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A sabedoria medieval na ponta dos dedos


Contar com os dedos de 1 a 20.000, de 'De numeris'.
Codex alcobacense, por Rabano Mauro (780-856)

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Texto retirado do LINK.

A sabedoria medieval na ponta dos dedos, por Luis Dufaur - Escritor, jornalista, conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs.

A queda do Império Romano deixou a Europa e boa parte do Oriente Próximo submersos no mais generalizado analfabetismo. Porque nesse Império, tão grande sob os pontos de vista cultural, jurídico e administrativo, tão elogiado hoje, a imensa maioria dos homens era de escravos. Apenas as classes altas que dirigiam a sociedade e os exércitos haviam recebido instrução, por vezes aprimorada. Mas essas categorias cultas pereceram ou desapareceram nas invasões dos bárbaros. Os bárbaros – talvez feitas algumas exceções – acrescentaram o próprio deles: a barbárie! Foi o trabalho santo, heroico e paciente da Igreja, notadamente suas escolas monacais, episcopais ou paroquiais que foram tirando Europa da noite da ignorância até transforma-la num farol de cultura universal.

São Beda é o fundador da historiografia inglesa, entre outros títulos

O trabalho educador demorou séculos considerando as devastações das sucessivas invasões bárbaras e dos muçulmanos cheios de ódio destrutor. Houve um período intermediário de séculos até os povos serem satisfatoriamente instruídos. Como faziam então, os primeiros medievais com suas contas sabendo pouco escrever ou ler? O mais incrível que o faziam com os dedos da mão, porém com uma habilidade e uma complexidade de nos fazer passar vergonha. A habilidade era tão surpreendente que foi objeto de uma reportagem especial do jornal portenho “La Nación”.

Nós também contamos com os dedos, mas não vamos além dos 10 das duas mãos. Os medievais conheciam combinações por onde com esses 10 podiam facilmente calcular até 9.999. Os mais habilidosos podiam fazer cálculos na casa do milhão pondo as mãos em diversas partes do corpo, algo muito útil para os que mexiam com dinheiro.

Em verdade, o método não era exclusivamente medieval e já existia na Antiguidade. O escritor romano do século V Marciano Capela descreveu “a dama da Aritmética”, como uma “mulher de extraordinária beleza, e a majestade de uma nobilíssima antiguidade”, em seu livro “De Nuptiis”, no qual personifico as sete artes liberais. E descreveu uma “dança” que a dama Aritmética executava com as mãos: a complexa e muito prezada arte de contar com os dedos. Tudo isso se teria perdido se não fosse os monges católicos.

A dama da Aritmética, xilografia do livro
Margarita Philosophica (A pérola filosófica),
de Gregor Reisch (1467 -1525)

“Esse sistema foi usado até os séculos XI e XIII na Idade Média em toda a Europa”, disse à BBC Mundo o historiador da ciência medieval Seb Falk, autor do livro “The Light Ages” ou “A idade da luz”.

O livro De temporum ratione ou “Como contar o tempo” de um monge do início do século VIII é o mais interessante. O religioso vivia em um dos cantos mais remotos do mundo conhecido, no mosteiro de Jarrow, no nordeste da Inglaterra. Mas suas obras iluminaram a civilização ocidental durante milênios, e sua fama de estudioso de renome internacional revoa até hoje: foi São Beda, o Venerável, Doutor da Igreja. O referido tratado marcou o compasso da Europa até a reforma gregoriana de 1582 ensinando a ciência do cálculo do tempo e a arte da construção do calendário.

Sinais sobre o corpo para os grandes números

“A base do calendário cristão é a Páscoa. Essa data tem que ser identificada meses ou anos antes para harmonizar o culto divino e desencadeou grandes debates do Atlântico a Alexandria”, explica o historiador da ciência. “Devia cair no domingo após a primeira lua cheia ou equinócio, e tinha que ser marcada com antecedência, já que toda a liturgia católica depende dela. “Era preciso combinar o ciclo solar e o ciclo lunar e os dias da semana.

“São Beda resolveu como fazê-lo usando os dedos das mãos! Assim chegava à data correta da Páscoa em questão de segundos. “Não foi à toa que seu manual enciclopédico foi impresso e copiado por centenas de anos”, escreveu o professor Seb Falk.

São Beda mostra que as mãos, esses aparelhos portáteis por excelência, servem como computadores modernos e ensinou como contar até 9999.

“Assim como, quando escrevemos, temos uma coluna para as unidades, outra para as dezenas, centenas e milhares, ele dedicava o dedo mínimo, o anel e os dedos médios da mão esquerda às unidades e o indicador e o polegar às dezenas; na mão direita, o polegar e o indicador indicavam as centenas e os outros três dedos, os milhares”. “Diferentes combinações desses dedos em posições diferentes permitiram representar todos esses números”, escreve Falk.

Seb Falk, 'The Light Ages'

São Beda forneceu dicas para aprender a contar: dizendo os números em voz alta enquanto mostra suas mãos e os alunos se acostumam a gestos às vezes difíceis de reproduzir, até memoriza-los. Pode se usar as mãos para adicionar, subtrair, multiplicar como um ábaco.

“Era uma linguagem de sinais usada pelos feirantes para se comunicar de maneira eficaz em meio ao ruído e à distância”, explica Falk. “Os monges utilizavam para se comunicar em mosteiros onde o silêncio é regra, e para memorizar textos filosóficos e fórmulas matemáticas”.

Nesse caso os números eram substituídos pelas letras – a letra “a” era representada pelo 1; a “b” pelo 2, etc. E também servia de código secreto em caso de perigo. Se alguém quiser alertar um amigo que está entre traidores mostra com os dedos 3, 1, 20, 19, 5 e 1, 7, 5; nessa ordem as letras significam caute age (aja com cautela). Esse código manual também foi valioso para o estudo de algo muito precioso na vida monástica: a música.

“A música foi estudada de uma maneira muito científica; para monges era uma ciência matemática. “Eles pensavam constantemente sobre a relação entre as diferentes harmonias, nas proporções aritméticas entre as diferentes notas da escala musical. “Para esses filósofos tudo havia sido criado por Deus com algum motivo, e a ‘harmonia das esferas’ e da ‘música universal’ não era uma metáfora”.

Os monges haviam recuperado os escritos do grego Pitágoras, pai das matemáticas, que postulava que o Universo era governado de acordo com magnitudes numéricas harmoniosas e que o movimento dos corpos celestes seguia proporções musicais.

São Beda no leito de morte dita a interpretação do último capítulo
do Apocalipse, James Doyle Penrose (1862 – 1932), 
Royal Academy, Burlington House, Piccadilly

Assim os dedos serviam para os mais complicados cálculos astronômicos. Mas também para erigir catedrais de altitudes vertiginosas e formas ousadas que perduram até hoje. Se o sistema dos dedos distorcesse um pouco esses prédios teriam desabado há tempo. “Os planetas tocavam um tipo de música criada pela velocidade em que giravam, que era como uma frequência: quanto maior a frequência, maior a nota. (Este conceito aliás foi assimilado por Aristóteles e comentado por Santo Tomás de Aquino). “Para lembrar as diferentes notas musicais e configurações de harmonia, eles usavam as mãos”, prossegue o historiador da ciência.

Naquela época, a memória era uma ferramenta indispensável, porque os materiais de escrita eram muito caros, os livros eram escassos e muito prezados. Talvez os mais preciosos sejam os do Venerável São Beda que nos transmitiu a dança digital científica que durante séculos serviu para a contagem da melodia cósmica e a construção da Cristandade.

***


Leia mais em A Pedagogia Medieval

Leia mais em Rábano Mauro e o Significado Místico dos Números



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A Matemática na Europa Medieval

Iluminura do Livro de Jogos, obra do scriptorium de Afonso X.
A imagem mostra três copistas trabalhando.

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Tempo de leitura: 18 min.

Trecho retirado do livro Uma História da Matemática da Florian Cajori, publicado pela Editora Ciência Moderna, em 2007.

A Europa durante a Idade Média

Com o terceiro século depois de Cristo começou uma era de migração de nações na Europa. Os poderosos godos abandonaram os seus pântanos e florestas no norte e, em marcha constante em direção ao sul, desalojaram os vândalos, os suecos, e os borgonheses. Cruzando o território romano, pararam e recuaram somente quando alcançaram as praias do Mediterrâneo. Dos Montes Urais, hordas selvagens varreram as terras até o Danúbio, o Império Romano caiu em pedaços indicando a Idade das Trevas. Embora possa parecer tenebroso, foram eles os responsáveis pela criação das instituições e das nações da Europa Moderna. Assim como os gregos e os hindus foram os grandes pensadores da antiguidade, o mesmo também se aplica aos povos latinos, que foram o embrião de um forte e luxuriante acontecimento, ou seja, as modernas civilizações do norte dos Alpes e a da Itália passaram a ser os grandes líderes dos tempos modernos.

INTRODUÇÃO À MATEMÁTICA DOS ROMANOS

Consideraremos agora como as nações do norte, ainda bárbaras, gradualmente conseguiram se apossar dos tesouros intelectuais da antiguidade. Com a expansão do cristianismo, a língua latina foi introduzida não só eclesiástica, como também cientificamente em todas as importantes transações mundiais. Naturalmente a ciência da Idade Média foi largamente extraída das fontes latinas. Com isto, durante os primeiros tempos da Idade Média os autores romanos eram os únicos escritores lidos no Ocidente. Embora o grego não fosse totalmente desconhecido, mesmo assim, antes do século XIII nenhum trabalho grego foi lido ou traduzido para o latim. Por ser na verdade escassa a ciência de que se poderia extrair dos escritores romanos, tivemos de esperar vários séculos antes que qualquer progresso matemático fosse feito.

Depois da época de Boécio e Cassiodório [Cassiodoro], a atividade matemática Itália morreu completamente. O primeiro tênue sopro de ciência entre as tribos que vieram do norte foi uma enciclopédia intitulada Orígenes [Etimologias], escrita por Isidoro (morto em 636 como bispo de Sevilha). Este trabalho é baseado nas enciclopédias de Martiano Capella de Cartago e a de Cassiodório e parte dele é dirigido ao quadrivium, aritmética, música, geometria, e astronomia. O autor apresenta definições e explicações gramaticais de termos técnicos, e mais os modos de computação usados na época. Depois de Isidoro, seguiu um século de obscurantismo um pouco dissipado pela presença de Beda, o Venerável (672-735), o mais erudito homem do seu tempo. Era um nativo de Wearmouth, na Inglaterra, seus trabalhos contêm tratados sobre o Computus, ou cálculo da data da Páscoa e prática da contagem com os dedos. Parece que o simbolismo com os dedos foi então largamente usado para os cálculos. A correta determinação da data da Páscoa naqueles dias era um problema crucial para a Igreja. Tornou-se mandatório que pelo menos um monge em cada monastério soubesse calcular o dia dos festivais religiosos, bem como o calendário. Tais cálculos requerem algum conhecimento de aritmética. Portanto achamos que a arte do cálculo sempre teve um papel importante na educação dos monges.

O ano em que Beda morreu é também o ano em que Alcuíno (735- 804) nasceu. Alcuíno foi educado em York, e depois chamado à corte de Carlos Magno, que foi um grande patrono da educação, e ele próprio um homem culto. Nas grandes catedrais e monastérios criaram-se escolas nas quais eram ensinados os salmos, a escrita, o canto, o cálculo (computus) e a gramática. Por computus significa aqui, provavelmente, não meramente o cálculo da data da Páscoa, mas a arte do cálculo em geral. Exatamente o que era, não temos como saber. Não se sabe igualmente se Alcuíno estava familiarizado com os ápices de Boécio ou com o modo romano de calcular pelo ábaco. Ele pertence à extensa lista dos sábios que moldaram a teoria dos números na teologia. Assim, o número de seres criados por Deus, que criou também todas as coisas, é 6, porque 6 é um número perfeito (cuja soma dos seus divisores é 1 + 2 + 3 = 6); 8, por outro lado, é um número imperfeito (1 + 2 + 4 < 8); portanto a segunda origem da humanidade vem do número 8, que é o número de almas dito ter estado na arca de Noé.

