao fim do conhecimento. Como, aliás, afirma de modo explícito:

Este adjetivo “servil”, que compreensivelmente e não por acaso nos causa algum desgosto (...), não tinha originariamente o menor sentido pejorativo, antes seu significado exato era apenas o de atitude que serve a um fim, atividade que serve a alguma outra coisa, razão pela qual seu sentido reside fora de si mesma (o que com bastante precisão costuma-se denominar útil (...) (Do mesmo modo) liberalis é a atividade que não se dirige a um fim externo a si mesma, que tem sentido em si e, por isso não é strictu sensu “útil” nem se põe ao serviço de outra coisa (PIEPER: 1964, 21-2).

Note-se que Pieper também não considera as artes liberais primariamente como um elenco de disciplinas enfatizando antes o espírito de liberdade que as caracteriza.

É o momento de nos determos no caráter contemplativo do filosofar e do homem. Pois se o filosofar tem uma face negativa (não estar a serviço da práxis), tem também sua dimensão positiva, que é precisamente o voltar-se para o conhecimento teorético, contemplativo da realidade.

Em palavras do próprio Pieper:

Essa não disponibilidade, essa liberdade da Filosofia – e afirmar isto parece-me da mais extrema e atual importância – está intimamente relacionada e até identificada com o caráter teorético da Filosofia. Filosofar é a forma mais pura de theorein, de speculari, do puro olhar receptivo da realidade (PIEPER: 1980, 30).

A Contemplação

O homem é um ser tal que a sua realização, “a sua suprema felicidade se encontra na contemplação” (PIEPER: 1957, 9).

Exclusivamente à interpretação e justificação dessa sentença, Pieper escreveu a obra Glück und Kontemplation [Ócio e Contemplação]. Contemplação é simplesmente outro nome para teoria. Pieper faz notar que contemplatio é a tradução latina de theoria, que é livre e “orientada exclusivamente para a verdade, algo que tem sentido em si mesmo” (PIEPER: 1963, 63).

Ora, o que é “bom em si mesmo” deve afetar o todo da existência humana, o que é bom não para isto ou aquilo, mas, em última instância, bom. Pieper assente à antiqüíssima resposta de Anaxágoras sobre o bem último do homem:

“Para que estás na terra?” A resposta de Anaxágoras foi: para a consideração contemplativa, eis theorian, do céu e da ordem do universo. Pois bem, exatamente o mesmo queremos expressar aqui com a tese que vamos examinar, a saber, que a consideração filosófica (...) é não só parte essencial do “bem do homem” (entendido como bem em si), mas também elemento imprescindível do bem comum (PIEPER: 1963, 65).

E é que conhecer, contemplar, ver com olhar de amor a realidade tal como é – e aí se dá uma total coincidência entre os grandes da tradição ocidental –, é, como diz Tomás de Aquino (In Liber de causis, 18): “nobilissimus modus habendi aliquid”, o modo mais nobre de se ter algo.

Ao final do cap. VII de Glück und Kontemplation, Pieper explica que o conhecimento é, no sentido mais estrito, assimilação: um assimilar em que o mundo objetivo, enquanto conhecido, chega a ser o próprio ser do sujeito cognoscente. Os entes não-cognoscentes limitam-se à sua própria forma; já os cognoscentes, além de possuírem (de modo natural) sua própria forma, possuem também (de modo intencional) as dos objetos conhecidos. Com especial profundidade e sem fronteiras, no caso do sujeito espiritual.

Aí onde está o espírito, aí está também a totalidade das coisas, aí “é possível que num só ente tenha existência a plenitude do universo (De Veritate II, 2). Aqui cabe também aquela grande sentença de Aristóteles que se tornou proverbial no Ocidente: “A alma é, no fundo, todos os entes, anima est quodammodo omnia” (Sobre a alma 3, 8; 341-b) (PIEPER: 1957, 68).

Ao comparar a contemplação própria da bem-aventurança final com a teoria filosófica, Pieper as conjuga, evitando, porém, identificá-las: se a visio beatifica é a plenitude de posse do anseio que já se dá no homo viator em prefiguração, o dirigir-se para a contemplação que se dá no filosofar é pergunta e procura e não ainda pleno achado e resposta (PIEPER: 1966, 70).

Tendo falado da contemplação e do ter, podemos entender melhor o que Pieper diz a respeito da verdadeira riqueza do homem: “A verdadeira Filosofia se apoia na crença de que a riqueza própria do homem (...) está em que sejamos capazes de ver aquilo que é, a totalidade daquilo que é” (PIEPER: 1980, 33).

Lazer (skholé) como atitude do espírito

Ao avanço do totalitarismo do mundo do trabalho, até mesmo sobre a vida espiritual do homem, Pieper opõe “um dos fundamentos da Cultura Ocidental”, o lazer (conceito de especial importância, pois na skholé aristotélica radica a distinção entre artes liberais e servis).

Desde logo convém ressaltar que Pieper considera o lazer – como também o seu contrário: a concepção que vê no trabalho a característica dominante de toda a existência do homem – não como categoria sociológica, mas uma atitude humana:

O lazer é, como atitude da alma (e é necessário deixar bem estabelecido algo que é claro: que o lazer não se deve somente a fatos externos como pausa no trabalho, tempo livre, fim de semana, férias; lazer é um estado de alma) precisamente o oposto do tipo do “trabalhador” (PIEPER: 1952, 51-2).

Para caracterizar, por contraste, o espírito do lazer recorreremos à breve descrição da figura do “trabalhador”, feita em Was heisst Akademisch?. Esse tipo nada tem que ver com camadas sociais e Pieper desfaz qualquer eventual mal-entendido que pudesse surgir a respeito:

Não é a camada social do operariado, ou do povo simples em geral, que é aqui tomada como o oposto do espírito acadêmico e excluída do seu domínio. Estamos, pelo contrário, convencidos de que o homem simples, o povo, enquanto é capaz realmente de conservar esta simplicidade (o que só ocorre sob determinadas condições), tem uma capacidade toda particular de abrir-se ao mundo como um todo, com espírito contemplativo e “festivo”, o que justamente constitui o melhor e mais íntimo da atitude verdadeiramente acadêmica (PIEPER: 1964a, 40-1).

“Trabalhador” não significa aqui o homem que trabalha, mas uma concepção ideal-abstrata onde o fator determinante da vida deve ser visto no total entrosamento do Homem nos maquinismos de planejamento (PIEPER: 1964a, 42).

Ao exclusivismo do trabalho como função social, opõe-se a atitude de lazer que, ao contrário da pausa ou do tempo livre (no fundo ordenados ao trabalho), corta-o verticalmente. A justificação do lazer não é a de repor forças ao trabalhador, mas sim a de favorecer que continue sendo homem, capaz de contemplar o mundo como totalidade (PIEPER: 1964a, 56-7).

Acadêmico significa filosófico-teorético

A concepção básica de Pieper é a de que as características da educação universitária são as mesmas do filosofar: “Formação acadêmica significa o mesmo que formação filosófica” (PIEPER: 1964a, 22). Dois parágrafos decisivos são os que se encontram em Musse und Kult [Ócio e culto], onde categoricamente se afirma:

Falar do lugar e do direito da Filosofia é, ao mesmo tempo, falar de nada mais nada menos que do lugar e do direito da Universidade, da formação acadêmica, e da formação em geral no sentido próprio da palavra, a saber, naquele sentido pelo qual, por princípio a formação se distingue da simples instrução profissionalizante e a ultrapassa. Instruído é o funcionário e a instrução (profissional) se caracteriza por dirigir-se a um aspecto parcial e específico no ser humano e, ao mesmo tempo, a um determinado setor recortado do mundo. Já a formação se dirige ao todo: culto e formado é aquele que sabe o que acontece com o mundo em sua totalidade. A formação atinge o homem todo enquanto é capax universi, enquanto é capaz de apreender a totalidade das coisas que são (PIEPER: 1964, 42-3).

Em busca do genuíno conceito de Universidade em Was heisst Akademisch?, Pieper inicialmente mostra a continuidade histórica – quanto ao ideal do espírito acadêmico – que se dá no Ocidente desde a Academia de Platão até as universidades de hoje: não é por acaso que chamamos nossas atuais instituições de ensino superior de acadêmicas. E, além disso, a escola de Platão tem sido, ao longo da História, constantemente apontada como paradigma de todas as escolas superiores do Ocidente (PIEPER: 1964a, cap. I). Em que consiste esse caráter paradigmático?

Como vimos, o homem, por natureza, tende para a contemplação (o que se mostra na índole teorética do filosofar) e a Universidade realiza (deve realizar) em termos institucionais este anseio fundamental da natureza humana. Daí que a Academia de Platão – para além da mera continuidade histórica e independentemente de quais tenham sido suas formas, programas de ensino e didática – constitua, em seu núcleo mais essencial, um modelo atemporal, válido também para o nosso tempo: “o modo filosófico de encarar o mundo” (PIEPER: 1964a, 17).

De tal modo que “uma formação não baseada na Filosofia, não perpassada de Filosofia, não pode ser chamada de acadêmica” (PIEPER: 1964a, 18).

Na medida em que se aplica à Educação e à Universidade, “teoria” se traduzirá por “artes liberais”. Pois acadêmico significa filosófico e filosófico significa essencialmente (entre outras coisas) teorético e, portanto, algo voltado unicamente para a captação da realidade e alheio a fins práticos, e este é o sentido das artes liberais.

A Pedagogia das Artes Liberais

Inicialmente convém desfazer alguns possíveis equívocos que poderiam surgir da leitura do ponto anterior.

Ao afirmar que a Universidade deve ser filosófica, não estamos com isso dizendo que não deva integrar seus fins a formação de profissionais competentes (médicos, físicos, juristas, etc.) nem tampouco que, ao lado da formação propriamente profissional do médico ou do jurista, sejam-lhes ministrados alguns cursos da disciplina Filosofia (o que poderia e talvez deveria ocorrer, mas não é o essencial).

E é que a proposta pieperiana dirige-se ao modo de realizar-se a formação universitária. Esse modo é que deve ser filosófico, se pretendemos que a Universidade seja “algo mais que simples instituição de formação de profissionais. Em que se encontra a legitimação de uma tal pretensão, e onde está o ‘mais’ das universidades senão no acadêmico-filosófico?” (PIEPER: 1964a, 24). E explica:

O caráter acadêmico é constituído unicamente pelo fato de todas as ciências, também as ciências particulares, precisamente estas, serem tratadas de maneira acadêmica, o que significa de maneira filosófica (PIEPER: 1964a, 31).

Somente à luz desses critérios pode-se compreender a crescente descaracterização, a perda de identidade que a Universidade vem sofrendo face à “concorrência” que as indústrias, empresas e bancos vem-lhe fazendo no tocante à formação profissional de seus quadros. Hoje, cada vez mais, as empresas dão cursos para seus funcionários. Evidentemente, esses cursos não têm um caráter “livre”; antes estão totalmente voltados para a realização de finalidades práticas. Se também a Universidade mergulha no mundo da utilidade, então – é a percuciente indagação de Pieper – que diferença há entre um curso, digamos, de Química na Universidade e o mesmo curso dado pelo setor de formação de pessoal de uma grande indústria farmacêutica?...

Na resposta – para quem se ativesse à estrita realidade fática –, tristemente, talvez só se encontre a diferença de que a indústria está melhor aparelhada e provida de recursos do que a Universidade (PIEPER: 1964a, 30-31).

No entanto, caso a Universidade se volte para a realização daquele anseio da natureza humana a que corresponde, se ela realiza sua vocação filosófica, ficará nítida a sua própria especificidade:

O que o distingue (um estudo especializado qualquer, realizado à maneira filosófica) é antes de tudo, a ausência de vínculos que o liguem a qualquer fim utilitário. Essa é a verdadeira liberdade acadêmica; essa liberdade é, per definitionem, destruída no momento em que as ciências se tornam um simples disfarce utilitário para qualquer espécie de poder (PIEPER: 1964a, 28).

Esse caráter teorético do filosofar aplicado à Universidade, ao tratamento de cada disciplina particular, é o que designamos pela expressão “Pedagogia das Artes Liberais”.

Aqui a contribuição de Pieper é especialmente esclarecedora e interessante: atinge o mais profundo núcleo constitutivo das artes liberais, deixando de lado características acidentais a que historicamente estiveram associadas essas artes. É o espírito das artes liberais o que hoje e sempre terá atualidade (mais não seja a atualidade do corretivo).

