Postagem em destaque

Sobre o blog Summa Mathematicae

Este é um blog sobre Matemática em geral, com ênfase no período clássico-medieval, também sobre as Artes liberais (Trivium e Quadrivium), so...

Mais vistadas

Mostrando postagens com marcador Matemática medieval. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Matemática medieval. Mostrar todas as postagens

A divisão da Aritmética - por Boécio


Alegoria da aritmética, de Margarita
 Philosophica por Gregor Reisch, 1503

Trecho retirado do livro Coleção de Artes Liberais Vol. 9: Aritmética do Instituto Hugo de São Vitor.

Proêmio: no qual está divisão da Aritmética

Anício Mânlio Torquato Severino Boécio

Todos os homens de antiga autoridade que, tendo o próprio Pitágoras como guia, floresceram com um tino mais puro de mente, convêm em que não é dado alcançar o cume da perfeição filosófica a qualquer um, mas somente àquele que, por nobreza e bom senso, é capaz da trilhar como que um caminho de quatro vias [quadrivium], o que, por certo, não escapará ao engenho do bom observador.

O entendimento da verdade é a sabedoria das coisas que são e das divisões da substância imutável. Dizemos que estas coisas nem crescem por expansão, nem diminuem por retração, nem se transformam por variações, mas se preservam, sempre apoiadas na força própria de sua natureza. São estas, no entanto, qualidades, quantidades, formas, magnitudes, pequenezas, igualdades, hábitos, atos, disposições, lugares, tempos e o que quer que se encontre unido aos corpos de alguma maneira. Apesar de unidas aos corpos, elas são de natureza incorpórea, carregam a noção de substância imutável; porém, pela participação no corpo, se transformam e pelo contato com coisas variáveis se sujeitam à inconstância cambiável.

As coisas, portanto, que participam da natureza da substância imutável, como foi dito, são as que de fato propriamente existem. A sabedoria lucra com a ciência destas coisas, isso é, coisas que propriamente existem, cada uma levando o nome de sua essência. Tais essências são partes semelhantes: mas uma é contínua e ligada por suas partes sem dividir-se por fim algum, como é uma árvore, uma pedra e todos os corpos deste mundo; esses tipos se chamam magnitudes; outra parte é disjunta de si, determinada por partes e trazida a uma assembleia quase que por acumulação, como um grupo, um povo, um coro, um monte e o que quer que tenha as partes limitadas por extremidades próprias e descontínuas aos términos de outra quantidade. Desta última, o nome próprio é multidão. Dentre elas, as multidões que não carecem de nada são per se, como três, ou quatro, ou o tetrágono ou o número que for. Outras quantidades, no entanto, não subsistem por si só, mas se referem a um outro, como o duplo, a metade, a sesquiáltera, o sesquiterço e tudo que, se não estivesse relacionado a outra quantidade, não subsistiria. Certas magnitudes, no entanto, são inertes, carecem de movimento, enquanto outras não descansam em tempo algum, sempre giram em rotação móvel. A aritmética, portanto, examina as multidões que por si só subsistem. Já aquelas quantidades que estão relacionadas a outras, as medidas da harmonia musical bem conhecem. Já o conhecimento da magnitude imóvel é a geometria, que promete, ao passo em que a experiência da astronomia reivindica para si a ciência da quantidade móvel.

Se a um examinador faltar essas quatro partes, ele não poderá encontrar o que é verdadeiro, pois sem esse exame da verdade não se conhece coisa alguma com acerto. Logo, o conhecimento destas coisas que realmente são, é entendimento e compreensão completa. E àquele que despreza tais coisas, ou seja, as sementes da sabedoria, declaro que não pode filosofar corretamente, se filosofia é mesmo o amor a sabedoria, pois, desdenhadas estas coisas, também é ela própria desdenhada.

Julgo dever adicionar que toda força da multidão cresce na progressão de um término e vai ao infinito. A magnitude, porém, começa de uma quantidade finita e sua divisão é sem medida, pois tem partes infinitas em seu corpo. A filosofia deixa de lado tal potência infinita e indeterminada da natureza. O que é infinito não pode ser captado pela ciência ou compreendido pela mente, de ter sido destas coisas que a própria razão extraiu a noção do infinito para si, para que pudesse exercitar sua argúcia indagatória da verdade. Ela tomou para si dentre a pluralidade da multidão infinita uma porção finita da quantidade, e da magnitude interminável uma seção de quantidade finita para o conhecimento do espaço. Logo, consta que quem negligencia tais coisas, deixa escapar a doutrina da filosofia.

Esta é aquela via de quatro caminhos (Quadrivium), pela qual as almas mais excelentes são conduzidas, dos sentidos naturais às coisas mais certas da inteligência. São certos degraus e dimensões do progresso, pelas quais se pode ascender. O olho da alma, o qual, como diz Platão, é mais digno de se guarnecer que muitos olhos corporais, pois somente à luz dele pode-se investigar e inspecionar a verdade; digo que estas disciplinas sempre iluminam este olho, estes velado. Qual, dentre estas que está imerso nos sentidos corporais e e é por artes, se deve aprender primeiro, senão aquela que, de algum modo, serve como uma matriz de princípios às demais? Essa é a aritmética. Ela é anterior a todas as outras, não só porque Deus, fundador desta enorme massa terrena, a tomou como primeiro exemplar de seu raciocínio e segundo ela constituiu todas as coisas, as quais encontram harmonia na razão construtiva pelos números ordenados; mas a aritmética também é dita anterior porque, seja qual for a natureza das coisas anteriores, estas, se removidas, ao mesmo tempo removem as posteriores. Ao passo que, se o que é posterior perece, nada se altera no estado da substância anterior. Por exemplo, o animal, que antecede homem. Pois se removes o animal, imediatamente também a natureza de homem é destruída, mas se tirares homem, a natureza animal não perece. Por outro lado, o que traz consigo alguma outra coisa, é sempre posterior, enquanto aquilo que, quando dito, nada de posterior traz consigo, é anterior, como se ilustra com o homem. Se disseres 'homem', nomeias 'animal' ao mesmo tempo, pois 'homem' e 'animal' são o mesmo; se dizes 'animal', nada disseste da forma de homem, pois 'animal' e 'homem' não são o mesmo. Precisamente isso parece ocorrer na geometria e na aritmética. Se removes os números, de onde provém o triângulo e o quadrado ou qualquer outra coisa em geometria, todos os números são denominativos? Por outro lado, se removeres o quadrado e o triângulo, toda a geometria será destruída, mas o três e o quatro e o restante dos números não perecerão. Novamente, quando me pronuncio sobre alguma forma geométrica, simultaneamente há nisso o nome implícito dos números; quando falo de números, não nomeio nenhuma forma geométrica. Mas a música é anterior aos princípios dos números, e aqui podemos provar não somente que são anteriores as coisas que existem por si, ao que faz referência a alguma outra coisa. Mas a modulação musical dos números é designada com nomes, e o mesmo que foi dito da geometria pode acontecer aqui. O diatessaron [1], o diapente [2] e o diapason [3] são chamados por nomes que fazem referência ao número. Além disso, a proporção entre os sons não é encontrada somente nos números. O intervalo de oitava, por exemplo, se calcula na proporção de dois números. O intervalo de quarta perfeita é uma modulação composta de intervalos de segunda. O chamam de intervalo de quinta é também composto intervalos menores. que Aquilo que conhecemos como epogdous [4] nos números, é o mesmo tom na música; e para que não haja grandes dificuldades nesta obra, se mostrará, definitivamente, quão anterior é a aritmética às outras artes.

E precede a astronomia esférica tanto quanto as outras duas disciplinas antecedem esta terceira natureza. Na astronomia, há o círculo, a esfera, o centro e o eixo médio de um círculo paralelo, que são todas preocupações da doutrina geométrica. Pelo que se mostra que são anteriores os princípios da geometria, pois todo movimento vem depois do repouso e na natureza a imobilidade sempre precede o movimento. A astronomia é, pois, a doutrina das coisas móveis, como a geometria o é das imóveis; ou, pode-se dizer, a astronomia é a doutrina dos movimentos das estrelas, adornado por modulações harmoniosas.

Portanto, o curso dos astros precede os princípios da música pela antiguidade, tanto quanto sem dúvida supera, pela natureza, a aritmética, pois aquela parece mais antiga que esta. Racionalmente, porém, pela própria natureza dos números foram constituídos o curso de estrelas e o sistema astronômico. Pois assim calculamos o nascer e o ocaso, e medimos a lentidão e a velocidade dos astros errantes. Assim, reconhecemos os eclipses e as múltiplas variações da lua. Portanto, uma vez que os princípios da aritmética devem primeiro ser esclarecidos, comecemos por ela a discussão.


Notas:

[1] Um intervalo de quarta perfeito.

[2] Um intervalo de quinta perfeito.

[3] Um intervalo de oitava perfeito.

[4] Uma proporção musical de 9:8, ou um todo e mais um oitavo.

***

Curta nossa página no facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.



Matemática Sagrada na Divina Comédia de Dante

Deus como criador geômetra do
Universo, ideia muito presente
no Quadrivium

Por José Carlos Fernández -- Escritor e diretor da Nova Acrópole Portugal.

Giovanni Bocaccio na sua belíssima biografia de Dante Aliguieri, no capítulo sobre a sua educação, diz:

“E dando-se conta de que as obras dos poetas não são vãs nem simplesmente fábulas ou maravilhas, como pensa a estulta multidão, senão que nela se encontram os doces frutos da verdade histórica e filosófica (motivo pelo qual a intenção dos poetas não pode ser entendida completamente sem um conhecimento de história, de moral e de filosofia natural) elaborou uma sensata divisão do seu tempo e esforçou-se em aprender história pelos seus próprios meios e filosofia sob a tutela de vários mestres, o que conseguiu com prolongado estudo e esforço. E arrebatado pela doçura em conhecer a verdade das coisas divinas e não encontrando na vida nada que lhe fosse mais querido, pôs completamente de parte todas as outras preocupações, consagrando-se por completo à sua demanda. E para que não deixasse qualquer parte da filosofia sem investigar, a sua mente sagaz examinou as profundezas mais ínfimas da teologia. E o resultado não ficou muito distante da intensão. Insensível ao frio e ao calor, com jejuns e vigílias, e no meio de qualquer outro tipo de aspereza física, acabou por conhecer graças a um estudo assíduo, tudo o que inteligência humana pode conhecer da essência divina e dos anjos. E como nas várias etapas da sua vida estudou os diferentes ramos do conhecimento, deste modo continuou os seus diversos estudos sob a direção de diversos mestres.”

O que diz implica que estudou a fundo as disciplinas do Trivium (Gramática, Retórica e Dialética) e Quadrivium (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia).

Recordemos que estas disciplinas, e seguindo a filosofia platônica, estavam desenhadas para elevar a consciência humana ao plano dos Ideais, abrindo o olho da alma a esta dimensão do inteligível. Isto é, permitiam conjugar e viver a chave que faz irmãos todos os outros conhecimentos, afirmar o sentido e lei de analogia que nos permite penetrar no mistério. O objetivo não era simplesmente aumentar o conjunto dos nossos conhecimentos, mas também ir desvelando cada vez mais claramente as certezas, como estrelas, no “Tudo está em Tudo” dos magos e alquimistas. Repito, o objetivo, que seria coroado após a morte, deixando as roupas velhas que nos atam aos sentidos, era voltar às “estrelas do Real”, pois tudo o que existe é filho de uma Estrela (não as do céu sensível), de uma Verdade infinitamente simples, o desenvolvimento do seu “fio de vida” nos caminhos do espaço, do tempo e da causalidade.

