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Educação Clássica: um modelo de retórica

Retrato de Antonio Vieira (1608-1697), padre e escritor
jesuíta português, evangelizador dos Índios do Brasil -
Gravura de Arnold van Westerhout (1651-1725)


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Tempo de leitura: 91 minutos.

Apresentamos o Sermão da Sexagésima, de Padre António Vieira, texto que demonstra bem as partes de um discurso retórico estudados na Educação Clássica. Disponível no LINK. Grifos nossos.

Fonte: Sermões Escolhidos. v.2, São Paulo: Edameris, 1965.

Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br> A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo. Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Texto-base digitalizado por: NUPILL - Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística <http://www.cce.ufsc.br/~alckmar/literatura/literat.html> Universidade Federal de Santa Catarina

Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para <bibvirt@futuro.usp.br>.

Estamos em busca de patrocinadores e voluntários para nos ajudar a manter este projeto. Se você quer ajudar de alguma forma, mande um e-mail para <bibvirt@futuro.usp.br> e saiba como isso é possível.


Sermão da Sexagésima -  Padre António Vieira. Pregado na Capela Real, no ano de 1655.

Semen est verbum Dei. S. Lucas, VIII, 11.

I

E se quisesse Deus que este tão ilustre e tão numeroso auditório saísse hoje tão desenganado da pregação, como vem enganado com o pregador! Ouçamos o Evangelho, e ouçamo-lo todo, que todo é do caso que me levou e trouxe de tão longe.

Ecce exiit qui seminat, seminare. Diz Cristo que «saiu o pregador evangélico a semear» a palavra divina. Bem parece este texto dos livros de Deus. Não só faz menção do semear, mas também faz caso do sair: Exiit, porque no dia da messe hão-nos de medir a semeadura e hão-nos de contar os passos. O Mundo, aos que lavrais com ele, nem vos satisfaz o que dispendeis, nem vos paga o que andais. Deus não é assim. Para quem lavra com Deus até o sair é semear, porque também das passadas colhe fruto. Entre os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear são os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão; os que semeiam sem sair, são os que se contentam com pregar na Pátria. Todos terão sua razão, mas tudo tem sua conta. Aos que têm a seara em casa, pagar-lhes-ão a semeadura; aos que vão buscar a seara tão longe, hão-lhes de medir a semeadura e hão-lhes de contar os passos. Ah Dia do Juízo! Ah pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais paço; os de lá, com mais passos: Exiit seminare.

Mas daqui mesmo vejo que notais (e me notais) que diz Cristo que o semeador do Evangelho saiu, porém não diz que tornou porque os pregadores evangélicos, os homens que professam pregar e: propagar a Fé, é bem que saiam, mas não é bem que tornem. Aqueles animais de Ezequiel que tiravam pelo carro triunfal da glória de Deus e significavam os pregadores do Evangelho que propriedades tinham? Nec revertebantur, cum ambularent: «Uma vez que iam, não tornavam». As rédeas por que se governavam era o ímpeto do espírito, como diz o mesmo texto: mas esse espírito tinha impulsos para os levar, não tinha regresso para os trazer; porque sair para tornar melhor é não sair. Assim arguis com muita razão, e eu também assim o digo. Mas pergunto: E se esse semeador evangélico, quando saiu, achasse o campo tomado; se se armassem contra ele os espinhos; se se levantassem contra ele as pedras, e se lhe fechassem os caminhos que havia de fazer? Todos estes contrários que digo e todas estas contradições experimentou o semeador do nosso Evangelho. Começou ele a semear (diz Cristo), mas com pouca ventura. «Uma parte do trigo caiu entre espinhos, e afogaram-no os espinhos»: Aliud cecidit inter spinas et simul exortae spinae suffocaverunt illud. Outra parte caiu sobre pedras, e secou-se nas pedras por falta de humidade»: Aliud cecidit super petram, et natum aruit, quia non habebat humorem. «Outra parte caiu no caminho, e pisaram-no os homens e comeram-no as aves»: Aliud cecidit secus viam, et conculcatum est, et volucres coeli comederunt illud. Ora vede como todas as criaturas do Mundo se armaram contra esta sementeira. Todas as criaturas quantas há no Mundo se reduzem a quatro géneros: criaturas racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como os animais; criaturas vegetativas, como as plantas; criaturas insensíveis, como as pedras; e não há mais. Faltou alguma destas que se não armasse contra o semeador? Nenhuma. A natureza insensível o perseguiu nas pedras, a vegetativa nos espinhos, a sensitiva nas aves, a racional nos homens. E notai a desgraça do trigo, que onde só podia esperar razão, ali achou maior agravo. As pedras secaram-no, os espinhos afogaram-no, as aves comeram-no; e os homens? Pisaram-no: Conculcatum est. Ab hominibus (diz a Glossa).

Quando Cristo mandou pregar os Apóstolos pelo Mundo, disse-lhes desta maneira: Euntes in mundum universum, praedicate omni creaturae: «Ide, e pregai a toda a criatura». Como assim, Senhor?! Os animais não são criaturas?! As árvores não são criaturas?! As pedras não são criaturas?! Pois hão os Apóstolos de pregar às pedras?! Hão-de pregar aos troncos?! Hão-de pregar aos animais?! Sim, diz S. Gregório, depois de Santo Agostinho. Porque como os Apóstolos iam pregar a todas as nações do Mundo, muitas delas bárbaras e incultas, haviam de achar os homens degenerados em todas as espécies de criaturas: haviam de achar homens homens, haviam de achar homens brutos, haviam de achar homens troncos, haviam de achar homens pedras. E quando os pregadores evangélicos vão pregar ar a toda a criatura, que se armem contra eles todas as criaturas?! Grande desgraça!

Mas ainda a do semeador do nosso Evangelho não foi a maior. A maior é a que se tem experimentado na seara aonde eu fui, e para onde venho. Tudo o que aqui padeceu o trigo, padeceram lá os semeadores. Se bem advertirdes, houve aqui trigo mirrado, trigo afogado, trigo comido e trigo pisado. Trigo mirrado: Natum aruit, quia non habebat humorem; trigo afogado: Exortae spinae suffocaverunt illud; trigo comido: Volucres caeli comederunt illud; trigo pisado: Conculcutum est. Tudo isto padeceram os semeadores evangélicos da missão do Maranhão de doze anos a esta parte. Houve missionários afogados, porque uns se afogaram na boca do grande rio das Amazonas; houve missionários comidos, porque a outros comeram os bárbaros na ilha dos Aroãs; houve missionários mirrados, porque tais tornaram os da jornada dos Tocatins, mirrados da fome e da doença, onde tal houve, que andando vinte e dois dias perdido nas brenhas matou somente a sede com o orvalho que lambia das folhas. Vede se lhe quadra bem o Notum aruit, quia non habebant humorem! E que sobre mirrados, sobre afogados, sobre comidos, ainda se vejam pisados e perseguidos dos homens: Conculcatum est! Não me queixo nem o digo, Senhor, pelos semeadores; só pela seara o digo, só pela seara o sinto. Para os semeadores, isto são glórias: mirrados sim, mas por amor de vós mirrados; afogados sim, mas por amor de vós afogados; comidos sim, mas por amor de vós comidos; pisados e perseguidos sim, mas por amor de vós perseguidos e pisados.

Agora torna a minha pergunta: E que faria neste caso, ou que devia fazer o semeador evangélico, vendo tão mal logrados seus primeiros trabalhos? Deixaria a lavoura? Desistiria da sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, só porque tinha lá ido? Parece que não. Mas se tornasse muito depressa a buscar alguns instrumentos com que alimpar a terra das pedras e dos espinhos, seria isto desistir? Seria isto tornar atrás? -- Não por certo. No mesmo texto de Ezequiel com que arguistes, temos a prova. Já vimos como dizia o texto, que aqueles animais da carroça de Deus, «quando iam não tornavam»: Nec revertebantur, cum ambularent. Lede agora dois versos mais abaixo, e vereis que diz o mesmo texto que «aqueles animais tornavam, e semelhança de um raio ou corisco»: Ibant et revertebantur in similitudinem fulgoris coruscantis. Pois se os animais iam e tornavam à semelhança de um raio, como diz o texto que quando iam não tornavam? Porque quem vai e volta como um raio, não torna. Ir e voltar como raio, não é tornar, é ir por diante. Assim o fez o semeador do nosso Evangelho. Não o desanimou nem a primeira nem a segunda nem a terceira perda; continuou por diante no semear, e foi com tanta felicidade, que nesta quarta e última parte do trigo se restauraram com vantagem as perdas do demais: nasceu, cresceu, espigou, amadureceu, colheu-se, mediu-se, achou-se que por um grão multiplicara cento: Et fecit fructum centuplum.

Oh que grandes esperanças me dá esta sementeira! Oh que grande exemplo me dá este semeador! Dá-me grandes esperanças a sementeira porque, ainda que se perderam os primeiros trabalhos, lograr-se-ão os últimos. Dá-me grande exemplo o semeador, porque, depois de perder a primeira, a segunda e a terceira parte do trigo, aproveitou a quarta e última, e colheu dela muito fruto. Já que se perderam as três partes da vida, já que uma parte da idade a levaram os espinhos, já que outra parte a levaram es pedras, já que outra parte a levaram os caminhos, e tantos caminhos, esta quarta e última parte, este último quartel da vida, porque se perderá também? Porque não dará fruto? Porque não terão também os anos o que tem o ano? O ano tem tempo para as flores e tempo para os frutos. Porque não terá também o seu Outono a vida? As flores, umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva o vento; aquelas poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto, só essas são as venturosas, só essas são as que aproveitam, só essas são as que sustentam o Mundo. Será bem que o Mundo morra à fome? Será bem que os últimos dias se passem em flores? -- Não será bem, nem Deus quer que seja, nem há-de ser. Eis aqui porque eu dizia ao princípio, que vindes enganados com o pregador. Mas para que possais ir desenganados com o sermão, tratarei nele uma matéria de grande peso e importância. Servirá como de prólogo aos sermões que vos hei-de pregar, e aos mais que ouvirdes esta Quaresma.

II

Semen est verbum Dei.

O trigo que semeou o pregador evangélico, diz Cristo que é a palavra de Deus. Os espinhos, as pedras, o caminho e a terra boa em que o trigo caiu, são os diversos corações dos homens. Os espinhos são os corações embaraçados com cuidados, com riquezas, com delícias; e nestes afoga-se a palavra de Deus. As pedras são os corações duros e obstinados; e nestes seca-se a palavra de Deus, e se nasce, não cria raízes. Os caminhos são os corações inquietos e perturbados com a passagem e tropel das coisas do Mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que atravessam, e todas passam; e nestes é pisada a palavra de Deus, porque a desatendem ou a desprezam. Finalmente, a terra boa são os corações bons ou os homens de bom coração; e nestes prende e frutifica a palavra divina, com tanta fecundidade e abundância, que se colhe cento por um: Et fructum fecit centuplum.

Este grande frutificar da palavra de Deus é o em que reparo hoje; e é uma dúvida ou admiração que me traz suspenso e confuso, depois que subo ao púlpito. Se a palavra de Deus é tão eficaz e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus? Diz Cristo que a palavra de Deus frutifica cento por um, e já eu me contentara com que frutificasse um por cento. Se com cada cem sermões se convertera e emendara um homem, já o Mundo fora santo. Este argumento de fé, fundado na autoridade de Cristo, se aperta ainda mais na experiência, comparando os tempos passados com os presentes. Lede as histórias eclesiásticas, e achá-las-eis todas cheias de admiráveis efeitos da pregação da palavra de Deus. Tantos pecadores convertidos, tanta mudança de vida, tanta reformação de costumes; os grandes desprezando as riquezas e vaidades do Mundo; os reis renunciando os ceptros e as coroas; as mocidades e as gentilezas metendo-se pelos desertos e pelas covas; e hoje? -- Nada disto. Nunca na Igreja de Deus houve tantas pregações, nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto se semeia a palavra de Deus, como é tão pouco o fruto? Não há um homem que em um sermão entre em si e se resolva, não há um moço que se arrependa, não há um velho que se desengane. Que é isto? Assim como Deus não é hoje menos omnipotente, assim a sua palavra não é hoje menos poderosa do que dantes era. Pois se a palavra de Deus é tão poderosa; se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, porque não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta, tão grande e tão importante dúvida, será a matéria do sermão. Quero começar pregando-me a mim. A mim será, e também a vós; a mim, para aprender a pregar; a vós, que aprendais a ouvir.

III

Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermão, há-de haver três concursos: há-de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, e necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus?

Primeiramente, por parte de Deus, não falta nem pode faltar. Esta proposição é de fé, definida no Concílio Tridentino, e no nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou à terra o semeador, uma parte se logrou e três se perderam. E porque se perderam estas três? -- A primeira perdeu-se, porque a afogaram os espinhos; a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira, porque a pisaram os homens e a comeram as aves. Isto é o que diz Cristo; mas notai o que não diz. Não diz que parte alguma daquele trigo se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causa por que ordinariamente se perdem as sementeiras, é pela desigualdade e pela intemperança dos tempos, ou porque falta ou sobeja a chuva, ou porque falta ou sobeja o sol. Pois porque não introduz Cristo na parábola do Evangelho algum trigo que se perdesse por causa do sol ou da chuva? -- Porque o sol e a chuva são as afluências da parte do Céu, e deixar de frutificar a semente da palavra de Deus, nunca é por falta: do Céu, sempre é por culpa nossa. Deixará de frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos, ou pela dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por falta das influências do Céu, isso nunca é nem pode ser. Sempre Deus está pronto da sua parte, com o sol para aquentar e com a chuva para regar; com o sol para alumiar e com a chuva para amolecer, se os nossos corações quiserem: Qui solem suum oriri facit super bonos et malos, et pluit super justos et injustos. Se Deus dá o seu sol e a sua chuva aos bons e aos maus; aos maus que se quiserem fazer bons, como a negará? Este ponto é tão claro que não há para que nos determos em mais prova. Quid debui facere vineae meae, et non feci? -- disse o mesmo Deus por Isaías.

Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar por parte de Deus, segue-se que ou é por falta do pregador ou por falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim. Se fora por parte dos ouvintes, não fizera a palavra de Deus muito grande fruto, mas não fazer nenhum fruto e nenhum efeito, não é por parte dos ouvintes. Provo.

Os ouvintes ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que caiu nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul exortae spinae suffocaverunt illud. O trigo que caiu nas pedras, nasceu também, mas secou-se: Et natum aruit. O trigo que caiu na terra  boa, nasceu e frutificou com grande multiplicação: Et natum fecit fructum centuplum

De maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que caiu na má terra, não frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é tão funda, que nos bons faz muito fruto e é tão eficaz que nos maus ainda que não faça fruto, faz efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas pedras. Os piores ouvintes que há na Igreja de Deus, são as pedras e os espinhos. E porquê? -- Os espinhos por agudos, as pedras por duras. Ouvintes de entendimentos agudos e ouvintes de vontades endurecidas são os piores que há. Os ouvintes de entendimentos agudos são maus ouvintes, porque vêm só a ouvir sutilezas, a esperar galantarias, a avaliar pensamentos, e às vezes também a picar a quem os não pica. Aliud cecidit inter spinas: O trigo não picou os espinhos, antes os espinhos o picaram a ele; e o mesmo sucede cá. Cuidais que o sermão vos picou e vós, e não é assim; vós sois os que picais o sermão. Por isto são maus ouvintes os de entendimentos agudos. Mas os de vontades endurecidas ainda são piores, porque um entendimento agudo pode ferir pelos mesmos fios, e vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra vontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes dana mais, porque quanto as setas são mais agudas, tanto mais facilmente se despontam na pedra. Oh! Deus nos livre de vontades endurecidas, que ainda são piores que as pedras! A vara de Moisés abrandou as pedras, e não pôde abrandar uma vontade endurecida: Percutiens virga bis silicem, et egressae sunt aquae largissimae. Induratum est cor Pharaonis. E com os ouvintes de entendimentos agudos e os ouvintes de vontades endurecidas serem os mais rebeldes, é tanta a força da divina palavra, que, apesar da agudeza, nasce nos espinhos, e apesar da dureza nasce nas pedras.