Há uma coleção de "Problemas para estimular a mente" (propositiones ad acuendos invenes), que é tão velha quanto 1000 d.C. ou talvez mais. O historiador Cantor é de opinião que foram escritos muito antes por Alcuino. O que se segue é um desses "Problemas": Um cão corre atrás de um coelho que tem uma vantagem de 50 m, e avança por cada pulo 3 metros, enquanto o coelho ao dar um pulo avança 2,5 metros. Para calcular em quantos pulos o cão alcança o coelho, 50 é dividido por 0,5 [1]. Nessa coleção de problemas, as áreas de terras triangulares ou quadrangulares são calculadas pelas mesmas fórmulas aproximadas usadas pelos egípcios fornecidas por Boécio em sua geometria. Um antigo problema é o da "cistema" (dado o tempo em que cada uma de várias bicas podem encher uma cistema, calcular o tempo que todas juntas levariam para enchê-la), que fora previamente encontrado em Herão, na Antologia grega, e em trabalhos hindus. Muitos dos problemas indicam que a coleção foi compilada principalmente de fontes romanas. O problema que em razão de sua unicidade dá o mais positivo testemunho de sua origem romana é o da interpretação de um testamento, no caso dos dois herdeiros serem gêmeos. O problema é idêntico aos dos romanos, exceto no que diz respeito às proporções de divisão estabelecidas no testamento. Como exemplo de problemas recreativos, mencionamos o do lobo, da cabra e da couve que devem fazer a travessia de um rio em um bote que os transporte, além do seu piloto, apenas mais um dos três. Pergunta: Quais podem ir no barco em cada travessia de modo que a cabra não coma a couve e nem o lobo a cabra? As soluções dos "problemas para estimular a mente" requerem não mais conhecimento do que algumas poucas fórmulas usadas em agrimensura, a habilidade de resolver equações lineares e o domínio das quatro operações fundamentais com inteiros. Extrações de raízes em nenhuma parte eram exigidas; e frações dificilmente ocorriam.

O grande império de Carlos Magno foi ameaçado de ruir logo após a sua morte em virtude da guerra e confusão que assumiram o poder. As pesquisas científicas foram abandonadas, e não retomadas até o final do século X, quando sob o domínio saxônico na Alemanha e dos capetianos na França, surgiu mais uma época de paz e a espessa escuridão da ignorância começou a desaparecer, e o zelo com o qual o estudo de matemática foi tomado deve-se principalmente a energia e influência de um homem Gerbert, nascido em Auvergne (França). Depois de receber uma educação monástica engajou-se no estudo, principalmente de matemática na Espanha. De volta ensinou em Reims por dez anos, tornando-se notável por sua grande cultura e elevado a mais alta posição. Pelo rei Oto I e seus sucessores, foi eleito bispo do Reino, depois de Ravena, sendo por fim, eleito papa sob o nome de Silvestre II, pelo último imperador Oto III. Considerado como o maior matemático da Europa do século X. sua matemática foi considerada maravilhosa pelos seus contemporâneos. Morreu em 1003 depois de uma vida atribulada, envolvendo-se em muitas disputas políticas e religiosas, acusado de conluios criminosos com os espíritos do diabo.

Gerbert aumentou seus conhecimentos com a leitura de livros raros. Assim, em Múntua, encontrou a geometria de Boécio, e embora isto fosse de menor valor científico, possuía, contudo, uma grande importância histórica. Foi, na época, o livro principal no qual os sábios europeus podiam aprender os elementos de geometria. Gerbert estudou-o com afinco, e é aceito, em geral, que ele próprio tenha sido o autor de uma geometria. H. Weissenbonn, um historiador, nega essa teoria, e garante que o livro em questão consiste em três partes que não podem ter vindo de um mesmo e único autor. Estudos mais recentes admitem Gerbert como o autor e adiantam que ele o tenha compilado de diferentes fontes. A sua geometria contém pouco mais do que a de Boécio, mas o fato de erros ocasionais nesta última e corrigidas na de Gerbert demonstra que o autor dominara o assunto. "O primeiro texto matemático da Idade Média que merece este nome", diz Hankel, "é uma carta de Gerbert a Adalbold, bispo de Utrecht", na qual é explicada a razão porque a área de um triângulo, obtida "geometricamente" tomando-se produto da base pela metade da altura difere da área calculada "aritmeticamente", pela fórmula \dfrac{1}{2} a (a + 1), usada pelos agrimensores onde a representa o lado de um triângulo equilátero. A carta fornece corretamente a explanação que na última fórmula todos os pequenos quadrados, nos quais é suposto o triângulo ser dividido, são contados inteiramente, embora parte deles saia fora dos limites da figura. D. E. Smith chama a atenção para um grande jogo numérico medieval; chamado Aritmancia: suposto por alguns ser de origem grega, foi praticado até tardiamente como no século XVI. Esse jogo exige considerável habilidade aritmética, tendo sido conhecido por Gerbert, Oronce Fine, Thomas Bradwardine e outros. Um tabuleiro semelhante ao de xadrez era usado. Relações como 81=72+ \dfrac{1}{8} de 72, 42 = 36 + \dfrac{1}{6} de 36 eram envolvidas no jogo.

Gerbert fez um cuidadoso estudo dos trabalhos de Boécio, e ele próprio publicou o primeiro, talvez ambos, dos dois trabalhos seguintes, Um Pequeno Livro sobre Divisão de Números: e o Regras de Cálculo Para o Ábaco. Estes livros dão idéia dos métodos de cálculos praticados na Europa antes da introdução dos numerais hindus. Gerbert usou o ábaco que provavelmente não era conhecido por Alcuíno. Bernelino, um aluno de Gerbert, descreve o ábaco como consistindo em uma prancha lisa sobre a qual os geômetras estavam acostumados a espalhar areia azul para desenhar os seus diagramas. Para os propósitos aritméticos, a prancha era dividida em 30 colunas, das quais três eram reservadas para frações enquanto as 27 restantes, divididas em grupos com três colunas em cada. Em cada grupo, as colunas são marcadas respectivamente pelas letras C (cento), D (dez), e S (unidades) ou M (monas). Bernelino apresenta os nove numerais usados que são os ápices de Boécio, e relembra que as letras gregas podem ser empregadas nos lugar daqueles. Com a utilização das colunas, qualquer número pode ser escrito sem o zero, e todas as operações da aritmética podem ser executadas sem as colunas do mesmo modo que fazemos hoje, empregando o zero. Na verdade, os modos de adicionar, subtrair, e multiplicar em voga entre os abacistas concordam substancialmente com os de hoje. Mas para a divisão existe uma grande diferença. As primitivas regras para a divisão parecem ter sido elaboradas para satisfazerem as três seguintes condições: (1) O uso de tabelas para a multiplicação seriam restritas, pelo menos, à prática de nunca se pedir a multiplicação mental de um número de dois dígitos por outro de um dígito. (2) As substrações deveriam ser evitadas tanto quanto possível e substituídas por adição. (3) A operação deveria ser feita de modo puramente mecânico, não sujeita a tentativas. Que tais condições fossem pedidas pode nos parecer estranho; mas deve ser lembrado que os monges da Idade Média não freqüentavam a escola na infância e aprendiam a tabuada enquanto a memória estava fresca. As regras para a divisão de Gerbert são as mais antigas ainda existentes. Elas são tão lacônicas que se tornam obscuras para o não iniciado. Foram provavelmente criadas simplesmente para ajudar a memória na chamada das sucessivas etapas do trabalho. Nos manuscritos posteriores foram instituídas com mais detalhes. Na divisão de um número qualquer por outro de um algarismo digamos 668 por 6, o divisor era primeiro aumentado para 10 com o acréscimo de 4. O processo era apresentado com uma figura ao lado. Na continuação do processo, devemos imaginar os dígitos que deveriam ser cortados, apagados e substituídos pelo que estava abaixo. Seria como segue: 600\div 10 = 60, mas para corrigir o erro, 4 \times 60, ou 240, deveria ser adicionado; 200 \div 10 = 20, mas 4 \times 20, ou 80, adicionado. Agora, escreve-se para 60 + 40+ 80, cuja soma é 180, e continuava-se assim: 100 \div 10 = 10; a correção necessária é 4 \times 10, ou 40, que somada a 80, dá 120. Novamente 100 \div 10 = 10, e a correção 4 \times 10, junto com 20, resulta 60. Procedendo como antes, 60 \div 10 = 6; a correção é 4\times 6 = 24. Agora 20 \div 10 = 2, a correção passa a ser 4\times 2 = 8. Na coluna das unidades temos aqui 8 + 4 + 8, ou 20. Como antes 20 \div 10 = 2; a correção é 2 \times 4 = 8, que não divisível por 10, mas somente por 6, fornecendo o quociente 1 e o resto 2. Todos os quocientes parciais tomados juntos fornecem 60 +20 + 10 + 10 + 6 + 2 + 2 + 1 = 111, e o resto 2.

Semelhante, mas mais complicado, é o processo quando o divisor é formado por dois ou mais algarismos. Quando o divisor for 27, por exemplo, então o múltiplo mais próximo de 10, ou 30, deve ser tomado como divisor, mas as correções para 3 são impostas. Aquele que tivesse paciência para levar uma tal divisão até o fim, entenderia por que se tem dito de Gerbert que "Regulas dedit, quae a sudantibus abacistis vix intelliguntur" [2]. Perceberá também por que o método de divisão árabe, quando foi introduzido, era chamado de divisio aurea, mas para o ábaco, de divisio ferrea.

Em seu livro sobre o ábaco, Bernelino separou um capítulo para frações. Estas eram, naturalmente, as duodecimais, primeiramente usadas pelos romanos. Sem uma notação adequada, o cálculo com elas era muito difícil. Mesmo para nós que estamos acostumados a lidar com frações, pela aplicação de nomes, tais como uncia para \dfrac{1}{12} quincunx para \dfrac{5}{12} e dodrans para \dfrac{9}{12}.

No século X, Gerbert foi a figura central dos sábios. No seu tempo, o Ocidente entrou na posse segura de todo o conhecimento matemático dos romanos, e durante o século XI esse saber foi estudado assiduamente. Apesar dos numerosos trabalhos que foram escritos sobre aritmética e geometria, o conhecimento matemático era ainda muito insignificante, na verdade escassos tesouros matemáticos obtidos das fontes romanas.


Notas:

[1] Está subentendido que o cão e o coelho, na corrida, executam os saltos concomitantemente. (N. T.)

[2] Estabeleceu regras que são compreendidas apenas por esforçados abacistas. (N. T.)

***

Leia mais em O que é o Quadrivium? - por Roberto Helguera

Leia mais em Boécio e Cassiodoro

Leia mais em Alcuíno de York: difusor do Trivium e Quadrivum

Leia mais em Papa Silvestre II - O Papa Matemático



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Uma aula de Matemática no ano 1000

Monges Matemáticos: um ensinando o globo, o outro copiando um
manuscrito, do manuscrito "Imagem do Mundo", ilustração
da Ciência e Literatura na Idade Média e o Renascimento

Tempo de leitura: 22 minutos

Por Ana Catarina P. Hellmeister, IME - USP, publicado pela Revista Professor de Matemática nº 42, no ano 2000, disponível no LINK.

Introdução

Estamos no ano 2000 e uma pergunta que tenho ouvido com freqüência é: como será que era determinada coisa (a medicina, o teatro, a literatura, o ensino, ...) no ano 1000?

Vamos tentar dar alguma idéia de como era o ensino de Matemática, que afinal é o que nos interessa, no ano 1000 e pouco antes dele. Obviamente, este artigo não é, nem de longe, um texto completo sobre o ensino de Matemática na Idade Média, tem apenas a intenção de mostrar alguns de seus aspectos interessantes.

I.  Rosvita

Vamos começar, talvez por feminismo, apresentando Rosvita, uma monja beneditina do convento de Gandersheim, norte de Göttingen, Alemanha, que viveu aproximadamente de 935 a 1002, e é considerada a primeira poetisa da literatura alemã. Ela nasceu, muito provavelmente, em uma família aristocrata e há registros de que seu nome aparece numa gravura esculpida em madeira como Helena von Rossow.

Rosvita ingressou muito jovem no convento de Gandersheim, famoso centro de estudos, onde seu extraordinário talento encontrou abrigo e cultivo criterioso. Inicialmente Rosvita foi orientada por um professor e posteriormente ficou sob a supervisão de uma sobrinha de Otto I (monarca da época) de nome Gerberg, considerada a mulher modelo de seu tempo. Gerberg, que foi abadessa do convento entre 959 e 1001, tinha um interesse especial pela obra poética de Rosvita, a qual, segundo a abadessa, “contribuiria para o engrandecimento da glória de Deus”.

Albretch Dürer, A monja Rosvita apresenta
um livro a Oto I. (Kupferstichkabinett, Berlin)

Não cabe aqui, numa revista para professores de Matemática, discorrer com maiores detalhes sobre a extensa obra literária de Rosvita, uma das mais importantes da Idade Média. Focalizaremos uma em especial, a peça Sabedoria, que contém uma aula de Matemática para jovens estudantes, que, pelo seu espírito motivador e bem-humorado, serviria de exemplo (quem diria, 1000 anos atrás!) para nós, professores, preocupados com o ensino de Matemática.

