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Platão Educador

Texto retirado de MARROU, Henri-Irénée. História da Educação na Antigüidade. 4ª Impressão, São Paulo, Editora Pedagógica Universitária Ltda. e Editora da Universidade de São Paulo, 1973. (Esta obra foi reeditada pelas Edições Kírion, em 2017).


A PROCURA DA VERDADE

A obra pedagógica de Platão ultrapassou de muito em importância histórica, o papel propriamente político que ele lhe havia designado. Opondo-se ao pragmatismo dos Sofistas, demasiado apegados à eficácia imediata, Platão edifica todo o seu sistema educacional sobre a noção fundamental da verdade, sobre a conquista da verdade pela ciência racional.

O verdadeiro homem de Estado, este dirigente, este "rei" ideal que urge plasmar, distinguir-se-á de todas as suas contrafações por possuir a ciência [23], a ciência crítica e direta do comando [24], no sentido técnico que, no grego de Platão, reveste a palavra ἐπιστήμη, a saber, o de ciência verdadeira, fundada em razões, por oposição à δόξα, a opinião vulgar.

Mas esta "ciência real" qualificará, também, aquele que, ao invés de uma cidade, tem apenas sua família e sua casa para reger [25]. Mais ainda: é o mesmo critério, ou seja, a posse da verdade, que definirá o verdadeiro orador, por oposição ao sofista [26], como também o verdadeiro médico [27], e, evidentemente, também o verdadeiro filósofo [28]. Por conseguinte, o tipo de educação que Platão concebe com vistas à formação do dirigente político é um tipo de educação dotado de valor e alcance universais: qualquer que seja o campo da atividade humana para o qual alguém se oriente, não há mais que uma alta cultura válida: a que aspira à Verdade, à possessão da verdadeira ciência. Todo o pensamento de Platão é coroado por esta alta exigência; ela se afirma, já, com a máxima nitidez, na famosa réplica do Hipias Maior [29]:

-- Sócrates, será que esta distinção escapará ao nosso adversário?
De qualquer modo, Hípias, juro que ela não escapará àquele homem perante o qual eu me ruborizaria, mais do que perante qualquer outro, se disparatasse e falasse sem dizer nada!
-- Que homem?
-- Eu mesmo, Sócrates, filho de Sofronisco, que não mais me permitirei fazer levianamente uma afirmação não verificada do que me permito crer que sei o que ignoro.
 
A norma não é mais o sucesso, mas a verdade: daí o valor conferido ao saber verdadeiro, fundado em rigor demonstrativo, cujo símbolo é a verdade geométrica que o Ménon oferece como exemplo. Por toda a obra de Platão insinua-se este mesmo tema: o Protágoras, e mesmo os primeiros Diálogos Socráticos, fazem-nos descobrir que a ἀρετή, isto é, a nobreza espiritual, pressupõe, ainda que não se identifique com ele, o conhecimento, a ciência do Bem; no sétimo livro da República [30], o célebre mito da Caverna proclama o poder emancipador do saber, que delivra a alma desta incultura (ἀπαιδευσία), já no Górgias [31] denunciada como o maior dos males. 

Esta educação "científica", Platão não a sonhou apenas: durante cerca de quarenta anos (387-348), subministrou-a aos discípulos reunidos ao seu redor na Academia.

ORGANIZAÇÃO DA ACADEMIA

Os modernos arguem-se no afã de determinar se esta era uma "associação para o progresso da ciência" ou, antes, um estabelecimento de ensino superior (8). Discussão um tanto vã: o entusiástico realismo da Escola e a bonomia desta idade arcaica impedem-nos de transferir para esse ambiente a idéia moderna de ciência em evolução e contínuo desenvolvimento: a ciência existe, constituída fora de nós, ao nível das Idéias, e o problema é adquiri-la, antes que construí-la. Somente com Aristóteles [32] se manifestará, no pensamento grego, a distinção, tão nitidamente realçada entre os modernos por Max Scheler, entre a alta Ciência e sua réplica pedagógica, o Saber configurado nos programas escolares. Não se poderia contar com uma pedagogia autônoma, servindo para transmitir esta pubescente ciência platônica, fremente ainda de sua novel descoberta: o sino aí coincide com o método de investigação.

Tudo o que os Diálogos nos permitem entrever mostra-nos Platão como um partidário dos métodos ativos: seu método dialético é bem o contrário de uma doutrinação passiva. Longe de inculcar a seus discípulos o resultado, já elaborado, de seu próprio esforço, ao Sócrates pintado por Platão apraz, ao contrário, fazê-los trabalhar, fazê-los descobrir por si mesmos, de início, a dificuldade, e depois, à custa de aprofundamento progressivo, o meio de superá-la. A Academia era, pois, ao mesmo tempo, uma Escola de Altos Estudos e um instituto de educação.