Não seria Dante alheio a este mistério, como o insinua várias vezes na sua Divina Comédia. Além disso, para o confirmar, o último verso da cada parte (ou seja, Inferno, Purgatório e Paraíso) termina, como nos recorda Boccaccio, com a palavra “estrelas”.

Há uma relação entre as Estrelas, os Deuses ou Arquétipos, as Monadas, os Átomos e os Números, e a Matemática que se expõe de modo aberto ou oculto, encriptado, na Divina Comédia é uma Matemática Sagrada.

Esquema do Purgatório da Divina Comédia de Dante

Vejamos alguns exemplos e simetrias:

O triângulo, figura geométrica que alude à Santíssima Trindade (ou seja, o Fogo Divino) e o número $3$, que é o seu fundamento aritmético, aparecem continuamente na obra que está dividida em três partes, de $33$ cantos cada uma, aos que se somam um de introdução. A soma total é então de $100$ cantos, o número da perfeição, do desenvolvimento vivo e no todo da Unidade.

Os versos, hendecassílabos, dançam também de $3$ em $3$, com uma rima entrelaçada, ABA BCB CDC, etc., ou seja, tercetos entrelaçados ou terza rima, que Dante diz ter inventado, em estrofes de $10$ versos.

A respeito da importância do $10$, recordemos que resume a Tetractis e fecha um ciclo. Na Matemática Sagrada diz-se que está completo tudo o que chega ao estado quatro da sua realização (por exemplo, Fogo, Ar, Água e Terra) dado que cada elemento se soma aos anteriores e assim dizer $4$ é como dizer $10$. Sendo $10$ ($1+2+3+4$) o número triangular por excelência (junto com o $3$ ou o próprio triângulo).

Dez são, também, as esferas celestes (as $7$ dos planetas, a $8$ correspondente às Estrelas fixas, a $9$ à do Primeiro Móbil, e a $10$ o Empíreo ou Luz pura de Deus) sobre as que reinam as hierarquias angélicas, também dispostas em torno do Ponto Central ou Deus.

Como reflexo invertido, $9$ são os Infernos, sendo o centro imóvel a massa pétrea da Terra, para onde tende toda a gravidade do material, o décimo invertido. Ou talvez o décimo seja a antessala, onde moram os que não deixaram pegada no mundo, nem infâmias, nem mérito algum, que correm sem descanso picados por insetos, os das obras por realizar. 

Inclusivamente, o Purgatório também está dividido em dez, sete para redenção e purificação dos pecados capitais, dos ante-purgatórios e o Paraíso Terrenal ou Éden onde viveram de forma pura os primeiros pais, já aberto ao Paraíso Celestial.

Como já temos visto em vários artigos, um dos grandes segredos matemáticos da antiguidade foi a chamada Divina Proporção, que Platão define como a relação entre duas partes de um segmento de modo que a relação entre a menor e a maior seja equivalente à da maior e o segmento inteiro.

Já sabemos que este Número ou Proporção, $\varphi = 0,618...$ e a sua inversão, $1,618$ (a relação entre a parte maior e a menor, entre o todo e a parte maior).

Ainda que este segredo – como nasceu, a equação, qual o seu significado matemático filosófico – devia estar reservado a um círculo restrito, mas não a sua aplicação em geometria como vemos continuamente nas catedrais góticas, por exemplo.

No artigo “Números na Comédia” de Marcos Perilli, o autor aplica a mesma proporção ao número de cantos da obra e também em cada uma das partes obtendo um resultado realmente surpreendente.

Os $100$ Cantos, multiplicados por $0,618$, dá-nos o canto $61.8$, ou seja, os últimos parágrafos do $61$. E é exatamente, quando Virgílio, no Purgatório, anuncia a separação com Dante.

Literalmente:

“Não esperes minhas palavras, nem conselhos
Já; são e reto é teu arbítrio,
e seria um erro não obrar o que ele te diga:
e por isto te mitro e te coroo”.

Se entendermos que Virgílio, como Mestre-Guia representa a Mente Superior ou a Razão Humana (Manas) e Beatriz a Alma divina (Budhi), é um ponto de viragem muito importante. Virgílio guiou-o pelo Inferno e pelo Purgatório. Como muito bem explica o autor do artigo:

“A chave está nos cantos contínuos: foi a despedida de Virgílio, a última sentença que a razão expressa. O tema do livre-arbítrio é central na Comédia; e é central no sentido geométrico do plano. A razão humana, a filosofia, o juízo que se aperfeiçoa, são o processo que leva a alma a conhecer-se a si mesma e, por fim, portanto, a preparar-se para a viagem transcendente: Virgílio vai-se, chega Beatriz, a teologia, o caminho imaterial para o céu. O ponto áureo do poema coincide com esta transição: da filosofia à teologia, da razão humana à razão divina, do corpo ao espírito, da terra e da água ao ar e ao fogo”.

Aplica de novo esta proporção no livro do Inferno, e surge o parágrafo em que se revela como este se quebrou antes da chegada do Salvador, é a fenda que marca o seu caminho. Outro ponto de viragem é o da luz divina de Cristo entrando no Inferno e destruindo-o, abrindo o caminho para o Céu.

Estrutura geocêntrica do Paraíso de Dante.

Aplica-o depois aos $33$ cantos do Purgatório dando $20$ que indica o tremor, um terramoto, quando uma Alma é salva, que dele sai e é recebida no Paraíso, outro ponto de viragem.

E de novo aplica a secção áurea no Paraíso, que também surge no canto $20$, onde se explica como se salvam, milagrosamente e contra todo o prognóstico as almas de alguns pagãos por interseção divina, por exemplo, a de Trajano.

Tal como vemos no “homem de Vitrúvio”, a Proporção de Ouro, aplicada às diferentes partes e subpartes, vai marcando as articulações. Dante aplica-a a vários cantos e coincide com o fim ou princípio de uma história. Por exemplo, no Canto $34$ do Inferno, o verso que coincide com a proporção áurea é quando Virgílio sai do Inferno e faz que Dante saia de lá.

“Todos os exemplos apontam ao clímax narrativo ou ao nó conceptual de cada canto. O princípio é ativo no conjunto e nas partes, é norma de uso, ferramenta inteligente para traçar a geometria do mais além, a estrutura pensada como ideia, como trama e conteúdo.”

Explica também que o verso que exatamente se encontra no centro da obra completa diz: 

“se chora; e agora quero que conheças”
É o verso número $7117$ (de entre os $14.233$ da obra). Que está no terceto:
“Este triforme amor aqui debaixo
Se chora; e agora quero que conheças,
O que corre até ao bem corruptamente.”

Que é o coração filosófico da obra, pois diz Dante que a essência da natureza é o Amor, que simplesmente flui até ao terrenal e instinto de conservação, ou até ao celeste. Quem o determina é o livre-arbítrio de cada um.

Vejamos algumas simetrias mais que aparecem no dito artigo o qual recomendo a sua leitura, pois aqui simplesmente esboçam-se algumas ideias básicas.

“O nome de Virgílio aparece $32$ vezes, o nome de Beatriz, $64$ vezes. Virgílio está presente em $64$ cantos, Beatriz em $32$ cantos”.

A palavra “virtude” aparece $64$ vezes.

Logo sendo o $6$ o número da Justiça (as seis faces de um cubo perfeito, ou o duplo triângulo Fogo-Água) o Canto 6 do Inferno trata da situação política em Florença; no Purgatório, idem, na Itália inteira; e no Paraíso, idem, a história do Império Romano.

Outro número muito importante é o DXV dos versos. Depois de explicar a corrupção da Igreja e a sua rivalidade com o Império, um gigante, diz que:

Em que um quinhentos (D), um dez (X), um quinhentos (V)
Enviado de Deus, à rameira
Matará o gigante com quem peca.
(Purg., XXXIII, 43-45)

Diz-se que representa o DUX, um imperador arauto da vontade divina, que trará de novo a concórdia e a unidade a todos.

Sobre todos os valores, significados e alusões de este DXV, o pintor, escritor e especialista em Matemática Sagrada, Lima de Freitas (1927-1998) escreveu um livro, “$515$, o Lugar do Espelho”.

Ainda que o número que subjaz é o $10$, ou o $100$, como símbolos da Unidade desenvolvida, o que organiza a estrutura da natureza e a vida é o $7$, como temos analisado já muitas vezes. Isto mesmo vemos na Divina Comédia:

Os $7$ pecados capitais com os seus lugares de castigo próprios no Inferno.

As $7$ divisões do Purgatório, em que as almas se purificam destes pecados (os $7$ P’s na frente de Dante, que são gravados ao entrar no Purgatório e que um anjo vai apagando à medida que vai ascendendo pela sua montanha de purificação).

As $7$ damas que rodeiam o Carro tirado pelo Grifo e que representam as $7$ virtudes (incluídas as $4$ cardeais de Justiça, Prudência, Fortaleza e Temperança; e as $3$ teologais de Fé, Esperança e Caridade).

Os $7$ Planetas e as $7$ primeiras esferas associadas, no Paraíso.

Como bem diz o autor do artigo mencionado:

“O $7$, na Idade Média, é o número que ordena e organiza os sistemas, toda a articulação do pensamento”.

Dante e Beatriz encontram dois grupos de doze sábios na Esfera do Sol

Na Idade Média, seguindo o pensamento aristotélico da matéria e da forma, esta última é a alma, o espiritual de qualquer existência (que é, existência, precisamente, onde a matéria e a forma convergem). Mas a Forma não é apenas o perfil visual de algo, mas a sua alma, e, portanto, as qualidades e propriedades derivadas dela, e estas derivam, em última instância, de números.


Diz Dante, na sua Divina Comédia:

“Em tudo quanto existe há uma ordem, e esta é a forma pela qual o universo é semelhante a Deus. Aqui veem as altas criaturas o molde do eterno valor, o fim em que a referida forma é feita.”

De este modo, as almas desvinculadas do seu contato com a carne e a matéria grosseira são, como dizia Marco Aurélio, esferas perfeitas (mentalmente somos ovos de vida, tal é a forma da nossa aura em que se reflete a nossa existência de pensamentos e estados de consciência), ou pontos luminosos, os mesmos em que as fadas se fazem muitas vezes presentes.

Assim vê Dante, no Paraíso, na esfera de Saturno, os espíritos contemplativos:

“Voltei os olhos como ela quis [Beatriz] e vi cem pequenas esferas que se embelezavam umas às outras com os seus respetivos raios.”

E a respeito da forma, ainda não no Paraíso, Dante sente-se como uma pirâmide, como um tetraedro, firme e flamejante, bem como o fogo que esta forma representa: “Oh, minha querida planta, que te elevas tanto, que olhando o Ponto a quem todas as coisas são presentes, vês as coisas contingentes antes de serem elas mesmas, como veem as inteligências terrestres que dois ângulos obtusos não podem caber num triângulo! Enquanto acompanhado por Virgílio subi a montanha onde as almas se curam e quando baixava pelo mundo dos mortos, disseram-me coisas graves acerca da minha vida futura, e ainda que me considere um tetrágono diante dos golpes da desgraça, quisera saber qual é a sorte que me está reservada, pois o dardo previsto fere com menos força.”