Assim, a proposta de uma Educação Liberal (no sentido indicado: o do espírito das artes liberales) tal como Pieper a formula hoje, não se refere a um elenco de disciplinas, nem, muito menos, a qualquer tipo de discriminação social com que se pôde confundir outrora o conceito de Artes Liberais. Refere-se, sim, a um sentido que já aparece em Santo Tomás: “Illae solae artes liberales dicuntur, quae ad sciendum ordinantur” (In Met. I, 3, 59), só se designam como liberais as artes que se dirigem somente ao saber e não à utilidade prática.

E, afirma Pieper, é neste sentido que “verdade e conhecimento, por um lado, e, liberdade, por outro, se encontram em mútua conexão” (PIEPER: 1966, 50). E, complementarmente, “as artes serviles, artes servis, como diz Santo Tomás, estão ordenadas para uma utilidade que se alcança pela atividade” (PIEPER: 1980, 27).

O fundamento filosófico da Pedagogia das Artes Liberais reside no fato de as ciências particulares, também elas, poderem ser em alguma medida tratadas filosoficamente, isto é, teoreticamente, participando desse modo da liberdade da Filosofia. É nesse sentido que deve ser entendida a afirmação aristotélica de que só a Filosofia é livre, o que, na realidade, significa que a Filosofia é livre de modo máximo, pois nas ciências também pode ser encontrado um elemento filosófico de teoria e liberdade.

Certamente, uma ciência particular pode ser – contrariamente ao que ocorre com a Filosofia – legitimamente tomada ao serviço de fins utilitários. Não há nada na natureza da ciência particular que seja violado por isso. A Pedagogia das Artes Liberais enfatizará não esse aspecto utilitário, mas o elemento filosófico, livre da aplicação prática, com que podem (e também devem) ser estudadas a Matemática, o Direito, a Física etc. Como diz Pieper:

Há também na Ciência, no seu núcleo mais íntimo, um elemento que não pode ser tomado para a utilidade prática: é o elemento filosófico da teoria, que se dirige para a verdade e nada mais. Isto é: a Ciência tem, em virtude de sua essência, exigência de liberdade, por ser não prática, mas teorética (PIEPER: 1954, 36-7).

Como primeira aproximação, podemos dizer que o espírito das artes liberais leva à pesquisa, ao estudo, à docência das ciências particulares de um modo filosófico, que se realiza (pode se realizar...) na atitude do professor e do aluno, que se voltam, sim, para o particular aspecto desta ou daquela disciplina ou especialidade, mas sem se enclausurarem nele; antes, ao contrário, deixando abertura para reflexões e diálogo sobre o todo do real permitidos ou até exigidos pelo assunto, se se trata de uma Universidade.

Tal modo filosófico de encarar uma ciência particular distingue-se do não-filosófico, antes de tudo, pela “ausência de vínculos que o liguem a qualquer fim utilitário” e por “nos abrirmos ao céu aberto da realidade como um todo” (PIEPER: 1964a, 28).

Claro que, tratando-se de um espírito, de uma atitude, o exemplo verdadeiro vem no contato vivo com os grandes mestres que realizam em si as virtudes do genuíno professor universitário. No entanto, pode ser útil, a título de mero exemplo (e, pelas razões apontadas, apenas indicativo e muito limitado), a consideração de uma situação concreta. Suponhamos o caso de um professor que leciona Matemática para um curso universitário de Economia. Naturalmente, ele irá proporcionar a seus alunos o instrumental científico-matemático que os habilite a resolver um exercício (didático e banal) como o seguinte: “A função de demanda de determinado bem é $q = 20 - p$ e a função de Custo total de produção desse bem é $C = 2q + 17$. Determinar o valor de q para que o Lucro total, $L$, seja máximo”.

O problema se resolve relacionando a função de Lucro com as de Custo e Receita, lembrando que esta, por sua vez, obtém-se a partir da função de preço (como função inversa da demanda), efetuando as operações de derivação pertinentes etc. Mas, pode ser, que em meio a esses cálculos e operações, surja na aula universitária (o que seria impensável dentro do quadro de objetivos de um curso que uma empresa ministrasse sobre a mesma matéria para seus gerentes) o debate sobre outras questões: em que medida a liberdade humana deixa-se expressar em fórmulas como $q = f (d)$? Ou, que realidades humanas são passíveis de serem tratadas por modelos? E por quê? Se “normal” significa situar-se numa determinada região de uma “curva de Gauss”, ou, pelo contrário, refere-se ao ser do homem? Qual o lugar do lucro entre os fins de uma empresa? Etc.

Ou como jocosamente dizia o outro: se ela (uma colega, autêntica professora universitária) for dar um curso de empadinha, ela vai passar os dois primeiros meses discutindo se a azeitona é natureza ou cultura.

Os exemplos poderiam multiplicar-se e aplicar-se a todas as áreas do saber (é claro que há assuntos com maior e menor potencial de abertura à totalidade, à maneira filosófica de tratamento, elemento que também originariamente se encontrava contido no conceito de Artes Liberais).

Dir-se-á que discussões como as que apontávamos não costumam ocorrer nas nossas universidades e que nossos professores – de que, em geral, mal se pode esperar competência técnica – não estão absolutamente preparados para tal diálogo. Se for realmente assim, então diremos que nossas universidades, na realidade, não o são, não realizam o espírito da Academia de Platão e, afinal de contas, em nada diferem dos cursos ministrados por bancos, empresas e indústrias.

O que caracteriza o verdadeiro professor universitário é a capacidade do participar desse diálogo (desse diálogo polifônico e aberto).

Para além de toda qualificação científica, ele deve ser capaz de reconhecer que os resultados particulares de seu próprio trabalho podem servir a uma consideração global do todo. Sem sucumbir ao diletantismo sempre pronto a fazer generalizações gratuitas, deve aprender a arte de colocar seu próprio saber a serviço de um colóquio de caráter filosófico.

Universidade e formação profissional

Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, quando se propõe uma Pedagogia das Artes Liberais, não se está, de modo algum, a descuidar a formação do profissional competente. Pois tal formação ocorre apesar de (ou, como se corrige Pieper nessas ocasiões: “apesar de”, não: “precisamente por”) não se estar diretamente a buscá-la.

Uma importante distinção feita por Pieper a propósito dessa e de outras realidades humanas é a que se dá entre “não querer que algo ocorra” e “querer que algo não ocorra”: a sentença “Quem quiser salvar sua vida perdê-la-á” não vige só no âmbito religioso, mas também em muitas outras situações do homem, onde aquilo que se busca diretamente não se obtém; há bens que só alcançamos como dons, “por assim dizer, como fruto de uma procura endereçada para outra finalidade” (PIEPER: 1964a, 25).

Assim, por exemplo, no seu estudo sobre a virtude da fortaleza, recolhe a constatação feita pela Psicologia: “nunca o eu está tão exposto como quando solícito pela sua própria proteção” (PIEPER: 1964b, 189). No que toca ao nosso caso,

Naturalmente a “habilidade” profissional do médico, do cientista, do jurista é um fruto altamente desejável do estudo acadêmico. Mas não será o caso de que tal habilidade enquanto supera o nível do medíocre e do que é possível alcançar por um aprendizado meramente técnico, dependa, de fato, de um aprofundamento de admiração e totalmente desinteressado e despreocupado dos fins práticos, no terreno puramente “teorético” do ser? Será que a utilidade prática não depende, justamente, de que a teoria seja antes realizada em toda a sua pureza? (PIEPER: 1964a, 26)

Um estudo que visa obter a utilidade prática e por isso se estrutura de modo a excluir o elemento acadêmico-teorético não consegue obter sequer o fim útil que almejava.

A excessiva especialização – e o excesso está também na recusa do caráter liberal do estudo – leva à ruína não só do espírito acadêmico, mas também da qualificação profissional especializada que se propunha.

O filosofar: abertura para a totalidade

Prosseguindo na exploração do filosofar, encontraremos outros elementos que constituem também temas centrais da Filosofia da Educação e da Antropologia Filosófica.

Um desses elementos essenciais, que pode até ser entendido como a própria definição do filosofar (PIEPER: 1963, 13) é a abertura para o todo, nota que integra também a essência do Homem (PIEPER: 1964a, 91) e a da Universidade (PIEPER: 1964a, 98).

A Universidade, como todas as grandes instituições que pautam a vida social dos homens, recolhe em si grandes experiências que o homem tem da realidade e de si mesmo, experiências que não estão a nível consciente, antes condensam-se nas instituições (PIEPER: 1963, 7 ss.).

O trabalho do filósofo, que pergunta pelo ser “em Si mesmo e em suas últimas razões”, no caso, pelo ser da Universidade, é penetrar para além da película superficial do modo fático como se apresentam as Universidades e, “para além dos resultados da estatística social”, procurar “a essência e a nota distintiva de que é Acadêmico” (PIEPER: 1964a, 16). Captar as experiências, as grandes e fundamentais experiências existenciais que se fundiram na instituição universitária e que se tornaram mais ou menos invisíveis (PIEPER: 1963, 9).

Como já indicamos, a propósito do caráter filosófico-teorético, a Universidade surge e se mantém como herdeira direta da Academia de Platão. É certo que o termo “Universidade”, por ocasião do surgimento das universidades, tem inicialmente um significado sociológico (grêmio, corporação de mestres e estudantes) e depois, muito cedo, também o significado de universitas litterarum. “Universidade” liga-se a “um termo fundamental da linguagem humana: universum” que, por sua vez, indica a profunda unidade da totalidade do real (PIEPER: 1963, 10). E é isto, em que pesem todas as naturais e profundas diferenças, que une a Universidade de hoje à medieval e à Academia de Platão.

O texto-chave que expressa a grande intuição, a grande experiência de Platão, que até hoje marca a diferença específica do ideal de Universidade, encontra-se na República, quando Platão aponta como característica fundamental do verdadeiro filósofo o permanente impulso “para alcançar o todo das coisas divinas e humanas em universal” [3].

Como dizíamos, não deve causar surpresa, ao leitor de Pieper, que o texto fundamental sobre a Universidade seja uma afirmação sobre o filosofar, e mais, uma sentença que expressa ao mesmo tempo “a própria natureza do espírito humano” (PIEPER: 1963, 12).

Quanto ao filosofar, diz Pieper: “A totalidade do ente é o objeto da teoria filosófica: por filosofar não se entende outra coisa que não a consideração do todo na realidade” (PIEPER: 1966, 71).

Uma tal formulação não deve ser mal entendida: certamente a pergunta filosófica pode versar sobre uma realidade particular e não necessariamente sobre o tema formalmente assumido da totalidade do real. Mas, “não é possível perguntar ou pensar filosoficamente sem que entre em jogo a totalidade do ser, a universalidade das coisas, ‘Deus e o mundo’” (PIEPER: 1980, 59 [4]). É esse um ponto decisivo para a distinção entre a Filosofia e as ciências particulares. Alfred North Whitehead – certamente um mestre do rigor lógico – caracterizou a Filosofia do seguinte modo: “Philosophy asks the simple question: what is it all about?” e o problema que se coloca a quem filosofa é “to conceive a complete fact” (PIEPER: 1963, 15; 76).

A formação what is it all about é particularmente feliz: por um lado sugere a totalidade; por outro, instala-se em um neutro que transcende os particulares pontos de vista das ciências, aproximadamente como em nossa gíria: “Qual é a dele?”

Se se trata, por exemplo, do problema da liberdade humana, em lugar de a estudar simplesmente sob seus aspectos psicológicos, jurídicos, é necessário (para quem filosofa) que se considere ‘em si mesma’ de todo ponto de vista pensável (PIEPER: 1963, 20).

Já quem pensa cientificamente se limita a considerar seu objeto sob um aspecto particular: “Enquanto saber especializado toda ciência está feita de formulações que dizem respeito a um aspecto determinado sob o qual ela considera o real; cada ciência existe, por assim dizer, em função dos limites que a separam das outras ciências” (PIEPER: 1963, 14-5). Não entram aí em jogo “Deus e o mundo”.

Tomemos como exemplo a distinção que Pieper indica entre o tratamento científico e o filosófico de um mesmo tema: a morte.

Na medida em que me interrogo, sob o ponto de vista fisiológico, o que acontece quando morre um homem, quer dizer, na medida em que, como cientista, eu formulo um aspecto parcial, não só não estou obrigado a falar de “Deus e o mundo”, como isso nem sequer me é permitido: seria algo claramente não-científico (PIEPER: 1964a, 96).