Começamos agora a visualizar, de maneira bastante nítida, os quadros de sua organização; a Academia tem uma sólida estrutura institucional: ela não se apresenta como uma empresa comercial, mas na forma de uma confraria, de uma seita, cujos membros se acham estreitamente unidos pela amizade (sempre este vínculo afetivo, senão passional, entre mestre e alunos). Do ponto de vista legal, ela é, como a seita pitagórica, uma associação religiosa (Θίασος), uma confraria votada ao culto das Musas (9) e, após a morte do mestre, ao culto de Platão heroificado: precaução útil para açaimar as suscetibilidades da beatice democrática, sempre disposta a acusar os filósofos de impiedade (10), como o haviam mostrado os processos intentados contra Anaxágoras (432), Diágoras e Protágoras (415), para não falar no

de Sócrates (399), e na expectativa dos de Aristóteles (entre 319 e 315) e Teofrasto (307). Este culto corporificava-se em festas: sacrifícios e banquetes, meticulosamente regulamentados. Tinha por sede um santuário consagrado às Musas, e depois ao próprio Platão, situado à sombra do bosque sagrado dedicado ao herói Acádemos, lugar afastado e solitário da zona norte de Atenas, perto de Colona, e que Platão havia escolhido não por sua comodidade -- pois nos é dito [33] que era, ao contrário, um sítio insalubre -- mas pelo prestígio religioso que o cercava (11), pois era um lugar santo, ilustrado por muitas lendas, pretextos para jogos fúnebres regulares, e onde havia vários outros santuários, consagrados aos deuses infernais -- a Posídon, Adrasto ou Dioniso. A propriedade de Acádemos encontrava-se no termo de um caminho retilíneo saindo de Atenas para o Dípilon, caminho ao qual uma dupla fila de túmulos e monumentos comemorativos conferia um caráter religioso; o bosque sagrado, propriamente dito, devia estar sem dúvida reduzido a um pequeno arvoredo, emoldurado nesse conjunto incôndito, em que as áreas consagradas, circundando templo e altares, repletas de monumentos votivos, se justapunham a campos de esporte cercados de colunatas. Era num desses ginásios [34] que o Mestre ensinava, sentado no centro de uma êxedra [35] (12).

Não imaginemos este ensino sob uma forma demasiado doutoral: paralelamente às lições, concedamos um lugar bastante amplo a entretenimentos familiares durante as "patuscadas em comum" (συμόσια): estas, habilmente conduzidas representavam, para Platão, um dos elementos constitutivos da educação [36]. A vida da Academia implicava, com efeito, certa comunidade de vida entre mestre e discípulos, mas não uma organização propriamente colegial (pois não está seguramente estabelecido que eles tenham habitado, juntos, um edifício vizinho).

Infelizmente, conhecemos melhor, desta escola, o estatuto jurídico, o local e até o mobiliário (havia ali quadros murais, ilustrativos da classificação dicotômica dos seres) (13) do que a vida quotidiana. Alguns raros testemunhos -- como o do cômico Epicrates, mostrando os jovens platônicos em busca da definição da abóbora [37], ou o de Aristóteles sobre a orientação do ensino oral de Platão em sua velhice [38] -- não bastariam para proporcionar-nos uma imagem precisa do conteúdo da educação platônica, se não possuíssemos os programas, tão notavelmente detalhados, contidos nas grandes utopias da República e das Leis.

UTOPIA E ANTECIPAÇÕES

Naturalmente, não se trata de pretender que Platão haja executado, de maneira sistemática, no âmbito restrito de sua Academia, os planos que elaborou nessas duas obras, com plena liberdade teórica: ele próprio salienta bastante, que a realização do seu ideal pedagógico teria exigido uma transmutação completa do Estado. Com efeito, o lugar de primeira plana que reinvindico para Platão, nesta história da educação, não é apenas função de educador por ele desempenhado, concretamente, na Academia: foi todo o seu pensamento, inclusive sob os aspectos paradoxais que ele conscientemente lhe deu, que exerceu profunda influência sobre a educação antiga.