Pudéramos arguir ao lavrador do Evangelho de não cortar os espinhos e de não arrancar as pedras antes de semear, mas de indústria deixou no campo as pedras e os espinhos, para que se visse a força do que semeava. E tanta a força da divina palavra, que, sem cortar nem despontar espinhos, nasce entre espinhos. É tanta a força da divina palavra, que, sem arrancar nem abrandar pedras, nasce nas pedras. Corações embaraçados como espinhos corações secos e duros como pedras, ouvi a palavra de Deus e tende confiança! Tomai exemplo nessas mesmas pedras e nesses espinhos! Esses espinhos e essas pedras agora resistem ao semeador do Céu; mas virá tempo em que essas mesmas pedras o aclamem e esses mesmos espinhos o coroem.

Quando o semeador do Céu deixou o campo, saindo deste Mundo, as pedras se quebraram para lhe fazerem aclamações, e os espinhos se teceram para lhe fazerem coroa. E se a palavra de Deus até dos espinhos e das pedras triunfa; se a palavra de Deus até nas pedras, até nos espinhos nasce; não triunfar dos alvedrios hoje a palavra de Deus, nem nascer nos corações, não é por culpa, nem por indisposição dos ouvintes.

Supostas estas duas demonstrações; suposto que o fruto e efeitos da palavra de Deus, não fica, nem por parte de Deus, nem por parte dos ouvintes, segue-se por consequência clara, que fica por parte do pregador. E assim é. Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque não faz fruto a palavra de Deus? -- Por culpa nossa.

IV

Mas como em um pregador há tantas qualidades, e em uma pregação tantas leis, e os pregadores podem ser culpados em todas, em qual consistirá esta culpa? -- No pregador podem-se considerar cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz. A pessoa que é, e ciência que tem, a matéria que trata, o estilo que segue, a voz com que fala. Todas estas circunstâncias temos no Evangelho. Vamo-las examinando uma por uma e buscando esta causa.

Será porventura o não fazer fruto hoje a palavra de Deus, pela circunstância da pessoa? Será porque antigamente os pregadores eram santos eram varões apostólicos e exemplares, e hoje os pregadores são eu e outros como eu? -- Boa razão é esta. A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não diz Cristo: saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit, qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita diferença. Uma coisa é o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa é o governador e outra o que governa. Da mesma maneira, uma coisa é o semeador e outra o que semeia; uma coisa é o pregador e outra o que prega. O semeador e o pregador é nome; o que saneia e o que prega é ação; e as ações são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome, não importa nada; as ações, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o Mundo. O melhor conceito que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? -- o conceito que de sua vida têm os ouvintes.

Antigamente convertia-se o Mundo, hoje porque se não converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obra são tiros sem bala; atroam, mas não ferem. A funda de David derrubou o gigante, mas não o derrubou com o estalo, senão com a pedra: Infixus est lapis in fronte ejus. As vozes da harpa de David lançavam fora os demónios do corpo de Saul, mas não eram vozes pronunciadas com a boca, eram vozes formadas com a mão: David tollebat citharam, et percutiebat manu sua. Por isso Cristo comparou o pregador ao semeador. O pregar que é falar faz-se com a boca; o pregar que é semear, faz-se com a mão. Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras. Diz o Evangelho que a palavra de Deus frutificou cento por um. Que quer isto dizer? Quer dizer que de uma palavra nasceram em palavras? -- Não. Quer dizer que de poucas palavras nasceram muitas obras. Pois palavras que frutificam obras, vede se podem ser só palavras! Quis Deus converter o Mundo, e que fez? -- Mandou ao Mundo seu Filho feito homem. Notai. O Filho de Deus, enquanto Deus, é palavra de Deus, não é obra de Deus: Genitum non factum. O Filho de Deus, enquanto Deus e Homem, é palavra de Deus e obra de Deus juntamente: Verbum caro factum est. De maneira que até de sua palavra desacompanhada de obras não fiou Deus a conversão dos homens. Na união da palavra de Deus com a maior obra de Deus consistiu a eficácia da salvação do Mundo. Verbo Divino é palavra divina; mas importa pouco que as nossas palavras sejam divinas, se forem desacompanhadas de obras. A razão disto é porque as palavras ouvem-se, as obras vêem-se; as palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos. No Céu ninguém há que não ame a Deus, nem possa deixar de o amar. Na terra há tão poucos que o amem, todos o ofendem. Deus não é o mesmo, e tão digno de ser amado no Céu e na Terra? Pois como no Céu obriga e necessita a todos a o amarem, e na terra não? A razão é porque Deus no Céu é Deus visto; Deus na terra é Deus ouvido. No Céu entra o conhecimento de Deus à alma pelos olhos: Videbimus eum sicut est; na terra entra-lhe o conhecimento de Deus pelos ouvidos: Fides ex auditu; e o que entra pelos ouvidos crê-se, o que entra pelos olhos necessita. Viram os ouvintes em nós o que nos ouvem a nós, e o abalo e os efeitos do sermão seriam muito outros.

Vai um pregador pregando a Paixão, chega ao pretório de Pilatos, conta como a Cristo o fizeram rei de zombaria, diz que tomaram uma púrpura e lha puseram aos ombros; ouve aquilo o auditório muito atento. Diz que teceram uma coroa de pinhos e que lha pregaram na cabeça; ouvem todos com a mesma atenção. Diz mais que lhe ataram as mãos e lhe meteram nelas uma cana por ceptro; continua o mesmo silêncio e a mesma suspensão nos ouvintes. Corre-se neste espaço uma cortina aparece a imagem do Ecce Homo; eis todos prostrados por terra, eis todos a bater no peito eis as lágrimas, eis os gritos, eis os alaridos, eis as bofetadas. Que é isto? Que apareceu de novo nesta igreja? Tudo o que descobriu aquela cortina, tinha já dito o pregador. Já tinha dito daquela púrpura, já tinha dito daquela coma e daqueles espinhos, já tinha dito daquele ceptro e daquela cana. Pois se isto então não fez abalo nenhum, como faz agora tanto? -- Porque então era Ecce Homo ouvido, e agora é Ecce Homo visto; a relação do pregador entrava pelos ouvidos a representação daquela figura entra pelos olhos. Sabem, Padres pregadores, porque fazem pouco abalo os nossos sermões? -- Porque não pregamos aos olhos, pregamos só aos ouvidos. Porque convertia o Baptista tantos pecadores? -- Porque assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos, o seu exemplo pregava aos olhos. As palavras do Baptista pregavam penitência: Agite poenitentiam. «Homens, fazei penitência» -- e o exemplo clamava: Ecce Homo: «eis aqui está o homem» que é o retrato da penitência e da aspereza. As palavras do Baptista pregavam jejum e repreendiam os regalos e demasias da gula; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem que se sustenta de gafanhotos e mel silvestre. As palavras do Baptista pregavam composição e modéstia, e condenavam a soberba e a vaidade das galas; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem vestido de peles de camelo, com as cordas e cilício à raiz da carne. As palavras do Baptista pregavam despegos e retiros do Mundo, e fugir das ocasiões e dos homens; e o exemplo Clamava: Ecce Homo: eis aqui o homem que deixou as cortes e as sociedades, e vive num deserto e numa cova. Se os ouvintes ouvem uma coisa e vêem outra, como se hão-de converter? Jacob punha as varas manchadas diante das ovelhas quando concebiam, e daqui procedia que os cordeiros nasciam malhados. Se quando os ouvintes percebem os nossos conceitos, têm diante dos olhos as nossas manchas, como hão-de conceber virtudes? Se a minha vida é apologia contra a minha doutrina, se as minhas palavras vão já refutadas nas minhas obras, se uma cousa é o semeador e outra o que semeia, como se há-de fazer fruto?

Muito boa e muito forte razão era esta de não fazer fruto a palavra de Deus; mas tem contra si o exemplo e experiência de Jonas. Jonas fugitivo de Deus, desobediente, contumaz, e, ainda depois de engolido e vomitado iracundo, impaciente, pouco caritativo, pouco misericordioso, e mais zeloso e amigo da própria estimação que da honra de Deus e salvação das almas, desejoso de ver subvertida a Nínive e de a ver subverter com seus olhos, havendo nela tantos mil inocentes; contudo este mesmo homem com um sermão converteu o maior rei, a maior corte e o maior reinado do Mundo, e não de homens fiéis senão de gentios idólatras. Outra é logo a causa que buscamos. Qual será?

V

Será porventura o estilo que hoje se usa nos púlpitos? Um estilo tão empeçado, um estilo tão dificultoso, um estilo tão afectado, um estilo tão encontrado a toda a arte e a toda a natureza? Boa razão é também esta. O estilo há-de ser muito fácil e muito natural. Por isso Cristo comparou o pregar ao semear: Exiit, qui seminat, seminare. Compara Cristo o pregar ao semear, porque o semear é uma arte que tem mais de natureza que de arte. Nas outras artes tudo é arte: na música tudo se faz por compasso, na arquitectura tudo se faz por regra, na aritmética tudo se faz por conta, na geometria tudo se faz por medida. O semear não é assim. É uma arte sem arte caia onde cair. Vede como semeava o nosso lavrador do Evangelho. «Caía o trigo nos espinhos e nascia» Aliud cecidit inter spinas, et simul exortae spinae «Caía o trigo nas pedras e nascia»: Aliud cecidit super petram, et ortum. «Caía o trigo na terra boa e nascia»: Aliud cecidit in terram bonam, et natum. Ia o trigo caindo e ia nascendo.

Assim há-de ser o pregar. Hão-de cair as coisas hão-de nascer; tão naturais que vão caindo, tão próprias que venham nascendo. Que diferente é o estilo violento e tirânico que hoje se usa! Ver vir os tristes passos da Escritura, como quem vem ao martírio; uns vêm acarretados, outros vêm arrastados, outros vêm estirados, outros vêm torcidos, outros vêm despedaçados; só atados não vêm! Há tal tirania? Então no meio disto, que bem levantado está aquilo! Não está a coisa no levantar, está no cair: Cecidit. Notai uma alegoria própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só de três nasceu; para o sermão vir nascendo, há-de ter três modos de cair: há-de cair com queda, há-de cair com cadência há-de cair com caso. A queda é para as coisas, a cadência para as palavras, o caso para a disposição. A queda é para as coisas porque hão-de vir bem trazidas e em seu lugar; hão-de ter queda. A cadência é para as palavras, porque não hão-de ser escabrosas nem dissonantes; hão-de ter cadência. O caso é para a disposição, porque há-de ser tão natural e tão desafectada que pareça caso e não estudo: Cecidit, cecidit, cecidit.

Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim o estilo do mais antigo pregador que houve no Mundo. E qual foi ele? -- O mais antigo pregador que houve no Mundo foi o céu. Coeli enarrant gloriam Dei et opera manuum ejus annuntiat Firmamentum -- diz David. Suposto que o céu é pregador, deve de ter sermões e deve de ter: palavras. Sim, tem, diz o mesmo David; tem palavras e tem sermões; e mais, muito bem ouvidos. Non sunt loquellae, nec sermones, quorum non audiantur voces eorum. E quais são estes sermões e estas palavras do céu? -- As palavras são as estrelas, os sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do céu, com o estilo que Cristo ensinou na terra. Um e outro é semear; a terra semeada de trigo, o céu semeado de estrelas. O pregar há-de ser como quem semeia, e não como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas: Stellae manentes in ordine suo. Todas as estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não é ordem que faça lavor. Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte há-de estar branco, da outra há-de estar negro; se de uma parte dizem luz, da outra hão-de dizer sombra; se de uma parte dizem desceu, da outra hão-de dizer subiu. Basta que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hão-de estar sempre em fronteira com o seu contrário? Aprendamos do céu o estilo da disposição, e também o das palavras. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há-de ser o estilo da pregação; muito distinto e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas e muito claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham muito que entender os que sabem. O rústico acha documentos nas estrelas para sua lavoura e o mareante para sua navegação e o matemático para as suas observações e para os seus juízos. De maneira que o rústico e o mareante, que não sabem ler nem escrever entendem as estrelas; e o matemático, que tem lido quantos escreveram, não alcança a entender quanto nelas há. Tal pode ser o sermão: -- estrelas que todos vêem, e muito poucos as medem.

Sim, Padre; porém esse estilo de pregar não é pregar culto. Mas fosse! Este desventurado estilo que hoje se usa, os que o querem honrar chamam-lhe culto, os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto não é escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado. E possível que somos portugueses e havemos de ouvir um pregador em português e não havemos de entender o que diz?! Assim como há Lexicon para o grego e Calepino para o latim, assim é necessário haver um vocabulário do púlpito. Eu ao menos o tomara para os nomes próprios, porque os cultos têm desbaptizados os santos, e cada autor que alegam é um enigma. Assim o disse o Ceptro Penitente, assim o disse o Evangelista Apeles, assim o disse a Águia de África, o Favo de Claraval, a Púrpura de Belém, a Boca de Ouro. Há tal modo de alegar! O Ceptro Penitente dizem que é David, como se todos os ceptros não foram penitência; o Evangelista Apeles, que é S. Lucas; o Favo de Claraval, S. Bernardo; a Águia de África, Santo Agostinho; a Púrpura de Belém, S. Jerónimo; a Boca de Ouro, S. Crisóstomo. E quem quitaria ao outro cuidar que a Púrpura de Belém é Herodes que a Águia de África é Cipião, e que a Boca de Ouro é Midas? Se houvesse um advogado que alegasse assim a Bártolo e Baldo, havíeis de fiar dele o vosso pleito? Se houvesse um homem que assim falasse na conversação, não o havíeis de ter por néscio? Pois o que na conversação seria necessidade, como há-de ser discrição no púlpito?

Boa me parecia também esta razão; mas como os cultos pelo pulido e estudado se defendem com o grande Nazianzeno, com Ambrósio, com Crisólogo, com Leão, e pelo escuro e duro com Clemente Alexandrino, com Tertuliano, com Basílio de Selêucia, com Zeno Veronense e outros, não podemos negar a reverência a tamanhos autores posto que desejáramos nos que se prezam de beber destes rios, a sua profundidade. Qual será logo a causa de nossa queixa?

VI

Será pela matéria ou matérias que tomam os pregadores? Usa-se hoje o modo que chamam de apostilar o Evangelho, em que tomam muitas matérias, levantam muitos assuntos e quem levanta muita caça e não segue nenhuma não é muito que se recolha com as mãos vazias. Boa razão é também esta. O sermão há-de ter um só assunto e uma só matéria. Por isso Cristo disse que o lavrador do Evangelho não semeara muitos géneros de sementes, senão uma só: Exiit, qui seminat, seminare semen. Semeou uma semente só, e não muitas, porque o sermão há-de ter uma só matéria, e não muitas matérias. Se o lavrador semeara primeiro trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio semeara milho grosso e miúdo, e sobre o milho semeara cevada, que havia de nascer? Uma mata brava, uma confusão verde. Eis aqui o que acontece aos sermões deste género. Como semeiam tanta variedade, não podem colher coisa certa. Quem semeia misturas, mal pode colher trigo. Se uma nau fizesse um bordo para o norte, outro para o sul, outro para leste, outro para oeste, como poderia fazer viagem? Por isso nos púlpitos se trabalha tanto e se navega tão pouco. Um assunto vai para um vento, outro assunto vai para outro vento; que se há-de colher senão vento? O Baptista convertia muitos em Judeia; mas quantas matérias tomava? Uma só matéria: Parate viam Domini: a preparação para o Reino de Cristo. Jonas converteu os Ninivitas; mas quantos assuntos tomou? Um só assunto: Adhuc quadraginta dies, et Ninive subvertetur: a subversão da cidade. De maneira que Jonas em quarenta dias pregou um só assunto; e nós queremos pregar quarenta assuntos em uma hora? Por isso não pregamos nenhum. O sermão há-de ser de uma só cor, há-de ter um só objecto, um só assunto, uma só matéria.