Já no seu próprio tratado filosófico sobre a morte, onde a pesquisa não se faz do ponto de vista clínico científico, mas é filosófica (e a Filosofia não tem um ponto de vista, mas é abrir-se para a totalidade), então o filósofo deve imbuir-se da firme vontade de tomar em consideração absolutamente todos os aspectos a seu alcance, que possam de alguma forma dizer-nos algo sobre o fenômeno da morte ou, pelo menos, não deixar de lado nada do que for capaz de dar-nos alguma informação; sejam os dados procedentes da fisiologia clínica, da patologia, ou da experiência do médico, do sacerdote ou do capelão de prisões, ou o que se possa obter da legítima tradição sagrada: enfim, a experiência humana onde quer que se encontre.

Abertura para o todo: essência do espírito

Essa “abertura para a totalidade”, esse “não deixar de considerar nada” serão constitutivos da Universidade porque o são do próprio homem.

Acadêmico significa exatamente que a verdadeira riqueza do homem consiste em compreender o ser, as coisas em si; a nobreza do homem funda-se em que ele seja capax universi, capaz de se apoderar do todo, convenire cum ommni ente (PIEPER: 1964a, 44-5).

Repitamos ainda uma vez: discutir o ser e os fins da Educação é discutir em que consiste afinal a verdadeira riqueza do homem, ou seja, aquilo que por natureza o homem está chamado a ser. Ora, um observador atento reparará que as expressões de S. Tomás de Aquino “convenire cum omni ente” e “capax universi”, recolhidas na citação anterior, são as mesmas que se empregam (em outras obras de Pieper) para caracterizar não já a Universidade mas a própria essência do espírito:”A alma espiritual – diz S. Tomás na sua pesquisa sobre a verdade – está essencialmente disposta a ‘convenire cum omni ente’ (...) o ser espiritual ‘é capaz de apreender a totalidade do real’” (PIEPER: 1980, 44). E “ser capaz de conhecimento espiritual quer dizer: viver diante e em meio à realidade total. O espírito, e só ele, é capax universi” (PIEPER: 1951, 84).

Conclusão: abertura para o todo: a chance da universidade

A conexão de tudo isto com a pergunta pelo ser da Universidade torna-se agora bastante clara: o espírito humano, ao tratar filosoficamente, universitariamente, uma questão, realiza sua potencialidade de “convenire cum omni ente”, de relacionar-se com tudo que é. E esta é, como dizíamos, a grande experiência, a grande intuição que se realiza institucionalmente na Universidade:

A reivindicação de ser, no sentido apontado, um “ensino superior”, um lugar de cultura, um lugar onde se efetua a formação daquilo que é verdadeiramente humano, – tal reivindicação, também ela, só se legitima na medida em que se dê a confrontação com o todo do real, o que permite ao espírito realizar suas virtualidades últimas (PIEPER: 1963, 17).

Não é, pois, pela justaposição ou concatenação das ciências tomadas uma a uma que se constituirá o universum que institucionalmente a Universidade deve realizar.

Pieper indica – no Cap. IV de Offenheit für das Ganze –, brevemente e sem sugerir modos concretos de realização, quatro pontos que distinguem a atitude filosófica universitária:

1) O filosofar – e nisto também a Filosofia se distingue da Ciência – não cessa de colocar questões que jamais poderão receber resposta definitiva.

2) O trabalho da ciência consiste em esclarecer, através de contínuo progresso, o que até então era desconhecido. Surgem assim, com o progresso da ciência, conhecimentos realmente novos: o sistema periódico dos elementos, a circulação do sangue, etc. Já no filosofar, não se trata de descobrir uma realidade nova, mas de ver mais claramente o que, de modo obscuro, já se sabia pelo conhecimento comum.

3) O filosofar – ao contrário da ciência – não comporta aplicação prática.

4) O poder educador da ciência versa, como já dissemos, sobre a disciplina, a objetividade e a clareza do pensamento; já a Filosofia que visa a uma apreensão intuitiva do objeto em si mesmo requer que “se saiba escutar em perfeito silêncio, que o espírito apresente aquela total ‘simplicitas’, que por nada é turbada, de receptividade ao todo e ao mundo” (PIEPER: 1963, 24-5).


Referências bibliográficas

PIEPER, J. Wahrheit der Dinge. München: Kösel, 1951.

________. Musse und Kult. München: Kösel, 1952. [Publicado em português com o título Ócio e contemplação - Ócio e culto, felicidade e contemplação pelas Edições Kírion em 2020].

________. Weistum-Dichtung-Sakrament. München, Kösel, 1954.

________. Glück und Kontemplation. München: Kösel, 1957. [Publicado em português com o título Ócio e contemplação - Ócio e culto, felicidade e contemplação pelas Edições Kírion em 2020].

________. Offenheit für das Ganze – Die Chance der Universität. Essen: Fredebeul & Koenen, 1963.

________. Zustimmung zur Welt. Eine Theorie des Festes. München: Kösel, 1964 12ª. ed.

________. Was heisst Akademisch? Zwei Versuche über die Chance der Universität heute. München: Kösel, 1964a.

________. Das Viergespann. München: Kösel, 1964b.

________. Verteidigungsrede für die Philosophie. München: Kösel, 1966.

________. Felicidad en el mirar. Folia Humanistica. No. 166, 1976, Barcelona: Glarma.

________. Was heisst Philosophieren? Vier Vorlesungen. München: Kösel, 8ª. ed., 1980, 132 pp. [Publicado em português com título Que é filosofar? pelas Edições Loyola em 2007]

________. Buchstabier-Übungen. München: Kösel, 1980a


Notas:

[1] Professor Titular aposentado da Fac. de Educação da USP. Professor do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Metodista de São Paulo. Professor das Faculdades Integradas “Campos Salles”.

[2] Conferência no XII Seminário Internacional: Filosofia e Educação (set-2011), dedicado a Josef Pieper e seu conceito de universidade. Aqui trataremos apenas de aspectos complementares da correlação pieperiana: antropologia – filosofar – universidade; tendo em conta nossa outra conferência (“Universidade e filosofar em Josef Pieper: o princípio na admiração”) e as análises do tema nas demais conferências do evento.

[3] PLATÃO. A República, 486a. “Ciência das coisas divinas e humanas” é, talvez, a mais clássica das definições de Filosofia, mil vezes citada pelos antigos.

[4] A consideração citada segue-se ao exemplo: “Que é, afinal, em última análise o ensino? Alguém diz: ‘O homem não pode absolutamente ensinar nada; é como quando saramos: não foi o médico que nos curou, mas a natureza, cuja força curativa o médico somente pôs em andamento’ (será?). Vem um outro e diz: ‘Deus é quem ensina interiormente – por ocasião do ensino humano’. Vem Sócrates e diz: o professor só faz com que o educando se lembre, ‘extraia de si mesmo o saber; não há estudo, há só uma recordação’...”.

***


Leia mais em Sobre as Sete Artes Liberais, por Rabano Mauro

Leia mais em As Artes Liberais do Trivium e do Quadrivium




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Lista de Livros Clássicos, segundo o Instituto Hugo de São Vitor

Um bom livro - Walther Firle

Continuando nossas listas de livros, temos uma excelente que foi retirada do livro Coleção de Artes Liberais Vol. 2: Gramática do Instituto Hugo de São Vitor, 2020. Estes livros moldaram e formaram a Civilização Ocidental. Recomendo fortemente que leia também as lições (contida no vol. 2 do livro citado) que estão diretamente atreladas a esta lista. Essas lições trazem consigo comentários e justificativas para leitura de tais livros.

Abaixo segue algumas listas já publicadas.

Lista de livros sobre a Educação verdadeira - parte 1

Lista de livros sobre a Educação verdadeira - parte 2

Lista de livros sobre a Educação verdadeira - parte 3

Lista de livros sobre a Educação verdadeira - parte 4

Livros para aprender bem Matemática


1. Os Lusíadas, de Luiz Vaz de Camões.

2. Ilíada, de Homero. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 

3. Odisseia, de Homero. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 

4. Eneida, de Virgílio. Tradução de Carlos Alberto Nunes.

5. O Mundo de Homero, de Andrew Lang.

6. A Teogonia e Os Trabalhos e os Dias, Hesíodo.

7. História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides.

8. Fábulas, de Esopo

9. Contos dos Irmãos Grimm.

10. Sete contra Tebas, de Ésquilo.

11. Édipo Rei, de Sófocles.

12. As Bacantes, de Eurípedes.

13. Trilogia das Barcas, de Gil Vicente.

14. Divina Comédia, de Dante Alighieri.

15. Confissões, de Santo Agostinho.

16. Dom Casmurro, de Machado de Assis.

17. Quincas Borba, de Machado de Assis.

18. Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.

19. Metamorfoses, de Ovídio.

20. As Odes, de Horário.

21. Gênesis em latim e em português, livro da Bíblia.

22. Salmos, livro da Bíblia.

23. Rimas, de Luiz Vaz de Camões.

24. As Poesias Satíricas, de Gregório de Matos.

25. Segundo volume das obras de Manuel Maria Barbosa Du Bocage, editado por Theophilo Braga.

26. Mensagem, de Fernando Pessoa.

27. A Cinza das Horas, de Manuel Bandeira.

28. Os Escravos, de Castro Alves.

29. Últimos Cantos, de Gonçalves Dias.

30. Evangelho segundo Mateus, livro da Bíblia.

31. Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto.

32. Folhas Caídas, de Almeida Garret.

33. Rei Lear, de William Shakespeare.

34. Dom Quixote, de Miguel Cervantes.

***

Leia mais em O que é educação clássica

Leia mais em A Educação em Ilíada e Odisseia

Leia mais em Matemática Sagrada na Divina Comédia de Dante



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O Cristianismo e a Educação Clássica - parte 1

Detalhe de um sarcófago da primeira metade do século II (Paris, Louvre). Um menino declama um dever de Retórica diante de seu pai (não do mestre). Tanto os seus dois dedos da mão direita quanto sua postura corporal (inclusive a perna direita levemente inclinada para trás) compõem a eloqüência; o papiro na mão esquerda é o símbolo de sua cultura, de sua dignidade social. O estudo na Antigüidade existia para adornar o espírito e instruir o estudante nas belas letras. Em Roma não havia utilitarismo na Educação. Ver VEYNE, Paul. “O Império Romano”. In: VEYNE, Paul (org.). História da Vida Privada I. Do Império Romano ao Ano Mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 33.

Tempo de leitura: 60 minutos.

Texto retirado de MARROU, Henri-Irénée. História da Educação na Antigüidade. 4ª Impressão, São Paulo, Editora Pedagógica Universitária Ltda. e Editora da Universidade de São Paulo, 1973. (Esta obra foi reeditada pelas Edições Kírion, Campinas em 2017).

O CRISTIANISMO E A EDUCAÇÃO CLÁSSICA

A expressão “educação cristã” (ἐν Χριστῷ παιδεία) encontra-se já sob a pena de São Clemente de Roma [1], por volta de 96; São Paulo, antes dele, preocupara-se em dar conselhos aos pais sobre a maneira de educar os filhos [2]: esta é realmente uma das mais constantes preocupações do cristianismo.

A EDUCAÇÃO RELIGIOSA

Quando se fala hoje de “educação cristã”, entende-se, as mais das vezes, uma impregnação pelas preocupações cristãs do conjunto da formação da criança e, antes de tudo, de sua instrução escolar. É preciso tomar cuidado, pois para a Igreja antiga o termo tem um sentido mais estrito e mais profundo: trata-se essencialmente da educação religiosa, isto é, de uma parte, da iniciação dogmática: quais são as verdades em que precisamos acreditar para sermos salvos; e, por outra parte, da formação moral: qual é a conduta que convém ao cristão? Reconhece-se o esquema que norteia as Epístolas de São Paulo: toda a Igreja antiga seguiu o caminho “aberto pelo grande Apóstolo. A educação cristã, no sentido sagrado e transcendente da palavra, não podia, como a educação profana, ser ministrada na escola, mas na e pela Igreja e, por outro lado, no seio da família.