Antes de comentar a peça em particular, para melhor ligar Rosvita à Matemática, vamos transcrever um trecho do livro Cuentos y cuentas de los matematicos, de Rodriguez Vidal, R. e Rodriguez Rigual, M. C. Editorial Reverte, 1986, pág. 137.

“[...] A idade média na Europa não islâmica limita seus conhecimentos de Matemática aos textos comentados de Alexandria e Bizâncio, sem que apareçam indícios de criação original. Desta época são os escritos de Rosvita, monja de um convento alemão, do século X, mais interessantes como literatura e filosofia do que como Matemática. Entretanto demonstram bom conhecimento da Arithmetica de Boécio e aludem a questões relativas a números deficientes e perfeitos, citando o 6, 28, 496 e 8128, que eram os números perfeitos conhecidos na sua época. O número perfeito seguinte é 33 550 336 [...].”

Há divergências entre os historiadores sobre se as peças teatrais escritas por Rosvita eram mesmo encenadas ou se seriam meros textos didáticos, nada tendo a ver com o teatro. Lembrando que o ensino na Idade Média era ministrado quase que exclusivamente nos mosteiros, sem dúvida, encenados ou não, os textos de Rosvita tinham claros propósitos didáticos, como é possível perceber em Sabedoria, que passamos a transcrever de [3].

Enredo da peça:  

Paixão das santas virgens Fé, Esperança e Caridade. Foram levadas à morte pelos diversos suplícios a que as submeteu o imperador Adriano em presença da sua santa mãe, Sabedoria, que, com seus maternos conselhos, as exortou a suportar os sofrimentos.

Consumado o martírio, sua santa mãe, Sabedoria, tomou de seus corpos e, ungindo-os com bálsamo, deu-lhes sepultura de honra a três milhas de Roma. Ela, por sua vez, no quarto dia, após a oração sacra, enviou também seu espírito ao céu.

Vamos transcrever apenas o trecho da peça que traz a lição de Matemática. Trata-se de um diálogo entre Sabedoria e o imperador Adriano:

Adriano: Dize, que vieste fazer entre nós?
Sabedoria: Nenhuma outra coisa a não ser conhecer a doutrina da verdade para o aprendizado mais pleno da fé que combateis e para consagrar minhas filhas a Cristo.
Adriano: Dize os nomes delas.
Sabedoria: A primeira se chama Fé; a segunda, Esperança; a terceira, Caridade.
Adriano: Quantos anos têm?
Sabedoria: (sussurrando) Agrada-vos, ó filhas, que perturbe com problema aritmético a este tolo?
Fé: Claro, mamãe. Porque nós também ouviremos de bom grado.
Sabedoria: Ó Imperador, se tu perguntas a idade das meninas: Caridade tem por idade um número deficiente que é parmente par; Esperança, também um número deficiente, mas parmente ímpar; e Fé, um número excedente mas imparmente par.
Adriano: Tal resposta me deixou na mesma: não sei que números são!
Sabedoria: Não admira, pois, tal como respondi, podem ser diversos números e não uma única resposta.
Adriano: Explica de modo mais claro, senão não entendo.
Sabedoria: Caridade já completou 2 olimpíadas; Esperança, 2 lustros; Fé, 3 olimpíadas.
Adriano: E por que o número 8, que é 2 olimpíadas, e o 10, que é 2 lustros, são números deficientes? E por que o 12 que completa 3 olimpíadas se diz número excedente?
Sabedoria: Porque todo número cuja soma de suas partes (isto é, seus divisores) dá menor que esse número chama-se deficiente, como é o caso do 8. Pois os divisores de 8 são: sua metade – 4, sua quarta parte – 2, e sua oitava parte – 1; que somados dão 7. Assim também o 10, cuja metade é 5; sua quinta parte é 2; e sua décima parte, 1. A soma das partes do 10 é, portanto, 8, que é menor que 10. Já o contrário se diz número excedente, como é o caso do 12. Pois sua metade é 6; sua terça parte, 4; a quarta parte, 3; a sexta parte, 2; e a duodécima parte, 1. Somadas as partes dão 16.
Quando porém o número não é maior nem menor que a soma de suas diversas partes, então esse número é chamado número perfeito.
É o caso do 6, cujas partes – 3, 2 e 1 – somadas dão o próprio 6. Do mesmo modo, o 28, 496 e 8128 também são chamados números perfeitos.
Adriano: E quanto aos outros números?
Sabedoria: São todos excedentes ou deficientes.
Adriano: E o que é um número parmente par?
Sabedoria: É o que se pode dividir em duas partes iguais e essas partes em duas iguais, e assim por diante até que não se possa mais dividir por 2 porque se atingiu o 1 indivisível. 8 e 16, por exemplo, e todos que se obtenham a partir da multiplicação por 2 são parmente pares.
Adriano: E o que é parmente ímpar?
Sabedoria: É o que se pode dividir em partes iguais, mas essas partes já não admitem divisão (por 2). É o caso do 10 e de todos os que se obtêm multiplicando um número ímpar por 2. Difere, pois, do tipo de número anterior, porque, naquele caso, o termo menor da divisão é também divisível; neste, só o termo maior é apto para a divisão.
No caso anterior, tanto a denominação como a quantidade são parmente pares; já aqui, se a denominação for par, a quantidade será ímpar; se quantidade for par, a denominação será ímpar.
Adriano: Não sei o que é isto de denominação e quantidade.
Sabedoria: Quando os números estão em “boa ordem”, o primeiro se diz menor e o último, maior. Quando, porém, se trata da divisão, denominação é quantas vezes o número se der. Já o que constitui cada parte, é o que chamamos quantidade.
Adriano: E o que é imparmente par?
Sabedoria: É o que – tal como o parmente par – pode ser dividido não só uma vez, mas duas e, por vezes, até mais. No entanto, atinge a indivisibilidade (por 2) sem chegar ao 1.
Adriano: Oh! Que minuciosa e complicada questão surgiu a partir da idade destas menininhas!
Sabedoria: Nisto deve-se louvar a supereminente sabedoria do Criador e a Ciência admirável do Artífice do mundo: pois não só no princípio criou o mundo do nada, dispondo tudo com número, peso e medida; como também nos deu a capacidade de poder dispor de admirável conhecimento das artes liberais até mesmo sobre o suceder-se do tempo e das idades dos homens.

Observem que os números parmente pares são as nossas potências de 2, os parmente ímpares são aqueles que são o dobro de um ímpar; os imparmente pares são os produtos de um ímpar por um parmente par. Denominação e quantidade são os atuais quociente e divisor.

Uma fala de Sabedoria que também chama atenção é sua afirmativa de que todos os números, além de 6, 28, 496 e 8128, são excedentes ou deficientes. Isso mostra o desconhecimento, por parte dos estudiosos da época da obra os Elementos de Euclides, que contém, no livro IX, a demonstração de que qualquer número da forma 2^{n-1}(2^n -1) é perfeito se 2^n - 1 for primo. Com esse resultado, já para n=13, obtém-se  o próximo perfeito que é o número 33 550 336.  Essa perda de contato com os ensinamentos de Euclides ficará bastante evidente nos problemas de geometria da seção a seguir.

II.  Já existia Educação Matemática no século VIII  

Ainda para mostrar que na Idade Média se entendia de ensino de Matemática, voltemos um pouco no tempo mudando o século e os personagens.

É extremamente interessante a seleção de Problemas para aguçar a inteligência dos jovens, encontrada em Patrologiae cursus completus, séries latina, atribuída a Beda, qualificado de O Venerável, que nasceu e viveu na Inglaterra entre  673  e  735,  tornando-se um dos maiores professores das escolas religiosas medievais. As soluções apresentadas também estão em Patrologiae cursus completus, séries latina (ver [3]) e são algumas atribuídas a Beda e outras a Alcuíno (séculos VIII-IX).

Os enunciados dos problemas traduzem bem a cultura popular da época, com a pouca Matemática que se conhecia apresentada e ensinada de modo atraente e bem-humorado, privilegiando o desenvolvimento da inteligência dos alunos, como pretendemos fazer hoje. Também já contemplavam a idéia hoje muito difundida de usar situações do cotidiano como motivadores do aprendizado.

Vejamos, então, alguns dos problemas da seleção de Beda, encontrados em [3], que certamente surpreenderão muitos dos leitores que acreditam que certos problemas e soluções são de épocas mais recentes.

1. Problema do lobo, da cabra e da couve: Certo homem devia passar, de uma a outra margem de um rio, um lobo, uma cabra e um maço de couves. E não pôde encontrar outra embarcação, a não ser uma que só comportava dois entes de cada vez, e ele tinha recebido ordens de transportar ilesa toda a carga. Diga, quem puder, como fez ele a travessia?

Solução: Não apresentamos a solução por ser bem conhecida, pois esse problema é proposto até hoje em diferentes versões. O surpreendente é que seja tão antigo.

2. Problema do boi: Um boi que está arando todo o dia, quantas pegadas deixa ao fazer o último sulco?

Solução: Nenhuma em absoluto. Pois o boi precede o arado e o arado segue o boi; e, assim, todas as pegadas que o boi faz na terra trabalhada, o arado as apaga. E, deste modo, não se encontrará no último sulco nenhuma pegada.

Este problema mostra bem o espírito brincalhão da época.

3. Problema da escada de 100 degraus: Numa escada de 100 degraus, no 1º degrau está pousada 1 pomba; no 2º, 2; no 3º, 3; no 4º, 4; no 5º, 5; e assim em todos os degraus até o 100º. Diga, quem puder, quantas pombas há no total?

Solução: Calcule-se assim: tome a pomba do 1º degrau e some-a às 99 do 99º, o que dá 100. Do mesmo modo, as do 2º com as do 98º somam 100. E assim degrau por degrau, juntando sempre um de cima com o correspondente de baixo, e obterá sempre 100. Some-se tudo junto com as 50 do 50º degrau e as 100 do 100º degrau que ficaram de fora, e obter-se-á 5 050.

Reconhecem aqui os leitores a famosa solução de Gauss, aos sete anos de idade, respondendo ao problema de somar  1 + 2 + ... + 100?

4. Problema dos dois caminhantes que viram cegonhas: Dois homens andando pelo caminho viram cegonhas e disseram entre si: Quantas são? E, contando-as, disseram: Se fossem outras tantas, e ainda outras tantas; e, se somasse metade de um terço do que deu e ainda se acrescentassem mais duas, seriam 100. Diga, quem puder, quantas cegonhas foram vistas por eles inicialmente?

Solução: 28. Pois 28 com 28 e 2884. Metade de um terço, 14, que somado com 84, dá 98, que, acrescido de 2, resulta 100.

5. Problema do comprador: Disse certo negociante: Quero com 100 denários comprar 100 suínos; mas cada porco custa 10 denários, cada leitoa, 5, e cada 2 porquinhos, 1 denário. Diga, quem entendeu, quantos porcos, leitoas e porquinhos devem ser comprados para que o preço seja exatamente 100 denários, nem mais nem menos?

Solução: 9 leitoas e 1 porco custam 55 denários e 80 porquinhos, 40. Já temos 90 suínos por 95 denários. Com os restantes 5 denários compram-se 10 porquinhos.

6. Problema da tela: Tenho uma tela de 100 cúbitos de comprimento e de 80 de largura. Quero daí fazer telinhas de 5 por 4. Diga pois, ó sabido, quantas telinhas podem-se fazer?

Solução: De 400, 5 é a octogésima parte e 4, a centésima parte. Seja 80 multiplicado por 5, ou 100 por 4, sempre encontrará 400.

Problemas como o  4, 5 ou 6 eram resolvidos sem equações, incógnitas, etc., recursos desconhecidos na época, mas por processos de tentativa. É interessante observar que esse procedimento medieval é bastante recomendado pelos educadores de hoje para incentivar o raciocínio e a criatividade dos estudantes.

O problema a seguir mostra que as soluções obtidas por tentativa nem sempre eram completas, deixando de lado alternativas válidas.

7. Certo pai de família tinha 100 dependentes, a quem mandou distribuir 100 medidas de provisões do seguinte modo: que os homens recebessem 3 medidas; as mulheres, 2; e as crianças, meia. Diga, quem for capaz, quantos homens, mulheres e crianças eram?

Solução: 11 vezes 333; 15 vezes 2, 30; 74 vezes meio, 37. 11 vezes mais 15 mais 74 é 100; e, do mesmo modo, 33 mais 30 mais 37.

Hoje, usando equações e incógnitas, faríamos:

h: número de homens.
m: número de mulheres.
c: número de crianças

Então, 

h + m + c = 100
3h + 2m + c/2 = 100

que implica 100 = 5h + 3m, que fornece as soluções:

h=20, \ \ m= 0, \ \ c=80  
h=17, \ \ m=5, \ \ c=78 
h=14, \ \ m=10, \ \ c=76  
h=11, \ \ m=15, \ \ c=74  
h=8, \ \ m=20, \ \ c=72  
h=5, \ \ m=25, \ \ c=70  
h=2, \ \ m=30, \ \ c=68  

Os problemas 8 e 9 a seguir mostram, em suas soluções incorretas, as deficiências da época em questões de geometria, denunciando o desconhecimento dos resultados da escola grega.