Há-de tomar o pregador uma só matéria; há-de defini-la, para que se conheça; há-de dividi-la, para que se distinga; há-de prová-la com a Escritura; há-de declará-la com a razão; há-de confirmá-la com o exemplo; há-de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão-de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar; há-de responder às dúvidas, há-de satisfazer às dificuldades; há-de impugnar e refutar com toda a força da eloquência os argumentos contrários; e depois disto há-de colher, há-de apertar, há-de concluir, há-de persuadir, há-de acabar. Isto é sermão, isto é pregar; e o que não é isto, é falar de mais alto.

Não nego nem quero dizer que o sermão não haja de ter variedade de discursos, mas esses hão-de nascer todos da mesma matéria e continuar e acabar nela. Quereis ver tudo isto com os olhos? Ora vede. Uma árvore tem raízes, tem tronco, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim há-de ser o sermão: há-de ter raízes fortes e sólidas, porque há-de ser fundado no Evangelho; há-de ter um tronco, porque há-de ter um só assunto e tratar uma só matéria; deste tronco hão-de nascer diversos ramos, que são diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria e continuados nela; estes ramos hão-de ser secos, senão cobertos de folhas, porque os discursos hão-de ser vestidos e ornados de palavras. Há-de ter esta árvore varas, que são a repreensão dos vícios; há-de ter flores, que são as sentenças; e por remate de tudo, há-de ter frutos, que é o fruto e o fim a que se há-de ordenar o sermão. De maneira que há-de haver frutos, há-de haver flores, há-de haver varas, há-de haver folhas, há-de haver ramos; mas tudo nascido e fundado em um só tronco, que é uma só matéria. Se tudo são troncos, não é sermão, é madeira. Se tudo são ramos, não é sermão, são maravalhas. Se tudo são folhas, não é sermão, são versas. Se tudo são varas, não é sermão, é feixe. Se tudo são flores, não é sermão, é ramalhete. Serem tudo frutos, não pode ser; porque não há frutos sem árvore. Assim que nesta árvore, à que podemos chamar «árvore da vida», há-de haver o proveitoso do fruto, o formoso das flores, o rigoroso das varas, o vestido das folhas, o estendido dos ramos; mas tudo isto nascido e formado de um só tronco e esse não levantado no ar, senão fundado nas raízes do Evangelho: Seminare semen. Eis aqui como hão-de ser os sermões, eis aqui como não são. E assim não é muito que se não faça fruto com eles.

Tudo o que tenho dito pudera demonstrar largamente, não só com os preceitos dos Aristóteles, dos Túlios, dos Quintilianos, mas com a prática observada do príncipe dos oradores evangélicos, S. João Crisóstomo, de S. Basílio Magno, S. Bernardo. S. Cipriano, e com as famosíssimas orações de S. Gregório Nazianzeno, mestre de ambas as Igrejas. E posto que nestes mesmos Padres, como em Santo Agostinho, S. Gregório e muitos outros, se acham os Evangelhos apostilados com nomes de sermão e homilias, uma coisa é expor, e outra pregar; uma ensinar e outra persuadir, desta última é que eu falo, com a qual tanto fruto fizeram no mundo Santo António de Pádua e S. Vicente Ferrer. Mas nem por isso entendo que seja ainda esta a verdadeira causa que busco.

VII

Será porventura a falta de ciência que há em muitos pregadores? Muitos pregadores há que vivem do que não colheram e semeiam o que não trabalharam. Depois da sentença de Adão, a terra não costuma dar fruto, senão a quem come o seu pão com o suor do seu rosto. Boa razão parece também esta. O pregador há-de pregar o seu, e não o alheio. Por isso diz Cristo que semeou o lavrador do Evangelho o trigo seu: Semen suum. Semeou o seu, e não o alheio, porque o alheio e, o furtado não é bom para semear, ainda que o furto seja de ciência. Comeu Eva o pomo da ciência, e queixava-me eu antigamente desta nossa mãe; já que comeu o pomo, por que lhe não guardou as pevides? Não seria bem que chegasse a nós a árvore, já que nos chegaram os encargos dela? Pois por que não o fez assim Eva? Porque o pomo era furtado, e o alheio é bom para comer, mas não é bom para semear: é bom para comer, porque dizem que é saboroso; não é bom para semear, porque não nasce. Alguém terá experimentado que o alheio lhe nasce em casa, mas esteja certo, que se nasce, não há-de deitar raízes, e o que não tem raízes não pode dar fruto. Eis aqui por que muitos pregadores não fazem fruto; porque pregam o alheio, e não o seu: Semen suum. O pregar é entrar em batalha com os vícios; e armas alheias, ainda que sejam as de Aquiles, a ninguém deram vitória. Quando David saiu a campo com o gigante, ofereceu-lhe Saul as suas armas, mas ele não as quis aceitar. Com armas alheias ninguém pode vencer, ainda que seja David. As armas de Saul só servem a Saul, e as de David a David; e mais aproveita um cajado e uma funda própria, que a espada e a lança alheia. Pregador que peleja com as armas alheias, não hajais medo que derrube gigante.

Fez Cristo aos Apóstolos pescadores de homens, que foi ordená-los de pregadores; e que faziam os Apóstolos? Diz o texto que estavam: Reficientes retia sua: «Refazendo as redes suas; eram as redes dos Apóstolos, e não eram alheias. Notai: Retia sua: Não diz que eram suas porque as compraram, senão que eram suas porque as faziam; não eram suas porque lhes custaram o seu dinheiro, senão porque lhes custavam o seu trabalho. Desta maneira eram as redes suas; e porque desta maneira eram suas, por isso eram redes de pescadores que haviam de pescar homens. Com redes alheias, ou feitas por mão alheia, podem-se pescar peixes, homens não se podem pescar. A razão disto é porque nesta pesca de entendimentos só quem sabe fazer a rede sabe fazer o lanço. Como se faz uma rede? Do fio e do nó se compõe a malha; quem não enfia nem ata, como há-de fazer rede? E quem não sabe enfiar nem sabe atar, como há-de pescar homens? A rede tem chumbada que vai ao fundo, e tem cortiça que nada em cima da água. A pregação tem umas coisas de mais peso e de mais fundo, e tem outras mais superficiais e mais leves; e governar o leve e o pesado, só o sabe fazer quem faz a rede. Na boca de quem não faz a pregação, até o chumbo é cortiça.

As razões não hão-de ser enxertadas, hão-de ser nascidas. O pregar não é recitar. As razões próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória, e os homens não se convencem pela memória, senão pelo entendimento.

Veio o Espírito Santo sobre os Apóstolos, e quando as línguas desciam do Céu, cuidava eu que se lhes haviam de pôr na boca; mas elas foram-se pôr na cabeça. Pois por que na cabeça e não na boca, que é o lugar da língua? Porque o que há-de dizer o pregador, não lhe há-de sair só da boca; há-lhe de sair pela boca, mas da cabeça. O que sai só da boca pára nos ouvidos; o que nasce do juízo penetra e convence o entendimento. Ainda tem mais mistério estas línguas do Espírito Santo. Diz o texto que não se puseram todas as línguas sobre todos os Apóstolos, senão cada uma sobre cada um: Apparuerunt dispertitae linguae tanquam ignis, seditque supra singulos eorum. E por que cada uma sobre cada um, e não todas sobre todos? Porque não servem todas as línguas a todos, senão a cada um a sua. Uma língua só sobre Pedro, porque a língua de Pedro não serve a André; outra língua só sobre André, porque a língua de André não serve a Filipe; outra língua só sobre Filipe, porque a língua de Filipe não serve a Bartolomeu, e assim dos mais. E senão vede-o no estilo de cada um dos Apóstolos, sobre que desceu o Espírito Santo. Só de cinco temos escrituras; mas a diferença com que escreveram, como sabem os doutos, é admirável. As penas todas eram tiradas das asas daquela pomba divina; mas o estilo tão diverso, tão particular e tão próprio de cada um, que bem mostra que era seu. Mateus fácil, João misterioso, Pedro grave, Jacob forte, Tadeu sublime, e todos com tal valentia no dizer, que cada palavra era um trovão, cada cláusula um raio e cada razão um triunfo. Ajuntai a estes cinco S. Lucas e S. Marcos, que também ali estavam, e achareis o número daqueles sete trovões que ouviu S. João no Apocalipse. Loquuti sunt septem tonitrua voces suas. Eram trovões que falavam e desarticulavam as vozes, mas essas vozes eram suas: Voces suas; «suas, e não alheias», como notou Ansberto: Non alienas, sed suas. Enfim, pregar o alheio é pregar o alheio, e com o alheio nunca se fez coisa boa.

Contudo eu não me firmo de todo nesta razão, porque do grande Baptista sabemos que pregou o que tinha pregado Isaías, como notou S. Lucas, e não com outro nome, senão de sermões: Praedicans baptismum poenitentiae in remissionem peccatorum, sicut scriptum est in libro sermonun Isaiae prophetae. Deixo o que tomou Santo Ambrósio de S. Basílio; S. Próspero e Beda de Santo Agostinho; Teofilato e Eutímio de S. João Crisóstomo.

VIII

Será finalmente a causa, que tanto há buscamos, a voz com que hoje falam os pregadores? Antigamente pregavam bradando, hoje pregam conversando. Antigamente a primeira parte do pregador era boa voz e bom peito. E verdadeiramente, como o mundo se governa tanto pelos sentidos, podem às vezes mais os brados que a razão. Boa era também esta, mas não a podemos provar com o semeador, porque já dissemos que não era ofício de boca. Porém o que nos negou o Evangelho no semeador metafórico, nos deu no semeador verdadeiro, que é Cristo. Tanto que Cristo acabou a parábola, diz o Evangelho que começou o Senhor a bradar: Haec dicens clamabat. Bradou o Senhor, e não arrazoou sobre a parábola, porque era tal o auditório, que fiou mais dos brados que da razão.

Perguntaram ao Baptista quem era? Respondeu ele: Ego vox clamantis in deserto: Eu sou uma voz que anda bradando neste deserto. Desta maneira se definiu o Baptista. A definição do pregador, cuidava eu que era: voz que arrazoa e não voz que brada. Pois por que se definiu o Baptista pelo bradar e não pelo arrazoar; não pela razão, senão pelos brados? Porque há muita gente neste mundo com quem podem mais os brados que a razão, e tais eram aqueles a quem o Baptista pregava. Vede-o claramente em Cristo. Depois que Pilatos examinou as acusações que contra ele se davam, lavou as mãos e disse: Ego nullam causam invenio in homine isto: Eu nenhuma causa acho neste homem. Neste tempo todo o povo e os escribas bradavam de fora, que fosse crucificado: At illi magis clamabant, crucifigatur. De maneira que Cristo tinha por si a razão e tinha contra si os brados. E qual pôde mais? Puderam mais os brados que a razão. A razão não valeu para o livrar, os brados bastaram para o pôr na Cruz. E como os brados no Mundo podem tanto, bem é que bradem alguma vez os pregadores, bem é que gritem. Por isso Isaías chamou aos pregadores «nuvens»: Qui sunt isti, qui ut nubes volant? A nuvem tem relâmpago, tem trovão e tem raio: relâmpago para os olhos, trovão para os ouvidos, raio para o coração; com o relâmpago alumia, com o trovão assombra, com o raio mata. Mas o raio fere a um, o relâmpago a muitos, o trovão a todos. Assim há-de ser a voz do pregador, um trovão do Céu, que assombre e faça tremer o Mundo.

Mas que diremos à oração de Moisés? Concrescat ut pluvia doctrina mea: fluat ut ros eloquim meum: Desça minha doutrina como chuva do céu, e a minha voz e as minhas palavras como orvalho que se destila brandamente e sem ruído. Que diremos ao exemplo ordinário de Cristo, tão celebrado por Isaías: Non clamabit neque audietur vox ejus foris? Não clamará, não bradará, mas falará com uma voz tão moderada que se não possa ouvir fora. E não há dúvida que o praticar familiarmente, e o falar mais ao ouvido que aos ouvidos, não só concilia maior atenção, mas naturalmente e sem força se insinua, entra, penetra e se mete na alma. Em conclusão que a causa de não fazerem hoje fruto os pregadores com a palavra de Deus, nem é a circunstância da pessoa: Qui seminat: nem a do estilo: Seminare; nem a da matéria: Semen; nem a da ciência: Suum; nem a da voz: Clamabat. Moisés tinha fraca voz; Amós tinha grosseiro estilo; Salamão multiplicava e variava os assuntos; Balaão não tinha exemplo de vida; o seu animal não tinha ciência; e contudo todos estes, falando, persuadiam e convenciam. Pois se nenhuma destas razões que discorremos, nem todas elas juntas são a causa principal nem bastante do pouco fruto que hoje faz a palavra de Deus, qual diremos finalmente que é a verdadeira causa?

IX

As palavras que tomei por tema o dizem. Semen est verbum Dei. Sabeis, Cristãos, a causa por que se faz hoje tão pouco fruto com tantas pregações? É porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus. Falo do que ordinariamente se ouve. A palavra de Deus (como diria) é tão poderosa e tão eficaz, que não só na boa terra faz fruto, mas até nas pedras e nos espinhos nasce. Mas se as palavras dos pregadores não são palavras de Deus, que muito que não tenham a eficácia e os efeitos da palavra de Deus? Ventum seminabunt, et turbinem colligent, diz o Espírito Santo: «Quem semeia ventos, colhe tempestades». Se os pregadores semeiam vento, se o que se prega é vaidade, se não se prega a palavra de Deus, como não há a Igreja de Deus de correr tormenta, em vez de colher fruto?

Mas dir-me-eis: Padre, os pregadores de hoje não pregam do Evangelho, não pregam das Sagradas Escrituras? Pois como não pregam a palavra de Deus? Esse é o mal. Pregam palavras de Deus, mas não pregam a palavra de Deus: Qui habet sermonem meum, loquatur sermonem meum vere, disse Deus por Jeremias. As palavras de Deus, pregadas no sentido em que Deus as disse, são palavras de Deus; mas pregadas no sentido que nós queremos, não são palavras de Deus, antes podem ser palavras do Demónio. Tentou o Demónio a Cristo a que fizesse das pedras pão. Respondeu-lhe o Senhor: Non in solo pane vivit homo, sed in omni verbo, quod procedit de ore dei. Esta sentença era tirada do capítulo VIII do Deuteronómio. Vendo o Demónio que o Senhor se defendia da tentação com a Escritura, leva-o ao Templo, e alegando o lugar do salmo XC, diz-lhe desta maneira: Mille te deorsum; scriptum est enim, quia Angelis suis Deus mandavit de te, ut custodiant te in omnibus viis tuis: «Deita-te daí abaixo, porque prometido está nas Sagradas Escrituras que os anjos te tomarão nos braços, para que te não faças mal.» De sorte que Cristo defendeu-se do Diabo com a Escritura, e o Diabo tentou a Cristo com a Escritura. Todas as Escrituras são palavra de Deus: pois se Cristo toma a Escritura para se defender do Diabo, como toma o Diabo a Escritura para tentar a Cristo? A razão é porque Cristo tomava as palavras da Escritura em seu verdadeiro sentido, e o Diabo tomava as palavras da Escritura em sentido alheio e torcido; e as mesmas palavras, que tomadas em verdadeiro sentido são palavras de Deus, tomadas em sentido alheio, são armas do Diabo. As mesmas palavras que, tomadas no sentido em que Deus as disse, são defesa, tomadas no sentido em que Deus as não disse, são tentação. Eis aqui a tentação com que então quis o Diabo derrubar a Cristo, e com que hoje lhe faz a mesma guerra do pináculo do templo. O pináculo do templo é o púlpito, porque é o lugar mais alto dele. O Diabo tentou a Cristo no deserto, tentou-o no monte, tentou-o no templo: no deserto, tentou-o com a gula; no monte, tentou-o com a ambição; no templo, tentou-o com as Escrituras mal interpretadas, e essa é a tentação de que mais padece hoje a Igreja, e que em muitas partes tem derrubado dela, senão a Cristo, a sua fé.