Dante e Beatriz veem Deus como
um Ponto de Luz rodeado de anjos

Deus, que é o que irradia a essência ou Luz Divina Absoluta de que estão feitas todas as formas, é, para Dante, “a Igualdade Primeira”, ou seja, aquele em que tudo é unidade, ou a unidade da que tudo é. Diz:

“Desde que a Primeira Igualdade se tornou evidente, o afeto e a inteligência têm um peso igual em cada um de vós, porque nesse Sol, que vos ilumina e vos queima com a sua luz [sabedoria] e calor [amor] são tão iguais nessa virtude que toda a semelhança é pouca.”

O no Canto $28$ do Paraíso que vê a Deus como Ponto Único e Infinito. E é lógico que seja neste lugar, e no nono céu, o Primeiro Móbil. O Canto é o $28$ porque este número é um número perfeito (ou seja, aquele que é a soma dos seus divisores, neste caso $1, 2, 4, 7, 14$). Este Ponto Único é a melhor forma de simbolizar Deus, ainda que não fique claro, na minha opinião se é ou não é Deus, dado que este é percebido no final como a Santíssima Trindade, como $3$ Círculos entrelaçados pela Luz divina. Todas as hierarquias angélicas giram ao redor de este Ponto e de Ele recebem a sua luz e o seu poder. É um Ponto, como nas tradições orientais para representar o mistério da Divindade, cujo movimento é perpétuo. Recordemos os ensinamentos da Doutrina Secreta de Blavatsky em que se representa Deus como um “Ponto voltado sobre si mesmo”, ou como um Perpétuo Movimento (chamado precisamente “o Grande Alento”). Ou a dos pitagóricos, Nicolás de Cusa, Giordano Bruno e Espinosa, em que Deus é uma circunferência cujo centro está em todas as partes.

Em torno de esse Ponto giram círculos de fogo, tanto mais rápido quanto mais estão perto dele. Estes círculos são e dão vida aos querubins, serafins, tronos, domínios, virtudes, potestades, arcanjos e anjos.

Dante diz que “de este Ponto depende o Céu e toda a natureza”. As esferas celestes copiam em velocidade inversa, os círculos de fogo dos Poderes dirigentes que giram em seu torno. Nas esferas, até chegar ao Primeiro Móbil, na nona, cada vez são mais rápidos, aqui é ao contrário, quanto mais perto estão do Ponto, mais rápido giram, segundo diz:

“Vê aquele círculo que está mais próximo dele, e sabe que o seu movimento é tão rápido por causa do ardente amor que o impulsiona.”

Dante vai referindo as sucessivas formas da Geometria Sagrada que são a expressão da unidade e figuram os números, e que representam o Divino até chegar ao Fogo que seria o Tetraedro:

1. Ponto Central num Círculo

2. Deus como Diâmetro, como a letra I (que é Jod, o $10$ hebreu ou o jota, o $10$ grego, ainda que também pode representar o I, o uno romano). Falando Adão a Dante, diz: “Antes de que eu descesse às angústias infernais, se dava o nome de I ao Sumo Bem de quem procede a alegria que me circunda”. Este mesmo Diâmetro é o Rio Divino de Luz do Canto 30 do Paraíso: “E vi em forma de rio uma luz áurea que se desprendia em esplêndidos fulgores entre duas bordas adornadas de admirável primavera. Deste rio saíam vivas centelhas que por todas as partes choviam sobre as flores, parecendo rubis engastados em ouro.”

3. O Duplo Diâmetro no Círculo que é o símbolo que irradia a coragem e a virtude no quinto Céu e que ele associa a Marte: “O Venerável signo que produz a intersecção dos quadrantes num círculo”.

3. Também associado com o $3$, Deus como Santíssima Trindade (Pai-Filho-Espírito Santo), que diz que é absolutamente incapaz de descrever na sua glória e refulgência; e com a que finaliza a Divina Comédia. “Na profunda e clara substância de alta luz apareceram-me três círculos de três cores e de uma só dimensão. O uno parecia refletido pelo outro como um Iris por outro Iris, e o terceiro parecia fogo refletido por ambos por igual.”

Os Três Círculos da Trindade, ilustração de John Flaxman, Canto 33.

4. O Tetraedro ou expressão geométrica do fogo, e com o qual se identifica, como antes dissemos.

Também é interessante no Canto $28$ do Paraíso como o Fogo Divino se espalha na Natureza, numa escala descendente, como num sistema de espelhos, seguindo o processo de potencialização. E em concreto da potência crescente do $2$. Já que se usa como exemplo o xadrez com as suas $64$ casas. $1, 2, 4, 8, 16, 32, 64, 128...$ “Começaram a faiscar os círculos, como chispa de ferro incandescente, e aquele centelho, parecia um incêndio, era imitado por cada chispa por si, sendo estas tantas, que o seu número se multiplicava mil vezes mais que o produzido pela multiplicação das casas de um tabuleiro de xadrez.”

Vamos ver que as operações do $4$ e do $3$ são fundamentais na Matemática Sagrada e na Divina Comédia.

$4 + 3 = 7$

$4 \times 3 = 12$ (os signos do zodíaco, os sábios na esfera do Sol, dois grupos de 12) $4^3 = 64$ (Número de vezes que aparece o nome de Beatriz e a palavra “virtude” na Divina Comédia [1]).

E como diz Thomas Rendall no seu artigo The Numerology of Dante’s Divine Vision, mais importante ainda é o número $3^4$, ou seja, o $81 (9 \times 9)$. Explica que este, o verso número $81$ do canto $33$ do paraíso (o final do livro), é onde culmina a aproximação do poeta a Deus, e não deve ser casualidade, pois o verso indica esta fusão da sua alma-luz-olhar com Deus:

“Pela intensidade do vivo raio que suportei sem cegar, creio que me tivera perdido, se eu tivesse separado os meus olhos dele; e recordo que por isto fui tão ousado para suportá-lo, que uni o meu olhar com o Poder infinito.”

E’ mi ricorda ch’io fui pi`u ardito
per questo a sostener, tanto ch’i’ giunsi
l’aspetto mio col valore infinito (verso 81 do Canto 33)

E ainda que, depois da sublime visão desta Divina Comédia, retornará aos seus trabalhos na terra dos mortais, neste Infinito consumou a sua união definitiva com Beatriz e não só, mas também com a Alma de tudo o que vive n’Ela e em Deus e cuja suma expressão é a Rosa Mística.

Notas:

[1] Segundo o artigo mencionado anteriormente

***

Texto retirado do link.


Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.






A incrível história do papa matemático

Iluminura do Codex Manesse
mostra a escola da catedral de
Reims, comandada por Gerberto
Por Marcio Antonio Campos

Na virada do primeiro para o segundo milênio, um dos maiores matemáticos e astrônomos do Ocidente cristão, se não o maior deles, não estava em uma das escolas que se tornariam os embriões das universidades medievais: estava sentado no trono de São Pedro. O papa Silvestre II, ou Gerberto de Aurillac, é o tema da biografia The abacus and the cross, de Nancy Marie Brown. Após ler o livro, o retrato que temos da época de Gerberto se mostra bem diferente de muitas das lendas que costumamos ouvir sobre a cristandade medieval – uma delas é justamente a de que havia uma firme crença de que o mundo acabaria na passagem do ano 999 para o ano 1000. Na verdade, provavelmente nossa geração ficou mais estressada com o bug do milênio que os medievais com um eventual fim do mundo, até porque nem todos sabiam exatamente em que ano estavam…

Mas, voltando a Gerberto, é inegável que ele chegou aonde chegou por seu brilhantismo intelectual, mas ter conhecido as pessoas certas nas horas certas também ajudou. Monge beneditino em Aurillac, ele se mostrou genial no trivium, formado por gramática, retórica e dialética. Mas não havia em toda a França quem ensinasse sua continuação, o quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música). Para sorte de Gerberto, um conde catalão passou pelo mosteiro e, a pedido do abade, levou consigo o jovem monge, que passou a estudar em uma cidade próxima a Barcelona.

Na época, a Catalunha era uma das fronteiras entre o Ocidente cristão e a Península Ibérica islâmica. Os três anos que Gerberto passou lá moldaram toda a sua vida, pois o intercâmbio cultural e científico era enorme. O monge absorveu tudo o que podia (não se sabe se ele chegou a conhecer a Espanha árabe ou se ficou apenas na Catalunha) e, acompanhando o conde Borrell e o bispo Ato em uma peregrinação a Roma, em 970, impressionou o papa João XIII com seu conhecimento. O pontífice avisou o imperador Oto I, do Sacro Império Romano-Germânico, que havia encontrado a pessoa perfeita para ser tutor do príncipe que se tornaria Oto II. Gerberto trocou a Catalunha pela corte germânica, mas por pouco tempo. Com o casamento do príncipe, Gerberto ficaria sem emprego, mas foi imediatamente recrutado por Adalbero, arcebispo de Reims, então a principal cidade da França. Começou ensinando o quadrivium na escola da catedral, e depois se tornou diretor da escola. Pelas suas mãos passaram futuros bispos, arcebispos, abades, um futuro rei da França e um futuro papa.

Os anos de Gerberto como chefe da escola da catedral de Reims foram os mais produtivos da vida do religioso, e suas realizações científicas estão descritas na segunda parte do livro. Gerberto introduziu no Ocidente cristão os numerais indo-arábicos e o zero, e reintroduziu o ábaco e a esfera armilar (uma espécie de planetário primitivo), instrumentos que construiu; e pode ter feito um astrolábio (não há registros, mas sabe-se que ele conhecia o objeto). Deixou tratados de matemática, normalmente escritos a pedido de alunos e ex-alunos. Construiu órgãos de tubo e armas de cerco. Na base de toda essa produção e paixão pelos números e pelo conhecimento, estava a convicção de que Deus havia feito tudo “com medida, quantidade e peso”, de acordo com o livro bíblico da Sabedoria: conhecer matemática era ter um vislumbre da mente divina.

Página do tratado “De Geometria”,
um dos diversos livros sobre
matemática escritos por Gerberto.

Mas a carreira de Gerberto como cientista e professor acabaria dando lugar à intensa politicagem em que se meteu, e que de certa forma o acompanhou até o fim da vida, muitas vezes contra a sua vontade. Em 980, ele já tinha passado pela experiência de ser abade em Bobbio, na Itália, o mosteiro com a maior biblioteca da Europa cristã. Mas Gerberto tinha sido enviado para lá por Oto II para ser um administrador, não um erudito. Tudo correu muito mal, e o monge voltou para Reims e sua escola. Anos depois, ele e o arcebispo Adalbero trabalharam pelos interesses do Sacro Império contra o rei Lotário, da França, motivo pelo qual Gerberto quase foi morto por traição. Com a morte de Lotário, a dupla interferiu na sucessão do trono francês, ajudando Hugo Capeto a encerrar a dinastia carolíngia.