8. Problema do campo triangular: Um campo triangular mede de um lado 30 pérticas, de outro também 30 e de frente 18. Diga, quem puder, quantos aripenos [um aripeno eqüivale a 144 “pérticas quadradas”] compreende?

Solução: Os dois lados de 30 somados perfazem 60, cuja metade é 30 que multiplicado por 9 (que é a metade de 18) dá 270 (que é o cálculo da área em “pérticas quadradas”). Para expressar a área em aripenos é necessário dividir por 144, etc.

Observem que no cálculo da área do triângulo a medida da altura relativa a um dos lados era substituída erroneamente pela média das medidas dos outros dois lados.

9. Problema do campo circular: Quantos aripenos tem um campo circular de 400 pérticas de circunferência.

Solução: A quarta parte de 400 é 100; 100 multiplicado por 10010 000, que é a área. Para expressar em aripenos, divide-se por 144, etc.

Aqui a área do círculo seria dada por \bigg(\dfrac{2\pi r}{4} \bigg)^2 = \dfrac{\pi}{4}\pi r^2, que embute um aproximação de \pi por 4, que é bastante grosseira.

Os progressos nos textos geométricos, na Idade Média, só se iniciaram com Gerberto (950-1003) mas aí já é uma outra história...


Referências bibliográficas:

[1]   Eves, H. E. An introduction of the History of Mathematics. New York: Holt, Rinchart and Winston, Inc. [publicado pela Editora Unicamp com o título Introdução à História da Matemática].
[2]   Boyer, C. B. História da Matemática. São Paulo: Editora Edgar Blucher, 1996.
[3]   Lauand, L. J. Educação, teatro e Matemática Medievais. São Paulo: Editora Perspectiva., 1986.
[4]   Internet:
  • The Catholic Enciclopedia – Hroswitha.
  • Roswitha # 2/2 by Julio Gonzalez Cabillon

***


Leia mais em A divisão da Aritmética - por Boécio

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Matemática e Poesia juntas

Tempo de leitura: 10 minutos

O  texto Lilavati, Matemática e Poesia juntas por José Carlos Fernandez está disponível no LINK.

O Lilavati é um manual de matemática escrito por Bhaskara (1114-1185) com tal impacto na cultura da Índia que até o início do século XX era o texto de matemática ensinado aos jovens, e só gradualmente foi substituído pelos tratados de matemática ocidentais, especialmente da linha inglesa.

MS Oriental Indic beta 229 Bhaskara, Lilavati Folha 26

Baseia-se, é claro, em matemáticos hindus anteriores, como Brahmagupta (século VII). Bhaskara  teria-o escrito para a sua filha, como entretenimento e consolo diante do seu casamento frustrado, embora não se saiba se isso é histórico. Quando o imperador Akbar o traduziu para o persa, no século XVI, já incorporava uma bela lenda:

O horóscopo da filha recém-nascida do Mestre Bhaskara previu que a linda criança não conseguiria desfrutar das delícias de um casamento. Quando Lilavati cresceu em modéstia, inteligência e beleza, o seu compromisso material foi determinado. No dia marcado para a comemoração, Lilavati, impaciente, brincava com o vestido na borda do relógio de água que marcaria tão esperado momento. O artefato tem no fundo um orifício por onde penetra a água. Quando todo o relógio estivesse submerso, chegaria o momento de se casar. Quase no minuto fatal, uma pérola do seu vestido caiu. O orifício ficara entupido e a hora propícia nunca chegou. Lilavati nunca se casou. O pai da desafortunada menina, para seu conforto e felicidade dela, um livro escreveu que Lilavati se chamou" [1].

Lilavati significa em sânscrito “mulher bela e encantadora” e existem comentadores desta obra que sugerem que se trata mesmo da personificação da Matemática.

Os textos estão na forma de sutras, breves máximas que fornecem a solução sem se deter no procedimento nem como foi alcançado. Ou dizem como, mas sem detalhes. É evidente que este trabalho deve ser sempre acompanhado de uma explicação oral. Hoje é necessário que convertamos essa linguagem poética na linguagem matemática atual se quisermos seguir o que diz.

As suas 279 estrofes em 13 capítulos incluem problemas, exemplos e explicações, introduzidas por uma oração ao deus da Sabedoria, Ganesha, que diz assim:

Eu dirijo a minha oração ao deus que tem rosto de elefante e diante de cujos pés estão multidões de outros deuses, em gratidão rendida por toda felicidade que procuram os seus devotos, a quem ele dá a conhecer como superar cada obstáculo. As leis com as quais operamos ao manusear a tabela, procuro colocar em verso, em estrofe clara e breve, para que os conhecedores possam desfrutar de sua beleza”.

Os problemas e soluções que levanta estão cinco ou mais séculos à frente da matemática ocidental, e o que mais encanta é a sua poesia e até a sua originalidade. Descreve unidades de medida, operações básicas (adição, multiplicação e suas inversas), os quadrados, cubos e suas raízes, operações com frações, equações usando o processo inverso, equações de segundo grau, regras de três diretas e inversas, simples e compostas, regras de capital e juros, ligas, combinatória (tomando elementos de “n” a “n”), séries aritméticas e geométricas, triângulo retângulo e triplos pitagóricos e euclidianos, determinação geométrica de meios harmónicos, fórmula de Brahmagupta e Heron, determinação da área de triângulos, losangos, trapézios, círculos, volumes de esferas, discos, prismas, trigonometria plana, equações diofantinas (método pulverizador), permutações, etc.

Nos ensinamentos e nos exemplos há muita poesia e delicadeza. Escolhemos três exemplos, entre muitos.

Ex.1 Permutações

Nosso amado Deus Shiva recorre a estas dez armas: armadilhas, arpões, serpentes, maças, clavas, focinheiras, dardos, lanças, flechas, arcos, e uma a uma ele as sustenta cada qual com as mãos. Quantas estátuas diferentes do deus Shiva existem? De quantas maneiras diferentes nosso amado Deus Vishnu segura seus quatro objetos: concha, disco, clava e o tão apreciado lótus?

Em Shiva, a solução é uma permutação desses dez elementos sem repetição:

P_{(10)} = 10! = 3.628.800

E o caso de Vishnu, de 4 elementos:

P_{(4)}= 4! = 24

Curiosamente, o deus Vishnu tem 24 nomes no seu ritual diário.

Ex. 2 Triângulos retângulos e teorema de Pitágoras

A brisa vem procurar um lótus num tanque que fez para ir com ela. Eles foram juntos até a borda do vidro, onde o ar não penetra. Se soubermos a que altura o lótus se projeta e também quão distantes estão seus caminhos, diga-me, menina deliciosa, a profundidade do tanque e a altura desse lótus que se deixou apaixonar”.



(x-a)^2 + b^2 = x^2 \rightarrow

\rightarrow x^2 + a^2 - 2ax + b^2 = x^2 \rightarrow

\rightarrow x = \dfrac{1}{2}\bigg(\dfrac{b^2}{a} + a\bigg)

y = \sqrt{x^2 - b^2}


Ex. 3 Equações

“Um casal estava em pleno jogo amoroso quando o colar de pérolas que a jovem usava quebrou-se. Um terço das pérolas acabou no chão e um quinto permaneceu na cama. Ela ainda manteve um sexto de todas as pérolas e seu amado conseguiu salvar um décimo em suas mãos. Seis únicas pérolas permaneceram no fio de seda. Quantas pérolas, Lilavati, compunham o colar?”

Poderíamos resolver assim:

x - \bigg(\dfrac{1}{3} + \dfrac{1}{5} + \dfrac{1}{6} + \dfrac{1}{10}  \bigg) x = 6

x - \dfrac{48}{60} x = 6

x - \dfrac{4}{5} x = 6

x\bigg(1 - \dfrac{4}{5} \bigg) = 6

Mas ele usa o mesmo método que era usado na matemática grega, que é a determinação do desconhecido por suposição e que o próprio Bhaskara formula da seguinte forma:

Para descobrir o que você não sabe, comece assumindo que vale alguma coisa e continue as contas. Os ajustes necessários são feitos ao valor inicial para chegar à verdade. Você encontrará finalmente a verdade, começando com a suposição, quando aplicar uma facilidade tão útil.

Assim, ele o faz, aplicando cuidadosamente a proporcionalidade:

Suponhamos que o número de pérolas é 1. Sabemos que o número final é 6; então o número de pérolas restantes é:

1 - \bigg(\dfrac{1}{3} + \dfrac{1}{5} + \dfrac{1}{6} + \dfrac{1}{10}  \bigg)  =

1 - \bigg(\dfrac{20 + 12 + 10 + 6}{60} \bigg) =

1 - \dfrac{48}{60}  =

1 - \dfrac{4}{5}  = \dfrac{1}{5} e portante, o número total de pérolas é \dfrac{6 \times 1}{1/5} = 30."

Se pensarmos em comparação com a matemática ocidental deste século, o conhecimento sobre o zero é surpreendente, não apenas no seu valor posicional, mas nas operações que podem ou não ser feitas com ele.

Se você adicionar zero a um número, não haverá adição.

É inútil a potência de zero, que é sempre zero. 

Se for multiplicado por zero ou se for dividido por ele, é melhor que você não pretenda obter um resultado, mas arraste a expressão indicada até o final.

Dividindo por zero vamos ao infinito. O infinito não muda com adição ou subtração: como Vishnu, ele é impassível a nascimentos e mortes.”

O que é expresso na terminologia atual como:

n + 0 = n

0^2 = 0^3 = \sqrt[2]{0} = \sqrt[3]{0} = 0

n \times 0 = 0 ; \ \ 0/n = 0 

\dfrac{n}{0} = \infty

Felizmente encontramos excelentes vídeos explicativos com os problemas do Lilavati, recomendo, por exemplo, os seguintes:

O lótus submerso no lago

O bambu quebrado

A mansão com 8 portas

O bando de cisnes

O pavão que caça a cobra

Bambu e cordas cruzadas

O problema dos dois macacos

Precisamos, mais uma vez, voltar à poesia da matemática para que, ao invés de ser apenas um exercício racional, também nos permita, através da beleza, abrir os olhos da alma para a intuição daquilo que não morre nem cessa nem nasce, os Arquétipos de Platão, e como dizia o professor Jorge Angel Livraga, “os primeiros arquétipos são os Números”.

Notas:

[1] Do livro Lilavati, A matemática em verso do século XII. Versão adaptada e ampliada por Ángel Requena e Jesús Malia. Da Biblioteca de Estímulos Matemáticos.

***

Leia mais em Para aprender bem Matemática

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Uma Enciclopédia Matemática esquecida na História

Página de um manuscrito representando as
alegorias da aritmética e da geometria (manuscrito)

Tempo de leitura: 1h 10 min

Abaixo segue trechos de um artigo de Sérgio Nobre Isidoro de Sevilla e História da Matemática presente em sua enciclopédia Etimologías publicado na Revista Brasileira de História da Matemática - Vol. 5 nº 9 (abril/2005 -setembro/2005 ) - pág. 37-58. (RBHM, Vol. 5, no 9, p. 37-58, 2005).


ISIDORO DE SEVILLA E A HISTÓRIA DA MATEMÁTICA PRESENTE EM SUA ENCICLOPÉDIA ETIMOLOGIAS (SÉC. 7) [*] por Sergio Nobre, Unesp – Rio Claro - Brasil


Palavras iniciais

A história da divulgação das descobertas científicas é um grande e importante capítulo do contexto historiográfico científico. Antes do surgimento das grandes revistas científicas, o cientista, de posse de resultados novos e originais, tinha uma certa dificuldade em divulgar suas descobertas. O cuidado para que resultados científicos originais não caíssem em mãos inadequadas chegava a ser de tal forma meticuloso que exigia muita criatividade por parte de seus autores. Leonardo da Vinci (1452-1519), por exemplo, escreveu a maioria de seus textos científicos de forma que pudessem ser lidos somente através de um espelho, e espelho naquela época era artigo raro. O envio de correspondências comunicando os resultados descobertos foi um importante meio de divulgação científica e foi muito usado. De posse de um novo resultado, o cientista enviava correspondências para diferentes colegas, como forma de que estes soubessem da nova descoberta. O envio simultâneo de correspondências para diferentes pessoas servia também para garantir que, individualmente, nenhuma delas pudesse alegar ser o detentor das idéias contidas na carta recebida. Em alguns casos, a mensagem contida nessas correspondências era feita através de códigos, que somente o remetente tinha a chave de como decifrar. Um exemplo clássico foram as correspondências enviadas por Isaac Newton a Leibniz, onde, através de anagramas, Newton comunicou a Leibniz suas descobertas relativas ao Cálculo Diferencial e Integral [1].