Dizei-me, pregadores (aqueles com quem eu falo indignos verdadeiramente de tão sagrado nome), dizei-me: esses assuntos inúteis que tantas vezes levantais, essas empresas ao vosso parecer agudas que prosseguis, achaste-las alguma vez nos Profetas do Testamento Velho, ou nos Apóstolos e Evangelistas do Testamento Novo, ou no autor de ambos os Testamentos, Cristo? É certo que não, porque desde a primeira palavra do Génesis até à última do Apocalipse, não há tal coisa em todas as Escrituras. Pois se nas Escrituras não há o que dizeis e o que pregais, como cuidais que pregais a palavra de Deus? Mais: nesses lugares, nesses textos que alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido em que Deus os disse? É esse o sentido em que os entendem os padres da Igreja? É esse o sentido da mesma gramática das palavras? Não, por certo; porque muitas vezes as tomais pelo que toam e não pelo que significam, e talvez nem pelo que toam. Pois se não é esse o sentido das palavras de Deus, segue-se que não são palavras de Deus. E se não são palavras de Deus, que nos queixamos que não façam fruto as pregações? Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos, e não havemos de querer dizer o que elas dizem?! E então ver cabecear o auditório a estas coisas, quando devíamos de dar com a cabeça pelas paredes de as ouvir! Verdadeiramente não sei de que mais me espante, se dos nossos conceitos, se dos vossos aplausos? Oh, que bem levantou o pregador! Assim é; mas que levantou? Um falso testemunho ao texto, outro falso testemunho ao santo, outro ao entendimento e ao sentido de ambos. Então que se converta o mundo com falsos testemunhos da palavra de Deus? Se a alguém parecer demasiada a censura, ouça-me.

Estava Cristo acusado diante de Caifás, e diz o Evangelista S. Mateus que por fim vieram duas testemunhas falsas: Novissime venerunt duo falsi testes. Estas testemunhas referiram que ouviram dizer a Cristo que, se os Judeus destruíssem o templo, ele o tornaria a reedificar em três dias. Se lermos o Evangelista S. João, acharemos que Cristo verdadeiramente tinha dito as palavras referidas. Pois se Cristo tinha dito que havia de reedificar o templo dentro em três dias, e isto mesmo é o que referiram as testemunhas, como lhes chama o Evangelista testemunhas falsas: Duo falsi testes? O mesmo S. João deu a razão: Loquebatur de templo corporis sui. Quando Cristo disse que em três dias reedificaria o templo, falava o Senhor do templo místico de seu corpo, o qual os Judeus destruíram pela morte e o Senhor o reedificou pela ressurreição; e como Cristo falava do templo místico e as testemunhas o referiram ao templo material de Jerusalém, ainda que as palavras eram verdadeiras, as testemunhas eram falsas. Eram falsas, porque Cristo as dissera em um sentido, e eles as referiram em outro; e referir as palavras de Deus em diferente sentido do que foram ditas, é levantar falso testemunho a Deus, é levantar falso testemunho às Escrituras. Ah, Senhor, quantos falsos testemunhos vos levantam! Quantas vezes ouço dizer que dizeis o que nunca dissestes! Quantas vezes ouço dizer que são palavras vossas, o que são imaginações minhas, que me não quero excluir deste número! Que muito logo que as nossas imaginações, e as nossas vaidades, e as nossas fábulas não tenham a eficácia de palavra de Deus!

Miseráveis de nós, e miseráveis dos nossos tempos! Pois neles se veio a cumprir a profecia de S. Paulo: Erit tempus, cum sanam doctrinam non sustinebunt: Virá tempo, diz S. Paulo, «em que os homens não sofrerão a doutrina sã. Sed ad sua desideria coacervabunt sibi magistros prurientes auribus: Mas para seu apetite terão grande número de pregadores feitos a montão e sem escolha, os quais não façam mais que adular-lhes as orelhas. A veritate quidem auditum avertent, ad fabulas auten convertentur: Fecharão os ouvidos à verdade, e abri-los-ão às fábulas». Fábula tem duas significações: quer dizer fingimento e quer dizer comédia; e tudo são muitas pregações deste tempo. São fingimento, porque são sutilezas e pensamentos aéreos, sem fundamento de verdade; são comédia, porque os ouvintes vêm à pregação como à comédia; e há pregadores que vêm ao púlpito como comediantes. Uma das felicidades que se contava entre as do tempo presente era acabarem-se as comédias em Portugal; mas não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se; passaram-se do teatro ao púlpito. Não cuideis que encareço em chamar comédias a muitas pregações das que hoje se usam. Tomara ter aqui as comédias de Plauto, de Terêncio, de Séneca, e veríeis se não acháveis nelas muitos desenganos da vida e vaidade do Mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais verdadeiros, e muito mais sólidos, do que hoje se ouvem nos púlpitos. Grande miséria por certo, que se achem maiores documentos para a vida nos versos de um poeta profano, e gentio, que nas pregações de um orador cristão, e muitas vezes, sobre cristão, religioso!

Pouco disse S. Paulo em lhe chamar comédia, porque muitos sermões há que não são comédia, são farsa. Sobe talvez ao púlpito um pregador dos que professam ser mortos ao mundo, vestido ou amortalhado em um hábito de penitência (que todos, mais ou menos ásperos, são de penitência; e todos, desde o dia que os professamos, mortalhas); a vista é de horror, o nome de reverência, a matéria de compunção, a dignidade de oráculo, o lugar e a expectação de silêncio; e quando este se rompeu, que é o que se ouve? Se neste auditório estivesse um estrangeiro que nos não conhecesse e visse entrar este homem a falar em público naqueles trajos e em tal lugar, cuidaria que havia de ouvir uma trombeta do Céu; que cada palavra sua havia de ser um raio para os corações, que havia de pregar com o zelo e com o fervor de um Elias, que com a voz, com o gesto e com as ações havia de fazer em pó e em cinza os vícios. Isto havia de cuidar o estrangeiro. E nós que é o que vemos? Vemos sair da boca daquele homem, assim naqueles trajos, uma voz muito afectada e muito polida, e logo começar com muito desgarro, a quê? A motivar desvelos, a acreditar empenhos, a requintar finezas, a lisonjear precipícios, a brilhar auroras, a derreter cristais, a desmaiar jasmins, a toucar primaveras, e outras mil indignidades destas. Não é isto farsa a mais digna de riso, se não fora tanto para chorar? Na comédia o rei veste como rei, e fala como rei; o lacaio, veste como lacaio, e fala como lacaio; o rústico veste como rústico, e fala como rústico; mas um pregador, vestir como religioso e falar como... não o quero dizer, por reverência do lugar. Já que o púlpito é teatro, e o sermão comédia se quer, não faremos bem a figura? Não dirão as palavras com o vestido e com o ofício? Assim pregava S. Paulo, assim pregavam aqueles patriarcas que se vestiram e nos vestiram destes hábitos? Não louvamos e não admiramos o seu pregar? Não nos prezamos de seus filhos? Pois por que não os imitamos? Por que não pregamos como eles pregavam? Neste mesmo púlpito pregou S. Francisco Xavier, neste mesmo púlpito pregou S. Francisco de Borja; e eu, que tenho o mesmo hábito, por que não pregarei a sua doutrina, já que me falta o seu espírito?

X

Dir-me-eis o que a mim me dizem, e o que já tenho experimentado, que, se pregamos assim, zombam de nós os ouvintes, e não gostam de ouvir. Oh, boa razão para um servo de Jesus Cristo! Zombem e não gostem embora, e façamos nós nosso ofício! A doutrina de que eles zombam, a doutrina que eles desestimam, essa é a que lhes devemos pregar, e por isso mesmo, porque é mais proveitosa e a que mais hão mister. O trigo que caiu no caminho comeram-no as aves. Estas aves, como explicou o mesmo Cristo, são os demónios, que tiram a palavra de Deus dos corações dos homens: Venit Diabolus, et tollit verbum de corde ipsorum! Pois por que não comeu o Diabo o trigo que caiu entre os espinhos, ou o trigo que caiu nas pedras, senão o trigo que caiu no caminho? Porque o trigo que caiu no caminho: Conculcatum est ab hominibus: Pisaram-no os homens; e a doutrina que os homens pisam, a doutrina que os homens desprezam, essa é a de que o Diabo se teme. Dessoutros conceitos, dessoutros pensamentos, dessoutras sutilezas que os homens estimam e prezam, dessas não se teme nem se acautela o Diabo, porque sabe que não são essas as pregações que lhe hão-de tirar as almas das unhas. Mas daquela doutrina que cai: Secus viam: daquela doutrina que parece comum: Secus viam; daquela doutrina que parece trivial: Secus viam; daquela doutrina que parece trilhada: Secus viam; daquela doutrina que nos põe em caminho e em via da nossa salvação (que é a que os homens pisam e a que os homens desprezam), essa é a de que o Demónio se receia e se acautela, essa é a que procura comer e tirar do Mundo; e por isso mesmo essa é a que deviam pregar os pregadores, e a que deviam buscar os ouvintes. Mas se eles não o fizerem assim e zombarem de nós, zombemos nós tanto de suas zombarias como dos seus aplausos. Per infamiam et bonam famam, diz S. Paulo: O pregador há-de saber pregar com fama e sem fama. Mais diz o Apóstolo: Há-de pregar com fama e com infâmia. Pregar o pregador para ser afamado, isso é mundo: mas infamado, e pregar o que convém, ainda que seja com descrédito de sua fama?, isso é ser pregador de Jesus Cristo.

Pois o gostarem ou não gostarem os ouvintes! Oh, que advertência tão digna! Que médico há que repare no gosto do enfermo, quando trata de lhe dar saúde? Sarem e não gostem; salvem-se e amargue-lhes, que para isso somos médicos das almas. Quais vos parece que são as pedras sobre que caiu parte do trigo do Evangelho? Explicando Cristo a parábola, diz que as pedras são aqueles que ouvem a pregação com gosto: Hi sunt, qui cum gaudio suscipiunt verbum. Pois será bem que os ouvintes gostem e que no cabo fiquem pedras?! Não gostem e abrandem-se; não gostem e quebrem-se; não gostem e frutifiquem. Este é o modo com que frutificou o trigo que caiu na boa terra: Et fructum afferunt in patientia, conclui Cristo. De maneira que o frutificar não se ajunta com o gostar, senão com o padecer; frutifiquemos nós, e tenham eles paciência. A pregação que frutifica, a pregação que aproveita, não é aquela que dá gosto ao ouvinte, é aquela que lhe dá pena. Quando o ouvinte a cada palavra do pregador treme; quando cada palavra do pregador é um torcedor para o coração do ouvinte; quando o ouvinte vai do sermão para casa confuso e atónito, sem saber parte de si, então é a preparação qual convém, então se pode esperar que faça fruto: Et fructum afferunt in patientia.

Enfim, para que os pregadores saibam como hão-de pregar e os ouvintes a quem hão-de ouvir, acabo com um exemplo do nosso Reino, e quase dos nossos tempos. Pregavam em Coimbra dois famosos pregadores, ambos bem conhecidos por seus escritos; não os nomeio, porque os hei-de desigualar. Altercou-se entre alguns doutores da Universidade qual dos dois fosse maior pregador; e como não há juízo sem inclinação, uns diziam este, outros, aquele. Mas um lente, que entre os mais tinha maior autoridade, concluiu desta maneira: «Entre dois sujeitos tão grandes não me atrevo a interpor juízo; só direi uma diferença, que sempre experimento: quando ouço um, saio do sermão muito contente do pregador; quando ouço outro, saio muito descontente de mim.»

Com isto tenho acabado. Algum dia vos enganastes tanto comigo, que saíeis do sermão muito contentes do pregador; agora quisera eu desenganar-vos tanto, que saíreis muito descontentes de vós. Semeadores do Evangelho, eis aqui o que devemos pretender nos nossos sermões: não que os homens saiam contentes de nós, senão que saiam muito descontentes de si; não que lhes pareçam bem os nossos conceitos, mas que lhes pareçam mal os seus costumes, as suas vidas, os seus passatempos, as suas ambições e, enfim, todos os seus pecados. Contanto que se descontentem de si, descontentem-se embora de nós. Si hominibus placerem, Christus servus non essem, dizia o maior de todos os pregadores, S. Paulo: Se eu contentara aos homens, não seria servo de Deus. Oh, contentemos a Deus, e acabemos de não fazer caso dos homens! Advirtamos que nesta mesma Igreja há tribunas mais altas que as que vemos: Spectaculum facti sumus Deo, Angelis et hominibus. Acima das tribunas dos reis, estão as tribunas dos anjos, está a tribuna e o tribunal de Deus, que nos ouve e nos há-de julgar. Que conta há-de dar a Deus um pregador no Dia do Juízo? O ouvinte dirá: Não mo disseram. Mas o pregador? Vae mihi, quia tacui: Ai de mim, que não disse o que convinha! Não seja mais assim, por amor de Deus e de nós.

Estamos às portas da Quaresma, que é o tempo em que principalmente se semeia a palavra de Deus na Igreja, e em que ela se arma contra os vícios. Preguemos e armemo-nos todos contra os pecados, contra as soberbas, contra os ódios, contra as ambições, contra as invejas, contra as cobiças, contra as sensualidades. Veja o Céu que ainda tem na terra quem se põe da sua parte. Saiba o Inferno que ainda há na terra quem lhe faça guerra com a palavra de Deus, e saiba a mesma terra que ainda está em estado de reverdecer e dar muito fruto: Et fecit fructum centuplum.

NUPILL - Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística

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Educação Clássica e S. Vicente Ferrer

Detalhe de São Vicente Ferrer em Virgem apocalíptica e São Vicente
Ferrer com dois doadores
, por Pedro García de Benabarre -
Museu Nacional de Arte da Catalunha, Barcelona (Espanha).


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Tempo de leitura: 63 minutos. 

A sapientia christiana e a analogia das artes liberais em um Sermão de São Vicente Ferrer (1350-1419), por Gustavo Cambraia Franco e Ricardo da Costa In: CORTIJO OCAÑA, Antonio; MARTINES, Vicent (orgs.). Mirabilia/Medtrans 04 (2016/2). New Approaches in the Research on the Crown of Aragon, p. 01-26. Disponível no LINK.

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Resumo: O presente artigo contém uma exposição e análise do tema das Artes Liberais em um sermão de São Vicente Ferrer, renomado pregador dominicano valenciano da passagem entre os séculos XIV e XV. Pretende-se demonstrar que as Artes Liberais são abordadas pelo sermonista dentro do escopo teórico tradicional da classificação das ciências no período medieval, como ramos de conhecimento destinados ao serviço da ciência maior, a Teologia, a valer-se da máxima escolástica philosophia ancilla theologiae. A exposição do autor segue os princípios didáticos medievais do pensamento analógico, da hermenêutica figurativa e da exegese alegórica da Bíblia, mediante os quais enreda os significados e propriedades de cada ciência ou Arte Liberal, quais sejam, a Gramática, a Lógica e a Retórica, ciências do Trivium, e a Música, a Aritmética, a Geometria e a Astrologia, ciências do Quadrivium, em uma teia de relações metafóricas e analógicas que visam, ao fim, conferir um sentido e utilidade espiritual, religiosa e moral à cada uma delas e subordiná-las ao domínio régio da sapientia christiana.