Nem tudo, aliás, era pura utopia, mesmo em tais aspectos: eles encerram muitas antecipações proféticas; digamos, para racionalizar, que esses paradoxos representavam o reconhecimento de aspirações profundas da consciência grega, aspirações às quais as instituições do período seguinte deviam, em ampla medida, satisfazer. Citarei dois exemplos:

Antes de tudo, a exigência fundamental: a educação deve -- diz ele -- tornar-se coisa pública; os mestres serão escolhidos pela cidade, controlados por magistrados especiais... [39]. Em sua época, este anseio não era realizado quase senão nas cidades aristocráticas, como Esparta; por toda parte, alhures, a educação era livre e privada. Ora, veremos que a Grécia helenística adota- ria, muito genericamente, um regime bastante análogo

àqueles que recomendam as Leis. Do mesmo modo, a igualdade rigorosa que ele preceitua, entre a educação dos rapazes e a das moças [40] (educação paralela, mas não co-educação: a partir de seis anos, os dois sexos têm mestres e classes distintos [41]), assume, nas tintas de sua pena, o exagero de um paradoxo: ela reflete apenas um fato real, qual seja a emancipação das mulheres na sociedade do quarto século, e, também nisto, antecipa as realizações da época helenística.

Utopia ou antecipações, a teoria platônica da educação merece, porém, ser estudada, por si mesma, em seu conjunto.

EDUCAÇÃO ELEMENTAR TRADICIONAL

No topo do sistema alcandoram-se os altos estudos filosóficos, reservados a um escol de indivíduos especialmente dotados. Esses estudos supõem a prévia aquisição de uma sólida formação básica: aquela que, na República (livros II-III), Platão dispensa a todos os membros da aristocracia militar dos φύλακες; é a mesma que descrevem as Leis, com mais detalhes, e reduzindo suas exigências àquilo que permitia o estado real da civilização grega. Esta "educação preparatória" (προπαιδεία) [42] não pretende conduzir à verdadeira ciência: contenta-se com tornar o ser humano capaz de ter-lhe acesso um dia, desenvolvendo-lhe harmoniosamente o espírito e o corpo; paralelamente, ela o predestina e o predispõe a tal aquisição, incutindo-lhe hábitos salutares. É notável que Platão não tenha elaborado um programa original para este primeiro ciclo de estudos; no momento de empreender-lhe a análise, faz Sócrates [43] dizer:

Qual será, pois, essa educação? Parece difícil descobrir uma melhor do que a adotada pelos Antigos: ginástica para o corpo, "música" para a alma...

E, de fato, é ao quadro da "antiga educação" ateniense, pintado por Aristófanes [44], que nos remete outra vez a pitoresca evocação das Leis [45], mostrando-nos, ao romper

do dia, as crianças que se dirigem juntas para a escola, sob a guarda dos "pedagogos". Ter Platão assim alojado, na base do seu sistema pedagógico, a educação grega tradicional, eis um fato que se revestiu de considerável importância para o desenvolvimento da tradição clássica, cujas continuidade e homogeneidade ela reforçou: por um lado, a cultura filosófica, longe de romper com a educação anterior, apresentou-se como um prolongamento, um enriquecimento desta; por outro lado, esta educação primeira veio a constituir um denominador comum entre a cultura filosófica e a cultura rival, que Isócrates lhe opunha -- uma e outra apresentando-se como duas variedades de uma mesma espécie, como dois ramos divergentes oriundos de um tronco comum.

Os primeiros anos da criança deveriam, segundo Platão, ser ocupados por jogos educativos [46] praticados em comum, pelos dois sexos, e sob vigilância, em jardins de crianças [47]; mas, para ele, como para todos os gregos, a educação propriamente dita só começa aos sete anos. Ela compreende, pois (as Leis [48] retomam a distinção da República), ginástica para o corpo, e "música" -- ou melhor: cultura espiritual para a alma.

No referente à ginástica, Platão reage, violentamente [49], contra o espírito de competição que, como o lembrei, causava já tantos danos ao esporte do seu tempo. Queria ele reduzi-la à sua finalidade original, a preparação para a guerra: eis por que, no atletismo puro, interessa-se ele sobretudo pela luta [50], que é preparação direta para o combate. Sem dúvida, o programa dos jogos que deverão constituir a sanção da educação física não exclui os outros esportes: compreende a gama normal das corridas a pé: estádio, duplo estádio, etc. [51]; mas Platão aí introduz, também, combates de esgrima, combates de infantaria pesada e de infantaria leve [52] e, de maneira geral, insiste particularmente nos exercícios de caráter militar [53] (que destina tanto às mulheres como aos homens: a cidade platônica inclui mulheres-solda-

dos): o arremesso de flecha com arco, o dardo, a funda, a esgrima, as marchas e manobras táticas, a prática do acampamento. Anexa, enfim, a esta formação-tipo, o aristocrático esporte hípico (que será, igualmente, obrigatório para as moças), com seu acompanhamento normal, a caça [54]: outros tantos traços arcaicos recebidos diretamente da mais velha tradição nobre. Mas eis que, aqui, ao contrário, orienta-nos para o porvir e para as instituições helenísticas: toda esta formação pré-militar será instilada nos ginásios, estádios e picadeiros públicos, sob a direção de monitores profissionais assalariados pelo Estado [55].