A partir de meados do século XVII, com o surgimento das academias científicas e de revistas científicas, a divulgação científica ganhou novas proporções. O cientista passou a ter as sessões das academias como fórum de divulgação de suas descobertas e as revistas científicas como instrumento de difusão destas. As principais revistas surgidas foram: Journal des Sçavans, Paris, 1665; Philosophical Transactions, Londres,1665; Giornale de Letterati, Roma, 1668; Acta Eruditorum Lipsiensis, Leipzig, 1682; Mémoires de l'Acádemie des Sciences, Paris, 1699; Miscellanea Berolinensia, Berlin, 1710; Commentarii Academiae Scientiarum Imperialis Petropolitanae, St. Petersburgo, 1728. Nelas foram publicados alguns dos mais importantes artigos científicos do período que compreende o final do século XVII e início do século XIX. No entanto, após o surgimento das revistas científicas, não foram somente elas que serviram de instrumento de divulgação de temas originais. A publicação de muitos resultados originais também se deu por intermédio de livros, e sobre isso existem alguns exemplos clássicos. Em alguns casos, o reconhecimento dos resultados apresentados deu-se de imediato, como é o exemplo de Isaac Newton que expôs muitos resultados originais em sua obra Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, publicada em 1687. O Marquês de L‟Hospital (1661-1704) também apresentou alguns resultados originais em sua obra de maior importância, Analyse des infiniment petits, publicado em 1696. A famosa Regra de L’Hospital, embora reconhecida posteriormente como não sendo de sua autoria, ganhou notoriedade a partir de seu aparecimento nesse livro.

O matemático português José Anastácio da Cunha (1744-1787), porém, não teve a mesma sorte que os colegas acadêmicos acima citados. Anastácio da Cunha também apresentou alguns resultados originais acerca da análise infinitesimal em seu livro Princípios Mathemáticos, publicado em Lisboa, em 1790, mas, por problemas relativos à pequena divulgação da obra nos meios acadêmicos europeus, eles não lhes trouxeram o merecido reconhecimento no período da publicação. Se da Cunha tivesse optado por divulgá-los em revistas científicas existentes na época, certamente a história de seu reconhecimento como importante matemático europeu teria sido outra [2].

Casos semelhantes ao de Anastácio da Cunha são comuns no desenvolvimento historiográfico da matemática e, de tempos em tempos, descobrem-se autores que produziram boa matemática e que, inclusive, obtiveram resultados originais, antecipando-se àqueles que foram aclamados pela comunidade científica como tendo sido os primeiros a obterem tais resultados [3].

Além de livros e textos referentes a temas específicos que foram escritos por personagens pertencentes ao mundo científico, e que, ou ainda são desconhecidos pela comunidade de historiadores, ou ainda não foram analisados com a necessária profundidade histórico-científica, há um universo que se abre no campo literário em geral. Muitas outras obras que, embora não tenham sido escritas originalmente obedecendo os parâmetros estritamente científicos, também apresentam importantes informações acerca do desenvolvimento da ciência. Sejam essas obras de ficção ou não, em alguns casos, elas abordam temas que dizem respeito ao conhecimento científico, evocando inclusive muitos assuntos científicos originais. No caso das obras literárias classificadas como não sendo de ficção, possivelmente o melhor exemplo que, no decorrer da história do desenvolvimento cultural, apresentou em seu conteúdo idéias científicas originais, são as enciclopédias universais. Embora elas não tenham sido escritas com esse objetivo, pesquisas históricas realizadas em algumas dessas obras detectaram a existência de temas que foram tratados de forma relativamente original para a época de sua publicação [4].

No que diz respeito à apresentação de assuntos históricos, a obra enciclopédica é elemento fundamental, pois nela contém episódios que foram relevantes na época de sua publicação, muitos dos quais foram perdendo seu lugar de destaque com o decorrer dos anos, o que qualifica essas obras como importantes instrumentos para a análise historiográfica tanto sob o ponto de vista geral, como sob o específico. Uma análise sobre os elementos históricos referentes à matemática presentes em obras enciclopédicas é o objeto de interesse de um amplo trabalho de investigação. Uma primeira etapa deste trabalho foi realizada em uma obra do início do século VII Etymologiarvm sive Originvm libri XX, de Isidoro de Sevilla.

Sob o ponto de vista geral, uma obra enciclopédica é a apresentação sistemática de todo o conhecimento acumulado até o período de sua publicação. Uma obra enciclopédica possui características específicas e diferenciadas de uma obra científica especializada. Destinada ao grande público, a enciclopédia tem como principal meta apresentar as informações de tal forma que possam ser compreendidas por um leitor comum, ou seja, pelo leitor não especialista no assunto em questão. Enfim, uma enciclopédia tem como objetivo central oferecer aos seus leitores informações globais sobre determinados temas através de uma linguagem simples e de fácil compreensão. O objetivo central deste trabalho é analisar a matemática presente na obra supra citada, e, em especial, como se dá a apresentação de informações históricas relativas a ela. Inicialmente foi escolhida uma enciclopédia do período que antecedeu a Idade Média Européia, e sobre ela este texto discorrerá.

A escolha da enciclopédia de Isidoro de Sevilla para a realização deste estudo deve-se ao fato de que ela é uma das mais importantes obras enciclopédicas produzidas no período de transição entre as Idades Antiga e Média. Alguns anos antes da publicação da enciclopédia de Isidoro, Cassiodorus (490-585) foi responsável pela compilação da obra Institutiones divinarum et sæcularium litterarum, também uma enciclopédia que, em parte, serviu de referência para Isidoro. Por que então a opção pela obra de Isidoro? As frases de Bernard Ribémont colaboram para uma melhor explicação acerca dessa opção:

The medieval encyclopaedic tradition was founded under Isidore's pen. Indeed, even if Isidore, knowing the second book of the Instituitiones, took from it his speech on the liberal arts, his own procedure is quite different from that of Cassiodorus. Cassiodorus proposed a reading program to his monks, gathering sacred letters and secular ones –giving first place to the former- and built an educational course for the micro-society of monks, who needed to find their way in a library in search of the books they needed to improve their knowledge of the sacra pagina.. Isidore handled the problem differently, because he embedded it in a wider and a far more systematic perspective. Here there is no question of a catalogue raisonné, but rather each rubric is justified by two elements: in the first place, the book of Etymologiae, as indicated in the title, is entirely based on a system that could be summarised in the Isidorian maxim: etymologia est ortigo [5].

No sentido de completar as frases de Ribémont, há de ser destacada a importância dada atualmente à pessoa do Santo Isidoro de Sevilla, que tem o dia 4 de abril dedicado a ele. Isidoro é tido como o santo padroeiro dos internautas. Uma pessoa do passado a quem foram atribuídas qualidades futurísticas [6], sobre quem a frase do grande poeta alemão Friedrich Schiller (1759-1805) encontra um sentido: Die Welt wird alt und wird wieder jung, ou seja, o mundo torna-se velho e torna-se novamente jovem. Para a realização deste estudo foi utilizada a edição crítica da obra de Isidoro publicada no idioma original em 1911, em Oxford [7] e as principais obras de referência foram os textos de Ernest Brehaut An encyclopedist of the dark ages – Isidore of Seville, publicado em primeira edição no ano de 1912, Die Artes liberales im frühen Mittelalter (5. – 9. Jh.), de Brigitte Englisch [8].


Isidoro de Sevilla – vida e obra

Os dados relativos à infância e adolescência de Isidoro de Sevilla são escassos [9]. Presume-se que ele tenha nascido no ano de 560, provavelmente na região de Cartagena, no sul da Espanha. Com o falecimento de seus pais, quando ainda era muito jovem, Isidoro ficou aos cuidados de seu irmão mais velho, o Bispo Leandro de Sevilla (?-601?), que o encaminhou para a vida religiosa. Isidoro tornou-se Bispo de Sevilla aproximadamente entre 599 e 601, sucedendo a seu irmão. Seu falecimento dá-se no dia 04 de abril de 636, na cidade de Sevilla. Isidoro de Sevilla foi canonizado no ano de 1598, tornando-se Santo Isidoro de Sevilla. O dia de seu falecimento é referenciado pela Igreja Católica como “Dia de Santo Isidoro”. Em 1722 ele foi referenciado Mestre da Doutrina Religiosa pelo Papa Inocêncio XIII [10].

Embora considerado como apenas um disseminador do conhecimento, pois, segundo alguns historiadores contemporâneos, não realizou novas observações, não fez novas interpretações e nenhuma descoberta [11], Isidoro de Sevilla figura como um dos mais importantes personagens na história do período de transição entre a Antigüidade e a Idade Média Européia. Suas obras obtiveram grande difusão ainda no início do século VII, tornando-se conhecidas tanto por povos de origem latina quanto por outros povos como os irlandeses, os ingleses e os alemães. A obra de Isidoro é considerada como a mais lida durante todo o período da Idade Média Européia [12]. Devido às ricas informações contidas nessas obras, tanto sobre o período no qual foram escritas como também sobre períodos anteriores, é inquestionável sua relevância para a História da Humanidade. Esse fato pode ser confirmado a partir de inúmeras referências feitas aos escritos de Isidoro de Sevilla e, mais recentemente, a partir da quantidade de trabalhos histórico-científicos produzidos sobre sua produção literária, como se pode confirmar nas palavras de Ernest Brehaut: The influence which he exerted upon the following centuries was very great. His organisation of the field of secular science, although it amounted to no more than the laying out of a corpse, was that chiefly accepted throughout the early medieval period. The innumerable references to him by later writers, the many remaining manuscripts, and the successive editions of his works after the invention of printing, indicate the great role he played [13].

Sem deixar de lado assuntos religiosos, quando escreveu sobre as sagradas escrituras, as leis canônicas, teologia e liturgia, Isidoro também se dedicou à escrita de temas ligados à história da Espanha e história geral, à educação e à ciência, com ênfase nas Artes Liberais. Além de sua consagrada enciclopédia Etymologiarvm sive Originvm libri XX, os trabalhos mais importantes de Isidoro são: Differentiae, de Natura Rerum, Liber Numerorum, Alegoriae, Sentenciae e Ordine Creatorarum [14].

A obra Differentiae é composta de dois livros. O primeiro, organizado em ordem alfabética, trata das diferenças entre palavras e o segundo das diferenças entre coisas. O texto de Natura Rerum [15] é um livro científico onde Isidoro apresenta sua visão física do universo dissertando, sobre temas que são abordados no livro do Gênesis, como: o fenômeno da criação da luz; o dia e a noite e as seqüências das semanas e meses que compunham o calendário; o céu e os fenômenos meteorológicos como o trovão, o arco-íris, o vento; mares e oceanos, entre outros. O texto Liber Numerorum, embora pelo título dê a entender que seja um livro matemático, na verdade trata de assuntos ligados ao misticismo sobre os números. Alegoriae é um texto com breves comentários sobre as principais alegorias presentes no Velho e no Novo Testamento. O tratado sobre a doutrina cristã e sobre a moral, o Sententiae, composto de três livros, é um dos mais importantes escritos de Isidoro de Sevilla. No texto de Ordine Creaturarum, Isidoro, diferentemente do que havia feito no Natura Rerum, apresenta a criação do universo tanto do ponto de vista material como espiritual. Certamente todos os seus escritos serviram de suporte para que Isidoro pudesse organizar a sua obra principal, a enciclopédia Etimologias, sobre a qual apresentaremos maiores detalhes.


Etymologiarvm sive Originvm libri XX

Organizada em 20 livros, a obra Etimologias, ou Origens, de Isidoro de Sevilla figura como uma das mais importantes obras enciclopédicas da cultura ocidental. Um destaque acerca dessa importância está na quantidade de reedições que a obra tem [16]. Ainda sobre isso, escreve Ernest Brehaut: His many writings, and especially his great encyclopaedia, the Etymologies, are among the most important sources for the history of intellectual culture in the early middle ages, since in them are gathered together and summed up all such dead remnants of secular learning as had not been absolutely rejected by the superstition of his own and earlier ages [17].