Abstract: This article contains an exposition and an analysis on the theme of the Liberal Arts in a sermon of Saint Vincent Ferrer, renowned Dominican Valencian preacher during the passage between the fourteenth and fifteenth centuries. We intend to show that the Liberal Arts are addressed by the sermonist within the traditional theoretical scope of classification of sciences in the medieval period, as branches of knowledge for the service of the higher science, Theology, to avail the scholastic dictum philosophia ancilla theologiae. In his exposition, the author follows the medieval didactic principles of analogical thinking, the figurative hermeneutics and the allegorical exegesis of the Bible, by which he ensnares the meanings and properties of each science or Liberal Art, namely Grammar, Logic and Rhetoric, the Trivium sciences, and Music, Arithmetic, Geometry and Astrology, Quadrivium sciences, in a web of metaphorical and analogical relations aimed, at the end, to confer spiritual, religious and moral meaning and utility to each of them, as well as subordinate them to the royal domain of the sapientia christiana.

Palavras-chave: São Vicente Ferrer – Artes Liberais – Pensamento Analógico – Sermão Medieval – Ciência Medieval.

Keywords: Saint Vincent Ferrer – Liberal Arts – Analogical Thinking – Medieval Sermon – Medieval Science.

I. Introdução

Vicente Ferrer (1350-1419), renomado pregador dominicano de Valência, na Catalunha medieval, consagra um de seus sermões integralmente a tratar das Artes Liberais, a partir de uma estruturação quase matemática (e poética) de seus conteúdos. As sete disciplinas profanas e básicas do currículo escolar medieval são comparadas pelo pregador à Prudentia cristã, não sem motivo a primeira das quatro virtudes morais clássicas, relacionadas, no sermão, à ciência e sabedoria de Cristo [1].

Para compreender seus postulados sobre a matéria devemos inseri-los no quadro geral da perspectiva medieval acerca da noção de scientia e das ciências como um todo, bem como das transformações que o conceito de Artes Liberais experimentou durante a Idade Média, sobretudo a partir do século XIII, em um momento no qual o quadro geral das disciplinas tradicionais e as noções filosóficas acerca da ciência e do saber passavam por um câmbio radical.

II. As sete Artes Liberais no contexto da ciência medieval

Desde Santo Agostinho (354-430) [2], a tradição intelectual ocidental cristã concedeu um lugar privilegiado às chamadas Artes Liberais e aos saberes profanos no sistema de educação cristã e em seu programa de estudos, como etapas propedêuticas ao estudo da Sagrada Escritura. A organização dos estudos nas escolas medievais obedecia ao padrão que havia sido estabelecido por Santo Agostinho.

Até o século XII, o currículo de ciências profanas se limitava ao estudo das sete Artes Liberais como etapa preparatória ao conhecimento e exegese da Bíblia, ou seja, a leitura e interpretação crítica da divina pagina [3]. Apenas no século XIII é que as antigas escolas de artes liberais se transformaram em faculdades de artes liberais (facultas artium), uma seção das universidades na qual se ensinava as sete artes e na qual os estudantes recebiam uma formação literária e científica ordenada aos estudos superiores da Filosofia, da Teologia, do Direito e da Medicina.

As Artes Liberais não constituíam, com efeito, as únicas ciências profanas a fazer parte do amplo cabedal de disciplinas científicas na Idade Média. Santo Agostinho já havia numerado uma grande quantidade de matérias que formalmente deveriam fazer parte da formação intelectual cristã e que eram úteis no aprofundamento dos estudos bíblicos: línguas, ciências naturais, Aritmética, Música, História, Geografia, Botânica, Geologia, Astronomia, as Artes Mecânicas, Dialética, Retórica, Matemática, doutrinas filosóficas relativas à moral e a religião.

Boécio (c. 480-525) [4], que conhecia profundamente a estrutura completa da filosofia aristotélica, escreveu importantes tratados relativos à Dialética e ao Quadrivium e, a partir dele, a importância das Artes Liberais se acentuou no Ocidente. Escritores como Cassiodoro (485-580) [5], autor de De artibus ac disciplinis liberalium litteratum, Isidoro de Sevilha (556-636) [6] e suas Etimologias e João Escoto Eriúgena (815-877) [7], em seu Divisione naturae inseriram as sete artes no quadro geral da sabedoria filosófica que, em suma, era propriamente a sabedoria cristã que havia absorvido da cultura pagã seus recursos de investigação racional, postos agora à serviço da contemplação divina e da Palavra de Deus [8].

Antes do século XIII, nos ambientes do claustro monástico e das escolas catedralícias episcopais, as Artes Liberais e disciplinas profanas eram claramente concebidas como estudos meramente preparatórios ao estudo da scientia divina, considerada o cume da sabedoria. Entendia-se as Artes Liberais como diferentes divisões da Filosofia, essa considerada o conjunto e síntese completa do saber profano, em oposição à ciência sagrada. Os ramos básicos da Filosofia eram aqueles propostos e aprovados por Santo Agostinho e Orígenes (c. 185-253) [9], uma divisão tripartida em física, ética e metafísica/teologia.

A subordinação, portanto, das Artes Liberais às disciplinas superiores era de ordem pedagógica, pois deviam ser estudadas antes delas, de modo a preparar os espíritos e a inteligência para o ingresso intelectual em matérias mais difíceis.

No entanto, após a introdução no Ocidente das obras traduzidas de Aristóteles (384-322 a. C.) [10] e de sua adaptação ao currículo universitário medieval, um choque inevitável entre a cultura pagã renascente e a cultura da revelação cristã ocorreu novamente no meio acadêmico sob os olhares da autoridade eclesiástica.

Os medievais questionavam se, fato, era possível aderir a uma síntese de saber racional profano tal como fora concebido na Antiguidade grega, sem que por isso se arruinasse a unidade do saber e da inteligência cristã e o compromisso intelectual e espiritual com o primado do saber sagrado [11], o que espíritos e gênios mais equilibrados do medievo souberam pacientemente, e a seu tempo, resolver.

A assimilação das ciências e do saber profano foi possível, no plano teórico, mediante o trabalho de classificação e ordenamento hierárquico das ciências. Os medievais aspiravam e tinham uma necessidade de universalidade, de unidade e de ordem que se refletia não apenas na política e na organização social, mas também na ciência [12].

Inúmeros autores procederam em suas obras a determinados tipos de classificação das ciências e do saber, como é o caso, por exemplo, de Hugo de São Vítor (1096-1141) [13], de Roberto Grosseteste (1168-1253) [14], de Santo Tomás de Aquino (1225-1274) [15], São Boaventura (1221-1274) [16], Ramon Llull (1232-1316) [17], Duns Scot (1266-1308) [18] e Dante Alighieri (1265-1321) [19], que também se refere à classificação das ciências no início de seu tratado De Monarchia e no Convivio [20]. Todos eles buscaram, de alguma forma, ordenar os ramos do conhecimento e estabelecer sua finalidade e propósito.

Embora autores como Santo Tomás de Aquino tivessem estabelecido o grau  de independência metodológica própria da Filosofia, a classificação das ciências e dos saberes profanos obedecia a uma busca de harmonia orgânica e vital com a mentalidade geral da época, sobretudo no que diz respeito à sua ordenação e submissão à Teologia.

Havia uma clara distinção hierárquica feita entre a Filosofia (Humana scientia), que incluía as Artes Liberais, e a Teologia, a ciência sagrada (Divina scientia) ou a ciência da Revelação contida nos livros sagrados (Divina Scriptura), em uma ordem de apreciação na qual a “ciência humana” estava subordinada, como um meio instrumental, à “ciência divina”, considerada o fim de seu(s) objeto(s).

Aceitava-se a ideia de uma sapientia ou sabedoria humana e racional distinta da sapientia christiana, a qual, por sua vez, detinha o primado na ordem do saber. Nesse sentido, as Artes Liberais e todos os outros ramos da Filosofia não podiam se constituir em um saber integral e suficiente, mas eram unicamente etapas, meios e instrumentos destinados ao serviço da ordem teológica e da visão cristã do universo, da qual estavam impregnados os homens e a cultura do medievo [21].

Francesco de Stefano, Il Pesellino (1422-1457). As Sete Artes Liberais (c. 1450). Têmpera no painel. 41,6 x 147,3 cm. Birmingham Museum of Art, Alabama. As artes do Quadrivium (Aritmética, Geometria, Música e Astrologia) e as do Trivium (Lógica, Retórica e Gramática) aparecem neste painel decorado personificadas por figuras femininas, cada qual a segurar os objetos particulares de sua ciência, e sentadas sobre mestres e sábios da antiguidade e do medievo. No período medieval, as Artes Liberais formavam as disciplinas profanas de caráter propedêutico, que compunham a grade de estudos introdutórios às ciências superiores, Teologia e Filosofia, e eram a base do currículo escolar medieval, a enkuklios paidea ou círculo da educação, termo do qual se derivou o nome de enciclopédia. As Artes Liberais foram também teorizadas e estudadas, como parte do projeto medieval de hierarquização e classificação das ciências, por diversos autores e filósofos, como Boécio, Raimundo Lúlio e Dante Alighieri.


III. As Artes Liberais em um Sermão de São Vicente Ferrer

A visão de Vicente Ferrer acerca da Artes Liberais e da Filosofia como um todo abrange os mesmos princípios que inspiravam a organização dos estudos medievais, e reflete a intenção que subjaz a todos eles, qual seja, a de suprimir a ideia de autonomia e independência da Filosofia como síntese de saber e como sabedoria de vida autônoma, tal como erigida pelo paganismo.

São Vicente Ferrer ordena tal síntese ou sistema de saber racional em proveito do sistema teológico geral, isto é, da ciência divina, a fonte de conhecimentos especulativos e morais pertencente ao universo intelectual cristão.

Na visão rigidamente religiosa de São Vicente, a sabedoria secular não é suficiente para se alcançar a perfeição de vida e a salvação, se esta não for repleta das virtudes sobrenaturais e da sabedoria cristã. Nolite esse prudentes apud vosmet ipsos [22]. “Ninguém seja sábio aos seus próprios olhos” ou “que ninguém considere a si mesmo sábio” é a recomendação de São Paulo que o autor escolhe como a passagem-tema de seu sermão sobre as Artes Liberais.

A partir dela, argumenta o santo em favor da sabedoria cristã e enfatiza o caráter de insuficiência e mesmo os perigos que advém de uma valorização excessiva da “ciência dos filósofos” e dos saberes seculares profanos.

Ferrer primeiro prossegue a uma definição dos significados do conceito de prudentia, tal como aparece no texto bíblico para, então, esclarecer qual o significado da segunda expressão apud vosmet ipsos. Segundo o autor, três são as virtudes intelectuais, a ciência (scientia), a prudência (prudentia) e a sabedoria (sapientia). A ciência é o conhecimento que se tem das criaturas.

A prudência é a cognição intelectual dos atos humanos. A sabedoria é o conhecimento especulativo que se tem do divino, com sabor de devoção. Embora se possa falar de maneira comum da sabedoria, da prudência e da ciência como sendo a mesma virtude, de modo estrito elas se diferem, pois alguém pode ter uma delas e faltar com as outras.

Pode-se ter o conhecimento das criaturas, isto é, a ciência, mas não ter sabedoria, ou seja, a cognição e devoção ao divino. Ao contrário, pode-se conhecer a Deus e ter devoção espiritual, mas faltar com a prudência, virtude que regula os atos humanos em relação a Deus e ao próximo, e não governar a si próprio, enquanto ser racional, segundo a ordem estabelecida por Deus.

Desta forma, não basta ao homem simplesmente possuir tal ou tal virtude intelectual, mas possui-las todas e de forma ordenada, de modo que sejam efetivas. Assim como a mulher diligente é a coroa de seu marido [23], assim a sabedoria é a coroa da prudência virtuosa [24].

O termo ciência deve ser entendido de duas formas. Uma é a ciência que está em nós, a outra é a ciência que está acima de nós. A ciência que se encontra em nós mesmos, é aquela descoberta pelo intelecto e engenho humano, como é o caso das Sete Artes Liberais. Acima de nós está a ciência que não é descoberta por ação do intelecto humano, mas que foi revelada por Deus, como é o caso da ciência do Antigo e do Novo Testamento. “Não sejais sábios aos vossos próprios olhos”, como diz o tema, significa não se preocupar em ter muito ou pouco da ciência humana, mas desejar e buscar a ciência que se encontra acima do homem, a ciência sobrenatural revelada por Deus.

A razão é que a ciência, a arte e o engenho criados pelo intelecto humano são pequenos e módicos, mas a ciência de Deus é alta, elevada e magnífica. O pregador apresenta uma similitude para ilustrar a natureza das duas ciências e suas diferenças e compara o mundo com um palácio celestial visitado pelos filósofos. Os sábios deste mundo tiveram acesso ao conhecimento de alguns de seus elementos, mas, no entanto, não tiveram acesso às câmaras ou aposentos mais elevados e próximos de Deus e sua infinita sabedoria, cujo acesso é restrito aos sábios cristãos.

Et hoc potest videre per quandam similitudinem, quam tangit August. De rustico seu pastore, intrante palatium et dicente: illa est camera regis, et illa reginae, et illa filiorum, et illa fenestrae, etc., sed ipse non intrat cameram regis, nec videt regem, nec scit quid faciat, sed hoc sciunt cubicularii, consiliarii et Barones, qui intrant cameram, etc. Ideo isti judicantur sapientes, et non pastor seu rusticus. Iste mundus est palatium Dei, quod ipse fabricavit et creavit. O Israel, quam magna est domus Dei, etc. Baruch 3.

Hoc palatium intraverunt Philosophi, Pythagoras, Anaxagoras, Plato, Aristot., etc., et nihil sciverunt, nisi quod in illa camera, scilicet in coelo sit prima intelligentia cum suis consiliaris, scilicet Angelis, disputabant de fenestris, scilicet lune, solis, stellis, de motibus orbium, de animabus, etc. Sed ipse non viderunt Regem Deum, sed secretarii Dei, scilicet Sancti Patriarchae, Prophetae, Apostoli et Doctores sancti, isti habuerunt scientiam ex divina revelatione, scientes, quomodo Deus regat et gubernet mundum. Patet diferentia inter antiquos Philosophos et SS. Apostolos, etc., quibus dixit sic: Jam non dicam vos servos, ut Philosophi fuerunt, quia servus nescit, quid faciat dominus eius. Vos autem dixi amicos, quia quacunque audivi a Patre meo, nota feci vobis. Joan. 15 [25].

***

E isto se pode ver por uma similitude, de que trata Agostinho. Um pastor rústico entrou no palácio e disse: esta é a câmara do rei; esta a da rainha; esta a dos filhos, e estas são as janelas, etc., mas ele mesmo não entrou na câmara do rei, nem viu o rei, nem sabia o que ele estava fazendo. Mas isto sabiam os camareiros, os conselheiros e os Barões, pois eles entravam na câmara real. Por isso, estes são considerados sábios e não o pastor rústico. Este mundo é o palácio de Deus, que ele próprio fabricou e criou. Ó Israel, quão grande é a casa do Senhor, etc. Br 3, 24.