Educar cristãmente os filhos, fazê-los participar do tesouro da fé, inculcar-lhes uma sã disciplina em matéria de vida moral é o dever fundamental dos pais: aí há algo mais do que encerrava a tradição romana: o cristianismo depende aqui essencialmente da tradição judia, que aquela prolonga e na qual a tônica posta sobre o papel da família na formação da consciência religiosa era muito acentuada [3]. Dever imprescritível: a antiga Igreja julgaria com severidade os pais “cristãos” de hoje que se consideram isentos de responsabilidades ao entregarem seus filhos às mãos de um mestre ou de uma instituição.

A família cristã é o meio natural em que se deve formar a alma da criança. Consistindo o fundamento principal de toda educação na imitação do adulto, trata-se, antes de tudo, de uma educação através do exemplo, mas esta não exclui um esforço consciente de pedagogia religiosa. Um tratado, por muito tempo negligenciado, de São João Crisóstomo contém proveitosos conselhos sobre a maneira pela qual os pais devem educar os filhos [4] (1). Aos pais, ao pai sobretudo” (à mãe para as moças [6]), cabe o cuidado de sua formação cristã: devem ensinar-lhes a História Sagrada, as belas histórias de Abel e Caim [7], de Esaú e Jacó [8], sob uma forma familiar, esforçando-se para aguçar-lhes a curiosidade:

Quando a criança houver retido bem esta narrativa, peça-lhe de outra vez: “Conte-me a história dos dois irmãos.” E se ela começar por Caim e Abel, interrompa-a e diga-lhe: “Não, não é esta que lhe peço, mas a dos outros irmãos que o pai abençoou.” Lembre-lhe em seguida alguns pormenores significativos, sem no entanto dar-lhe o nome dos irmãos. Quando ela houver contado bem toda a história, retome a continuação da narrativa... [9]

Por mais importante que seja este papel da família [10], ele é apenas subsidiário: o essencial da educação religiosa é representado pela iniciação doutrinal que o neófito recebe da Igreja antes de ser batizado. Morfologicamente, o cristianismo é uma religião de mistérios: caráter bem apagado hoje, em virtude de tudo o que subsiste, em nosso mundo paganizado, da cristandade medieval (em nossas igrejas, de portas abertas, não importa quem entre e um pagão pode assistir nela ao mistério eucarístico), mas que era bem claro na Antiguidade cristã (2).

A Igreja como tal, por intermédio de um delegado especialmente nomeado para isto, é que instruía o catecúmeno: desde as primeiras gerações cristãs, vemos em função os “mestres”, διδάσκαλοι [11] (3), encarregados deste ensino e investidos para seu desempenho de um carisma próprio. A instituição do catecumenato desenvolve-se progressivamente, à medida que se multiplicam os novos convertidos: tomou sua forma definitiva em Roma por vota de 180 (4); exige então uma longa prova, cuja duração está fixada em três anos, durante os quais é ministrado um ensino cuidadosamente programado. Muito cedo, parece, este deixa de ser confiado a “didáscalos” especializados: normalmente, padres são encarregados dele, embora caiba ao bispo dar o último retoque a esta preparação: os discursos catequéticos que conservamos de São Gregório de Nissa, de Cirilo de Jerusalém, de Teodoro de Mopsuéstia, etc., mostram a que notável nível os grandes bispos do século IV haviam elevado seu ensino. Santo Agostinho deu em seu tratado De Catechizandis rubibus (por volta de 405) [*] uma teoria da catequese cujo valor propriamente pedagógico iria, por muitos séculos, assegurar-lhe sucesso.

A formação religiosa, evidentemente, não terminava com o ato do batismo: em um sentido prosseguia, aprofundava-se ao longo da vida cristã: basta pensar no lugar que ocupam na liturgia as leituras e a pregação.

O CRISTIANISMO, RELIGIÃO DOUTA

Mas, se a educação cristã, no sentido estrito, não se origina no domínio da escola, nem por isso é lícito concluir que a Igreja se desinteressasse dela: para poder propagar-se e manter-se, para poder assegurar não apenas seu ensino, mas o simples exercício do culto, a religião cristã exige, imperiosamente, ao menos um mínimo de cultura de letras. O cristianismo é uma religião douta, e não poderia existir num contexto de barbárie.

Em princípio, como dizem os muçulmanos, é uma religião do Livro: apoia-se em uma Revelação escrita, os Livros santos da religião de Israel, que ela recolhe e reivindica como seus e aos quais se anexam os do Novo Testamento, à medida que são escritos e lhes é reconhecido o valor canônico de Γραφή. O caráter bíblico da prece litúrgica, o lugar que nela é dado às leituras, faz constante e necessária a presença do Livro: os árabes nômades do limes da Síria nem sempre têm altar em seu material de acampamento, mas vemo-los pôr o cálice sobre o livro aberto dos Evangelhos [12], Com o passar do tempo, mais o papel da coisa escrita se afirma na vida quotidiana da Igreja: a “tradição” (παράδοσις), cuja importância não cessa de crescer (5), não é simplesmente um conjunto de doutrinas, de interpretações e de usos transmitidos oralmente: encarna-se em sua literatura, logo abundante e variada. Há primeiro os regulamentos e prescrições disciplinares, tudo o que, mais tarde, constituirá o Direito canônico (suas origens vêm de. muito antes da época dos grandes concílios, no início do segundo século, com a Διδαχή ou Doutrina dos doze Apóstolos); depois a literatura espiritual, a apologética e, depois da aparição das heresias, a polêmica e a dogmática.

Assim, desde as mais imediatas exigências da piedade até as mais elevadas ambições do pensamento religioso, tudo contribuía para exigir dos cristãos um tipo de cultura e, por conseguinte, uma educação, em que o elemento letrado ocuparia um lugar de destaque, Pareceria natural que os primeiros cristãos, tão intransigentes em seu desejo de ruptura com um mundo pagão cujos erros e taras não cessam de denunciar, houvessem, por consequência, criado para seu uso uma escola de inspiração religiosa, distinta e rival da escola pagã do tipo clássico. Entretanto — e isto é notável — não o fizeram, pelo menos no quadro da civilização helenística e romana.

“Todavia, criar um ensino orientado para a vida religiosa e cujos programas, em particular, estariam centrados no estudo dos Livros Santos não era inconcebível: os cristãos do Império romano tinham seu modelo nas escolas judaicas que acabavam precisamente de ser organizadas sob suas vistas.

A ESCOLA RABÍNICA

No judaísmo da dispersão e, após a destruição do templo, no judaísmo simplesmente, a vida religiosa de Israel encarna-se na prática e supõe, por conseguinte, o conhecimento exato da Lei revelada. da Torâ(h) [13]. Como a Lei é uma lei escrita (até a tradição, originariamente oral, que a completa ou interpreta, vai ser, a partir do século II, redigida por escrito e codificada), a educação religiosa judia está baseada no estudo dos textos sagrados. E antes de tudo, no da língua sagrada: desde os primeiros séculos de nossa era, o uso da Bíblia grega vê-se abandonado (6) e o hebreu é a única língua na qual se pode fazer o estudo da Lei.

À educação familiar prescrita pela Lei [14], superpõe-se ou substitui-se um sistema de ensino coletivo no seio de escolas regularmente organizadas: o sistema alcança seu pleno desenvolvimento no Baixo Império e encerra então três graus consagrados primeiro à leitura da Bíblia, depois ao estudo dos comentários jurídico-exegéticos cada vez mais desenvolvidos da Mischna e do Talmud [15] (71).

Estas escolas foram estabelecidas por toda a parte [16]: a “casa da instrução”; bêt hamidrásch, a “casa do livro”, bêt sêfer, corresponde à sinagoga, a casa das preces, προσευχή: uma e outra, conjuntamente, representam a alma de toda a comunidade judia: “Por tanto tempo quanto a voz de Jacó soar nas sinagogas e nas escolas, as mãos de Esaú (compreendei, do Império romano perseguidor) não serão vitoriosas [17].” São cercadas de desvelado amor; o mestre, mesmo elementar, é respeitado, enobrecido pelo próprio prestígio da palavra divina que transmite à criança: “Deve-se ter tanta veneração pelo mestre quanto por Deus”, dirá o Talmud [18].

ESCOLAS CRISTÃS EM PAÍS BARBARO

Embora não possuam eles língua sagrada (as Escrituras foram traduzidas desde a Antiguidade para todos os idiomas), as mesmas causas teriam podido levar os cristãos a criar também escolas religiosas de tipo análogo. De fato, fizeram-no cada vez que implantaram a Igreja num país “bárbaro”, isto é, que não fora assimilado pela cultura clássica.

No Egito, na Síria e na Mesopotâmia, o cristianismo reavivou o egípcio e o aramaico, que, desde Alexandre, deixaram de ser línguas de cultura: provocou o florescimento de uma literatura e, por conseguinte, de um ensino, em copta e em siríaco, uma e outro estreitamente ligados às exigências da vida religiosa (8).

Melhor ainda, nos países que até então não haviam conhecido cultura escrita, o cristianismo fez nascer uma cultura, uma literatura e, antes de tudo, uma escrita nacionais, criadas inteiramente para seu próprio serviço. Principalmente para poder traduzir a Bíblia, fonte de toda a vida cristã, é que vemos nos séculos IV e V, Frumêncio (ou seus primeiros colaboradores) promover o etíope ao nível de língua literária, escrita, como Mesrob (se é procedente a atribuição tradicional) para o armênio e o georgiano (khoutsouri), talvez Qardutsat de Arrano para o huno, de Ulfila, como se sabe, para o germano e, muito mais tarde, no século IX, Cirilo e Método para o eslavo. Em todos esses domínios, o ensino desde que foi criado, teve um caráter essencialmente religioso. 

Nada há de semelhante, insisto nisso, na área própria da cultura greco-latina: durante toda a Antiguidade, os cristãos, salvo alguns casos excepcionais e limitados, não criaram escolas próprias: contentaram-se com justapor sua formação especificamente religiosa (assegurada, vimo-lo, pela Igreja e pela família) à instrução clássica que recebiam, do mesmo modo que os pagãos, nas escolas do tipo tradicional.

CRISTIANISMO E CLASSICISMO

Há nisso um fato surpreendente para o homem de hoje: estamos habituados a ver as igrejas cristãs reivindicar a escola confessional como um dos seus direitos essenciais, como uma das imediatas exigências de sua fé. Fato considerável, pois estabeleceu-se assim, no decorrer dos primeiros séculos, entre cristianismo e classicismo, um estreito nexo, cuja firmeza o historiador é levado a constatar. Alguns teólogos escandalizaram-se com isso e denunciaram este conluio com o helenismo como uma infidelidade, uma adulteração da pura essência do primitivo cristianismo. Deplorável ou providencial, o fato aí está: nascido na Palestina helenística, o cristianismo desenvolveu-se, tomou sua forma no seio da civilização greco-romana e recebeu dela uma indelével marca: mesmo pregado a chineses ou bantos, o Evangelho não pode esquecer que foi em primeiro lugar redigido em grego; este fato é para o cristianismo tão essencial quanto para o budismo haver aparecido na Índia ou para o islamismo ter sido o Alcorão formulado em árabe.

Nada mostra melhor a profundeza da síntese realizada ao cabo de quatro séculos, entre cristianismo e helenismo, que o exame das culturas cristãs surgidas nos países bárbaros. Não foram elaboradas completamente, a partir apenas dos dados da revelação, mas representam, tecnicamente, uma simples adaptação, ao meio linguístico local, da cultura dos cristãos gregos, já completamente impregnada de elementos clássicos.

Basta abrir um livro copta para constatar o extraordinário número de palavras gregas que se introduziram na língua dos cristãos do Egito. De fato, até às vésperas da invasão árabe, as escolas coptas permaneceram escolas bilíngues, onde se aprendia o grego, lado a lado com o idioma nacional [19]. A cultura siríaca presta-se a observações análogas: certamente, é muito semítica não apenas nas expressões, mas no espírito: morfologicamente, as escolas siríacas nos fazem pensar menos nas do mundo helenístico que nas escolas islamíticas, que elas, aliás, muito provavelmente auxiliaram a formar-se, Mas ela tem suas fontes de inspiração na tradição grega, e especialmente na escola da Antioquia: o mestre por excelência das escolas nestorianas é Teodoro de Mopsuéstia. E, com os Padres da Igreja grega, toda a tradição escolar clássica abre um caminho nas longínquas províncias: já encontramos este fato extraordinário: a gramática de Dionísio, o Trácio, este catecismo da escola helenística, foi traduzida, literalmente, para línguas muito diversas do grego, como o armênio ou o siríaco.