Etimologias é uma obra que apresenta o conhecimento de forma geral com tendências a estabelecer um padrão educacional para a época. Através de uma ampla abordagem sobre o conhecimento humano da época, além dos assuntos eclesiais, Isidoro de Sevilla apresenta em sua obra uma quantidade significativa de temas que iriam fazer parte do Trivium e do Quadrivium [18] adotados pelas instituições educacionais nos séculos seguintes. Os títulos dos 20 livros são:

1. De Grammatica et Partibus eius;

2. De Rethorica et Dialetica;

3. De Mathematica, cuius partes sunt Arithmetica, Musica, Geometrica et Astronomica;

4. De Medicina;

5. De Legibus vel Instrumentis Iudicum ac de Temporibus;

6. De Ordine Scripturarum, de Cyclis et Canonibus, de Festivitatibus et Officiis;

7. De Deo et Angelis, de Nominibus Praesagis, de Nominibus Sanctorum Patrum, de Martyribus, Clericis, Monachis, et ceteris Nominibus;

8. De Ecclesia et Synagoga, de Religione et Fide, de Haeresibus, de Philosophis, Poetis, Sibyllis, Magis, Paganis ac Dis Gentium;

9. De Linguis Gentium, de Regum, Militum Civiumque Vocabulis vel Affinatatibus;

10. [De] Qua<e>dam Nomina per Alphabetum Distincta;

11. De Homine et Partibus eius, de Aetatibus Hominum, de Portentis et Transformatis;

12. De Quadrupedibus, Reptilibus, Piscibus ac Volat<il>ibus;

13. De Elementis, id est de Caelo et Aere, de Aquis, de Mare, [de] Fluminibus ac Diluviis;

14. De Terra et Paradiso et [de] Provinciis totius Orbis, de Insulis, Montibus ceterisque Locorum Vocabulis ac de Inferioribus Terrae;

15. De Civitatibus, de Aedificiis Vrbanis et Rusticis, de Agris, de Finibus et Mensuris Agrorum, de Itineribus;

16. De Glebis ex Terra vel Aquis, de omni genere Gemmarum et Lapidum pretiosorum et vilium, de Ebore quoque inter Marmora notato, de Vitro, de Metallis omnibus, de Ponderibus et Mensuris;

17. De Culturis Agrorum, de Frugibus universi generis, de Vitibus et Arboribus omnis generis, de Herbis et Holeribus universis;

18. De Bellis et Triumphis ac Instrumentis Bellicis, de Foro, de Spectaculis, Alea et Pila;

19. De Navibus, Funibus et Retibus, de Fabris Ferrariis et Fabricis Parientum et cunctis Instrumentis Aedificiorum, de Lanificiis quoque, Ornamentis et Vestibus universis;

20. De Mensis et Escis et Potibus et Vasculis corum, de Vasis Vinariis, Aquariis et Oleariis, Cocorum, Pistorum, et Luminariorum, de Lectis, Sellis et Vehiculis, Rusticis et Hortorum, sive de Instrumentis Equorum.

Especificamente, os livros apresentam os seguintes temas:

Artes Liberais

livros 1 a 3

Medicina e anatomia humana

livros 4 e 11

Direito

livro 5

Assuntos religiosos

livros 6 a 8

Idiomas e pessoas em diferentes impérios

livro 9

Dicionário etimológico (ordem alfabética)

livro 10

Zoologia

livro 12

Geografia, cosmologia e divisões do tempo

livros 13, 14 e 5

Elementos da construção civil, materiais, pesos e medidas

livros 15 e 16

Agricultura

livro 17

Elementos bélicos

livro 18

Navegações, edificações, ornamentações

livro 19

Alimentos, ferramentas, móveis

livro 20

Em grandes blocos, os assuntos presentes na Etimologias são:

  • Educacionais e científicos: englobando as artes liberais, medicina, zoologia, geografia, cosmologia, meteorologia, etc.;
  • Religiosos e jurídicos;
  • Técnicos: com temas sobre edificações, agricultura, navegações, elementos de guerra, etc.

Em uma análise preliminar sobre os três blocos de assuntos presentes na enciclopédia de Isidoro percebe-se a abrangência e o caráter universal da obra em relação ao período no qual foi escrita. De modo geral, os temas justificam-se a partir do pensamento intelectual da época. Os temas religiosos e jurídicos são justificados pelas atividades religiosas do autor e a estreita ligação entre igreja e estado. Os temas técnicos adquirem uma conotação toda especial para o período de conquistas romanas e a construção, também no sentido físico, do grande Império Romano. Os temas educacionais e científicos apresentados na obra Etimologias são característicos do pensamento enciclopédico do período em questão e dizem respeito também ao envolvimento de Isidoro com assuntos ligados à educação de jovens nos mosteiros. Dentre os assuntos científicos apresentados na enciclopédia, a Matemática ocupa um destaque especial no livro 3, de Mathematica, cuius partes sunt Arithmetica, Musica, Geometrica et Astronomica, onde são abordados os grandes temas matemáticos da época, consagrados como os elementos fundamentais no currículo acadêmico da Idade Média Européia, ou seja, o Quadrivium. A esse capítulo dedicaremos maior atenção.


Livro 3: de Mathematica, cuius partes sunt Arithmetica, Musica, Geometrica et Astronomica (sobre a Matemática, cujas partes são Aritmética, Música, Geometria e Astronomia).

Na história européia, o período que compreende os séculos VI e VII, vivido por Isidoro de Sevilla, é conhecido historicamente como um período obscuro devido às poucas informações que se tem sobre ele. Isso também diz respeito ao pouco que se sabe sobre o desenvolvimento da matemática. Anicius Boethius (c.480-524) é reconhecidamente o matemático mais importante dessa época e sua obra representa o período no qual se fortaleciam as traduções de textos de matemática do grego para o latim. Um outro personagem importante para esse período foi o senador romano Flavius Magnus Aurélius Cassiodorus (490-585), discípulo de Boethius. Apesar de ele não ter se dedicado às matemáticas, é responsável por importantes obras de divulgação, dentre elas Institutiones divinarum et sæcularium litterarum, em dois volumes, o segundo volume dedicado às Artes Liberais, onde a matemática está incluída. Como seguidor das orientações de Cassiodorus, e indiretamente das de Boethius, Isidoro de Sevilla figura também como uma personalidade importante para a matemática nessa chamada época das trevas. Dentre as poucas informações que se tem sobre a matemática no território europeu dessa época, as obras de Boethius, Cassiodorus e de Isidoro destacam-se como as de maior importância. O texto sobre a matemática que Isidoro apresenta na Etimologias, por obedecer a características próprias a um texto enciclopédico, é classificado como um texto educacional. E foi certamente este o objetivo do autor, ou seja, apresentar assuntos referentes à matemática de forma simples e de fácil compreensão. A caracterização de texto educacional evidencia-se através da forma como Isidoro classifica as quatro partes da matemática. Aritmética, geometria, música e astronomia são classificadas não como domínios do conhecimento matemático, mas sim como disciplinas, seguindo, portanto, o propósito do autor em oferecer um texto didático sobre a matemática que pudesse ser utilizado por estudantes de sua época.


O conteúdo matemático na obra Etimologias

Iniciamos este capítulo afirmando que não é o propósito deste trabalho realizar uma análise detalhada sobre como é apresentada a matemática na obra Etimologias de Isidoro de Sevilla. Para os interessados em tal análise, indicamos as obras citadas no início do texto. O objetivo central é apenas dar uma visão geral de como Isidoro apresentou a matemática, abrindo então um caminho para o tema central deste trabalho, que é a análise sobre os temas historiográficos relativos à ciência e à matemática presentes na obra.


Sobre a aritmética

Isidoro inicia o texto dizendo que a aritmética é a ciência dos números e que na literatura secular os escritores assumem que eles (os números) são os primeiros elementos na ciência matemática que não dependem de outras ciências para sua existência. Após essa introdução, são apresentados pequenos verbetes (itens) explicativos sobre os números, suas qualidades e as operações entre eles. Os verbetes são:

 quid sit numerus (o que é número): é um verbete introdutório onde é dada uma explicação inicial sobre o que é número, numerus autem est multitudo ex unitatibus constituta (número é multitude constituída de unidades), e em seguida algumas explicações sobre a origem dos termos, nas quais são comparados os termos em grego com o seu significado em latim. Ao realizar as explicações sobre as relações entre os termos em grego e em latim, percebe-se que Isidoro se fundamenta na cultura matemática grega para desenvolver seus escritos;

quid praestent numeri (a que servem os números): neste verbete Isidoro evoca o poder religioso para justificar a importância dos números na vida das pessoas. Para tanto é citada uma frase contida no Livro da Sabedoria das Sagradas Escrituras - "Omnia in mensura et numero et pondere fecisti" (tudo dispuseste com medida, número e peso) (Sap. 11,21);

de prima divisione parium et imparium (sobre a primeira divisão em pares e ímpares): a divisão dos números em pares e ímpares e suas características é explicada neste verbete. Dentre algumas classificações dadas por Isidoro, como “números simples, compostos, medíocres, etc”, aparece a classificação de número primo embora a expressão “número primo” não seja usada – Simplices sunt, qui nullam aliam partem habent nisi solam unitaten, ut ternarius solam tertiam, et quinarius solam quintam, et septanarius solam septimam. His enim una pars sola est (simples são os que não têm nenhuma outra parte senão a unidade, como o ternário só a terça, o quinário só a quinta, o septenário só a sétima. Pois nesses há apenas uma só parte);

de secunda divisione totius numeri (sobre a segunda divisão de todos os números): aqui são dadas explicações sobre os múltiplos e submúltiplos dos números, igualdade e desigualdade entre números, e, através da comparação entre números, são apresentados números fracionários. O exemplo dado para isto é que na comparação entre os números 3 e 2, o 3 contém o 2 uma vez mais o número 1, que é a metade do 2;

de tertia divisione totius numeri (sobre a terceira divisão de todos os números): neste item Isidoro escreve que os números são divididos em abstratos e concretos e estes (os concretos) podem ser compreendidos como a representação de medidas lineares, medidas de superfície e medidas de volumes. Os números abstratos são aqueles que são entendidos como unidades abstratas e os números concretos representam magnitude. Nesse verbete Isidoro evidencia a utilização prática dos números quando eles representam uma unidade de medida, mas é importante ressaltar que a noção abstrata de número não é abandonada;

de differentia Arithmeticae, Geometriae et Musicae (sobre a diferença entre aritmética, geometria e música): neste pequeno verbete, Isidoro explica, a partir de exemplos numéricos, que há diferenças nas operações com números efetuadas no campo da aritmética, ou no campo da geometria, ou então no campo musical;

quot numeri infinit existunt (que números infinitos existem): através de explicações sobre o processo da soma e da multiplicação entre os números é dada a certeza da existência de números infinitamente grandes.


Sobre a geometria

O capítulo sobre geometria é apresentado por Isidoro de forma bem sucinta; de forma geral, são explicadas apenas algumas nomenclaturas. Os verbetes com a apresentação dos elementos geométricos são:

de quadripartita divisione geometriae (sobre os quatro desdobramentos da geometria): que a geometria se desdobra em figuras planas, grandezas numéricas, grandezas racionais e figuras sólidas. Na explicação sobre o que são grandezas racionais, Isidoro menciona a existência de grandezas irracionais - Magnitudines rationales sunt, quorum mensuram scire possumus, inrationales vero, quorum mensurae quantitas cognita non habetur (grandezas racionais são aquelas das quais podemos ter uma medida, e as irracionais aquelas das quais não há medida em quantidade conhecida);

de figuris geometriae (sobre as figuras geométricas): através do auxílio do desenho, são apresentadas algumas figuras geométricas como círculo e semicírculo, quadrilátero, esfera, cubo, cone, pirâmide, entre outras. Neste item também aparecem as definições de ponto, reta e plano (superfície) que seguem as orientações expostas por Euclides (c.365-300) em seus Elementos – Prima autem figura huius artis punctus est, cuius pars nulla est. Secunda linea, prater latitudinem longitudo. Recta linea est, quae ex aequo in suis punctis iacet. Superficies vero, quod longitudines et latitudines solas habet. Superficei vero fines lineae sunt, quorum formae ideo in superioribus decem figuris positae non sunt, quia intereas inveniuntur (A primeira figura desta arte é o ponto, que não tem parte. A segunda é a linha, que tem longura, mas não largura. Linha reta é a que jaz por igual em seus pontos. A superfície tem apenas largura e longura. Os limites da superfície são as linhas, cujas formas por isso não foram postas nas dez figuras acima (anteriores), porque se encontram entre elas);

de numeris geometriae (sobre os números geométricos): neste item são dados alguns exemplos numéricos com o objetivo de se explicar a existência da média geométrica.


Sobre a música

Por meio de um tratamento educacional, onde a música é apresentada como a mais velha das subdivisões da matemática, Isidoro inicia este capítulo explicando o que é música – Musica est peritia modulationes sono cantuque consistens (Música é uma perícia que consiste em realizar modulações com som e canto) e as origens do termo música – et dicta Musica per derivationem a Musis (é dita Música por derivação de Musas). A seguir, tece pequenos comentários sobre a importância da música, suas subdivisões e como os tempos musicais se ordenam de forma numérica. A apresentação de alguns dos verbetes é dada da seguinte forma:

quid possit musica (sobre o poder da música): neste verbete é destacado que o conhecimento musical é primordial para que se dê o conhecimento universal;

de tribus partibus musicae (sobre as três partes da música): as três partes da música são: harmônica, rítmica e métrica;

de triformi musicae divisione (sobre as três formas de divisão da música): nestes e nos próximos verbetes, Isidoro tece explicações sobre a divisão harmônica, a divisão orgânica e sobre a divisão rítmica da música;

de numeros musicis (sobre os números da música): neste verbete são explicadas as relações entre os números e os tempos musicais.