Adalbero morreu em 989, e não escondia de ninguém que queria Gerberto como sucessor. Mas Hugo colocou um filho ilegítimo do rei Lotário no posto (sim, era uma época em que a mistura entre Igreja e Estado corria a todo vapor), dando início a uma disputa feroz em que se questionou até a extensão do poder do papa e na qual Gerberto chegou a ser excomungado. Por isso, ele agarrou a chance de ser tutor e conselheiro do imperador Oto III, que em 996 influenciou a ascensão ao papado de seu primo, que se tornou Gregório V. O novo papa não entregou a sé de Reims a Gerberto, mas o nomeou como arcebispo de Ravenna. Em 999, Gregório morreu e Oto forçou a eleição de Gerberto, que se tornou Silvestre II (lembremos que o sistema atual de conclaves só surgiu quase 200 anos depois).

Silvestre II e Oto III compartilhavam da paixão pela ciência e do ideal de um grande império cristão. Juntos, eles seriam como o primeiro papa Silvestre e o imperador Constantino. Mas a realidade foi outra: as tarefas do papado não deram a Gerberto tempo para retomar seus estudos. Ele até conseguiu grandes feitos, trazendo para a Igreja povos na Europa Central, Leste Europeu e Escandinávia, e tentou moralizar o clero. Mas a nobreza romana não gostava nem de ser governada por um imperador estrangeiro, nem que o bispo da cidade não fosse um dos seus – Gregório V teve de lidar com um antipapa promovido pelas famílias romanas. Por isso, em uma de várias revoltas, em 1001, Oto e Silvestre foram postos para correr, refugiando-se em Ravenna. No ano seguinte, Oto morreu tentando reconquistar Roma; Silvestre conseguiu voltar para a sua sé, mas com pouco poder, e morreu em 1003.

A autora conta a história de Gerberto, mas não se limita a ela, fazendo uma série de digressões ao longo do livro: ela explica em detalhes como era o dia a dia de um mosteiro e como se copiavam os livros na época de Gerberto, descreve os avanços científicos-tecnológicos do mundo árabe e como se contava o tempo naquela época, narra desventuras dos imperadores romano-germânicos e a guerra entre carolíngios e capetos, e até conta como um biógrafo de Cristóvão Colombo inventou a lenda de que os cristãos medievais acreditavam que a Terra era plana (talvez o “desvio” que mais se afaste do assunto do livro, mas interessante mesmo assim). Há quem considere que tanta informação adicional distraia o leitor do que mais importa, que é a história de Gerberto; já eu considero que as histórias acrescentam sabor ao livro e ajudam o leitor a se ambientar.

É quando a história de Silvestre II termina que o livro degringola. Menos mal que Nancy Brown reconhece que todas as lendas surgidas em volta de Silvestre II, de que seu conhecimento científico era fruto de um pacto com o demônio (uma “demônia”, para ser mais preciso) e coisas parecidas, não provinham de nenhum preconceito católico contra a ciência, e sim de um ataque pessoal de um cardeal adversário de Gregório VII, pontífice que trabalhou pelo fortalecimento do poder papal. Gregório teria sido educado por discípulos de Gerberto, e foi assim que ele entrou na história. Só com a Reforma, no século 16, é que os protestantes usaram as lendas anti-Silvestre para tentar provar que os católicos eram inimigos da ciência e inventaram histórias para denegrir um grande matemático e astrônomo.

A autora tenta criar uma oposição entre a Idade Média pré-Gerberto, em que ciência e fé eram aliadas, em que os homens da Igreja buscavam o conhecimento – e, apesar de o subtítulo do livro, “O papa que levou a luz da ciência para a Idade das Trevas”, ser uma boa ferramenta de marketing, é desmentido pelo próprio conteúdo da obra –, e uma Idade Média pós-Gerberto, dominada pela superstição e pela intolerância. Vejamos esse trecho: “A Igreja na qual Gerberto cresceu tinha acabado. Clérigos que se opusessem a esse novo tipo de catolicismo, que repudiavam os rituais da veneração das relíquias, o batismo de crianças, a santificação do casamento, a intercessão pelos falecidos, a confissão aos padres e a veneração da cruz (…) eram denunciados como hereges” (p. 238). Ora, todas essas práticas e doutrinas remontam à era dos apóstolos (a única que ainda não tinha se tornado regra universal era a confissão auricular)! Mesmo a noção de que a ciência desaparece da Igreja após a virada do milênio é falsa (o livro cuja leitura interrompi para pegar The abacus and the cross ajuda a demonstrar isso), e historiadores como James Hannam têm trabalhado no tema. A vida de Gerberto é extraordinária por si só; não era preciso rebaixar o que veio depois para ressaltar a fantástica história do papa matemático.

***

Texto retirado do link.


Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.




 

Nicolau de Oresme, precursor de Copérnico

Nicolau de Oresme (1400-1420)
Em pleno medievo: Nicolau de Oresme, precursor de Copérnico

 "A criação de Deus é a mais parecida àquela
de um homem que constrói um relógio e 
lhe permite funcionar continuando
o seu movimento autonomamente".
-- Nicolau de Oresme

Há um século, o historiador e filósofo francês Pierre Duhem [1] começou a esclarecer as raízes cristãs do pensamento científico moderno e, desde então, inúmeras publicação aprofundaram esses  temas. De modo particular, a estreita ligação entre a tradução das obras científicas e filosóficas greco-árabes e o desenvolvimento da ciência com a conhecemos hoje. Uma destas obras, As origens medievais da ciência moderna, [2] escrita por Edward Grant, docente de história e filosofia das ciências na Indiana University, é inteiramente dedicada a reconhecer a contribuição da Europa medieval na fundação da ciência e na formação dos cientistas modernos, de Galileu em diante. Uma contribuição construídas, de fato, sobre as traduções dos textos científicos do mundo grego e árabes, com o nascimento da universidade a reelaboração do pensamento aristotélico. Muitos estudiosos concordam com esta afirmação [3]. Transcorrendo o índice analítico desse volume, embarramos com numerosas referências ao texto de um nome pouco conhecido para a maioria: Nicolau de Oresme (1323 - 1382).

Nicolau Oresme é apresentado como um dos pilares fundadores do nascente católico da ciência, precisamente por suas traduções de textos antigos, em especial os de Aristóteles, e também por seus comentários refinados. É considerado uma personagem de importância capital na passagem da ciência medieval para a moderna [4] pela riqueza de suas ideias, que contêm muitas novidades importantes [5]. A época em que vive é aquela que os historiadores definem como escolástica tardia e que é caracterizada pela busca da consistência na discussão filosófica. Consequência dessa busca é o fermento suscitado exatamente na pesquisa científica [6]; a esse propósito, além de Oresme, é preciso recordar de João Buridam (1290 - 1358) e Alberto da Saxônia (1316 - 1390). Foram justamente os escolásticos do século XIV, na sua originalidade, que prepararam o caminho par o advento da ciência europeia do Renascimento a partir de Copérnico [7].

Oresmo nasceu em Allemagne, antigo nome de Fleury-sur-Orne, vilarejo francês da Baixa Normandia, que devia seu nome a uma guarnição de soldados alemães estabelecida pelos romanos entre os séculos II e IV. Muito pouco se conhece de sua juventude, a não ser que frequentou a Universidade de Paris [8], e foi nomeado grão-mestre no Collège de Navarre em 1355, depois de ter obtido o doutorado em teologia [9]

Durante sua permanência no Collège publicou obras sobre astrologia, teologia e matemática, escritas em latim, a língua em vigor nos colégios da sua época [10]. Também publicou um tratado sobre moedas, que despertou a atenção de Delfim de França, o futuro Carlos V, chamado o Sábio, que muito mais interessado que o pai, João II, chamado o Bom, nas reflexões de caráter moral e racional. Esse fato abriu as portas da corte para Oresme. Em 1362, deixou o colégio e se estabeleceu em Rouen como cônego da catedral, tornando-se decano do capítulo dois anos depois [11]. Neste período, Oresme começa a publicar as traduções comentadas dos livros de Aristóteles e algumas obras em francês.

Em 28 de janeiro, é sagrado bispo de Lisieux (33º bispo e 19º Conde de Lisieux) [12] numa cerimônia que contou com a presença do rei que presenteou com dois anéis de ouro [13]. Tomou posse do bispado em julho do mesmo ano e ali permaneceu até a morte, em 11 de julho de 1382. Seus restos mortais repousaram na catedral, próximos da porta à esquerda do coro [14], até a metade do século XVII, quando o bispo de Leonor II de Martignon, além de fazer substituir os antigos vitrais que eram muitos escuros, também removeu todos os túmulos que ficavam no interior da nave (1677) [15]; e assim se perderam os vestígios de sua sepultura e também de sua memória.

Oresme traduziu a Ética, a Política e a Economia de Aristóteles e também as obras de Francisco Petrarca, de quem havia se tornado amigo [16]. O uso do vernáculo representa sua característica mais original, se consideramos que naquele período todos os textos científicos eram ainda escritos em latim. Também compôs um tratado sobre a Imaculada Conceição de Maria, cento e quinze sermões, um tratado contra as ordem mendicantes [17], e três contra a astrologia, elogiados por Pico della Mirandola [18], nos quais polemiza contra o determinismo astral.

O rei da França, João II, que o consultava frequentemente sobre os negócios mais espinhosos e seguia os seus conselhos, o enviou a Avinhão (1363), onde Oresme pronunciou, diante do Papa Urbano V, um discurso eloquente e ousado contra a desordem e a falta de regras na cúria romana. Por fim, sabemos que Carlos V encomendou-lhe uma tradução da Bíblia em francês para prevenir as distorções que os valdenses e outros heréticos faziam dos textos sagrados.

Mas a primeira passagem fundamental para o nascimento da ciência nos séculos XII e XIII é, como dissemos, a tradução em latim das obras científicas e de filosofia natural gregas e árabes [19]. Oresme foi um dos primeiros a seguir esse caminho que levou ao nascimento da universidade e do pensamento científico medieval. Foram as traduções, em particular as de Aristóteles, que permitiram a institucionalização da ciência e da filosofia natural, além de fornecerem um currículo de estudos pronto para as novas universidades da época [20].

Assim, a revolução científica acaba se consolidando graças ao aparecimento dos filósofos teológicos-naturais que aceitaram confrontar-se com o pensamento pagão e estudaram o mundo físico sem encontrar obstáculos na Teologia [21]. A ciência e a matemática, especificamente, foram muito beneficiadas, e é precisamente nelas que Oresme aplicou sua grande genialidade. No seu tratado Sobre a comensurabilidade e incomensurabilidade dos movimentos celestes, faz-nos compreender como a aritmética é a ciência, nascida antes da geometria, que permite medir o movimento das esferas celestes [22].

Entre as suas obras no campo da ciências naturais, temos que citar Parva naturalia, o comentário à Física (perdido), Meteorica, De anima, De caelo et mundo, Tratado da Esfera e De uniformitate et difformitate intensionum [23].

No tratado De uniformitate et difformitate intensionum, expõe a mais conhecida prova geométrica do teorema da velocidade média, "talvez a mais extraordinária contribuição do Medievo à história da física matemática" (chamada Regra de Oresme) [24]. A prova geométrica de Oresme faz rapidamente um giro pela Europa e é possível que Galileu Galilei também a tenha conhecido [25]. No Tratado se encontra a representação gráfica das variações da velocidade do movimento ou da intensidade de uma quantidade (por exemplo, o calor) com linhas verticais postas sobre a reta horizontal à distância, que corresponde a intervalos temporais determinados, Deste modo, um retângulo representa o movimento uniforme e um triângulo, o movimento uniformemente acelerado. Esse método terá grande difusão do século XIV ao XVI, e contribuirá para preparar os esquemas matemáticos da nova física [26].