Mais que admirar-se, importa compreender: por que o cristianismo mediterrâneo se deu tão bem, na Antiguidade, com a escola pagã? Poder-se-ia observar, de início, que o cristianismo é antes de tudo uma religião que regula as relações a serem estabelecidas entre o homem e Deus, e não, em primeiro lugar nem essencialmente, um ideal da cultura, isto é um modo de adaptação da vida terrestre. E se é certo que toda doutrina profunda sobre o homem e sobre sua vida pretende, por uma natural fecundidade, explicitar pouco a pouco as consequências práticas implícitas em seus princípios e reagir assim sobre a civilização, tal processo não deixa de demandar longos séculos: as primeiras gerações cristãs não explicitaram mais pedagogia cristã que política cristã; o mais depressa possível, edificaram os alicerces fundamentais, os mais profundos alicerces, de toda a civilização cristã do porvir: uma dogmática, uma moral, uma disciplina canônica, uma liturgia.

Há mais, porém: mesmo uma religião, muito embora seja o tipo do movimento revolucionário consciente de suas ambições totalitárias, não pode escapar à influência, tanto mais profunda quanto mais inconsciente, do meio da civilização em cujo seio cresce. Há aí um fenômeno muito geral que eu havia proposto chamar a osmose cultural (9): o meio de civilização é como um fluido nutriente que banha os homens e as instituições e que os penetra, mesmo sem seu conhecimento, mesmo à sua revelia,

A adoção das escolas gregas ou latinas pelos cristãos é notável exemplo de tal osmose: precisamente porque viviam no mundo clássico, os cristãos dos primeiros séculos aceitaram como “natural”, evidente, a categoria fundamental do humanismo helenístico: o homem, como riqueza incondicionada, anterior a toda especificação. Poder-se-ia dizer (10): para poder ser cristão, é preciso antes de tudo ser um homem bem amadurecido no plano propriamente humano a fim de poder fazer um ato de fé e atos morais (é um fato, histórica e etnograficamente constatado: o cristianismo exige um mínimo de civilização). Ora, se a educação clássica representava uma admirável técnica para a formação de um tipo humano perfeitamente desenvolvido, por que, inutilmente, tentar algures elaborar outro sistema de educação? De qualquer modo, chega realmente um momento em que é necessário enxertar no homem propriamente humano o ramo propriamente religioso do Dom sobrenatural: de toda maneira, a invariabilidade técnica do humanismo tornava-o maravilhosamente apto a ser enxertado pelo ramo de ouro da ordem da graça; o homem culto segundo a norma clássica podia, por livre escolha, tornar-se orador ou filósofo, optar pela ação ou pela contemplação: uma opção complementar é-lhe doravante oferecida pelo anúncio da Boa Nova; pode também abrir-se para a graça, a fé, receber o batismo, tornar-se cristão.

OPOSIÇÃO CRISTÃ À CULTURA CLÁSSICA

Na ordem dos fatos, isto não se dava sem dificuldade; devo atrair aqui a atenção do leitor para uma distinção importante: adotar o sistema de educação clássica não era, entretanto, aceitar a cultura a que esta educação estava subordinada como a seu fim.

A oposição que separava esta cultura do cristianismo era profunda. Trata-se menos da longa simbiose que unia a literatura e arte clássicas ao velho politeísmo que do fato de, considerada em conjunto, esta cultura humanística apresentar-se como uma rival da nova religião, pois ela também pretendia resolver à sua maneira o problema do homem e da vida. Isto é evidente para a cultura filosófica: cada seita acreditava possuir realmente o segredo do Fim, do τέλος, da felicidade. Não é menos verdadeiro para a cultura oratória, estética: mostrei como o “culto das Musas” se tornara para os letrados o equivalente formal de uma verdadeira religião. Com efeito, as Renascenças bizantinas ou ocidentais aí estão para prová-lo, «e século em século: cada renovação da tradição clássica é acompanhada, na História, por um surto de neopaganismo. Na Antiguidade, a conversão ao cristianismo exigia, da parte de um homem culto, um esforço de renúncia, de superação: era-lhe necessário confessar a vaidade radical, admitir os limites [20] desta cultura de que, até então, ele havia vivido.

Os cristãos dos primeiros séculos estavam, de fato, perfeitamente conscientes desta oposição: Quid Athenae Hierosolymis... “Que há de comum entre Atenas e Jerusalém, entre a- Academia e a Igreja? [21]” Não era essa a opinião isolada de um rigorista como Tertuliano: basta folhear a literatura patrística para dar-se conta disto. Mesmo os mais “cultos” entre os Padres da Igreja, os mais fiéis herdeiros do pensamento e da arte clássicos, Santo Agostinho, por exemplo (11), concordam com a reação espontânea dos simples e dos ignorantes para condenar a cultura antiga enquanto ideal independente, rival da revelação cristã.

Entre tantos textos (tem-se apenas a dificuldade da escolha), reterei não os mais pitorescos, como o Sonho de São Jerônimo, que, diante do tribunal divino, se vê acusado de ser “ciceroniano e não cristão” [22], porém os mais autorizados, aqueles em que a própria autoridade da Igreja estava empenhada. Com efeito, o direito canônico, de fato, teve prescrições formais que se explicam por esta oposição entre cultura clássica e cristianismo.

É já o caso da Didascália Apostólica, texto antigo (terceiro século), cuja influência foi considerável e persistente no Oriente [23]; ela formula nitidamente a interdição: “Abster-se completamente dos livros pagãos”, acompanhando-a de considerações bem curiosas: Que deve um cristão fazer com estes erros? Visto que possui a Palavra de Deus, tem necessidade de mais alguma coisa? A Bíblia satisfaz não somente à vida sobrenatural, mas também às necessidades culturais: nam quid tibi deest in verbo Dei ut ad illas gentiles fabulas pergas! Deseja-se a história? Há os Livros dos Reis. Eloquência, poesia? Os Profetas! Lirismo? Os Salmos! Uma cosmologia? O Gênese! Leis, uma moral? A gloriosa Lei de Deus! Faz-se mister rejeitar energicamente todas essas escrituras estrangeiras e diabólicas: ab omnibus igitur alienis et diabolicis scripturis fortiter te abstine [24].

O Ocidente também assistiu a semelhantes rigorismos e manteve-os, no princípio senão para todos os cristãos, pelo menos para aquele que, investido na plenitude do sacerdócio, deve dar o exemplo da perfeição, o bispo: deve abster-se totalmente de ler os livros pagãos, e não se ocupar dos heréticos a não ser pro necessitate et tempore, prescrevem os Estatutos da Igreja antiga [25] (por muito tempo designados como Cânones de um pseudo quarto concílio de Cartago; trata-se, na realidade — pensa-se geralmente hoje — de uma compilação arlesiana das proximidades do ano 500); a interdição será retomada por Isidoro de Sevilha [26] e em pleno século XII pelo Decreto de Graciano [27]: o direito canônico manteve-a, em suma, até nossos dias (12).

O CRISTIANISMO ACEITA A ESCOLA CLÁSSICA

Pouco interessa discutir aqui o conjunto dos testemunhos relativos a esta interdição e averiguar a que prática real, no decorrer dos séculos, ela de fato correspondeu: refere-se apenas à cultura no sentido generalizado da palavra, isto é, do modo de vida intelectual do adulto, não da cultura preparatória, da educação (13).

Em face desta, a atitude da Igreja antiga foi completamente diversa: perfeitamente consciente da necessidade que o caráter “douto”, letrado, da religião cristã impunha ao crente, de ter acesso à cultura literária, a Igreja não viu outra solução senão deixar a juventude formar-se nas escolas do tipo helenístico tradicional. Teoria e prática estão aqui perfeitamente de acordo.

A distinção que propus acha-se muito nitidamente consignada nos textos: desta maneira [**], São Jerônimo, bem integrado no espírito do direito canônico, censura os padres que, negligenciando os Evangelhos e os Profetas, perdem seu tempo lendo autores profanos; acusa-os do crime de fazer voluntariamente o que, no caso das crianças, é uma necessidade prática da educação, id quid in pueris necessitatis est crimen in se facere voluntatis [28].

As críticas dirigidas à cultura profana atingiam de fato a escola, tão profundamente vinculada, por sua tradição, ao paganismo: uma vez ultrapassado o silabário, a criança aprendia a ler nas listas de nomes de deuses; os textos clássicos não eram tirados de poemas onde a impiedade disputava com a imoralidade? E no entanto ninguém entre os cristãos tem a idéia de que a criança poderia ser educada de outro modo nem ousa interditar-lhe o acesso à escola pagã.

Tomemos um polemista tão violento, tão extremista quanto Tertuliano, Ninguém sentiu nem analisou melhor o caráter idolátrico e imoral da escola clássica: até o ponto de proibir o ensino aos cristãos como uma profissão totalmente incompatível com a fé, do mesmo modo que a de fabricante de ídolos ou a de astrólogo. Mas, como é inconcebível renunciar aos estudos profanos, sem os quais os estudos religiosos se tornariam impossíveis (é realmente necessário, para começar, aprender a ler), admite, como uma necessidade, que a criança cristã frequente, como aluna, a mesma escola que proíbe ao mestre. Somente a este cabe reagir com conhecimento de causa, não se deixar penetrar pela idolatria que veiculam o ensino e até o calendário escolar: deve comportar-se como alguém que, em conhecimento de causa, recebe veneno mas se abstém de bebê-lo [29].

E esta solução não é própria do tempo de Tertuliano, quando os cristãos não passam de uma minoria enquistada no seio do Império perseguidor. Nada mudou em pleno século IV, quando o Império, na pessoa do imperador, se converteu oficialmente, na Ásia Menor, onde a massa da população se tornou cristã. A criança, o adolescente cristão será educado, como os pagãos, na mesma escola clássica; receberá sempre o “veneno” que são Homero, os poetas, o cortejo insidioso das figuras da Fábula, as túrbidas paixões que elas patrocinam ou encarnam. Conta-se, para imunizá-la, com o contraveneno representado pela educação religiosa que lhe é dada, fora da escola, pela Igreja e pela família: sendo sua consciência religiosa devidamente esclarecida e formada, a criança saberá efetuar as correções e as distinções necessárias.

É o que mostra, quando bem compreendido, o célebre tratado de São Basílio sobre a leitura dos autores profanos [30]: não vamos buscar nele — como muitos leitores, desde a Renascença até nossos dias, se esforçaram por fazê-lo — um verdadeiro tratado sobre a utilidade do estudo dos clássicos pagãos (14). Seria antes uma homilia sobre o perigo que representam e a maneira de triunfar deles, seja interpretando os poetas à luz da moral evangélica, seja fazendo em seu repertório uma severa seleção. Mas não se trata aqui de uma depuração dos programas sugeridos ao educador cristão: São Basílio dirige-se a jovens, seus próprios sobrinhos, que concluem seus estudos; procura simplesmente, como o queria Tertuliano, formar-lhes o julgamento cristão, capacitá-los a tirarem o melhor partido de sua erudição: a formação cristã adita-se a uma educação humanista que ela não instruiu, não submeteu, previamente, a suas exigências próprias.

OS CRISTÃOS NO ENSINO CLÁSSICO

Fato notável, a Igreja não seguiu Tertuliano na rigorosa interdição que ele formulou com relação ao magistério. Por volta de 215, ou seja, ao tempo mesmo em que Tertuliano escrevia seu De Idolatria (211-212), Santo Hipólito de Roma redigia, sem dúvida para o uso de sua comunidade cismática, a Tradição Apostólica, que devia obter, na Síria, no Egito e até na Etiópia, sucesso tão duradouro: ele também cataloga as profissões incompatíveis com a vocação de um cristão; fato notável, ele não se decide a tratar os professores com a mesma severidade que o proxeneta, o histrião ou o fabricante de ídolos: “Se alguém, diz ele [31], ensina às criancinhas as ciências deste mundo, seria melhor que renunciasse; entretanto, se não tem outro meio de vida, escusar-se-lhe-á.” As coleções canônicas derivadas de Hipólito conservam esta tolerância [32] ou a dilatam ainda mais [33].

Não há dúvida ter sido esta a atitude normal da Igreja; com efeito, muitos cristãos ensinaram nas escolas de tipo clássico. O primeiro, cronologicamente, que conhecemos com certeza, é o grande Orígenes, que, com dezessete anos, em 202-203, abriu uma escola de gramática, para prover às necessidades de sua família que, o martírio de seu pai, Leônidas, seguido da confiscação dos bens, deixara sem recursos [34]. Foi tão pouco desprestigiado, em razão disto, pelas autoridades eclesiásticas, que um ano mais tarde seu bispo, Demétrio, lhe confiava o ensino oficial da catequese [35].