Sobre a astronomia

O capítulo sobre a astronomia é o maior dos quatro apresentados como subdivisões da matemática. São 47 verbetes (itens) sendo que o último (sobre os nomes das estrelas) ocupa a terça parte do capítulo. Alguns dos verbetes são:

de differentia astronomiae et astrologiae (sobre a diferença entre astronomia e astrologia): neste item Isidoro evidencia que há diferenças entre astronomia e astrologia. Enquanto a astronomia explica os movimentos ocorridos no céu, as posições e os movimentos dos corpos celestes, assim como suas origens e nomenclaturas, a astrologia é em parte natural e em parte superstição. A parte supersticiosa da astrologia é aquela que faz profecias através das estrelas. Este é um tema que certamente abalava as estruturas religiosas da época, no entanto Isidoro não omite em sua obra a existência de áreas do conhecimento que se ocupam de temas que se contrapõem aos dogmas religiosos;

de astronomiae ratione (sobre a razão da astronomia): o objetivo da astronomia é definir o que é o universo, o que é posição e movimento dos planetas, o que são os cursos do sol, da lua e das estrelas, etc;

de forma mundi (sobre a forma do universo): forma mundi ita demonstratur. Nam quemadmodum erigitur mundus in septentrionalem plagam, ita declinatur in australem. Caput autem eius et quasi facies orientalis regio est, ultima pars septentrionatis est (sobre a forma do universo: a forma do universo assim se demonstra. Da mesma forma como o universo se ergue na região setentrional, assim declina na austral. Sua parte superior e como que sua face é a região oriental, e sua parte inferior a setentrional.);

de sphaerae caelestis situ (sobre a localização da esfera celeste): seguindo o modelo ptolomaico, o que é natural para a época, Isidoro afirma que o universo é uma esfera e seu centro é a Terra;

de magnitudine solis (sobre a magnitude do sol): Magnitudo solis fortior terrae est, unde et eodem momento, quum oritur, et orienti simul et occidenti aequaliter apparet. Quod tamquam cubitalis nobis videtur, considerare oportet quantum sol distat a terris, quae longitudo facit ut parvus videatur a nobis (O sol é maior do que a terra, pois no mesmo momento em que nasce, apresenta-se igualmente ao oriente e ao ocidente. Porque parece ter a altura de um côvado, é preciso considerar o quanto o sol dista da terra, e a distância faz com que pareça pequeno para nós);

de cursu solis (sobre o curso do sol): Neste item é afirmado que o Sol tem um movimento sobre si próprio e que não acompanha o movimento do universo - Solem per se ipsum moveri, non cum mundo verti (o sol se move por si só, e não junto com o universo). Também é ressaltado que o Sol não possui um curso fixo, o que se percebe através das mudanças de local no nascente e poente;

de itinere solis (sobre o itinerário do sol): Sol oriens per meridiem iter habet. Qui postquam ad occasum venerit et Oceano se tinxerit, per incognitas sub terra vias vadit et rursus ad orientem (O sol, depois que nasce faz, seu caminho pelo meridião. Depois que tiver se posto e se banhado no Oceano, vai por sob a terra, por caminhos desconhecidos, de volta ao oriente). [...];

de lumine lunae (sobre a luz da Lua): neste verbete Isidoro evidencia que há discussões entre os filósofos sobre se a Lua possui ou não luz própria. Enquanto alguns afirmam que a Lua possui luz própria, que uma de suas partes é brilhante e a outra escura e que seu movimento resulta nas diferentes fases, outros, ao contrário, afirmam que ela é iluminada pelos raios do Sol, e que, portanto, por esse motivo, ocorre o eclipse. Cabe ressaltar aqui a postura de Isidoro em divulgar pensamentos divergentes sobre determinados assuntos, no entanto fica claro que ele adota a segunda interpretação quando ele disserta em outro verbete sobre a luz das estrelas;

de vicinitate lunae ad terras (sobre a proximidade da Lua com a Terra): a Lua está mais próxima da Terra do que o Sol e, portanto, tem uma órbita menor e por isto termina seu curso mais rapidamente. Neste verbete também é acrescentado que os antigos entendem que a mudança dos meses depende da Lua enquanto a mudança dos anos depende do Sol;

de lumine stellarum (sobre a luz das estrelas): neste verbete, em poucas palavras, Isidoro assume que as estrelas não têm luz própria e que, da mesma forma que a Lua, são iluminadas pelo Sol;

de nominibus stellarum (sobre os nomes das estrelas): este é o maior verbete do capítulo, ocupando aproximadamente a terça parte dele. Nele são apresentados os nomes dos astros conhecidos no céu, como os planetas, estrelas, constelações, etc. Há também uma pequena explicação sobre os cometas.


Notas sobre a história da matemática no Livro 3

Ao iniciar os capítulos referentes à aritmética, geometria, música e astronomia, Isidoro de Sevilla faz a apresentação dos temas a partir de informações sobre suas histórias e sobre alguns personagens que tenham contribuído para o desenvolvimento deles. Com exceção da aritmética, parte em que Isidoro escreve sobre seus autores, de auctoribus eius, nos outros três casos ele usa o termo “inventores” para qualificar aqueles que foram os primeiros a atuarem nos referidos assuntos (por exemplo, de inventoribus geometriae: sobre os inventores da geometria). A discussão sobre se os elementos matemáticos são descobertas ou invenções faz parte das questões filosófico-acadêmicas da época atual. Não há indícios na obra de Isidoro de que ele estivesse atento a este tema, tanto porque ele não menciona a palavra descoberta em seu texto. Nesse sentido fica aqui registrado como um pensador europeu do início do século VII qualificava aqueles que foram pioneiros no desenvolvimento de um determinado assunto teórico.

As referências históricas presentes na obra Etimologias aparecem através de pequenas informações, em forma de verbetes (itens), onde são evidenciados a origem dos assuntos ou quem foram os primeiros a se ocupar deles. Para que se possa ter idéia de como estão apresentados tais verbetes, transcrevemos aqui os textos na versão original em latim, acompanhados das respectivas análises históricas:


Livro 3 – de Mathematica

Capítulo – de Arithmetica

DE AVCTORIBVS EIVS. Numeri disciplinam apud Graecos primum Pythagoram autumant cosncripsisse, ac deinde a Nicomacho diffusius esse dispositam; quam apud Latinos primus Apuleius, deinde Boetius transtulerunt.

Isidoro menciona que Pitágoras foi o primeiro grego a escrever sobre a ciência dos números e que posteriormente foi completado por Nicomachus. As informações históricas contidas nesse verbete são importantes contribuições para aqueles que posteriormente viriam a escrever sobre a história das origens das teorias numéricas. Isidoro ressalta a figura do personagem de nome Pitágoras (c.580-500), ligado à Ciência dos Números. Embora Isidoro não mencione a existência de documentos que comprovem a existência de Pitágoras, pois certamente ele também se apóia em outros autores que o citam [19], esse é mais um documento histórico que confirma a ligação de Pitágoras com a matemática e especificamente com temas relacionados à teoria de números. Outra informação histórica importante que aparece nesse pequeno verbete é a existência de um outro grego que continuou os estudos iniciados por Pitágoras ou por membros da Escola Pitagórica. Isidoro cita Nicomachus de Gerasa (~100 A.D.), pitagórico que, além de escritos matemáticos, produziu muitos textos sobre teoria musical [20]. A respeito da obra matemática de Nicomachus, Isidoro não menciona o título - certamente deve ser o seu texto mais conhecido, Introdução à aritmética [21] - mas explicita que ela obteve duas traduções para o latim. Com relação às traduções para o latim, Isidoro menciona que a obra de Nicomachus foi primeiramente traduzida por Apuleius e em seguida por Boethius. São duas informações importantes para a compreensão do desenvolvimento histórico relativo às traduções de textos gregos para o latim. Primeiramente é citado Apuleius de Madaura (c.125-171), um sofista platônico provavelmente do século II da Era Cristã, de quem muito pouco se sabe, muito menos sobre suas atividades relacionadas à matemática [22]. Cabe ressaltar, que dentre as poucas informações que se têm atualmente sobre Apuleius, algumas são originárias das menções feitas a ele por Cassiodorus e Isidoro [23]. Caso fosse encontrada, certamente essa tradução da obra de Nicomachus feita por Apuleius teria sua dose de contribuição para a compreensão do pensamento romano-europeu no início da era cristã. Como dissemos, o segundo autor citado por Isidoro como tradutor da obra de Nicomachus foi o erudito italiano Anicius Boethius (c.480-524), que em vida atuou nas áreas de lógica, matemática, música, teologia e filosofia. A informação dada por Isidoro de que Boethius traduziu a obra de Nicomachus não é uma simples especulação. Historiadores clássicos como Montucla (1725-1799) e Moritz Cantor reafirmam o que Isidoro escreve. Historiadores contemporâneos que se dedicaram à comparação entre as obras, como o Prof. Dr. Menso Folkerts, do Institut der Geschichte der Naturwissenschaften da Universidade de Munique, por exemplo, também confirmam que os textos matemáticos de Boethius são traduções de textos gregos [24]. Isso nos leva a reafirmar a importância das informações históricas contidas na obra de Isidoro.


Livro 3 – de Mathematica

Capítulo – de Geometria

DE INVENTIORIBVS GEOMETRIAE. Geometriae disciplina primum ab Aegyptiis reperta dicitur, quod, inundante Nilo et possessionibus limo obductis, initium terrae dividendae per lineas et mensuras nomen arti dedit. Quae deinde longius acumine sapientium profecta et maris et caeli et aeris spatia metiuntur. Nam provocati studio sic coeperunt post terrae dimensionem et caeli spatia quaerere: quanto intervallo luna a terris, a luna sol ipse distaret, et usque ad verticem caeli quanta se mensura distenderet, sicque intervalla ipsa caeli orbisque ambitum per numerum stadiorum ratione probabili distinxerunt. Sed quia ex terrae dimensione haec disciplina coepit, ex initio sui et nomen servavit.

Isidoro escreve que a geometria foi inventada pelos egípcios quando, com o recuo das águas após as inundações do rio Nilo, a terra fértil era dividida para as plantações. Essa divisão de terras através de medidas de comprimento e medidas de área deu origem ao termo “geometria”. Como complemento ele diz que posteriormente as medições foram ampliadas para verificar as dimensões dos mares e as dimensões no céu. Segundo Isidoro, os pensamentos sobre medições astronômicas, como a distância entre a terra e a lua, a terra e o sol, entre outras, também contribuíram para o início dessa disciplina. A passagem histórica sobre o início da geometria a partir das divisões das terras férteis às margens do rio Nilo no Egito tornou-se clássica e é citada em textos históricos até os dias de hoje. Conforme visto anteriormente, Isidoro não oferece muitas informações sobre a geometria, e são apresentadas pouquíssimas informações históricas, o que chega a causar curiosidade em se saber sobre os motivos que o levaram a não oferecer aos leitores maiores e mais detalhadas informações sobre o assunto que se manteve no auge do pensamento filosófico-matemático na Grécia antiga.


Livro 3 – de Mathematica

Capítulo – de Musica

DE INVENTIORIBVS EIVS. Moyses dicit repertorem musicae artis fuisse Tubal, qui fuit de stirpe Cain ante diluvium. Graeci vero Pythagoram dicunt huius artis invenisse primordia ex malleorum sonitu et cordarum extensione percussa. Alii Linum Thebaeum et Zetum et Amphion in musica arte primos claruisse ferunt...

Sobre a história da música, Isidoro inicia o texto com o que provém do texto bíblico no qual Moisés diz que o inventor da arte musical foi Tubal, um membro da família de Caim que viveu antes do dilúvio. Na continuidade, Isidoro escreve que os gregos afirmam que Pitágoras foi o primeiro a descobrir a arte do som através de batidas em cordas esticadas e que outros afirmam que Linus de Thebes, Zethus e Amphion foram os primeiros a ganharem fama nas artes musicais. Como se pode perceber, Isidoro oferece informações sobre os descobridores da música, baseando-se em histórias do antigo testamento e da mitologia grega. No entanto ele acrescenta que Pitágoras, além da ciência dos números, também esteve ligado às teorias musicais.