Neste palácio entraram os filósofos, Pitágoras, Anaxágoras, Platão, Aristóteles, etc., e nada conheceram senão o que estava naquele aposento, isto é, no céu no qual está a primeira inteligência com seus conselheiros, isto é, os Anjos, a disputar sobre as janelas, ou seja, a lua, o sol, as estrelas, o movimento do orbe, os animais, etc. Mas eles mesmos não viram a Deus Rei, mas somente os secretários de Deus o viram, isto é, os Santos Patriarcas, os Profetas, os Apóstolos e os Doutores santos, pois estes receberam a Ciência por divina revelação e sabem o modo com que Deus rege e governa o mundo. Eis a diferença entre os antigos filósofos e os Santos Apóstolos, etc., para os quais se disse: Já não vos chamo servos, como foram os filósofos, pois o servo não sabe o que faz o seu Senhor. Eu vos chamo amigos, pois vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai. Jo 15, 15.

A similitude tem o propósito de ilustrar o caráter de insuficiência da Filosofia face à plenitude de conhecimento cabível somente no âmbito da fé cristã e da amizade com Deus. Os filósofos antigos entreveram à luz da razão natural apenas alguns aspectos e porções do mundo criado. Eles entraram na primeira câmara do palácio de Deus e se entretiveram com a primeira inteligência celestial, com os “conselheiros” de Deus, os Anjos, por meio de disputas e argumentos sobre a natureza dos elementos do mundo, os astros, a lua, o sol, o movimento do orbe, sobre os animais, etc.

Mas eles, os filósofos, não visitaram a câmara do rei e não viram a Deus, um privilégio que coube apenas aos seus secretários, isto é, os Santos Patriarcas, os Profetas, os Apóstolos e Doutores da Igreja, os quais possuem a ciência da divina revelação e do modo como Deus rege e governa o mundo. Os antigos filósofos e a ciência filosófica são servos de Deus e de sua revelação, ao passo que os Apóstolos e Doutores cristãos são amigos de Cristo, que os deu a conhecer todos os mistérios que ouviu de Deus Pai.

Vicente Ferrer tem uma visão das Artes Liberais como uma ciência que, por ser um produto do engenho e intelecto humano, é limitada e deve, por isso, estar ordenada aos princípios mais elevados da virtude divina da Sabedoria, algo que se impõe pela própria estrutura cognitiva do intelecto humano, tal como concebido pelos escolásticos na divisão tripartida das virtudes intelectuais.

No entanto, o método analógico de raciocínio usado pelo pregador o leva a explicar, qualificar e comparar os elementos teóricos, técnicos e estruturais de cada arte liberal com doutrinas e exemplos morais extraídos da natureza da vida religiosa, da sua correspondência com o que é ensinado nos exemplos da Sagrada Escritura e que se remetem, por fim, à própria natureza de Cristo e à virtude da Sabedoria.

Em primeiro lugar, está a Gramática, chamada por Ferrer de “a primeira ciência dos filósofos”, a qual consiste no “falar com congruência ou concordância”. Três são suas características, a concordância entre o substantivo e o adjetivo, entre o nome e o verbo e entre relativos e antecedentes, as quais, na Gramática de Cristo, consistem em atribuir a Deus todas as coisas, guardar a boa fama do nome de si próprio e do próximo, manter sempre a honra e a reverência no falar e, por fim, ter sempre a verdade nos lábios, pois a oração verdadeira é aquela na qual não se encontra mentira ou falsidade nas palavras.

Prima scientia Philosophorum est Grammatica, quae docet loqui congrue, scilicet ut substantivum et adjectivum, nomem et verbum, relativum et antecedens conveniant. Ita in Grammatica Christi substantivum est Deus cuncta sustinens. Adjectiva autem quae in eo suppositantur, seu sustentantur, sunt omnia opera bona, sive mala poenalia, quae omnia a Deo sunt. [...] Nostra autem opera Deo sunt attribuenda, quia ipse facit omnia et sic substantiatur in Deo. Et ista est bona congruitas attribuire illa, quae fiunt et non creaturis quia incongruum esset. [...] Secundo debent convenire nomem et verbum in Grammatica Christi. Nomem est fama [...] verbo est sermo tuus.

Tunc nomem et verbum concordant quando tu non difamas nec mordes publicum peccatum nec secretum personae nominatae, sed cum reverentia et honore loquis vis de eis. [...] Tertio: relativum et antecedens est negotium de quo loquimini. Et conveniunt quando homo dicit veritatem de illo facto vel negocio, quia abe o, quod res est, vel non est, oratio vera vel falta dicitur. Omne mendacium est contra Grammaticam Christi, quia res extra non conveniunt [26].

***

A primeira ciência dos filósofos é a Gramática, que ensina a falar de forma congruente, isto é, para que o substantivo e o adjetivo, o nome e o verbo, o relativo e o antecedente sejam convenientes. Na Gramática de Cristo o substantivo é Deus, que tudo sustenta. O adjetivo, por sua vez, que ele supõe e sustenta são todas as boas obras, ou as penas, pois todas pertencem a Deus. [...] Nossas obras devem ser atribuidas a Deus, pois Ele tudo fez e, assim encontram sua substância em Deus. E é boa congruência atribuir-lhe as coisas feitas, e não às criaturas, o que é uma incongruência. [...] Em segundo lugar, deve-se convir o nome e o verbo na Gramática de Cristo. O nome é a fama [...] o verbo é a sua palavra.

Dessa forma, o nome e o verbo concordam quando tu não difamas nem atacas em público o pecado ou segredo da pessoa nomeada, mas com reverência e honra falas dela. [...] Terceiro, relativo e antecedente são os negócios dos quais falas. E eles concordam quando o homem diz a verdade sobre aquele fato ou negócio, que coisa é, que coisa não é, de modo que se diz que a oração é verdadeira ou falsa. Toda mentira é contra a Gramática de Cristo, pois uma coisa que vai além da verdade não é conveniente.

O cristão deve atribuir todas as coisas a Deus como ao substantivo de todas as coisas, menos a má vontade e o pecado. Se todos os entes derivam e são causados pelo Primeiro Ente, Deus, conforme estabelecido por Aristóteles na Metafísica, segue-se que todas as obras boas ou mesmo certos males relativos, destinados à punição do homem pelo pecado, são obras de Deus.

Assim como a beleza de uma carta não se atribui à pena, mas ao escritor, a beleza e harmonia da natureza devem ser atribuídas a Deus como uma boa Gramática, pois as criaturas, a natureza e as constelações são apenas instrumentos e não origem e causa de si mesmas.

Assim a chuva, a abundância, e mesmo a esterilidade, a fome e a mortalidade, as enfermidades, as dores e adversidades, tudo deve ser atribuído a Deus, como adjetivos que se relacionam ao substantivo na oração gramatical divina. A Gramática de Cristo encontra-se nas Escrituras, no exemplo da resposta de Jacó à Esaú: E levantando Esaú os olhos, viu as mulheres e os meninos, e perguntou: Quem são estes contigo? Respondeu-lhe Jacó: Os filhos que Deus bondosamente tem dado a teu servo [27]. Jacó foi exemplo da boa Gramática que estabelece a necessidade de tudo atribuir a Deus.

A “segunda ciência dos Filósofos”, a Lógica, é a ciência que ensina a definir, disputar e raciocinar por silogismos, induções e enthymemata, isto é, o conjunto clássico de silogismos retóricos que deve ser usado na prática oratória. A finalidade da Lógica definida por São Vicente Ferrer deixa mais preciso o escopo religioso do conhecimento adquirido pelas luzes da razão e sua natureza instrumental em relação à ordem das coisas divinas e de certas práticas religiosas.

Com efeito, a Lógica dos filósofos consiste em um espírito diletante que faz os homens se oporem a outros homens. A Lógica de Cristo, no entanto, é a ciência que ensina os cristãos a disputarem e argumentarem contra as insídias, tentações e arguições do Diabo.

Secunda scientia Philosophorum est Logica, quae docet definire, disputare et rationes facere per silogismos vel consequentias, vel enthymemata, vel inductiones. Hanc invenerunt Philosophi ad disputandum, scilicet, ut homo cum homine, sed non cum diabolo disputet. Sed Logica Christi docet modum disputandi contra Diabolum. Diabolus magnus sofista facit multa argumenta contra illud, quo debemus credere, vel contra illa quae debemus facere, vel contra e aquae debemus sperare [28].

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A segunda ciência dos filósofos é a Lógica, que ensina a definir, disputar e fazer raciocínios por silogismos ou consequências, ou enthymemata, ou induções. Ocorre que a descobriram os filósofos para disputarem, isto é, disputar homem contra homem e não contra o Diabo. Mas a Lógica de Cristo ensina o modo com o qual disputar contra o Diabo. O Diabo é um grande sofista e faz muitos argumentos contra aquilo que devemos crer ou contra aquilo que devemos fazer ou contra aquilo que devemos esperar.com o qual disputar contra o Diabo. O Diabo é um grande sofista e faz muitos argumentos contra aquilo que devemos crer ou contra aquilo que devemos fazer ou contra aquilo que devemos esperar.

O Diabo argumenta contra aquilo em que o cristão deve crer, isto é, contra os dogmas de fé como, por exemplo, a Santíssima Trindade, a Encarnação de Cristo, a transubstanciação da hóstia consagrada, a virgindade perpétua de Maria, entre outras matérias de fé em relação as quais a Lógica de Cristo impõe responder com São Paulo: Et autem, qui potens est Deus, omnia facere superabundanter quam petimus aut intelligimus.

O diabo argumenta, ainda, contra aquilo que se deve fazer, isto é, a penitência e contra aquilo que o homem deve esperar, isto é, ser elevado ao céu. A disputa implica responder contra a astúcia e os sofismas do inimigo com os ensinamentos de Cristo, das Escrituras e da doutrina da Igreja.

Vicente Ferrer cita a disputa de argumentos entre Eva e a serpente descrita no livro de Gênesis. Ante a replicação da serpente, que a incitou a comer do fruto proibido, Eva deveria responder fundada na vontade de Deus e naquilo que O agrada, porém responde de outra forma e confirma o argumento do Diabo. O autor mostra, assim, que a Sagrada Escritura contém exemplos não somente do bom, mas também do mau uso da Lógica.

A terceira ciência, a Retórica, ensina a fazer petições e súplicas a Deus de forma apropriada e prudente. Erram aqueles que, como o fariseu, gabam-se dos dons recebidos por Deus como se fossem virtudes próprias. A Retórica de Cristo consiste, segundo o santo, em reconhecer que a prática das boas obras não é fundada na bondade do homem, mas de Deus. De nada vale pedir a graça de jejuar, de dar esmolas, de visitar os hospitais para saciar a vaidade e o amor próprio. São Vicente dá um exemplo da boa retórica, ao dizer

Ideo Rethorica Christi docet proprie allegare dicens: Domine vos fecistis mihi tot gratias, in creatione ad imaginem et similitudinem vestram. Similiter in nativitate, quia inter Christianos nati sum. Quia baptizatus, etc. Ideo Domine compleatis et faciatis mihi hanc gratiam. Ecce ista bona Rethorica, alegando ex parte Dei et non tua [29].

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Por isso, a Retórica de Cristo ensina a alegar devidamente, dizendo: Senhor, vós me destes toda graça, e na criação me fez à sua imagem e semelhança. Do mesmo modo em meu nascimento, pois nasci entre cristãos. Por meu batismo, etc. Por isso, o Senhor cumpriu e fez em mim esta graça. Eis o que é a boa Retórica, alegar da parte de Deus e não da tua.

Na Retórica cristã, há uma dupla alegação ou petição a ser feita, uma da parte de Deus, ao alegar suas excelências ou da parte de si mesmo, ao agradecer os benefícios divinos recebidos. São Vicente distingue as quatro formas de oração, ou seja, a obsecração, que consiste no pedido feito através dos méritos do nascimento ou da Paixão de Cristo, a oração, que é a elevação da mente a Deus, a ação de graças, que consiste no agradecimento feito pelas graças recebidas e, por fim, a petição ou o ato de pedir algum benefício.

À ciência do discurso e da fala, Ferrer acrescenta um componente ético e uma forte tonalidade religiosa. Todas as formas de se dirigir a Deus, de maneira apropriada e prudente, são partes da boa retórica, da Retórica de Cristo, a qual não se resume, como no classicismo, na arte de embelezar o discurso, mas de fazê-lo de tal modo que seja justo e agradável a Deus.

Aos medievais, sobretudo entre os pregadores, era cara a noção de que a eloquência e a verdadeira Retórica deveriam estar ao serviço da Ética e das virtudes. Seus alicerces deveriam ser a Verdade, o Bem, a Justiça e a Prudência. O discurso deveria agradar a Deus antes que aos homens. A utilidade do discurso não residia no mero deleite pessoal, mas em sua capacidade de mover o homem para o que é justo e bom.

A tradição medieval manteve a validade e o cariz ético da retórica clássica, incorporando nela as virtudes cristãs ou teologais (Fé, Esperança e Caridade). A retórica era concebida como um instrumento à serviço da palavra de Deus, pois compreendia-se que a finalidade da eloquência é a verdade. Os oradores deveriam valorizar mais “a verdade da doutrina que a beleza das palavras” [30].

Na visão de Ferrer, a tônica religiosa e espiritual que impõe às regras do discurso e da fala, é ainda maior que em outros autores, que de uma forma geral, no entanto, tendiam a direcionar a função das Artes e instrumentalizá-las inevitavelmente à um fim espiritual e moral [31]. São Vicente não se deixa conduzir a uma efetiva explicação e teorização técnica e conceitual das ciências e das Artes Liberais, mas tão somente pretende, no sermão apresentado, inseri-las no quadro geral de sua perspectiva teológica e ética [32].

Assim, ele define a quarta ciência, a Música, como a concordância e harmonia do canto e apresenta uma série de analogias extraídas da interpretação alegórica da Bíblia. A harmonia das vozes muito agrada a Deus, diz o pregador. A Música de Cristo consiste na harmonia da penitência, a qual possui três vozes ou notas musicais: a terça, que é a dor do peito e a compunção, a quinta, que são os suspiros e gemidos e a oitava, que consiste em suplicar a misericórdia divina.

Sume citharam, quae est poenitentia, cithara enim est lignum aridum et vacum, alias non faceret sonum. Ita persona poenitens est arida per abstinentia et vacua, quia sine praesumptione de Dei misericordia, neque stulte confidet. Cithara poenitentia habet octo chordas, facientis acutum sonum. Prima est paccatorum cognitio et emendanti propositum, et sic de aliis. Circui civitatem [...] quae circuire debet per vicos et plateas, scilicet ad Deum et ad Sanctos recurrendo [33].

Primo coram palatio Trinitatis dicendo: Domine opus vestrum sum, ideo Domine parcatis mihi. Ecce una cantilena. Deinde coram Virgine Maria, dicendo illud: nec abhore peccatores, sine quibus nunquam fores tanto digna filio. Deinde ad plateas Patriarcharum et Prophetarum, etc. Bene cane, frequenta canticum. Ista musica placet Deo, ideo dicit: Qua habitas in hortis, amici auscultant, fac me audire vocem tuam. Cant. 8. Horti dicuntur Ecclesiae. Amici, sancti qui auscultant quemadmodum de nocte homo auscultat cantus.

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Tome a cítara, que é a penitência, a cítara tem a madeira árida e vazia, pois de outra forma não emitiria som. Da mesma forma, a pessoa penitente é árida pela abstinência e vazia, pois é sem presunção da misericórdia de Deus, nem estultamente confiante. A Cítara da penitência tem oito cordas, que fazem som agudo. A primeira é a cognição do pecado e o propósito de emendar-se, e assim com as outras. Rodeie a cidade [...] pois deves circular pelas vias e ruas, isto é, a Deus e aos Santos recorrendo.