Meio século mais tarde, os cristãos estreiam no ensino superior: em 264, um deles, Anatólio, o futuro bispo de Laodicéia, é chamado por seus concidadãos de Alexandria para ocupar a cátedra ordinária de filosofia aristotélica [36], Aproximadamente no mesmo tempo, em 268, encontramos na Antioquia um padre, Malquião, que o sacerdócio não impede de dirigir uma escola de retórica à maneira helênica [37].

Com o passar do tempo, tais casos tornam-se mais numerosos: no século IV, encontram-se, frequentemente, cristãos em todos os graus de ensino, desde os humildes mestres-escolas [38] e os gramáticos [39] até às mais altas cátedras da eloquência: a perseguição de Juliano, em 362, encontrará dois cristãos, um, Proherésio, ocupando a de Atenas, o outro, Mário Vitorino, a de Roma [40].

A LEI ESCOLAR DE JULIANO, O APÓSTATA

Este curioso episódio merece um pouco mais de atenção: é a primeira perseguição escolar da qual os cristãos foram vítimas, mas seu caráter particular lança uma viva luz na questão que estudamos aqui. Por uma lei de 17 de junho de 362, o imperador Juliano interditava o ensino aos cristãos [41]. O próprio texto da lei falava simplesmente em submeter o exercício da profissão pedagógica à autorização prévia das municipalidades e à sanção imperial, sob pretexto de assegurar a competência e a moralidade do pessoal docente. Mas, por uma circular anexa [42], Juliano precisava o que se devia entender por moralidade. Os cristãos que explicam Homero e Hesíodo sem acreditar nos deuses que estes poetas põem em cena são acusados de falta de franqueza ou de honestidade, pois que ensinam algo em que não acreditam. São intimados a apostatar ou a deixar seu ensino.

Pode-se dizer, sem paradoxo, que, por esta medida, Juliano criava a primeira escola confessional, investida de uma missão de propaganda religiosa. É admirável ver em que atmosfera de perfeita neutralidade se havia desenvolvido o alto ensino nesta segunda metade do século IV. Os mestres são tanto cristãos como pagãos e é seu valor pedagógico que atrai a eles os estudantes, sem distinção de crença. Um pagão convicto como Eunápio orgulha-se de haver sido aluno do cristão Proherésio [43]; São João Crisóstomo, educado embora numa atmosfera bem cristã por sua piedosa mãe Antusa, nem por isso deixou de seguir os cursos do pagão Libânio [44]; e não parece que nem um nem o outro haja corrido o risco de ver-se convertido...

Juliano, ao contrário, quis instilar no ensino clássico uma virulência. anticristã completamente nova [***], valorizando, ao mais alto grau, o liame originário que unia paganismo e classicismo. Para designar a religião dos deuses, ele se serve do termo “helenismo”, identificando assim paganismo e cultura. Os cristãos, para ele, são bárbaros: por isto os chama, e quis talvez forcá-los a chamarem-se, oficialmente, “galileus” [45]. Com ele a escola, que continuava francamente aberta às criancas cristãs (mas estas, desde então, podiam, conscientemente, frequentá-la?), tornava-se um instrumento de reconvenção pagã e a religião cristã era retrotraída à sua “barbárie” primeira.

A reação dos cristãos foi bastante violenta, contra uma medida por eles considerada como vexatória e humilhante [46]; reação muito engenhosa também: intimados pelo imperador a contentarem-se com “ir às suas igrejas de galileus para ali comentar Mateus e Lucas [47]”, recusaram-se a ser assim excluídos do benefício da tradição letrada e impuseram-se como dever improvisar textos de estudo, clássicos de substituição. Esta foi a obra dos dois Apolinários, o pai e o filho, dois professores alexandrinos que tinham vindo tentar fortuna na Laodicéia da Síria, onde seu zelo pela literatura causou sua momentânea excomunhão. Trataram eles de adaptar o Pentateuco ao estilo homérico, os livros históricos do Antigo Testamento ao estilo dramático e assim por diante, lançando mão de todos os gêneros e de todos os metros, da comédia de Menandro à ode pindárica. Quanto aos escritos do Novo Testamento, foram arranjados em diálogos imitados de Platão [48].

Vê-se o paradoxo: forçados de algum modo a criar um ensino estritamente cristão, recusam-se a isso e logram manter-se sobre o terreno da cultura clássica. De resto, a tentativa dos Apolinários não teve prossecução: desde 11 de janeiro de 364 [49], a interdição editada por Juliano é revogada, os mestres cristãos reassumem suas cátedras e tudo recomeça como antes, acomodando-se a Igreja perfeitamente à educação clássica.

ESCASSA INFLUÊNCIA CRISTA NA ESCOLA

Poder-se-ia pensar que, quando o número dos mestres e dos alunos cristãos se tornou relativamente preponderante, a escola se viu de fato cristianizada (15). Bem vejo, por outro lado, que determinado texto canônico, infelizmente difícil de datar (IV, V, VI século?), obriga o gramático cristão a confessar diante dos seus alunos que “os deuses dos gentios não passam de demônios [50]” e que não há outro Deus além do Pai, o Filho e o Espirito Santo; melhor ainda, parece encorajá-lo a “fazer apostolado” (para dizer no jargão moderno): “Ensinar os poetas, está bem, mas se puder comunicar a seus alunos o teor da fé, só terá com isto maior mérito (16).”

Pode-se acreditar que estes conselhos foram às vezes seguidos, pois Juliano o Apóstata censura os mestres cristãos por esbulharem os poetas como Homero, acusando-os de impiedade, de loucura ou de erros [51], mas não parece, a julgar pelos documentos que nos restam, que a pedagogia quotidiana haja recebido uma marca da nova religião. Atente-se no caderno de um escolar cristão do Egito do século IV [52]: nada o distingue de um manual helenístico do sexto ou sétimo séculos anteriores [53]; são sempre as mesmas listas de nomes mitológicos, as mesmas sentenças ou anedotas — morais ou escatológicas, O único traço cristão, ao lado da invocação “Bendito seja Deus” na primeira folha, é a cruz monogramática cuidadosamente debuxada no início de cada página. Não é este um indício desprezível: podemos supor que, desenhando este símbolo piedoso, a criança fizesse então uma breve prece: “Santa Cruz, protege-me! (17)”. Mas esta sorte de consagração geral não basta para penetrar profundamente de espirito cristão a atmosfera escolar. E um documento como este não é único: no século V, no VI, as crianças cristãs do Fayium continuam, sem escandalizar ninguém, aprendendo a escrever copiando listas de nomes mitológicos: Europa, Pasífae [54].

A Igreja não organizou (veremos, no capítulo seguinte, as exceções a esta regra) ensino propriamente eclesiástico, nem mesmo para as crianças cuja responsabilidade lhe incumbia particularmente, como os órfãos educados a expensas da comunidade [55] ou os jovens leitores cuja voz angélica é um dos esplendores da liturgia e que veremos, pelo menos a partir do século IV, regularmente integrados na hierarquia clerical (18).

É o que realmente mostra um curioso episódio da vida de Santo Atanásio (19): notado, ainda criança, pelo bispo Alexandre, que o surpreendeu representando, por brincadeira, mas com uma unção precoce, as funções episcopais no meio de um grupo de crianças, é destinado pelo bispo ao clero; mas é preciso, em primeiro lugar, que haja feito o mínimo de estudos necessários. Sem dúvida, se houvesse uma escola clerical, ele teria sido enviado para lá; enquanto a criança é enviada aos pais “para que eles a eduquem tendo em vista a Igreja”, fazem-na então cursar suas classes primárias, aprender a preciosa estenografia, receber alguns rudimentos de gramática, depois é reenviada ao bispo junto a quem doravante ocupa as funções de acólito [56].

Não vejo mais que um caso a assinalar, absolutamente excepcional, em que aparece o desejo de criar uma escola confessional cristã. Por volta de 372, o imperador Valente exilou para Antínoe, no interior da Tebaida, por resistência à sua politica ariana, dois padres nicenos de Edessa. Tiveram a dolorosa surpresa de constatar que os cristãos (de modo diferente da sua pátria de origem) constituíam ali apenas uma minoria perdida na massa dos pagãos. Como converter estes infiéis? Protógenes abre uma escola elementar, onde ensina a escrita e a estenografia. Mas, pedagogo por apostolado, tem o cuidado de escolher seus textos para ditado ou declamação nos Salmos de Davi ou no Novo Testamento. Catequiza assim seus alunos, que sua afeição e os milagres de Eulógio cedo acabarão por converter [57].

Basta ver a admiração e a complacência de Teodoreto ao contar-nos esta história para sentir tudo que, a seus olhos, ela encerrava de excepcional. Seria preciso fazer de Protógenes o criador do ensino religioso, no sentido moderno da palavra (unindo formação e propaganda religiosas ao trabalho propriamente escolar), se não nos lembrássemos de que ele vinha de Edessa, um dos principais centros da cultura siríaca, onde um tal tipo de escola, sabemo-lo, era normal. E sobretudo sua iniciativa, limitada a um país perdido no interior do Alto Egito, parece haver sido sem futuro e sem imitadores.

ESCOLAS SUPERIORES DE TEOLOGIA

Não há, pois, normalmente, escola cristã para os graus primário e secundário do ensino. Vemos aparecer, e isto desde meados do século II, escolas superiores de teologia cristã, mas esta instituição não chegará a lançar na Igreja raízes profundas, nem a perpetuar-se,

O lugar eminente outorgado pelo cristianismo ao ensino doutrinal conduzia este, naturalmente, a desenvolver-se num plano tecnicamente mais elevado em que a Verdade revelada era objeto de investigação mais profunda, de apresentação mais sistemática, de considerações mais detalhadas que na simples catequese. O movimento gnóstico é a forma mais visível que tomou esta aspiração a uma Ciência sagrada, que pôde ser, para o cristão, o equivalente daquilo que a alta cultura filosófica era para os pagãos cultos.

De fato, foram mestres heréticos, parece, que, em primeiro lugar, deram o exemplo de tal ensino, mas logo tiveram êmulos entre os ortodoxos, como o mostra o caso dos Apologistas, e notadamente do mais célebre entre eles, Justino, o Mártir. Apresentavam-se, de bom grado, ornados com o titulo de filósofos [58], vestindo seu traje [59]: Eusébio diz-nos de Justino que ele ensinava “com roupa (ou: com ares) de filósofo [60]; abriram uma verdadeira escola (διδασκαλειον [61]), de endereço conhecido [62]. Eram tão perfeitamente filósofos que se chocavam com a hostilidade, de certo modo profissional, dos seus rivais pagãos, dos predicadores de tendência cínica, como este Crescêncio, que tanto fez São Justino sofrer [63].

Entre os auditores de Justino havia cristãos de nascimento, como Evelpisto, que aparece nos Atos do seu martírio : Justino não se contentava, pois, com conferências de propaganda dirigidas aos pagãos de boa vontade, mas devia ministrar um ensino profundo, de grau superior. Notar-se-á que, diferentemente dos catequistas, estes Apologistas não são mandatários da hierarquia: são leigos que ensinam sob sua própria responsabilidade, “filósofos cristãos”, não doutores da Igreja (20).

SÉCULO III: ROMA E ALEXANDRIA

Este tipo de ensino durou até o século III: sob esta forma aparece-nos o ensino de um Clemente de Alexandria ou o de um Hipólito de Roma: os discípulos deste homenagearam-no com uma estátua que o representava como um filósofo ensinando, sentado em um trono (que tem gravada uma lista de suas obras e a tábua de seu cômputo pascal). Esse monumento não é único (21): os monumentos funerários cristãos anteriores à paz constantiniana representam comumente o defunto nas atitudes de um “mestre”, de um filósofo ou de um letrado, meditando ou comentando o Livro sagrado.

São sempre, contudo, iniciativas de caráter privado. Com base nos testemunhos de Eusébio [65] e de Filipe de Sida [66], imaginou-se facilmente a existência, em Alexandria, de uma Escola das Letras Sagradas, que durante dois séculos teria tido sucessão regular (διαδοχή) de mestres qualificados, como a das seitas filosóficas gregas. Na realidade, se Alexandria foi, de Filão o Judeu a São Cirilo, um incomparável meio de intensa atividade doutrinária, judia e depois cristã, somente no tempo de Orígenes teve escola oficial de teologia.