Livro 3 – de Mathematica

Capítulo – de Astronomia

DE INVENTORIBVS EIVS. Astronomiam primi Aegyptii invenerunt. Astrologiam vero et nativitatis observantiam Chaldaei primi docuerunt. Abraham autem instituisse Aegyptios Astrologiam Iosephus auctor adseverat. Graeci autem dicunt hanc artem ab Atlante prius excogitatam, ideoque dictus est sustinuisse caelum.

DE INSTITVTORIBVS EIVS. In utraque autem lingua diversorum quidem sunt de astronomia scripta volumina, inter quos tamen Ptolemaeus rex Alexandriae apud Graecos praecipuus habetur: hic etiam et canones instituit, quibus cursus astrorum inveniatur.

Como informação histórica acerca da astronomia, Isidoro de Sevilla escreve neste capítulo que os egípcios foram os primeiros a inventar a astronomia e os caldeus os primeiros a realizar observações astrológicas acerca do nascimento das pessoas. Diz ainda que Josephus afirma que Abraão ensinou a astrologia aos egípcios. Para os gregos, continua Isidoro, a astronomia foi inicialmente elaborada por Atlas e por isso é dito que ele levantou o mundo. Nessa pequena introdução é apresentada uma importante informação histórica sobre o fato de que os egípcios desenvolveram atividades relativas à astronomia. As diversas expedições arqueológicas realizadas no Egito em épocas recentes confirmam tal informação.

Outro tema apresentado por Isidoro diz respeito às pessoas que ensinaram astronomia e, neste item, ele escreve sobre a existência de várias obras, também escritas em outro idioma (certamente, além do latim, o grego) e por diferentes autores. Entre eles, segundo as informações de Isidoro, Ptolomeu de Alexandria (85-165) é considerado o principal dentre os gregos e foi quem ensinou as formas de como se pode descobrir a trajetória das estrelas. Destaca-se aqui a precisa informação sobre a importância de Ptolomeu para o desenvolvimento de estudos relativos à astronomia; e o próprio tamanho do capítulo nos mostra o quanto essa área do conhecimento científico despertava interesse.

Em uma visão geral sobre os assuntos históricos referentes a temas matemáticos presentes na obra Etimologias, nota-se que a quantidade de informações é pequena. No entanto, pode-se dizer que, em se tratando de um texto cuja finalidade é divulgar o conhecimento matemático como um todo, Isidoro de Sevilla oferece aos seus leitores uma grande oportunidade para que eles possam ter um mínimo de conhecimento sobre as origens dos assuntos apresentados. Fica, portanto, marcada a contribuição de Isidoro de Sevilla para a historiografia da matemática. A partir do que acabamos de apresentar, pode-se confirmar, em primeira instância, a tese de que através de pequenas informações históricas presentes em verbetes científicos de obras enciclopédicas começam-se os primeiros ensaios para a escrita da história da matemática.


Comentários finais

Os textos enciclopédicos, cuja história se inicia já no quarto século antes de Cristo, revelam elementos importantes para a análise histórica referente à época em que foram produzidos. Em alguns casos, informações relativas a determinados assuntos históricos não são encontradas em outros textos senão nos enciclopédicos. Um importante exemplo sobre o assunto é o brilhante trabalho realizado por Brigitte Englisch, citado no início deste texto. A autora utiliza-se de obras enciclopédicas do período de transição entre a Antigüidade e a Idade Média Européia para realizar uma análise histórica sobre como se deu o início daquilo que foi o currículo acadêmico adotado nas universidades medievais européias, ou seja, as Artes Liberais.

Nesse sentido, esse amplo projeto de pesquisa histórica, que visa à análise de componentes matemáticos presentes em obras enciclopédicas, priorizando a apresentação de elementos históricos, poderá vir a ser também uma grande contribuição para aqueles que se preocupam com assuntos relativos à história da matemática, à história da educação matemática, à história de disciplinas (no caso, da disciplina História da Matemática), entre outros temas que porventura sejam pertinentes a esses temas.


Bibliografia principal

Isidori Hispalensis Episcopi (séc. 7). Etymologiarum sive Originum Libri XX. Strasburg: Mentelin. Edição de 1470 em microfichas na biblioteca do Max-Planck-Institut für Wissenschaftsgeschichte – Berlin.

Isidori Hispalensis Episcopi (séc. 7). Etymologiarum sive Originum Libri XX, recognovit brevique adnotatione critica instruxit W.M. Lindsay, Oxford, Oxford University Press. Edição publicada em 1911, 2 vol.


Obras de referência

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Nobre, Sergio. 2001. Elementos Historiográficos da Matemática presentes em Enciclopédias Universais. Dissertação acadêmica defendida para obtenção do título de Livre Docente em História da Matemática. Unesp: Rio Claro.

Poggendorff, Johann C. ed. 1863. Biographisch-Literarisches Handwörterbuch zur Geschichte der Exacten Wissenschaften: Leizpig: Verlag von Johann Ambrosius Barth.

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Sergio Nobre. 
Professor Adjunto do Departamento de
Matemática - Instituto de Geociências e
Ciências Exatas-Unesp-Rio Claro

E-mail: sernobre@rc.unesp.br


Resumo

Neste texto é apresentada uma visão geral sobre a matemática presente na obra Etymologiarvm sive Originvm libri XX, uma enciclopédia escrita pelo Santo Isidoro de Sevilla no início do século 7 da era Cristã. Isidoro dedicou o livro 3 de sua obra à matemática, onde são apresentados os assuntos relativos à aritmética, geometria, música e astronomia. A apresentação da história da matemática presente nesta enciclopédia é o objeto central deste trabalho.

Palavras-chave: Enciclopédias, Matemática e Enciclopédia, Isidoro de Sevilla, Historiografia da Matemática, Século 7

Abstract

This text presents an overview of the mathematics in the Etymologiarvm sive Originvm libri XX, an encyclopedic work written by Saint Isidore of Seville at the beginning of the 7th century. In the 3rd book of his work, Isidore wrote about arithmetic, geometry, music and astronomy. The contribution of Isidore to the historiography of mathematics is the main topic of this work.

Keywords: Encyclopaedia, Mathematics and Encyclopaedia, Isidore of Sevilla, Historiography of Mathematics, 7th Century


Notas:

[*] Este texto é parte integrante da dissertação Elementos Historiográficos da Matemática presentes em Enciclopédias Universais, defendida em março de 2001, como requisito para obtenção do título de Livre-Docência em História da Matemática.

[1] Alguns historiadores afirmam que seria mais fácil para Leibniz descobrir novos conceitos relativos ao Cálculo Diferencial e Integral do que decifrar os anagramas enviados por Newton.

[2] Maiores detalhes sobre esse tema veja-se em Youshkevitch, A. P. 1973, Youshkevitch, A. P. 1978, Queiró, João Filipe. 1972 e Cunha, José Anastácio. 1790 (1987).

[3] José Anastácio da Cunha antecipou-se em pelo menos 30 anos a Cauchy ao apresentar seus resultados relativos aos critérios de convergência de séries infinitas, porém a comunidade científica batizou esses resultados como Critérios de Cauchy, pois os de Anastácio da Cunha não eram conhecidos pela comunidade científica européia. Veja-se em Youshkevitch, A. P. 1973, Youshkevitch, A. P. 1978, Queiró, João Filipe. 1972 e Cunha, José Anastácio. 1790 (1987), definição I do livro VIIII.

[4] Existem alguns estudos históricos realizados junto às grandes enciclopédias universais, principalmente às mais famosas como a inglesa e a francesa, em que foram constatados tais resultados. Veja-se em Hughes, Arthur. 1951-53 e Yeo, Richard. 1991. Estudos recentes sobre esse tema também foram realizados por este autor junto à Grosses Vollständiges Universal Lexicon, publicada na primeira metade do século XVIII, na Alemanha. Em relação à modernidade na apresentação de temas matemáticos, esta enciclopédia ultrapassou as expectativas para uma obra de cunho literário. Em alguns tópicos referentes à grande descoberta matemática de então, o cálculo diferencial e integral, a Universal Lexicon apresenta conceitos bem originais. Os conceitos de grandeza infinitamente pequena e de fronteira, por exemplo, são apresentados na enciclopédia de forma que antecipa em pelo menos 70 anos os resultados alcançados inicialmente por Bernard Bolzano (1781-1848) e posteriormente por Augustin-Louis Cauchy (1789-1857). Veja-se em Nobre, Sergio. 1994.

[5] Artigo de Bernard Ribémont “On the definition of an encyclopaedic genre in the middle ages” em Binkley, Peter. ed. 1997, 49.

[6] Sobre as qualidades futurísticas dos Santos, há uma discussão sobre qual Santo poderia tornar-se Patrono da Rede Mundial de Computadores - Internet (veja-se, por exemplo em http://www.santiebeati.it/patrono.html - extraído em 02.01.2004). No entanto, alguns setores da comunidade católica já se decidiram por Isidoro de Sevilla como o Patrono dos Estudandes, dos Técnicos de Informática, dos Usuários de Computadores, dos Usuários da Internet, entre outras ocupações ligadas à área da informática -veja em http://www.catholicforum.com/saints/sainti04.htm e http://www.catholic.org/saints/patron.php?letter=C (ambas páginas extraídas em 02.01.2004).

[7] Gostaria de agradecer a Frederico J. A. Lopes pela importante ajuda na tradução do latim para o português de alguns trechos da obra.

[8] Brehaut, Ernest. 1912 e Englisch, Brigitte. 1994. Enquanto o texto de Brehaut é específico sobre a obra de Isidoro, o texto de Englisch é um verdadeiro tratado comparativo acerca das Artes Liberais entre diversas obras do início da Idade Média.

[9] Podem-se encontrar importantes informações no sentido de reconstruir historicamente alguns períodos de sua vida em Brehaut, Ernest. 1912, 15-34, Urbel, Justo P. de. 1945 e Diesner, Hans J. 1978.

[10] Melhores informações sobre sua canonização são encontradas em Lexikon für Theologie und Kirche (1930-1938), 4, 626.

[11] Veja-se em Gillispie, Charles C. ed. 1970-80, 7, 27.

[12] Veja-se em Englisch, Brigitte. 1994.

[13] Brehaut, Ernest. 1912, 17.

[14] Sua obra completa foi publicada em 7 volumes em Roma, entre os anos de 1797 e 1803.

[15] Existe uma edição crítica sobre a obra de Natura Rerum publicada por G. Becker em 1857, em Berlin.

[16] Etimologias figura entre os primeiros livros que foram impressos depois da invenção da imprensa, na segunda metade do século XV. Em 1472 foi editada em Augsburg, em 1477 em Basel, em 1482 em Veneza, em 1489 novamente em Basel, 1493 novamente em Veneza e nos anos de 1499 e 1500 ganhou mais duas edições na cidade de Paris.

[17] Brehaut, Ernest. 1912, 16.

[18] Segundo Lorenzo Minio-Paluelo, responsável pelo verbete biográfico sobre Boethius no Dictionary of Scientific Biography (vol. 2, pg. 228-236), editado por Charles Gillispie, o termo quadrivium fora provavelmente usado pela primeira vez por Boethius quando, na introdução de seu livro Aritmética, ele comenta que iria fazer um texto referente a cada uma das quatro disciplinas da Matemática, ou seja, Aritmética, Geometria, Música e Astronomia.

[19] Há de se ressaltar que a maior parte das fontes que tratam da vida de Pitágoras começaram a surgir somente a partir dos séculos 3 e 4 da era cristã. (veja-se em Cantor, Moritz. 1880-1908, 1, 147)

[20] Sua principal obra nessa área foi um Manual de Harmônica.

[21] Neste texto Nicomachus faz inicialmente uma apresentação sobre a importância filosófica da matemática e em seguida desenvolve assuntos ligados aos números, com definições, classificações, relações entre os números, etc. A obra, composta de 2 volumes, foi publicada em 1866, em Leipzig, em Latim, e em 1926, em Nova York foi traduzida para o inglês.

[22] Sobre suas atividades científicas existe um pequeno verbete em Lexikon des Mittealters. 1980-98, 1, 818-19 e em Gericke, Helmuth. 1994, 46. Em livros clássicos atuais sobre a história da matemática não foram encontradas referências a ele.

[23] Moritz Cantor, em sua monumental obra Vorlesungen über Geschichte der Mathematik, fez várias menções a Apuleius, porém em todos os casos é citada a referência de Cassiodorus ou Isidoro. Cantor, Moritz. 1880-1908.

[24] Veja-se em Montucla, Jean E. 1799-1802, Cantor, Moritz. 1880-1908 e Folkerts, Menso. 1970.

***

Leia mais em A Matemática de S. Isidoro de Sevilha e a Educação Medieval.

Leia mais em Sobre S. Isidoro de Sevilha.

Leia mais em S. Isidoro, Bispo de Sevilha e Doutor da Igreja.


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