Primeiro diante do palácio da Trindade, dizendo: Senhor, sou obra sua, por isso o Senhor me poupa. Eis uma cantilena. Depois, diante da Virgem Maria, dizendo a ela: não abomines os pecadores, sem os quais não seria a digna Mãe de teu filho. Depois às ruas dos Patriarcas e Profetas, etc. Faça belas melodias, cante muitos cânticos. Esta música agrada a Deus, por isso foi dito: Ó vós que habitais os jardins, os amigos estão atentos para ouvir tua voz; faze-me, pois, também ouvi-la [34]. O jardim significa a Igreja. Os amigos são aqueles que escutam como de noite o homem escuta um cântico.

A passagem citada decorre da interpretação alegórica da passagem do profeta Isaías e procura estabelecer um vínculo bíblico entre a música e a penitência: Sume tibi citharam, circui civitate meretrix oblivioni tradita. Bene cane, frequenta canticum, ut memoria sit tui [35]. A meretriz esquecida é uma figura da alma pecadora desposada por Cristo no batismo e que deve a Ele retornar, a percorrer a cidade de Deus, cantar cânticos e fazer belas melodias de penitência, para que sua memória não seja esquecida.

O instrumento musical citado pelo profeta, a cítara, é uma figura da penitência e das cantilenas de arrependimento feitas pelos filhos de Deus nos diversos coros do palácio da Cidade de Deus, conforme esboça São Vicente Ferrer na bela analogia citada.

No caso da Aritmética, a ciência da numeração, São Vicente Ferrer procede a uma minuciosa e detalhada exposição da doutrina penitencial, por meio da analogia entre a arte da numeração com a prática sacramental da confissão. A Aritmética de Cristo consiste na numeração e divisão dos gêneros e espécies de pecados cometidos contra Deus e seus preceitos e contra as obras de misericórdia, por vício nos sentidos corporais. Na confissão, não basta enumerar ao confessor os pecados mortais, mas também os veniais, pois, caso contrário, esta seria uma aritmética do Diabo [36].

Existem três tipos de confissão: a primeira é chamada confissão especial ou confissão sacramental, que é aquela na qual o pecador enumera seus pecados ao sacerdote; a segunda é chamada confissão geral, a qual se faz no introito da Missa ou aquela confissão de culpa que fazem os religiosos na reunião do capítulo da Ordem; e a terceira é a confissão generalíssima, pela qual se diz a Deus “sou pecador”.

São Vicente Ferrer utiliza o exemplo dos vícios capitais para ensinar que não basta, na confissão oral, dizer o nome genérico do pecado, como por exemplo, a soberba, mas é necessário descer até suas espécies, qual seja, se o pecado da soberba e desprezo foi contra o pai ou a mãe, contra um Prelado ou Senhor, contra um maior ou menor em dignidade e honra, ou um igual, ou ainda, se foi contra um santo ou contra Deus.

A avareza também é uma designação genérica que comporta muitas espécies de pecado, como a simonia, a usura, a rapina ou o furto ou, ainda, se foi cometida comprando, vendendo, caluniando ou julgando.

Da mesma forma com a luxúria, é necessário enumerar na confissão se foi um ato de fornicação, ou adultério, rapto, incesto ou sacrilégio ou um pecado contra a natureza. Não se deve dizer o nome do indivíduo, isto é, nominar as pessoas, mas dizer a espécie de cada pecado mortal.

São Vicente cita o exemplum ilustrativo de um italiano que dizia ter somente três pecados parvíssimos: a usura, a luxúria e não crer em Deus. Ele enumera mal os pecados, diferente do rei de Judá, Manassés que, de acordo com a Aritmética de Cristo, bem enumera seus pecados dizendo: peccavi super numerum arena maris et multiplicata iniquitates meae [37].

A Geometria, a sexta na ordem das Artes Liberais e a terceira do Quadrivium, é a ciência dos filósofos que trata das medidas e proporções. De acordo com São Vicente, a Geometria de Cristo ensina a medir, de forma correta e prudente, a própria vida, os bens temporais e o serviço que se deve prestar a Deus. Se bem medir-se a vida humana nesta terra, ver-se-á que ela é insignificante e transitória, quase um nada, pois o que é passado nada é e o que seria o futuro, não existe.

A vida humana consiste em um ponto, pois do tempo o homem não tem senão o presente. Assim bem conhecia a medida desta vida Tiago Apóstolo, que afirmou: Quae enim est vita vestra? Vapor ad modicum parens et deinceps exterminabitur [38].

Por ser a vida tão módica, devemos ter os méritos da humildade. Em segundo lugar, diz São Vicente Ferrer, devemos medir os bens temporais, as honrarias, os ofícios, as dignidades e prelações. Se bem medidos, nenhum desses bens parece bom, pois o mérito não reside no fato de ser um rei ou um papa, mas em prestar contas a Deus das almas e fazer o bem a todos sob pena de danação eterna.

O rei deve prestar conta do bem de todos os seus súditos e o papa das almas de seu rebanho. Possuir muitas riquezas é um grande bem, o qual, no entanto, é frequentemente mal medido, conforme ilustrado por uma outra similitude apresentada por São Vicente Ferrer, que faz alusão à tolice de se acumular riquezas em proveito próprio.

Item videtur vobis, quod habere multas divitias sit Magnum bonum, sed male mensuratis, quia asinus potest esse auro oneratus, quod nec potest ipsum secum portare, ita quilibet dives oneratus est bonis divitiarum ipsius mundi, qui est Dominus divitiarum. Si vultus scire, quis divitiarum est Dominus, vos, an mundus? [...] Ideo onerate vos virtutibus et meritis, quae sequuntur hominem. Item videtur vobis, quod perfectae et purae, consolationes, vel etiam transitoriae et momentaneae voluptates carnis sint magnae delectationes, sed debemus mensurare servitium Dei [39].

***

Vede vós, que ter muitas riquezas é um grande bem, mas mal mensurado, pois como o asno pode ser onerado pelo peso do ouro, mas não pode ele mesmo possui-lo, assim é qualquer rico que esteja onerado com os bens e riquezas desse mundo, que são riquezas de Deus. Se queres saber, quem é o senhor da riqueza, vós ou o mundo? Por isso, onerai-vos de virtudes e méritos, que seguem o homem. Também vede vós, quão perfeitas e puras são suas consolações, e quão transitórios e momentâneos são os deleites e prazeres da carne, mas, por isso, devemos mensurar o serviço de Deus.

O homem tolo é como um asno que carrega ouro nas costas, mas não é o dono da riqueza. Os bens temporais são dádivas que pertencem a Deus e que a Ele devem ser remetidas. A Geometria de Cristo ensina ao homem a não se onerar de riquezas vãs e mundanas, bem como dos falsos, transitórios e momentâneos deleites da carne, mas a medir o serviço de Deus e acumular-se de virtudes e méritos, pela prática de obras puras e perfeitas. A medida justa é aquela de quem se humilha: Quanto magnus est, humilia te in omnibus et coram Deo invenies gratiam [40].

Vicente Ferrer conclui sua exposição sobre as Artes Liberais com a sétima das artes e última do Quadrivium. O pregador define a Astrologia como a ciência dos motores celestes, da ordenação dos planetas e da influência que eles exercem sobre a terra e os homens. Os astros, com o sol e a lua e suas caraterísticas naturais são considerados por São Vicente Ferrer como figuras analógicas da Santíssima Trindade, da Igreja e da Virgem Maria.

De acordo com a Astrologia que se aprende na escola de Cristo, assim como não há senão um só sol no céu, o qual possui três atributos, a substância, a radiação e o calor, também não há no céu empíreo senão um só Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. O sol circula pelo mundo desde o princípio do ano até o seu final, num círculo formado pelos doze signos, e ilumina, aquece e faz frutificar a terra.

Assim, também, o Sol de Justiça, Cristo, circula na terra e entre os homens pela fé nos doze artigos do Credo, dos quais alguns tratam de sua divindade e outros de sua humanidade. Ferrer alegoriza a figura da lua e de seus estágios, primeiro, ao compará-los com as idades da Igreja cristã, e depois, com os estágios de vida da Virgem Maria.

Item luna totam claritatem recipit a sole, ita Ecclesia totam claritatem habet a Deo. Nota septem conditiones lunae, quae reperiuntur in Ecclesia. Primo fuit nova tempore Christi et Apostolorum. Secundo fuit crescens tempore martyrum. Tertio fuit plena tempore Doctorum. Quarta fuit minuta tempore confessorum. Quinto fuit girata. Nam totus mundus est giratus et versus ad vanitatem. Sexto eclypsabitur cito, scilicet tempore Antichristi. Septimo in die judicii erit perfecta in aeternum. [...]

Et sicut in sole sunt tria, substantia, radius et calor, ita in Christo substantia corporis et radius divinitatis et calor dilectionis. Luna est Virgo Maria, quae fuit nova in nativitate, crescens in templi habitatione, plena in filii Dei conceptione, minuta secum portans Dominum in Aegypti fugatione, et girata in passione Christi, eclypsata in corporis defunctione et tandem perfecta in corporis et animae glorificatione [41].

***

Da mesma forma que a lua recebe toda a sua claridade do sol, assim a Igreja recebe sua claridade de Deus. Observe as sete condições da lua, que se encontram na Igreja. A primeira foi o tempo novo de Cristo e dos Apóstolos. A segunda foi o tempo crescente dos mártires. A terceira foi o tempo pleno dos Doutores. A quarta foi o tempo minguante dos Confessores. A quinta foi o retorno. Pois todo o mundo retornou verso à vaidade. A sexto é o rápido eclipse, isto é, o tempo do Anticristo. A sétima condição no dia do juízo, quando será perfeita e eterna. [...]

E assim como no sol encontram-se três atributos, isto é, substância, radiação e calor, assim em Cristo há a substância de seu corpo, a radiação de sua divindade e o calor de seu amor. A lua é a Virgem Maria, que foi nova em seu nascimento, crescente na habitação do templo, cheia na concepção do Filho de Deus, minguante ao carregar o Senhor na fuga do Egito, virada na Paixão de Cristo, eclipsada na morte do corpo e, então, perfeita na glorificação do corpo e da alma.

A conclusão da exposição não poderia ser mais significativa dessa relação especular. O bom astrólogo é aquele que contempla os planetas e considera-os análogos aos Anjos, os quais exercem influência constante no mundo e nos custodiam na terra. Mesmo no estudo das ciências naturais, humanas e filosóficas, a razão do cristão deve estar sempre embebida do espirito de contemplação, segundo a palavra de São Paulo: nostra conversatio in coelis est [42].

Deve o homem evitar estimar em demasia a prudência e a sabedoria do mundo e da carne, mas buscar e desejar a contemplação claríssima das coisas celestes, pela virtude da Sabedoria divina, infinita e incriada que Deus concederá ao seus na sua glória [43].

Para São Vicente, há nos astros e na composição da esfera celeste um conjunto de significados alegóricos e simbólicos que estão estampados imageticamente em sua natureza e em seus atributos. O pensamento analógico mais uma irriga a visão religiosa e providencial que se tem da ciência. Há uma Astrologia científica, assim como há uma Astrologia cristã.

Os elementos da esfera natural são sacramentalizados e sacralizados, e transpostos pelo santo em uma linguagem simbólica e figural. O speculum naturae mais uma vez é entrelaçado com a doutrina religiosa e com a visão cristã do universo, em um sistema analógico de referências construído através do jogo especular entre o âmbito da fé e da razão, entre a Teologia e a Filosofia, e entre o mundo das realidades e entidades sobrenaturais e naturais.

Em sua abordagem das ciências profanas, Ferrer age como o construtor de um dique que tem por propósito separar e distinguir o âmbito da cultura filosófica do âmbito da ciência divina. No embate entre a cultura secular e a do paganismo renascente em face da ordem e da tradição intelectual e religiosa cristã medieval, a visão sacralizada do mundo e do conhecimento é amplamente favorecida pelo pregador.

O autor não admite a tendência de se insuflar os métodos tradicionais de exegese e a consciência estritamente religiosa do conhecimento e da sabedoria, fundada nas fontes da Sagrada Escritura, em favor da valorização excessiva e imprudente da Filosofia e da sapientia pagã que, aos seus olhos, consistiria sempre numa ocasião de perigo e perda do sentido de fé, ocasião diante da qual nenhum homem possui imunidade.

Nesse sentido, a missão de Vicente Ferrer, como legatus a latere Christo, o impelia a agir na sociedade como reformador dos costumes e, consequentemente, da própria cultura. O pregador estava ciente de que era um porta-voz do céu, um catequista e moralizador que devia necessariamente direcionar e vincular seu discurso ao seu objetivo maior e final, qual seja, a de formar o povo e o clero em uma vida cristã modelar e efetiva.

Baseava-se em uma visão de mundo particular e essencialmente religiosa, e afastava-se o tanto quanto lhe era capaz do paganismo renascentista que já despertava, em seu tempo, inúmeras inquietações e profundas mudanças na cultura medieval.

Se os humanistas viam e desfrutavam da cultura clássica com um espírito de prazer e deleite e julgavam, como cristãos, que eram maduros e conscientes o suficiente para não deixá-la suplantar-lhes a fé, Vicente Ferrer, pelo contrário, enxergava a cultura pagã de uma forma geral e seu reflorescimento como uma perigosa e mortal investida do demônio contra a ordem cristã e contra as ovelhas do rebanho de Cristo [44].

Por esse motivo, embora o pregador se aproxime e trate frequentemente da “ciência dos filósofos”, valendo-se de muitos de seus postulados e ensinamentos, o faz apenas de maneira instrumental. Serve-se da Filosofia e medita a natureza das Artes Liberais dentro do escopo do verdadeiro sentido de sua existência, como servas da ciência sagrada.

O cristão, salienta, deveria se ocupar mais das Sagradas Escrituras, da obra dos Padres cristãos antigos e do magistério da Igreja e menos com os artifícios da Lógica, da Retórica e das demais ciências profanas, cujo uso e significado devem ser vertidos em proveito do evangelho e da autêntica vida cristã.

Conclusão

Na concepção ferreriana, a scientia divina é a única verdadeiramente necessária, ao passo que a humana scientia serve apenas para o consolo e conforto da inteligência. Não sem razão, vemos abundar no sermão analisado, por um lado, matérias e disciplinas que tratam da prática da religião, como a temática dos sacramentos, da penitência, das virtudes e dos vícios, da oração, das ordens e dos estados eclesiásticos e civis, da teologia trinitária, cristológica e mariana, bem como das relações do homem para com Deus e o próximo baseadas em uma concepção feudal e sacralizada.

Por outro lado, todas essas matérias são expostas tendo como recipiente intelectual o bojo da mentalidade simbólica medieval, profundamente imersa na visão alegórica, metafórica, figural e analógica da realidade, na qual a doutrina se faz compreensível por meio do exemplum, da similitude, do jogo especular entre o mundo físico, natural e o mundo sobrenatural e, sobretudo, pelo uso abundante do metaforismo e da exegese alegórica da Bíblia, considerada a fonte principal e inesgotável da ciência e do saber.

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Notas

[1] Daqui o sugestivo nome do sermão, De Christiana prudentia, quae certo modo septe artes liberales complectitur. Cf. SANCTI VICENTII FERRERII. “Dominica III Post Epiphaniam. Sermo III”. In: Opera Seu Sermones de Tempore. Tomus primus. Augsburg: Strötter, 1729, p. 114. Trata-se de um sermão modelo, de uma peça oratória repetida a ser usada em diversas ocasiões, provavelmente durante a campanha castelhana de sua pregação, e que se encontram, além da versão latina, também em catalão e castelhano, como atesta Ysern i Lagarda em sua análise de um outro sermão semelhante, no qual o autor versa, do mesmo modo, sobre as Artes Liberais. Cf. YSERN I LAGARDA, Josep-Antoni. “Sobre el Sermo unius confessoris et septem arcium spiritualium de Sant Vicent Ferrer”. In: Revista de Lengua y Literatura Catalana, Gallega y Vasca 6 (1999), p.117.