Aos dezoito anos, Orígenes é encarregado, pelo bispo Demétrio, do ensino oficial da catequese, que havia sido completamente desorganizado pela perseguição [67]. Bem depressa, este ensino obteve grande sucesso: Orígenes teve, para consagrar-se inteiramente a ele, de abandonar o. professorado profano [68]; ou, antes, diante das exigências de um público sempre mais amplo e de um nível cultural mais elevado, e talvez também sob a influência de Hipólito [69], articulou sua escola: confiando a um dos seus primeiros discípulos, Heracla [70], o ensino normal da catequese oficial, sobrepôs-lhe uma classe superior em que ele ministrava um alto ensino exegético e teológico [71]. Podemos, sempre graças a Eusébio, fazer alguma idéia desta Escola de Altos Estudos Religiosos: Orígenes adaptava-lhe engenhosamente os métodos característicos do ensino superior de tipo helenístico. Na base, uma sólida formação secundária, cujo programa sempre se define pelo ciclo das artes liberais, literárias e matemáticas; era a necessária preparação para o estudo da filosofia que facilitava o caminho às cogitações propriamente religiosas, fundadas no estudo aprofundado das Escrituras [72].

Mas esta iniciativa, tão original e tão fecunda, teve breve existência: ao cabo de quinze anos, por volta de 230-231, Orígenes é deposto e expulso de Alexandria, por motivo de dissenções disciplinares e doutrinárias com o bispo Demétrio [73]. Após sua partida, a Escola dos Altos Estudos desaparece: subsiste apenas a escola catequética, o ensino da catequese, orientado ainda por Heracla [74], e depois, após a elevação deste ao trono episcopal, por outro aluno de Orígenes, Dionísio [75].

Banido de Alexandria, Orígenes encontrou um refúgio definitivo em Cesaréia da Palestina, onde reinicia seu ensino com tanto sucesso quanto em Alexandria, como o mostram os exemplos de São Gregório o Taumaturgo e do irmão deste, que ele desviou da carreira jurídica e reteve junto de si [76]. Ali permaneceu ele quase uns vinte anos, até a perseguição de Décio (250); mas, se após sua morte sua esplêndida biblioteca subsistiu e fez de Cesaréia, por muito tempo, um admirável centro de estudos, não parece que sua escola, como instituição, tenha perdurado depois de seu martírio (22).

DESAPARECIMENTO DESSAS ESCOLAS

O exemplo deixado pelos Apologistas e por Orígenes não foi seguido. Sem dúvida, os altos estudos religiosos desenvolveram-se cada vez mais, sobretudo depois da paz constantiniana. A exegese e a teologia tornam-se as disciplinas características de uma nova cultura, essencialmente cristã, que vai caracterizar a civilização do Baixo Império — e de Bizâncio. Não apenas os membros do clero, mas todos os fiéis verdadeiramente cultos anexam à sua atividade profana uma ação religiosa, que muitas vezes se torna preponderante. Todos então são teólogos, a começar pelo soberano, quer se chame Constantino, Justiniano ou Chilperico [77]; e mesmo com intemperança: os doutores ortodoxos muito terão de fazer para reprimir este frenesi de teologia, em que se atropelam as necessidades culturais da época e se insinuam as piores tradições herdadas do humanismo helenístico: a erística do filósofo e a verbosidade do orador.

Importa, porém, ressaltar que esta cultura de inspiração cristã, alimentada por prodigiosa floração literária e oratória, não é preparada e sustentada por um ensino correspondente. Não há mais escolas superiores de religião. Os fiéis não recebem outra formação senão a da catequese elementar e da predicação. O clero não é formado nas escolas, mas pelos contatos pessoais com o bispo e os sacerdotes mais idosos, no seio do clero local a que se encontra ligado, frequentemente muito cedo, desde a infância, na qualidade de leitor.

Assim, do ponto de vista das instituições pedagógicas, há, do século III ao século IV, não progresso, mas regressão formal. Quando São Jerônimo, por exemplo, nos diz que, no decorrer de suas viagens da juventude pelo Oriente, ouviu as aulas de Apolinário em Antioquia, de Dídimo, o cego, em Alexandria [78], de Gregório de Nazianza em Constantinopla [79], deve-se entender que se trata de aulas particulares, sem caráter professoral, de relações pessoais de homem para homem.

Conhecemos bem a admirável obra realizada pelos grandes bispos dos séculos IV e V, como sejam, por exemplo, São Basílio, em Cesaréia, São João Crisóstomo, em Constantinopla, Santo Ambrósio, em Milão, e Santo Agostinho, em Hipona. Não se vê que tenham criado algo que possa fazer pensar em uma escola cristã. Puderam realizar para si mesmos um notável tipo de cultura cristã, propagá-lo em torno de si pelo exemplo e pela pregação, fazer-lhe inclusive a teoria, como é o caso de Santo Agostinho (23), definir-lhe os objetivos, os quadros e os métodos: não procuraram alicerçá-lo num sistema de educação adrede. Formados, eles próprios, na escola clássica, cujas lacunas e perigos avaliavam perfeitamente, achavam natural acomodarem-se-lhe.

Ainda no século VI, ao tempo de Justiniano, é com espanto mesclado de admiração que os ocidentais de passagem por Constantinopla ficam sabendo que existem em Nisibe, em território siríaco, “escolas regularmente institucionalizadas, em que a Sagrada Escritura é objeto de ensino organizado como só existe, no Império romano, para as disciplinas profanas, como a gramática e a retórica [80]”.


Notas:

[1] São Clemente de Roma, Primeiro Epístola aos Coríntios, 21, 8; 6; cf. 62, 3.  
[2] São Paulo, Epístola aos Efésios, 6, 4; Epístola aos Colossenses, 3, 21.
[3] Deuteronômio (Velho Testamento), 6, 2; 7; 20.
[4] São João Crisóstomo, Da Vanglória e de como os Pais devem educar os Filhos (Migne, Patrologie Grecque, t. 47), 19 s.
[5] Idem 32, 1.
[6] Idem 90, 1. 
[7] Idem, 39, 5s.
[8] Idem, 43, 5 s.
[9] Idem, 45, 1-2. 
[10] Idem, 79, 3; 80, 1.
[11] Atos dos Apóstolos (Novo Testamento), 13, 1; São Paulo, Primeira Epistola aos Coríntios, 12, 28; 31; São Paulo, Epístola aos Efésios, 4, 12; A Doutrina dos Doze Apóstolos (eds. dos Padres Apostólicos), 13, 2; 15, 2; Epístola de Barnabé, I, 8; 4, 9; Hermas o Pastor, Visões, III, 5, 1; Comparações, IX, 15, 4.
[*] O tratado de Santo Agostinho Como catequisar os que ignoram os rudimentos da fé (escrito para um simples diácono, Deogratias) não se situa no mesmo plano que as Catequeses de Cirilo ou de Teodoro, que são instruções dirigidas pelo bispo preparando diretamente os candidatos ao batismo. Apesar de se intitular Discurso catequético, o Logos de Gregório de Nissa já é algo bem diferente, mais tratado que homilia. Sobre as Homilias catequéticas de Teodoro de Mopsuéstia, ver a Introdução de R. Devrcesse, Vaticano, 1949 (Studi e Testi, tomo 145).
É difícil, voltando a Santo Agostinho, determinar quais são os Sermões propriamente catequéticos que nos foram conservados: ver finalmente TH.-A. Auper, Note sur les cathéchèses baptismales de saint Augustin, em Augustinus Magister, Paris, 1954, tomo 1, p. 151-160 (conserva apenas Sermão 363, e Dionísio 3).
[12] Bar Hebreu, Nomocanos (A. Mai, Scriptorum Veterum Nova Collectio, t. X. Roma, 1838), I, 4.
[13] Josefo, Contra Ápio, I, 12; IX. 19.
[14] Deuteronômio (Velho Testamento), 6. 2; 7; 20.
[15] Tratado Pirke Aboth (Talmud da Babilônia, IV, 9), 6, 5.
[16] Tratado Baba Bathra (Talmud da Babilônia, IV, 3). 21a. 
[17] Pesikta (fólio da ed. Sal. Buber, Lyck, 1868), 121a.
[18] Tratado Pirke Aboth (Talmud da Babilônia, IV, 9), 4, 15.
[19] H. R. Hall, Coptic and Greek Texts of the Christian Period from Ostraka, Stelae, etc. in the British Museum, 14222.
[20] Cf. O Livro dos Salmos (Velho Testamento), À 118 (LXX), 96.
[21] Tertuliano, Sobre o Argumento de Prescrição, 7.
[22] São Jerônimo, Correspondência, 22, 30.
[23] Cf. Constituições Apostólicas (F. X. Funk, Didascalia et Constitutiones apostolorum), I , 6.
[24] O Ensinamento dos Apóstolos (F. X. Funk, Didascalia et Constitutiones apostolorum), I, 6, 1-6. 
[25] Estatutos da Igreja Antiga (ed. Morin de São Cesário de Arles, t. II), 16.
[26] Isidoro de Sevilha, Livro das Sentenças, III, 3.
[27] GRACIANO, Decreto, I, 37.
[**] Orígenes, diz-nos Eusébio, julgava a profissão de gramático, que anteriormente exercera, incompatível com a função de catequista que lhe confiara o bispo de Alexandria (História Eclesiástica, VI, 3, 8).
[28] São Jerônimo, Correspondência, 21, 13, 9.
[29] TERTULIANO, Sobre a Idolatria, 10.
[30] São Basílio de Cesaréia, Sermões (Aos Jovens sobre a Leitura dos Autores Profanos), XXXII. 
[31] São Hipólito de Roma, A Tradição Apostólica, 16.
[32] O Testamento de Nosso Senhor Jesus Cristo, II, 2; Cânones (árabesdo Pseudo-Hipólito, 12. 
[33] Cf. Constituições Apostólicas (F. x. Funk, Didascalia et Constitutiones apostolorum), VIII, 32, 7-13. 
[34] Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica, VI, 2, 15.
[35] Idem, VI, 3, 3;
[36] São Jerônimo, Dos Homens Ilustres, 73; Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica, VII, 32, 6. 
[37] Idem, 29, 2. 
[38] E. Diehl, Inscriptiones Latinae Christiane Veteres, 717-723.
[39] Idem, 725-726. 
[40] Eunápio, Vida de Proherésio (Vida dos Sofistas, ed. Boissonade), 493; São Jerônimo, Crônica, 363 p.; SANTO AGOSTINHO, As Confissões, VIII, 5 (10).
[41] Código Teodosiano, XIII, 3, 5.
[42] Juliano o Apóstata, Cartas (ordenação da ed. Bidez-Cumont, paginação da ed. Spanheim de São Cirilo de Alexandria), 61c. 
[43] Eunápio, Vida de Proherésio (Vida dos Sofistas, ed. Boissonade), 475.
[44] Sócrates o Escolástico, História Eclesiástica, III, 11.
[***] Há, contudo, um precedente: o imperador Maximino Daia havia prescrito aos professores das escolas primárias que fizessem os alunos estudar e decorar os Atos de Pilatos, refertos de blasfêmias contra Cristo (Eusébio, História Eclesiástica, IX, 5, 1; 7, 1).
[45] São Gregório de Nazianza, Discursos (Migne, Patrologie Grecque, t. 35-38), IV, 76. 
[46] Cf. Juliano o Apóstata, Cartas (ed. Bidez-Cumont e ed. Spanheim), 61a.
[47] Juliano o Apóstata, Cartas (ed. Bidez-Cumont e ed. Spanheim), 61c, 423 D. 
[48] Sócrates o Escolástico, História Eclesiástica, III, 16; Sozômeno, História Eclesiástica, V, 18.  
[49] Código Teodosiano, XIII, 3, 6.
[50] Cânones (árabesdo Pseudo-Hipólito, 12. 
[51] JULIANO O APÓSTATA, Cartas (ed. Bidez-Cumont e ed. Spanheim), 61c, 423 D. 
[52] P. Collart, Les Papyrus Bouriant (Paris, 1926), 1.
[53] Publications de la Societé Royale Egyptienne de Papyrologie, Textes et Documents, II, O, Guéraud, P. Jououet, Un Livre d'Ecolier du IIIe. siècle avant Jesus-Christ. 
[54] C. Wessely, Studien zur Palaeographie und Papyruskunde, II, LVI.
[55] O Ensinamento dos Apóstolos (F. X. Funk, Didascalia et Constitutiones apostolarum), IV. — 
[56] Rufino de Aquiléia, História Eclesiástica, 15. 
[57] Teodoreto, História Eclesiástica, IV, 18, 7-14.
[58] São Justino o Mártir, Diálogo com Trifon, I, 1; TACIANO, Apologia, 32; Atenágoras, Apologia pelos Cristãos; Hermias, Motejo dos Filósofos Pagãos.
[59] São Justino o Mártir, Diálogo com Trifon, I, 2; TERTULIANO, Sobre o Manto.
[60] Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica, IV, 11, B. 
[61] Santo Irineu de Lyon, Contra as Heresias, I, 28, 1. 
[62] São Justino o Mártir, Atos de seu Martírio (ed. Franchi de Cavalieri, Studi e Testi, t. VIII, 2), 3, p. 34.
[63] Apologias, II, 3; TACIANO, Apologia, 19.
[64] São Justino o Mártir, Atos de seu Martírio (ed. Franchi de Cavalieri, Studi e Testi, t. VIII, 2), 4, p. 35. 
[65] Eusésio pe Cesaréia, História Eclesiástica, V, 10, 1; VI, 6. 
[66] Migne, Patrologie Grecque, 39, 229.
[67] Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica, do 3, 3. 
[68] Idem, VI, 3, 8. 
[69] Cf. São Jerônimo, Dos Homens Ilustres, 61. 
[70] Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica, VI, 3, 1. 
[71] Idem, VI, 15. 
[72] Idem, VI, 18, 34. 
[73] Idem, VI, 19, 15-19; 23; Fócio O Patriarca, Biblioteca (Migne, Patrologie Grecque, t. 103 ou 104), 118.  
[74] Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica, VI, 296, 1. 
[75] Idem, VI, 29, 4; São Jerônimo, Dos Homens Ilustres, 69. 
[76] Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica, VI, 30, 1; São Jerônimo, Dos Homens Ilustres, 65; São Gregório O Taumaturgo, Panegírico de Orígenes (Migne, Patrologie Grecque, t. 10), 6.
[77] São Gregório de Tours, História dos Francos, V, 44.
[78] São Jerônimo, Correspondência, 84, 3, 1. 
[79] Idem, 50, 1; 52, 8; Comentário a “Isaias” (Migne, Patrologie Latine, t. 24), III, ad 6, 1.
[80] Júnilo Africano, Instituta regularia divinae legis, Pr.: CASSIODORO, Instituições, I, pr. 1.