Oresme escreveu um comentário à Física de Aristóteles, pondo em discussão algumas de suas conclusões e fornecendo demonstrações alternativas às leis aristotélicas do movimento, recorrendo a um uso correto da razão. Isso o leva, sobretudo, a repelir os argumentos aristotélicos a favor da eternidade do mundo [27].

Para Oresme, as quaestiones, um gênero literário que se tornou sinônimo do método escolástico medieval, não se prestam para analisar profundamente os vários aspectos do intelecto humano [28], por isso, escolhe a forma de "tratado".

Mas o âmbito no qual o contributo do Bispo de Lisieux resultará clamoroso para a época é aquele da rotação terrestre e da posição das esferas celestes. Entre 1370 e 1373, Carlos V o convida a traduzir do latim para o francês as obras de Aristóteles e, dentre elas, o De Caelo, que recebe um grande número de comentários. Assim nasce O tratado do céu e do mundo (1377) [29], obra que lhe rendeu a nomeação a bispo.

A importância desse volume reside no fato de ser a primeira vez que uma obra científica aparecia em francês [30]. Igualmente fundamentais são as críticas dirigidas ao filósofo grego. A primeira delas deriva do princípio da inércia para explicar o movimento, que não era conhecido a Aristóteles. Então, Oresme acolhe, com algumas modificações, a teoria do impetus do seu mestre Buridan para explicar o movimento local, afirmando que um corpo no curso de seu movimento adquire um impetus [31]. Uma outra crítica diz respeito ao ao movimento dos astros que era considerado eterno. Oresme contesta, seguindo a outro bispo, Roberto Grosseteste, e propõe que os astro têm um movimento inicial.

Porém, a ideia mais revolucionária, que faz de Oresme um verdadeiro precursor das teorias copernicanas, é a hipótese do movimento rotatório da Terra em torno do seu eixo.

A esfera celeste, para realizar um rotação completa em torno do Sol em 24 horas, deveria ter uma velocidade elevadíssima, coisa que não é crível. Portanto, é mais razoável pensar que é a própria Terra que está a girar [32]. Oresme enfrenta também a interpretação do episódio da Bíblia com a detenção do Sol por parte de Josué, dizendo que a hipótese do movimento da Terra o tornaria mais razoável, se tomado em forma literal. É o que dirão mais tarde os copernicanos Galileu e também o Padre Paolo Antonio Foscarini [33]. Na ausência de demonstrações irrefutáveis, termina por aceitar as posições tradicionais mais próximas ao texto da Bíblia.

Oresme também deu uma grande contribuição à teoria monetária [34], com um tratado sobre a origem do dinheiro, o De mutationibus monetarum [35], imediatamente traduzido em francês e definido um marco histórico na ciência do dinheiro. Foi utilizado por Carlos V para restaurar a segurança nos negócios [36]. Ainda antecipou o princípio conhecido como Lei de Gresham, segundo a qual, havendo duas moedas na mesma economia, aquela que fosse superestimada debilitaria a menos estimada. Assim, Oresme compreendeu e descreveu quais danos acabam decorrendo da inflação [37].

Como teólogo escreve o tratado De communicatione idiomatum, no qual investiga as relações entre os atributo (idiomata) da natureza divina e os da natureza humana de Cristo [38].

Todas as obras de Oresme foram publicadas no início do século XVI, exceto o Tratado do céu e do mundo, que fora traduzido e publicado somente no século XX [39].

Nicolau Oresme tornou-se nome da Regra que citemos no início do capítulo, e também de uma cratera lunar aberta pelo impacto de um asteroide. É justo reconhecimento de um grande cientista e sua obra. 


Notas:

[1] S. Jaki, Scientist and Catholic: Pierre Duhem, Christendom Press, Front Royal, 1991.

[2] E. Grant, The Foundations of Modern Science in the Middle Ages -- Their Religious, Institutional and Intellectual Contexts, Cambridge University Press, 1996.

[3] S. Jaki, Patterns or Principles and Other Essays, Interconllegiate Studies Institute, Bryn Mawr, 1995, citado em Thomas E. Woods, Come la Chiesa cattolica ha costruito la civiltà occidentale, Cantagalli, Siena, 2007.

[4] Alain Costé, L'oeuvre scientifique de Nicole Oresme, "Bullettin de la société Historique de Lisieux", fasc. 37, 1997.

[5] Johan Huizinga, Autunno del Medioevo, Sansoni, Florença, 1987, p. 450.

[6] Cornelio Fabro, Introduzione a san Tommaso, Ares. Milão, 1983, pp. 235, 246.

[7] Christopher Dawson, La formazione della Cristianità occidentale, D'Ettoris Editori, Crotone, 2009, p. 284.

[8] Nicole Oresme, Traictie de la première invention des monnoies, publicado e anotado por M. L. Wolowsky, Paris, 1864 (ver Introdução).

[9] Fundado em 1304 por Joana, condessa de Navarra e mulher de Filipe, o Belo. Estes colégios que nasceram no século XII, eram destinados a hospedar somente estudantes necessitados que queriam estudar gramática, lógica ou teologia, bem decididos a trabalhos duros e a submeter-se as regras de vida particularmente austeras. Um famoso dito dizia: "A ciência cresce mais na pobreza que na riqueza". Em 1500, o seu número chegou, só em Paris, a 68 (Leo Moulin, La vita degli studenti nel Medioevo, Jaca Book, Milão, 1992, pp. 20-21).

[10] Oresme, op. cit.

[11] Id.

[12] Richard Séguin, Histoire des évéques-conte de Lisieux, 1832, reproduzida em Oresme, op. cit., p. XXX

[13] Id.

[14] Id.

[15] Ibid., p. XIX.

[16] Huizinga, op. cit., p. 450.

[17] A controvérsia sobre as ordem mendicantes (dominicanos e franciscanos) na Universidade de Paris remonta à metade do século XIII. Os mestre seculares não toleravam a sua presença porque a sua dedicação e superioridade doutrinal os colocava na sombra. (J. A. Weisheeipl, Tommaso d'Aquino: Vita, pensiero, opere. Jaca Book, Milão, 1988, pp. 86, 87). Com o tempo foram aceitos, mas com reservas, que se manifestaram também nos tempos de Oresme.

[18] Oresme, op. cit.

[19] Edward Grant, The Foundations od Modern Science in the Middle Ages. Citada a edição italiana: Le origini medievali della scienza moderna, Einaudi, Torino, 2001, p. 257.

[20] Ibid., p. 258.

[21] Ibid., p. 262

[22] Ibid., pp. 71, 72.

[23] M. De Wulf, Storia della filosofia medievale, Libreria Editrice Fiorentina, Florença, 1948, vol. III, p. 129.

[24] Grant, op. cit., p. 153.

[25] Cf. Ibid., p. 156.

[26] Cf. De Wulf, op. cit., p. 130; Universidade de Sena, manual de filosofia on-line, no verbete "Nicola Oresme" (www.unisi.it).

[27] Cf. Grant, op. cit., pp.246-247, 300.

[28] Cf. Ibid., p. 197.

[29] Costé, op. cit.

[30] Ibid.

[31] Cf. De Wulf, op. cit., p. 130.

[32] Grant, op. cit., p. 173.

[33] Frei Carmelita e cientista (1565 - 1616).

[34] Woods, op. cit.

[35] Oresme, op. cit.

[36] P. Larousse, Grand dictionnaire universel du XIX siècle, vol. XI.

[37] Sir Thomas Gresham, conselheiro da rainha Isabel I da Inglaterra, em 1558 afirmou que "a moeda má expulsa a moeda boa", referindo-se a uma iniciativa do governo de manter o valor da moeda, diminuindo o seu respectivo peso. Segundo Gresham, o povo guardaria as moedas antigas por perceberem que elas teriam maior valor, causando inflação -- NE.

[38] De Wulf, op. cit., p. 131.

[39] Le livre du ciel et du monde, editado por A. D. Menut e A. Denomy. Madison, Milwaukee and London. The University of Wisconsin, 1968.

***

Texto retirado de AGNOLI, Francesco; BARTELLONI, Andrea. Cientistas de batina: de Copérnico, pai do heliocentrismo, a Lemaìtre, pai do Big Bang. 1 ed. Ecclesiae, 2018.


Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.



Rábano Mauro e o Significado Místico dos Números

Retrato de Rabano Mauro (falecido em 856),
monge beneditino e teólogo alemão,
gravura de Andre Thevet 1516-1590.

por Jean Lauand. Prof. Titular FEUSP, jeanlaua@usp.br


1. Introdução

Discípulo de Alcuíno, Rábano Mauro (c.784-856) foi abade de Fulda. Pelo seu trabalho de educador e escritor, recebeu o epíteto de Praeceptor Germaniae, o mestre da Germânia. Rábano Mauro não teve a intenção de ser um autor original, mas a de ensinar e formar seus monges.

Uma de suas principais obras é o De universo (em 22 livros) que, como o próprio nome indica, é trabalho amplo e enciclopédico. O subtítulo é: Sobre a natureza das coisas, as propriedades das palavras e o significado místico das realidades.

Nessa obra, Rábano Mauro distingue dois sentidos na Sagrada Escritura: o literal e o figurado. Este divide-se em alegórico (revela verdades sobrenaturais ocultas para os profanos), tropológico (ou moral, move a agir bem) e anagógico (conduz ao fim último e revela a razão de ser da vida).

Rábano Mauro está convencido de que, para decifrar o sentido figurado, é muito útil conhecer a natureza das coisas e as etimologias das palavras. Para ajudar seus leitores a alcançar esse significado místico, presente em tudo, escreveu o De universo, do qual apresento aqui a tradução do Capítulo III do Livro XVIII: De numero (PL CXI, 489-495).


2. A alegoria e o pensamento medieval

Em várias línguas há expressões ou frases feitas para indicar que sobre aquilo que é evidente não se precisa gastar uma palavra: goes without saying, va sans dire, selbstverständlich, per se notum etc. Essa observação tão simples (e, também ela, evidente) explica uma das maiores dificuldades de compreensão [1] de um autor antigo: o que era evidente para ele e para os leitores de sua época (e, precisamente por isso, ficou oculto) freqüentemente não é evidente para nós, que sequer suspeitamos dos "óbvios ululantes" escondidos no autor antigo.