[2] Agostinho de Hipona, ou Santo Agostinho, foi um dos mais importantes teólogos e filósofos dos primeiros anos do Cristianismo, cujas obras foram muito influentes no desenvolvimento do cristianismo e da filosofia ocidental. Foi Bispo de Hipona, uma cidade na província romana da África. Escreveu na era patrística, e é amplamente considerado como o mais importante dos Padres da Igreja no Ocidente. Cf. GILSON, Etiénne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 2006. Entre suas principais obras, está a Cidade de Deus (Civitate Dei) e um tratado de Exegese Bíblica (De Doctrina Christiana) muito difundido na Idade Média. Cf. SANTO AGOSTINHO. A Doutrina Cristã. Manual de exegese e formação cristã. São Paulo: Paulus, 2002. O Cristianismo levou a cabo um processo de revisão do espírito pagão antigo e de seu programa educacional. A obra De Doctrina Christiana, de Santo Agostinho, marcou o ponto culminante nesse processo de revisão, no qual se deu o encontro decisivo entre a Revelação cristã com a visão de mundo outrora elaborada pelo paganismo e influenciou sobremaneira o plano de organização de estudos nas escolas cristãs. A obra, usada por padres e bispos para a catequese, é composta de uma introdução à leitura e exegese das Sagradas Escrituras e contém a concepção agostiniana acerca do saber cristão que veio substituir a Filosofia e sabedoria pagã. A sabedoria cristã é concebida como uma síntese de saberes que se centram e atingem seu cume na ciência dos livros sagrados, na Bíblia. Agostinho demonstra que todas as ciências profanas devem ser utilizadas pelo cristão na exegese da Bíblia, em um programa de estudos que ia além dos limites das Sete Artes Liberais. Cf. VAN STEENBERGHEN, Fernand. “L'organisation des études au moyen âge et ses répercussions sur le mouvement philosophique”. In: Revue Philosophique de Louvain. Troisième série, tome 52, n°36, 1954, p. 577.

[3] Cf. DUBY, Georges. O Tempo das Catedrais. A arte e a sociedade (980-1420). Lisboa: Estampa, 1993, pp. 118-119.

[4] Filósofo, estadista, musicólogo e teólogo romano que se notabilizou pela sua tradução e comentário do Isagoge de Porfírio, obra que se transformou em um dos textos mais influentes da Filosofia medieval europeia. Traduziu, comentou e resumiu, entre obras dos clássicos gregos, vários tratados sobre Matemática, Lógica e Teologia. Enquanto aguardava sob prisão a execução, escreveu De Consolatione Philosophiae (A Consolação da Filosofia), obra que versa, entre outros temas, sobre o conceito de eternidade e na qual tenta demonstrar que a procura da sabedoria e do amor de Deus é a verdadeira fonte da felicidade humana. Ver BOÉCIO. A Consolação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998; e COSTA, Ricardo da; ZIERER, Adriana. “Boécio e Ramon Llull: a Roda da Fortuna, princípio e fim dos homens”. In: Revista Convenit Internacional  (Editora Mandruvá), 5 (2000).

[5] Político, historiador, musicólogo e filósofo latino, fundador do mosteiro de Vivarium, no sul da Itália. Ver LEJAY, Paul. “Cassiosorus”. In: The Catholic Encyclopedia, vol 13 (1913).

[6] Isidoro de Sevilha (em latim: Isidorus Hispalensis; nascido provavelmente em Cartagena) foi um eclesiástico católico erudito polímata hispanogodo. Foi Arcebispo de Sevilha durante mais de três décadas (599-636) e canonizado pela Igreja Católica, por isso conhecido habitualmente como Santo Isidoro de Sevilla. Foi um escritor prolífico e um infatigável compilador. Compôs numerosos trabalhos históricos e litúrgicos, tratados de Astronomia e Geografia, diálogos, enciclopédias, biografias de pessoas ilustres, textos teológicos e eclesiásticos, ensaios e comentários sobre o Antigo e Novo Testamento, e um dicionário de sinônimos. Sua obra mais importante são as Etimologias, uma extensa compilação na qual sistematiza e condensa todo o conhecimento da época. Ver SAN ISIDORO DE SEVILLA. Etimologías. Madrid: BAC, 2004; para uma biografia mais detalhada, ver ROS, C. “Isidoro de Sevilla”. In: LEONARDI, C.; RICCARDI, A.; ZARRI, G. (dir.). Diccionario de los Santos. Volumen 1. Madrid: San Pablo, 1998, pp. 1119-1124.

[7] Filósofo, teólogo e tradutor irlandês, expoente máximo do renascimento carolíngio no século IX, Eriúgena concentrou seus estudos nas relações entre a filosofia grega e os princípios do Cristianismo. Na corte, ensinou Gramática e Dialética, e traduziu diversas obras teológicas e filosóficas dos Padres da Igreja. Ver FREMANTLE, Anne (ed.). “John Scotus Erigena”. In: The Age of Belief. The Medieval Philosophers. Boston: Houghton Mifflin Company, 1955, pp. 72-87.

[8] VAN STEENBERGHEN, Fernand. “L'organisation des études au moyen âge et ses répercussions sur le mouvement philosophique”, op. cit., p. 579.

[9] Teólogo, filósofo neoplatônico grego, nascido em Alexandria, é um dos Padres gregos. Escreveu uma série de obras exegéticas e comentários à Bíblia.

[10] Filósofo grego, aluno de Platão e professor de Alexandre, o Grande (356-323 a. C.). Seus escritos abrangem diversos assuntos, como a Física, a Metafísica, a Poesia, o Drama, a Música, a Lógica, a Retórica, a Política, a Ética, a Biologia e a Zoologia. Juntamente com Platão e Sócrates (professor de Platão), Aristóteles é visto como um dos fundadores da filosofia ocidental. Para uma edição de suas obras completas, Cf. ARISTÓTELES. Obras Completas. 20 vols. Madrid: Gredos, 1987; o estudo de António Pedro Mesquita (Aristóteles. Obras Completas. Introdução Geral. Lisboa: Impensa Nacional-Casa da Moeda, 2005); bem como a obra de Giovanni Reale (Introduzione a Aristotele. Roma-Bari: Editori Laterza, 1977).

[11] VAN STEENBERGHEN, Fernand. “L'organisation des études au moyen âge et ses répercussions sur le mouvement philosophique”, op. cit., p. 581.

[12] DE WULF, Maurice. Philosophy and Civilization in the Middle Ages. Princeton: Princeton University Press, 1922, p. 151.

[13] Filósofo, teólogo, cardeal, monge e autor místico da Idade Média. Seu tratado intitulado Didascalicon serviu como referência tanto aos estudantes como aos professores das recém-abertas escolas catedralícias da Europa medieval. O tratado divide e classifica, sistematicamente, as formas de conhecimento. Neste trabalho, ele também desenvolve a chave para entender as Escrituras distinguindo entre o significado literal (historia) e o profundo significado para além da letra (alegoria). Cf. HUGONIS DE S. VICTORE. “De Scripturis et Scriptoribus Sacris”. In: J. –P. MIGNE. Patrologiae cursus completus: series latina. Paris: Migne, 1861-1864, v. 175, c. 09-28; HUGO DE SÃO VÍTOR. Didascálicon. Da Arte de Ler. VI, 2. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 235; COSTA, Ricardo da. “A Ciência no Pensamento Especulativo Medieval”. In: Sinais 5, vol. 1, setembro/2009, p. 135 ss.

[14] Roberto Grosseteste foi uma figura central do importante movimento intelectual da primeira metade do século XIII na Inglaterra. Foi apelidado de Grosseteste (cabeça grande) pela sua enorme capacidade intelectual. Escreveu sobre Astronomia, Geometria e, especialmente, Óptica. Primeiro estudioso europeu a dominar as línguas grega e hebraica. Sua influência foi bastante significativa numa época em que o novo conhecimento da ciência e da filosofia gregas produziam efeitos profundos na filosofia cristã. Ver BOEHNER, P; GILSON, E. História da Filosofia Cristã. Petrópolis, Vozes, 1970, pp. 363- 376; e LOPEZ CUÉTARA, José Miguel. El aristotelismo en el pensamiento de Robert Grosseteste. DF, México: Verdad y Vida, 2005.

[15] Tomás de Aquino foi um frade da Ordem dos Pregadores (dominicanos) italiano, cujas obras tiveram enorme influência na Teologia e Filosofia, principalmente na tradição conhecida como Escolástica, e que, por isso, é conhecido como Doctor Angelicus, Doctor Communis e Doctor Universalis. Tomás abraçou diversas ideias de Aristóteles – a quem ele se referia como "o Filósofo" – e tentou sintetizar a filosofia aristotélica com os princípios do Cristianismo. As obras mais conhecidas de Tomás são a Suma Teológica (Summa Theologiae) e a Suma contra os Gentios (Summa contra Gentiles). Seus comentários sobre as Escrituras e sobre Aristóteles também são parte importante de seu corpus literário. Além disso, Tomás se distingue por seus hinos eucarísticos, que ainda hoje fazem parte da liturgia da Igreja. Sobre sua vida e obra, Cf. ALARCÓN, E.; FAITANIN, P. (eds.). Atualidade do tomismo. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2008; e PIEPER, Josef. Introducción a Tomás de Aquino. Rialp: Centenario, 1948.

[16] Um dos mais importantes teólogos e filósofos escolásticos medievais, nascido na Itália no século XIII. Sétimo Ministro-Geral da Ordem dos Frades Menores, foi também cardeal-bispo de Albano. Ver BOUGEROL, J. G. Introduzione a S. Bonaventura. Vicenza: LIEF, 1988.

[17] Raimundo Lúlio foi o mais importante escritor, filósofo, poeta, missionário e teólogo da língua catalã. Foi um prolífico autor também em árabe e latim, bem como em langue d'oc. Ao longo de sua obra, Ramon Llull formulou uma extensa classificação das ciências e das Artes Mecânicas e Liberais e conferiu a elas um sentido pedagógico e educacional, mas também instrumental, ou seja, pretende abarcar todos os conhecimentos humanos e ramificações do saber sem abandonar as aquisições da sabedoria cristã, que ao longo dos séculos conceberam a busca do saber como uma amorosa e desinteressada busca da felicidade e da contemplação de Deus, seu cume. Ver COSTA, Ricardo da. “Las definiciones de las siete artes liberales y mecánicas en la obra de Ramon Llull”. In: Anales del Seminario de Historia de la Filosofia. Vol. 23 (2006), pp. 131-164.

[18] Membro da Ordem Franciscana, filósofo e teólogo da tradição escolástica, chamado o Doutor Sutil, foi mentor de outro grande nome da filosofia medieval: Guilherme de Ockham (1285-1347). Para Scotus, as verdades da fé não poderiam ser compreendidas pela razão. A filosofia, assim, deveria deixar de ser uma serva da teologia e adquirir autonomia. Ver FERRATER MORA, José. “Duns Scoto”. In: Diccionario de Filosofia. Buenos Aires: Sudamericana, 1965, pp. 488-490.

[19] Dante Alighieri foi um escritor, poeta e político italiano. É considerado o primeiro e maior poeta da língua italiana, definido como il sommo poeta.

[20] A filosofia de Dante sobre as Artes Liberais foi analisada por COSTA, Ricardo da. “‘Entendo por ‘céu’ a ciência e por ‘céus’ as ciências’: As Sete Artes Liberais no Convívio (c. 1304-1307) de Dante Alighieri”. In: Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF. Anpof, 2015, p. 353.

[21] VAN STEENBERGHEN, Fernand. “L'organisation des études au moyen âge et ses répercussions sur le mouvement philosophique”, op. cit., p. 592.

[22] Rm 12, 16.

[23] “Mulier diligens corona est viro” (Pv 12, 4).

[24] SANCTI VICENTII FERRERII. “Dominica III. Post Epiphaniam. Sermo III”. In: Opera Seu Sermones de Tempore. Tomus primus, op. cit., pp. 113-114.

[25] Ibidem, p. 114.

[26] Ibidem, p. 115.

[27] Gn 33, 5.

[28] SANCTI VICENTII FERRERII. “Dominica III. Post Epiphaniam. Sermo III”. In: Opera Seu Sermones de Tempore. Tomus primus, op. cit., p. 115.

[29] Ibidem, p. 116.

[30] SAN AGUSTÌN. “De la doctrina christiana, Libro IV, 28, 61”. In: MARTÌN, O. S. A., Fr. Balbino (ed.). Obras de San Agustín. Tomo XV. Madrid: BAC, 1957, p. 343; e COSTA, Ricardo da. “A Educação na Idade Média: a Retórica Nova (1301) de Ramon Llull”. In: LAUAND, Luiz Jean (coord.). Revista NOTANDUM, n. 16, Ano XI, 2008, pp. 29-38. Editora Mandruvá - Univ. do Porto.

[31] Ramon Llull, por exemplo, valorizava o aspecto ornamental e os atributos de beleza da linguagem, mas entendia que a Retórica e a beleza do discurso deviam servir à conversão das almas, para o que era sempre proveitoso o uso abundante de variados recursos, como vocábulos e expressões belas, analogias belas, ornamento adequado, conjunções e disjunções apropriadas, provérbios, exempla e moralidades. Cf. COSTA, Ricardo da. “La Retórica Nueva (1301) de Ramón Llull: la Belleza a servicio de la conversión”. In: eHumanista/IVITRA 8 (2015), p. 31.

[32] Cf. COSTA, Ricardo da; FRANCO, Gustavo Cambraia. “São Vicente Ferrer (1350-1419) e a eficácia filosófico-retórica do sermão: Arte e Filosofia”. In: SANTOS, Bento Silva (org.). Mirabilia 20 (2015/1). Arte, Crítica e Mística – Art, Criticism and Mystique. Barcelona: Institut d’Estudis Medievals, UAB, Jan-Jun 2015, p. 100 ss.

[33] SANCTI VICENTII FERRERII. “Dominica III. Post Epiphaniam. Sermo III”. In: Opera Seu Sermones de Tempore. Tomus primus, op. cit., pp. 116-117.

[34] Ct 8, 13.

[35] Is, 23.

[36] Ibidem, p. 117.

[37] Esta oração, chamada de Oração de Manassés, é de origem apócrifa e encontra-se nas bíblias gregas e eslavas. Ela foi colocada, tardiamente e em separado, como apêndice do Livro das Crônicas na Bíblia Vulgata, que era o texto utilizado por nosso autor. Idem.

[38] Iacobi 3, 14.

[39] SANCTI VICENTII FERRERII. “Dominica III. Post Epiphaniam. Sermo III”. In: Opera Seu Sermones de Tempore. Tomus primus, op. cit., p. 117.

[40] Eccles. 3, 20.

[41] SANCTI VICENTII FERRERII. “Dominica III. Post Epiphaniam. Sermo III”. In: Opera Seu Sermones de Tempore. Tomus primus, op. cit., p. 118.

[42] Phil. 3, 20.

[43] SANCTI VICENTII FERRERII. “Dominica III. Post Epiphaniam. Sermo III”. In: Opera Seu Sermones de Tempore. Tomus primus, op. cit., p. 118.

[44] Um esboço geral da oposição de São Vicente Ferrer à cultura clássica pagã encontra-se em ENRIC RUBIO, Josep. “Intelectuales y eclesiásticos en la Valencia tardomedieval”. In: JOSEP ESCARTÍ, Vicent (coord.). Escribir y persistir. Estudios sobre la literatura en catalán de la Edad Media a la Renaixença. Volumen I. Buenos Aires; Los Angeles: Argus-a, 2013, p. 3 ss.

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