Notas Complementares:

(1) São João Crisóstomo, Da vanglória e de como os pais devem educar os filhos: a autenticidade deste tratado, contestada sem boas razões por C. OUDIN (Commentarius de scriptoribus ecclesiae antiquis, Leipzig, 1722, I, 740), foi reivindicada por S. HAIDACHER, Des heiligen Johannes Chrysostomus Biichlein úber Hojffart und Kindererzichung..., Friburgo, 1907, e parece-me estabelecida por J. HILLARD, numa tese de Paris, que a morte do autor não permitiu fosse sustentada e que, até o momento, não foi publicada; cf., entrementes, a edição F, SCHULTE, Münster, 1914,

(2) O cristianismo como religião de mistérios: seria preciso falar aqui na disciplina do arcano (as verdades da fé não devem ser divulgadas sem precauções, a participação nas cerimônias é reservada aos iniciados), mas esse assunto delicado ainda não foi totalmente esclarecido: ver as notas de E. VACANDARD, ap. Dictionnaire d'Histoire et de Géographie ecclésiastique, III, c. 1497-1513, e G. BARDY, Dictionnaire de Droit canon, I, c. 913-922; O. PERLER — TH, KLAUSER, Reallexikon fiir Antike und Christentum, t. I, col. 667-676. Como sugere M. G. Hocquard, num trabalho ainda inédito que gentilmente me comunicou, trata-se menos de uma “disciplina” de ordem pedagógica ou prudencial do que de uma prática fundada em doutrina: “Só a iluminação batismal iniciava nos mistérios assim reservados, inacessíveis (de fato, realmente) sem serem, entretanto, secretos”.

(3) Sobre as “didascálias” da igreja primitiva, cf. A. HARNACK, Die Mission und Ausbreitung des Christentums in den ersten drei Jahrhunderten, I4, Leipzig, 1923, ps. 332-377.

(4) Sobre o desenvolvimento da instituição do catecumenato, cf., particularmente, B. CAPELLE, L'Introduction du catéchuménat à Rome, ap. Recherches de Théologie ancienne et médiévale, V (1933), ps. 129-154; J. LEBRETON, Le Développement des Institutions ecclésiastiques à la fin du Ile et au début du Ille siêcle, ap. Recherches de Science religicuse, XXIV (1934), ps. 129-164.

(5) Sobre a noção de “tradição” na igreja antiga, cf. D. VAN DEN EYNDE, Les Normes de l'Enseignement chrétien dans la Littérature chrétienne des trois premiers siêcles, tese de Louvain, 1933.

(6) Os judeus de Alexandria, no tempo de Filão, celebravam uma festa para comemorar a tradução dos Setenta (PHIL., V. Moys., II, 7, 41); mais tarde (Tosephta, glosa a Megillat Ta'anith, 50), esse dia tornou-se um dia de jejum e de luto, “em expiação do pecado cometido quando a Torâ(h) foi divulgada na língua dos Goyim”; cf. outros testemunhos análogos ap. M. SIMON, Verus Israel, Paris, 1948, p. 348, n. 4; acrescentar: HERBAN, P G., t. 86, c. 623 C.

Todavia, a remodelação, esboçada bem cedo (Jusr., Tryph, 68, 71; não se efetuou tão rapidamente como se disse amiúde: M. SIMON (ibid., ps. 350-351) reuniu diversos indícios que mostram a sobrevivência de traduções gregas da Bíblia entre os judeus dos primeiros séculos do Império.

(7) Sobre a educação rabínica, cf. T. PERLOW, L'Éducation et l'Enseignement chez les Juifs à l'époque talmudique, tese de Paris, 1931, à qual quase nada é acrescentado por: N. DRAZIN, History of Jewish education from 515 B. C. E. to 220 C. E. (during the periods of the second Commonwealth and the Tannaim), The Johns Hopkins University Studies in Education, 29), Baltimore, 1940.

(8) Sobre as Escolas siríacas: J. B. CHABOT, L'École de Nisibe, son Histoire, ses Statuts, ap. Journal Asiatique, 9, VIII (1896), ps. 43-93; Narsai le Docteur et les Origines de l'École de Nisibe, ibid., 10, VI (1905), ps. 157-177; E. R. Hayes, L'École d'Édesse, tese de Paris, 1930 (medíocre); H. KRHN, Theodor von Mopsuestia und Junilius Africanus als Exegeten, Friburgo, 1880.

(9) A osmose cultural: H, DAVENSON, Fondements d'une Culture chrétienne, Paris, 1934, ps. 82-83, 57-68,

(10) Estou perfeitamente consciente do anacronismo: a distinção natural — sobrenatural não pertence ao pensamento cristão antigo e só foi elaborada muito tardiamente pela teologia medieval: cf. H. de Lubac, Surnaturel, Btudes historiques, Paris, 1946.

(11) Oposição dos Padres da Igreja à cultura clássica: a análise foi tentada com frequência; ver particularmente: P. DE LABRIOLLE, Histoire de la Littérature latine chrétienne³, 1947, ps. 14 e segs.; F. BOULENGER, Introd. à sua ed. de São BASÍLIO, Aux Jeunes Gens..., Paris, 1935, ps. 16-23; H. I. Marrou, Saint Augustin et la Fin de la Culture antique, ps. 339-356; H. Fuchs, Die frúhe Kirche und die antike Bildung, em Die Antike, V, 1929, p. 107 s.; L. ELLSPERMANN, The attitude of the early Christian Fathers toward pagan Literature and Learning, Washington, Patrístic Studies, 82, 1949.

(12) Interdição para o bispo (e também para os outros membros do clero) de se entregarem a leituras profanas: Mantenho esta opinião apesar das críticas de DOM B. BOTTE, em Bulletin de Théologie ancienne et médievale, tomo VI (1950-1953), n.º 283; cf. B. DOLHAGARAY, ap. VACANT-MANGENOT-AMANN, Dictionnaire de Théologie catholique, t. III, I, c. 607-608, s. v. Compétente (Science).

(13) Para a distinção entre cultura no sentido geral e cultura preparatória (esta, por sua vez, subdividida em cultura perfectiva e cultura formal), cf. meu Saint Augustin et la Fin de la Culture antique, ps. vi-viii.

(14) Sobre o verdadeiro alcance da Hom. XXII de São Basílio, cf. sempre meu Saint Augustin, p. 396, n. 2, e depois: S. GIET Les Idées et les Doctrines sociales de saint Basile, Paris, 1941, ps. 217-232.

(15) Um comovente texto de São Basílio mostra-nos as crianças de Cesaréia, felizes de deixarem “por um dia” as suas pranchetas e a escola para participarem, transformando, em sua inocência, a tristeza geral em uma festa, das orações ordenadas pelo bispo por ocasião de uma fome em época de seca (Hom. VIII, 72, P. G., 31, 309) em 368: fato que supõe, entre os pais, os mestres e a igreja, uma atmosfera de confiança e de cooperação.

(16) O texto árabe dos Cânones de Hipólito, publicado por D. B. von HANEBERG, Munique, 1870 (e quanto ao c. 12 que nos interessa, também ap. Sitzungsberichte da Acad. de Ciências de Munique, 1869, 2, ps. 43-44), segundo dois manuscritos romanos, é muito corrompido; a tradução latina seguida por H. ACHELIS, ap. HARNACK-GEBHARDT, Texte und Untersuchungen, VI, 4, Ps. 80-81, não é satisfatória; M. L. MASSIGNON gentilmente ajudou-me a assimilar esta passagem difícil; levamos em conta a tradução alemã dada por W. RiEDEL, Die Kirchenrechisquellen des Patriarchats Alexandrien, Leipzig, 1900, p. 206, recorrendo a uma resenha, que ele infelizmente não publicou, de manuscritos de Berlim.

(17) Na época turca, as crianças gregas pronunciavam a invocação Σταυρέ, βοήθει μοι “lendo” a cruz inscrita à face do seu alfabeto: G. CHASSIOTIS, L'Instruction publique chez les Grecs depuis la prise de Constantinople par les Turcs, Paris, 1881, p. 16.

(18) Sobre os lectores infantuli, ver os materiais reunidos por J. QUASTEN, Musik und Gesang in den Kulten der heidnischen Antiken und christlichen Friúhzeit (Liturgie-geschichtliche Quellen und Forschungen, XXV), 1930, ps. 133-141.

(19) Rufino; H. E. X, 15: esclareçamos que se trata de um episódio talvez lendário: a cronologia apresenta dificuldades (o bispo seria Alexandre, que só subiu ao trono de Alexandria em 312: Atanásio, nascido por volta de 293-295, estaria já idoso demais); isto, porém, pouco importa: o que nos interessa é a moral da narrativa, não a historicidade do fato.

(20) Sobre as Escolas teológicas dos séculos II-III, cf. particularmente os artigos de G. BARDY, Les Écoles romaines au IIe siêcle, ap. Revue d'Histoire ecclésiastique, XXVIII (1932), ps. 501-532; Aux origines de Vécole d Alexandrie, ap. Recherches de Science religieuse, XXVII (1937), ps. 65-90; Pour l'Histoire de l'École d'Alexandrie, ap. Vivre et Penser, II (1942), ps. 80-109.

(21) Sobre a estátua romana de Hipólito, cf. H. LECLERCQ, ap. Dictionnaire d'Archéologie chrétienne et de Liturgie, t. VI, 2, c. 2419-2460; G. DE JERPHANION, La Voix des Monuments, p. 303, n. 1; sobre os monumentos funerários cristãos em que o defunto é representado como “filósofo”, cf. meu Μουσικος 'Ανήρ, Grenoble, 1937, ps. 269-289.

(22) F. SCHEMMEL, Die Schule von Caesarea in Palaestina, ap. Philologische Wochenschrift, 1925, c. 1277-1280.

(23) Santo Agostinho como teórico de uma cultura cristã: cf. meu Saint Augustin et la Fin de la Culture antique, ps. 331 e segs.

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