Nesse sentido, há no Tratado de Rábano Mauro diversas passagens lacônicas e enigmáticas para o leitor contemporâneo, que não está nem um pouco preocupado em saber o que significa o número 153 (se é que tem algum significado...) quando o Evangelho diz que os apóstolos, na pesca milagrosa após a ressurreição de Cristo, apanharam justamente 153 peixes. S. Agostinho, por exemplo, teólogo e pregador genial, de perene atualidade, tratava do significado dos números em vários sermões, pois considerava o simbolismo numérico um elemento a mais para a compreensão da Revelação:

"Estes 153 são 17. 10 por quê? 7 por quê? 10 por causa da lei, 7 por causa do Espírito. A forma septenária é por causa da perfeição que se celebra nos dons do Espírito Santo. Descansará - diz o santo profeta Isaías - sobre ele, o Espírito Santo (Is 11, 23) com seus 7 dons. Já a lei tem 10 mandamentos (...). Se ao 10 ajuntarmos o 7, temos 17. E este é o número em que está toda a multidão dos bem-aventurados. Como se chega, porém, aos 153? Como já vos expliquei outras vezes, já muitos me tomam a dianteira. Mas não posso deixar de vos expor cada ano este ponto. Muitos já o esqueceram, alguns nunca o ouviram. Os que já o ouviram e não o esqueceram tenham paciência para que os outros, ou reavivem a memória, ou recebam o ensino. Quando dois são companheiros no mesmo caminho, e um anda mais depressa e o outro mais devagar, está no poder do mais rápido não deixar o companheiro para trás (...). Conta 17, começando por 1 até 17, de modo que faças a soma de todos os números, e chegarás ao 153. Por que estais à espera que o faça eu? Fazei vós a conta" [2] .


O cristão de hoje sorri ao ver o autor medieval, munido de calçadeira, explicar que o número 120 é soma da progressão aritmética: $1+2+3+\cdots+14+15$, e que isto representa misticamente aquelas passagens dos Atos dos Apóstolos em que se descreve a vinda do Espírito Santo (cfr. 2, 1) quando estava reunida a assembléia de 120 pessoas (cfr. 1, 15), "todos num mesmo lugar" (a soma simboliza essa reunião).

Precisamente nessas diferenças é que se capta a mentalidade da época. O homem medieval está seriamente convencido de que não há palavra ociosa na Sagrada Escritura e que tudo o que está revelado "é inspirado por Deus, e útil para ensinar, para repreender, para corrigir e para formar na justiça" (II Tim 3, 16). E o próprio apóstolo Paulo afirma o caráter alegórico de algumas passagens bíblicas: "Na lei de Moisés está escrito: ‘Não atarás a boca ao boi que debulha’ (Deut 25, 4). Mas, acaso Deus se ocupa dos bois? Não é, na realidade, em atenção a nós que Ele diz isto?" (I Cor 9, 9-10). Ou, em outro momento, ao considerar alegórico (cfr. Gál 4, 24) o fato de que Abraão teve dois filhos: um da escrava e outro da livre.

O mestre S. Isidoro de Sevilha, pouco anterior a Rábano Mauro, tinha escrito um capítulo das Etimologias (III, 4) dedicado à importância dos números: "Não se deve desprezar os números. Pois em muitas passagens da Sagrada Escritura se manifesta o grande mistério que encerram. Não foi em vão que se escreveu o louvor de Deus no livro da Sabedoria (11, 20): ‘Dispusestes tudo com medida, número e peso’".

Daí que, ao contrário da Teologia contemporânea, Rábano Mauro dê, por exemplo, extraordinária importância simbólica aos números indicados por Deus para a construção do tabernáculo [3] . Também neste ponto ele segue Agostinho: "Grande é o mistério simbolizado nas ordens dadas para a instalação do tabernáculo. Muitos mistérios estão nelas representadas" [4] .

A própria fala de Cristo apresenta alguns simbolismos numéricos próprios das tradições semitas, como o 7, que indica plenitude. Naquela pergunta de Pedro (cfr. Mt 18, 22), "quantas vezes devo perdoar a meu irmão? Até 7 vezes?", o 7 é claramente simbólico; como também o "setenta vezes sete" da resposta de Cristo. Tomás de Aquino, bem mais próximo de nossa mentalidade, na Suma Teológica (I, 1, 10) põe as coisas no devido lugar [5]: após reconhecer a legitimidade dos sentidos tropológico e anagógico, diz: "Não se segue daí nenhuma confusão na Sagrada Escritura, pois todos os sentidos se apoiam sobre um, o literal, que é o único a proporcionar argumentos, como diz Agostinho. Por isso, nada se perde da Escritura, pois não há nada que seja dito em sentido espiritual que não seja dito em sentido literal em alguma passagem".


O Significado Místico dos Números

Rábano Mauro (c.784-856)

(trad. e notas: Jean Lauand)

Os números, através de alegorias, mostram-nos muitos aspectos do mistério que devemos venerar.

O número 1

Já o primeiro número, o um, indica a unidade da divindade. Dele se escreveu no Deuteronômio (6, 4): "Ouve, ó Israel! O Senhor teu Deus, é o único [6] Senhor" [7] . O um expressa também a unidade da Igreja e da fé. Daí que nos Atos dos Apóstolos (4, 32) se tenha escrito: "Eram um só coração e uma só alma" [8] . E o número um diz respeito ainda à unidade da fé e à perfeição de uma obra. Por isso se diz no livro do Gênesis (6, 16) sobre a arca de Noé: "Farás no cimo [9] da arca uma abertura com a dimensão de um côvado". E até a unidade dos maus é expressa pelo um, como se lê em Mateus (22, 11): "E viu ali um homem que não trazia a veste nupcial" [10] .

O número 2

Já o dois diz respeito aos dois testamentos. Daí que em I Reis (6, 23) esteja escrito: "E fez dois querubins que tinham dez côvados de altura". Dois também são os mandamentos da caridade [11]: "Estes dois mandamentos resumem toda a lei e os profetas" (Mt 22, 40). O dois expressa ainda as duas dignidades: a régia e a sacerdotal, figuradas por aqueles dois peixes que acompanhavam os cinco pães naquela passagem do Evangelho [12]. O dois significa ainda os dois povos: os judeus e os gentios. Daí que em Zacarias (6, 13) se diga: "E haverá paz entre eles dois". Também o dois significa a união da alma e do corpo. Daí que o Senhor diga no Evangelho (Mt 18, 19): "Se dois de vós estiverem reunidos sobre a terra...". Sobre isso também fala o profeta Amós (3, 3): "Acaso podem dois [13] andar juntos se não estão em união?" O dois prefigura também a separação entre os eleitos e os condenados, como diz o Senhor no Evangelho (Mt 24, 40): "Estarão dois no campo: um será tomado; o outro, deixado" [14] .

O número 3

O número três é próprio do mistério da Santíssima Trindade, tal como se diz na Epístola de João (I Jo 5, 7): "Três são os que dão testemunho". O três também representa o mistério da Paixão, Sepultamento e Ressurreição do Senhor [15] . Daí que Oséias (6, 2) diga: "Dar-nos-á de novo a vida em dois dias; ao terceiro dia ressuscitar-nos-á e viveremos". O três exprime ainda a fé, a esperança e a caridade [16] , figuradas também por aquelas três cidades do Deuteronômio (cap. 19) nas quais o involuntário homicida encontrava refúgio [17] . O três significa ainda os três tempos: o primeiro, antes da lei; o segundo, sob a Antiga Lei, e o terceiro, sob a graça. É por isso que se lê na parábola evangélica (Lc 13, 7): "Eis que já são três anos que venho buscar fruto da figueira e não o encontro". O três representa também as três formas do agir humano para o bem ou para o mal: pensamentos, palavras e obras. Como diz o Apóstolo (I Cor 3, 12): "Se alguém edifica sobre este fundamento: com ouro, ou com prata, ou com pedras preciosas; com madeira, ou com feno, ou com palha" [18] . O três mostra ainda o tríplice modo de os fiéis professarem sua fé: como clérigos, monges ou no casamento. Dessa tríplice profissão na Igreja fala o Senhor por Ezequiel (14, 20), dizendo: "Se estes três homens, Noé, Daniel e Jó, estivessem no meio deles não poderiam salvar por sua justiça nem seus filhos nem suas filhas, mas somente a si próprios" [19] .

O número 4

O número quatro é próprio dos quatro Evangelhos, como diz Ezequiel (1, 4): "E no centro havia a semelhança de quatro animais" [20] . O quatro também significa misticamente as quatro virtudes dos santos: Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança [21] ; que, pela liberalidade de Deus, revigoram as almas dos santos. Daí que o Evangelho (Mc 8, 9) diga: "E os que comeram eram cerca de quatro mil pessoas. Em seguida, Jesus os despediu" [22] . Quatro também diz respeito às quatro partes do mundo [23] a partir das quais a Santa Igreja se reunirá. Daí que afirme o profeta (Is 43, 5): "Do Oriente conduzirei a tua descendência e do Ocidente eu te reunirei. Direi ao setentrião: ‘Devolve-os!’ e ao meio-dia: ‘Não impeças!’". Do mesmo modo, o quatro pode simbolizar os quatro elementos [24] dos quais é formado o corpo humano, pois principalmente deles depende a força e a subsistência do corpo. Com efeito, no Evangelho está escrito que o paralítico no leito era transportado por quatro [25] .

O número 5

O cinco traz o significado dos cinco livros da lei de Moisés, dos quais diz o Apóstolo (I Cor 14, 19): "Quero dizer cinco palavras de sentido"; ou para os cinco sentidos do corpo: visão, audição, paladar, olfato e tato [26] . Daí que esteja escrito no Evangelho (Mt 25, 1): "O reino dos céus é semelhante a dez virgens, cinco das quais eram fátuas e cinco prudentes" [27] . E também (Mt 25, 15): "E deu a um cinco talentos". E diz o Senhor à samaritana (Jo 4, 18): "Cinco maridos tiveste".

O número 6

O número seis significa os seis dias nos quais Deus criou as criaturas, como diz o Êxodo (20, 11): "Em seis dias criou Deus o céu e a terra". Significa também as etapas do tempo deste mundo, que comporta seis eras [28] . Daí que Deus, que perfaz [29] todas as suas obras, tenha vindo a este mundo na sexta era, tenha padecido na sexta-feira, no sábado tenha repousado no sepulcro, e no domingo ressuscitado dos mortos.

O número 7

O número sete é um número de múltiplos significados. Pode significar o sétimo dia, no qual, concluída sua obra, Deus repousou. Daí que também as almas dos santos, após as fadigas das boas obras, repousem de todas as suas obras na felicidade eterna do Céu. Pode significar também a septiforme graça do Espírito Santo [30] , do qual diz o Apocalipse (5,6): "Tinha ele sete chifres e sete olhos, sete são os espíritos enviados por Deus por toda a terra". Também sete são as Igrejas de que fala o Apocalipse (cfr. cap. 1), simbolizadas por sete candelabros e por sete estrelas. Nelas se representa a totalidade dos santos [31] , como ali mesmo se declara: que os sete candelabros são as sete Igrejas e, do mesmo modo, as sete estrelas. Também por sete se designa todo o tempo presente deste mundo, que se desenvolve em ciclos de sete dias [32] . Também os males se representam pelo sete; sete é o número da plenitude do pecado, isto é, o sete representa todos os principais [33] vícios. Daí que o Senhor, no Evangelho (Lc 11, 26), diga do espírito imundo: "Então ele vai e toma consigo outros sete piores do que ele e entram e estabelecem-se lá e a última situação do homem é pior do que a anterior". Por isso também Salomão (Prov 26, 25) diz: "Não te fies nele, pois há sete abominações (isto é, diabos) na alma dele". Sete é também a plenitude dos flagelos de Deus, como diz o Levítico (26, 24): "Castigar-vos-ei sete vezes pelos vossos pecados". E, além disso, sete e oito simbolizam a Antiga Lei e o Evangelho. Por isso diz o Eclesiastes (11, 2): "Faze sete partes e também oito". Do mesmo modo o sete e o oito representam o repouso definitivo e a ressurreição.

O número 8

O oito representa o dia da ressurreição do Senhor e também a futura ressurreição de todos os santos [34] . Daí que nas indicações junto ao título do salmo 6 conste: "Para o oitavo".

O número 9

O número nove representa misticamente a Paixão do Senhor: porque o próprio Senhor, na hora nona, tendo dado um forte brado, expirou. Lê-se também que nove são as categorias dos anjos: anjos, arcanjos, tronos, dominações, virtudes, principados, potestades, querubins e serafins. E o nove está presente nas noventa e nove ovelhas [35] que, na parábola evangélica, são deixadas no deserto ou nos montes. Nove pode indicar ainda imperfeição em relação aos mandamentos de Deus, ou a insuficiência dos bens: como está escrito no Deuteronômio a respeito do leito de Og - rei de Basan e tipo do diabo - que media nove côvados de comprimento [36] .

O número 10

O dez é o número do Decálogo. Por isso o Salmista (Sl 32, 2) diz: "Entoar-Te-ei hinos na harpa de dez cordas". É também o número da perfeição das obras e da plenitude dos santos, o que é simbolizado por aquelas dez cortinas que, por ordem do Senhor [37] , foram feitas no tabernáculo do testemunho [38] .

O número 11 [39]

O número onze é figura da transgressão [40] da lei e também dos pecadores, tal como mostra o salmo 11 (cujo número de per si já é símbolo) quando diz: "Salvai-me Senhor, pois desaparecem os homens santos". Daí que também Deus tenha ordenado [41] que se instalassem no tabernáculo da Aliança esse mesmo número de cortinas de peles de cabra para representar os que pecam.

O número 12

O número doze é próprio dos apóstolos, como se evidencia no Evangelho: "Os nomes dos doze apóstolos são..." (Mt 10, 2) e o próprio Senhor diz a seus discípulos: "Não vos escolhi eu doze?" (Jo 6, 70). O número doze também representa a totalidade dos santos que, eleitos das quatro partes do mundo pela fé na Santíssima Trindade, formam uma só Igreja. Esses eleitos são figurados por aquelas doze pedras preciosas com as quais, no Apocalipse [42] , se descreve a construção da cidade do grande Rei. São as doze tribos de Israel, que vêem a Deus.

O número 13

Já o número treze diz respeito à plenitude da lei [43] junto com a fé na Santíssima Trindade, como se lê em Ezequiel (40, 11): "E mediu a extensão do pórtico: treze côvados" [44] .

O número 14

O número quatorze simboliza misticamente as gerações que antecederam o Senhor, como suficientemente se mostra no início do Evangelho de Mateus: "De Abraão a David, quatorze gerações". O número quatorze também diz respeito ao tempo presente e futuro, tal como se mostra no Levítico (cfr. 12,5), onde se indica que a mulher que der à luz uma menina será impura por duas semanas, isto é, o presente e o futuro.

O número 15

O número quinze representa misticamente o repouso e a ressurreição, a Antiga Lei e o Evangelho, tal como se lê nos Atos dos Apóstolos [45] , que Paulo passou quinze dias com Pedro [46] .

O número 17

O número dezessete [47] representa misticamente a totalidade dos profetas [48], pois os dez mandamentos da lei operam pela septiforme graça do Espírito Santo.

O número 20

O número vinte diz respeito à perfeição das obras que se realizam pela caridade, pois o decálogo, multiplicado pelos dois mandamentos da caridade, totaliza vinte. Daí que se tenha escrito que a medida da altura dos dois querubins [49], isto é, a plenitude da ciência, dá esse número.

O número 22

O número vinte e dois representa misticamente os livros divinos, correspondentes às letras dos hebreus [50] .

O número 24

O número vinte e quatro representa os vinte e quatro livros do Antigo Testamento, segundo a tradição dos hebreus. Outros, por este número, entenderam os patriarcas do Antigo e do Novo testamento: "E, sentados sobre os tronos, vinte e quatro anciãos" (Apoc 4, 4).

O número 25

O número vinte e cinco é um símbolo místico derivado da multiplicação do cinco (dos 5 sentidos) por si mesmo evidente em Ezequiel [51] .

O número 28

O número vinte e oito representa misticamente a Antiga Lei e o Evangelho: esse número de côvados de extensão deveriam ter [52] as cortinas do tabernáculo.

O número 30

O número trinta é o número dos frutos dos fiéis casados [53] , como diz o Evangelho: "E produzirão fruto: cem por um, sessenta por um, trinta por um" (Mt 13, 23).

O número 32

O número trinta e dois refere-se misticamente à idade que Nosso Senhor cumpriu na carne, daí que (como parece a alguns) diga o Apóstolo (Ef 4, 13): "Até que todos tenhamos chegado à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, até atingirmos a idade de homem feito, na medida da idade da maturidade de Cristo".

O número 40

O quarenta é número que representa misticamente a Antiga Lei e o Evangelho. Daí que no Evangelho (Mt 4, 1) [54] se escreva do Senhor: "E foi conduzido pelo Espírito ao deserto por quarenta dias". Representa misticamente também a Ressurreição do Senhor, pois está escrito em Atos (1, 3): "E apareceu-lhes durante quarenta dias". E, além disso, o número quarenta figura ainda o tempo deste mundo. Pois quatro são as partes do mundo e quatro são também os elementos de que está constituída toda criatura visível; já o dez indica plenitude: tanto a do bem como a do mal. E dez por quatro dá quarenta. Daí que o salmista (Sl 94, 10) diga: "Durante quarenta anos desgostou-me aquela geração"; e no dilúvio foi por esse número de dias e de noites que Deus fez chover sobre a terra. E no livro de Jonas (3, 4) está escrito: "Daqui a quarenta dias Nínive será destruída", o que não chegou a ocorrer com aquela cidade, mas ocorrerá com o mundo por ela figurado. Quarenta é o número da permanência no deserto [55] e o das gerações de Abraão a Jesus Cristo.

O número 50

O número cinqüenta é Pentecostes [56] , o do advento do Espírito Santo. Daí que se diga em Atos (2, 1): "Chegando o dia de Pentecostes..." É também o número da penitência dos pecadores: esse é o número do salmo penitencial por excelência.

O número 60

Sessenta é o número que representa misticamente todos os perfeitos. Por isso se diz no Cântico dos Cânticos (3,7): "É a liteira de Salomão - isto é, a Igreja de Cristo - escoltada por sessenta guerreiros, sessenta valentes de Israel". Também sessenta é o fruto dado pelas viúvas e continentes. Daí que se leia no Evangelho (Mt 13, 23): "E produzirão fruto: cem por um, sessenta por um, trinta por um".

O número 70

O número 70 é o que representa misticamente os antigos pais, figurados pelos setenta mil operários carregadores [57] que Salomão escolheu para edificar o templo. Pois setenta e oitenta são figura da Antiga Lei e do Evangelho, conforme diz o salmo (Sl 89, 10): "Setenta anos é o total de nossa vida, os mais fortes chegam aos oitenta". O setenta [58] é também o número dos presbíteros de Moisés. E setenta e dois são os discípulos enviados pelo Senhor [59] para pregar o Evangelho. Setenta é o número das almas que desceram com Jacó ao Egito como se narra no Gênesis (46, 27) [60] .

O número 80

Oitenta são certas almas cristãs que estão unidas ao Senhor somente pela fé, mas não pelas obras. Delas se escreve no Cântico dos Cânticos (6, 8): "Há sessenta [61] rainhas - isto é, as almas dos perfeitos - e oitenta concubinas".

O número 100

O cem refere-se ao fruto dos mártires ou das virgens como diz o Evangelho (Mt 13, 23): "E produzirão fruto: cem por um..."

O número 120

Cento e vinte é o número que figura a perfeição da Antiga Lei e do Evangelho. Daí que Moisés, legislador, tenha vivido cento e vinte anos e que o Espírito Santo, no dia de Pentecostes, tenha descido sobre as almas de cento e vinte fiéis que estavam congregados no Cenáculo. Pois lê-se que antes do dilúvio foi decretado cento e vinte anos de penitência para os homens [62] . E a altura do templo de Salomão era de cento e vinte côvados, o que tem o mesmo significado místico que o recebimento do Espírito Santo por cento e vinte homens da primitiva Igreja em Jerusalém, em virtude da Paixão, Ressurreição e Ascensão do Senhor aos céus. E, também, estabelecendo a seqüência natural de números e somando-os de 1 a 15 [63] , o que equivale a "reuni-los no mesmo lugar", obtém-se 120. Pois o 15 é composto pelo 7 e pelo 8, que costumam significar a vida futura que é incoada nesta vida pelo Batismo nas almas dos fiéis, mas que atingirá sua plenitude na ressurreição e imortalidade no final dos séculos.

O número 153 [64]

O cento e cinqüenta e três é representação mística do número dos que se salvam, pois é o número de peixes apanhados pelos Apóstolos após a ressurreição do Senhor (Jo 21,11).

O número 300

Trezentos representa o número dos perfeitos que, pela cruz de Jesus, obtêm vitória sobre o mundo, e que foram prefigurados por aqueles trezentos soldados escolhidos para combater ao lado de Gedeão (Jz,7).

O número 600 [65]

Quinhentos diz respeito às 6 idades do mundo (como alguns consideram) que precisam passar para que o Salvador se digne visitar o mundo. Em prefiguração disso, Noé, com a idade de seiscentos anos [66] , por inspiração divina construiu a arca para a salvação de sua família.

O número 1.000

O número mil é o da plenitude da bem-aventurança. Daí que se leia no Cântico dos Cânticos (8,11): "Pacífico [67] tinha uma vinha e confiou-a aos guardas. Cada um recebeu mil moedas de prata pelos frutos colhidos". A vinha é a Igreja, abundante em frutos da fé; o Senhor Jesus [68] entregou-a aos guardas, isto é, aos profetas, aos apóstolos e às dignidades angélicas; pelos frutos colhidos o homem recebe mil moedas de prata, isto é, a plenitude da retribuição.

O número 1.200

Mil e duzentos é figura dos doutores apostólicos que, espalhados pelo mundo, se dedicam a pregar a palavra. Estes recebem remuneração dupla, o que é representado pelo duzentos: "Mil siclos para ti, Pacífico, e duzentos para esses que velam pela colheita" (Cânt 8, 12).

O número 7.000

O sete mil representa misticamente o número de todos os eleitos que, repletos do Espírito Santo, pela semana deste mundo reúnem-se no Reino dos Céus. Daí que diga I Reis (19,18): "Reservarei em Israel sete mil homens que não dobraram o joelho diante de Baal".

Já seiscentos mil é o número dos filhos de Israel que saíram do Egito, como diz o Êxodo [69] .

O número 10.000

Dez mil é o número para o decálogo da Lei, como se lê no Evangelho (Mt 18, 24): "Trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil talentos".

O número 144.000

O cento e quarenta e quatro mil é representação mística dos eleitos, judeus que no fim do mundo hão de crer em Cristo (como afirmam alguns). É também, como diz o Apocalipse (cap. 14), o número dos que não se corromperam: "Cantavam como que um cântico novo diante do trono. E ninguém podia cantar aquele cântico, a não ser os cento e quarenta e quatro mil que foram resgatados da terra, os quais não se contaminaram e em cuja boca não se achou mentira, pois são irrepreensíveis".


Notas:

[1] Cfr. a respeito, p. ex., PIEPER, J., Unaustrinkbares Licht, p. 13 e ss.

[2] Sermão 250, em Agostinho, Sermões para a Páscoa, trad. de António Fazenda, Lisboa, Verbo, 1974.

[3] Cfr. Êx 26.

[4] Agostinho, Sermão 83, 7.

[5] Veja-se também I, 1, 9.

[6] Unus, em latim, pode significar: um, um só, único ou uno. Assim, traduzimos: Dominus unus, que literalmente seria "Senhor um", por único Senhor.

[7] O original, em Migne, diz, provavelmente equivocado, Deus unus e Êxodo, em vez de Dominus unus e Deuteronômio.

[8] O livro dos Atos dos Apóstolos, que na Bíblia se segue aos quatro Evangelhos, foi escrito pelo evangelista S. Lucas e narra o que fizeram os apóstolos após a Ressurreição de Cristo e a vinda do Espírito Santo. Descreve também a vida dos primeiros cristãos. O conhecido versículo citado diz que a multidão dos fiéis era cor unum et anima una, literalmente, um coração e uma alma. Cabe aqui a mesma observação da nota 6.

[9] Uma das instruções de Deus a Noé sobre o modo de construir a arca. No original latino até a forma das palavras deixa transparecer a relação entre fazer "o cimo" (summitatem) e a perfeição, consumar (consummabis) uma obra.

[10] Trata-se da parábola em que Cristo compara o Reino dos Céus a um banquete que um rei oferece a várias pessoas que se recusam a comparecer. O rei ordena então a seus servos que convidem a todos que acharem pelos caminhos: "e a sala do banquete ficou repleta de homens maus e bons". Rábano Mauro pretende explicar o enigmático singular, "um homem que não trazia veste nupcial" pela unidade dos maus.

[11] Ao doutor da lei que lhe pergunta qual é o maior mandamento, Jesus responde: "<<Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito>>. Este é o maior e o primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: <<Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Estes dois mandamentos resumem toda a lei e os profetas>>."

[12] A multiplicação dos pães e dos peixes, cfr. Jo 6, 9; Mt 14, 17 ou Mc 6, 41. Nesta interpretação dos dois peixes representando os dois poderes, Rábano Mauro segue Agostinho (cfr. Sermão 130, 1).

[13] O caráter elíptico do latim, que prefere dizer "dois" ao invés de explicitar os "dois homens",,,, dá margem ao pensamento alegórico: o "dois" passa a representar corpo e alma.

[14] Sentença proferida por Cristo ao descrever o fim do mundo.

[15] A Ressurreição de Cristo deu-se no terceiro dia.

[16] Fé, esperança e caridade são as três virtudes teologais, isto é, aquelas que têm por objeto a Deus e são infundidas no homem por Deus.

[17] Deus ordenou que se reservassem três cidades como asilo onde quem tivesse matado o próximo por inadvertência e sem ódio prévio pudesse refugiar-se e escapar à injusta vingança.

[18] Rábano Mauro associa respectivamente ouro, prata e pedras preciosas/madeira, feno e palha, aos bons/maus pensamentos, palavras e obras.

[19] O texto de Migne equivocadamente diz Ezequiel, cap. 1. Trata-se, porém, do cap. 14 de Ezequiel, dedicado à responsabilidade individual. Rábano Mauro está mais interessado em encontrar nessa passagem uma confirmação (no mínimo, obscura) da tríplice divisão que estabeleceu para os fiéis: como clérigos, monges ou no casamento.

[20] O paralelismo entre as visões dos quatro seres vivos de Ezequiel e do Apocalipse (cfr. 4, 7) é tomado como símbolo dos quatro Evangelhos.

[21] Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança são as virtudes indicadas classicamente como as quatro virtudes cardeais. A relação com a passagem do Evangelho é, como tantas outras de Rábano Mauro, muito forçada.

[22] Esta interpretação de Rábano Mauro é especialmente forçada.

[23] Os quatro pontos cardeais.

[24] Os quatro elementos que compõem tudo que há no mundo e, particularmente, o corpo humano. No tratado de Isidoro de Sevilha sobre o homem lê-se: "O corpo vivo é integrado pelos quatro elementos: a terra está na carne; o ar, no hálito; o líquido, no sangue; e o fogo, no calor vital" (Etym. XI, 16).

[25] Cfr. Mc 2,3. O latim diz quatro e subentende quatro homens.

[26] Tal como nossa palavra "sentido", sensus em latim tanto pode ser aplicada a um discurso dotado de "sentido", como para os cinco "sentidos" corporais.

[27] Esta interpretação e as seguintes parecem-nos especialmente forçadas.

[28] Isidoro dedica um dos livros de suas Etimologias (o livro V) às leis e aos tempos. No cap. 39, Sobre a divisão dos tempos, afirma que há seis eras: 1) A que vai da criação do mundo até o dilúvio; 2) Do dilúvio até Abraão; 3) De Abraão a Davi; 4) De Davi ao cativeiro na Babilônia; 5) Do cativeiro da Babilônia a Júlo César e 6) Do nascimento de Cristo a... - "quanto tempo resta nesta era, só Deus sabe".

[29] Deus, Perfector, escolhe o número 6 que, como se sabe, é, já desde a Matemática grega, um número perfeito (é igual à soma de seus divisores: $6 = 1 + 2 + 3$).

[30] Os dons do Espírito Santo são: Sabedoria, Ciência, Entendimento, Conselho, Fortaleza, Temor de Deus e Piedade (cfr. Isaías 12, 2).

[31] Rábano Mauro às vezes utiliza a palavra "santos" como sinônimo de "fiéis", como também é freqüente nas epístolas de S. Paulo.

[32] "O número sete costuma simbolizar a totalidade, pois o tempo se desenvolve em ciclos de sete dias, e, completados esses sete dias, começa de novo etc." (Agostinho, Sermão 83, 7).

[33] . Os 7 vícios capitais (soberba, avareza, luxúria, inveja, gula, acídia e ira), fonte de todo o mal.

[34] O número oito - ensina Agostinho - simboliza o mundo futuro. Pois o oito sucede o sete, número que representa o tempo. Após a mutabilidade desta vida (simbolizada pelo sete) o oitavo dia é o do juízo. Daí, conclui Agostinho, o título do salmo 6: "Para o oitavo", onde se diz: "Não me repreendas, Senhor, em tua indignação; em teu furor não me castigues" (Agostinho, Sermão 260 C, 3).

[35] É a parábola da ovelha perdida em que Jesus quer mostrar a solicitude de Deus pelo pecador: "Quem de vós, tendo cem ovelhas e perdendo uma delas, não deixa as noventa e nove no deserto e vai em busca da que se perdeu até encontrá-la?" (Lc 15, 3 e ss.)

[36] Deuteronômio (3, 11). O cubitum, côvado como unidade de medida, é a distância do cotovelo (cubitum) até a ponta do dedo médio (algo em torno de 50 cm.). Por aí se vê o gigantesco porte de Og; o que nada lhe valeu na batalha contra o povo eleito, a quem Deus diz: "Não vos assusteis; não tenhais medo deles (os povos de estatura mais alta). O Senhor, vosso Deus, que marcha diante de vós, combaterá Ele mesmo em vosso lugar etc." (Deut 1, 29).

[37] Êxodo 26, 1 e ss.: "Farás o tabernáculo com dez cortinas etc."

[38] O testemunho é o texto do Decálogo (cfr. Êx 25, 16).

[39] Curiosamente não é mencionada passagem do Gênesis (37, 9), em que José suscita a inveja e o ódio de seus irmãos ao narrar-lhes o sonho no qual via simbolicamente o pai, a mãe e os 11 irmãos prostarem-se diante dele: "o sol, a lua e onze estrelas prostravam-se diante de mim".

[40] Trans-gredir, etimologicamente, é ultra-passar, dar um passo além da lei, que é figurada pelo número dez. "A lei é o número dez; o pecado, o onze. Mal ultrapassas o dez, cais no onze. Portanto, grande é o mistério simbolizado nas ordens dadas para a instalação do tabernáculo. Muitos mistérios estão nelas representadas. Entre outras coisas foi mandado que se fizessem não dez, mas onze cortinas de pele de cabra, pois no pêlo de cabra se simboliza a confissão dos pecados" (Agostinho, Sermão 83, 7).

[41] Cfr. Êx 26, 7.

[42] Cfr. Apoc 21, 19 e ss.

[43] A Antiga Lei (10) + a Trindade (3) = 13.

[44] Esta interpretação de Rábano Mauro é especialmente forçada.

[45] Na verdade, Gál 1, 18.

[46] Como diz o próprio Paulo (cfr. Gál 2, 8), Pedro é o apóstolo da lei e ele, Paulo, o dos gentios. Em todo caso, a interpretação de Rábano Mauro é muito forçada.

[47] Em Migne, este parágrafo é precedido da sentença: "Sedecim ad numerum sedecim prophetarum".

[48] Isaías, Jeremias, Baruc, Ezequiel, Daniel, Oséias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias.

[49] Mencionados no capítulo referente ao número 2.

[50] Diz Isidoro: "Os hebreus se valeram das 22 letras (de seu alfabeto) para indicar os livros do Antigo Testamento" (Etym. I, 3, 4).

[51] Provavelmente em Ez 11, 1 e ss. Em todo caso, a interpretação de Rábano Mauro é muito forçada.

[52] Cfr. Êx 26, 2.

[53] Como se verá adiante, para Rábano Mauro o fruto de sessenta por um é dado pelos viúvos, e o de cem por um, pelos mártires e pelas virgens.

[54] E Mc 1, 9.

[55] O povo escolhido passou 40 anos no deserto.

[56] Pentecostes em grego significa qüinquagésimo.

[57] Cfr. I Re 5, 15.

[58] Cfr. Núm 11, 16. O texto de Migne equivocadamente diz setenta e dois.

[59] Cfr. Lc 10, 1.

[60] O texto de Migne equivocadamente diz 75, em vez de 70, e refere-se ao livro dos Atos dos Apóstolos, ao invés do Gênesis.

[61] O texto de Migne equivocadamente diz setenta.

[62] Rábano Mauro interpreta Gên 6, 3 ("e serão os seus dias cento e vinte anos") como tempo de penitência.

[63] Passagem ininteligível em Migne que, erradamente, diz doze. Na verdade, Rábano Mauro propõe que a soma $1 + 2 + 3 + \cdots + 14 + 15 = 120$ simbolize (Atos 2, 1) a "reunião num mesmo lugar" (soma) dos 120 fiéis.

[64] Migne equivocadamente diz 154.

[65] Migne equivocadamente diz 500 e 5, ao invés de 600 e 6.

[66] Cfr. Êx 7, 6.

[67] Pacífico, o rei Salomão, figura de Cristo. Segundo os etimologistas da época, Salomão significa pacífico. "Pois - diz por exemplo Agostinho -, o nome Salomão significa em latim Pacífico" (Sermão 10,4).

[68] Prefigurado em Salomão.

[69] Cfr. Êx 12, 37.

Texto retiro do link.


Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.
 
Receba novos posts por e-mail:


Total de visualizações de página