Outro traço arcaizante: a preocupação de dar ao esporte seu valor propriamente educativo, seu alcance moral, seu papel, em pé de igualdade a cultura intelectual, e, em estreita colaboração com ela, na formação do caráter e da personalidade [56]. Mas, também aqui, o arcaísmo associa-se intimamente ao "modernismo": em sua concepção da ginástica, Platão inclui todo o domínio da higiene, as prescrições concernentes ao regime de vida e, notadamente, ao regime alimentar, assunto tratado com predileção pela literatura médica de seu tempo. A influência da medicina foi muito profunda sobre o pensamento de Platão, pelo menos igual à da matemática (14). Ora, a medicina grega, por um progresso notável, cujas etapas podemos acompanhar ao longo do quinto e do quarto séculos, havia chegado a considerar que seu objeto fundamental era não o cuidado imediato com a doença, mas, principalmente, a manutenção da saúde, por meio de um regime adequado. Daí uma estreita aproximação entre os domínios do médico e do treinador esportivo, que a dupla carreira de Heródico de Selímbria simboliza a nossos olhos [57].

À ginástica, as Leis acrescentam ainda a dança, que, inseparável do canto coral [58], pertenceria também à música: Platão insiste, longamente, sobre seu ensino e sua prática [59]; reserva-lhe um lugar nos concursos e nas festas, ao lado das procissões solenes para as quais a juventude é convidada [60]. Salienta-lhe, igualmente, as virtudes educativas: a dança é o meio de disciplinar, de submeter à harmonia de uma lei a necessidade, espontânea em todo ser jovem, de exaurir-se, de agitar-se [61]; ela contribui assim, da maneira mais direta e mais eficaz, para a disciplina moral [62]. (...)

Todavia, o lugar que Platão concede, em sua discussão, aos aspectos propriamente espirituais da cultura, mostra claramente ter já o papel da educação física passado para segundo plano: lentamente, a cultura helênica se distancia de suas origens cavalheirescas e evolui na direção de uma cultura de letrados. Sem dúvida, a mutação não está ainda concluída: a música, no sentido preciso em que a entendemos, ocupa, sempre, um lugar na honra educação [65], e, para Platão, um lugar de (κυριωτάτη): a criança aprenderá, pois, do mestre de música (κιθαριστής), o canto e o manejo da lira [67]. Sempre fiel às velhas tradições, ele gostaria, à custa de uma regulamentação severa, de preservar o ensino artístico na via traçada pelos antigos clássicos, ao abrigo das inovações e das tendências dissolventes da música "moderna", suspeita de veicular alguma debilidade, espírito anárquico e relaxamento moral [68]: pois aqui, como em toda parte, a ambição moralizadora domina todo o esforço do educador.

Mas já a música propriamente dita, "o canto e as melodias [69]" , começa a ceder o passo às letras -- λόγοι [70], γράμματα [71]; a criança deverá aprender a ler e a escrever [72], depois passará aos autores clássicos, estudando-os integralmente [73] ou em antologias [74] (é a primeira vez que a história menciona este recurso aos "trechos escolhidos", destinados a tão frutífera carreira); aos poetas, únicos autores estudados outrora, Platão junta autores em prosa [75]; os estudos literários serão, naturalmente, sancionados em concursos ou jogos musicais [76].

Quais serão estes autores? É sabido que Platão critica violentamente os poetas reputados clássicos em seu tempo, começando pelo velho Homero (mas sua crítica atinge também os Trágicos, e, de maneira geral, o papel desempenhado pelos mitos na educação tradicional da criança grega): formulada pela primeira vez nos livros II-III da República [77], essa crítica é retomada, em profundidade, no livro X [78] e será repetida nas Leis [79]. Seu caráter paradoxal não deve escamotear o quanto ela se prende à essência mesma da doutrina platônica.

Ela condena os poetas porque seus mitos são mentiras, apresentando da divindade ou dos heróis uma imagem falaciosa, indigna de sua perfeição. Sua arte, repassada de ilusão, é perniciosa por ser contrária à Verdade -- essa verdade a que toda a pedagogia deve estar subordinada --, por desviar o espírito de seu fim, que é a conquista da ciência racional. Opondo com tal vigor a poesia e filosofia [80], rompendo com a mais constante tradição, que, como vimos, situava Homero na base de toda educação, Platão punha a alma grega diante de uma opção difícil: devia a educação permanecer basicamente artística e poética ou devia tornar-se científica? Este problema não deixou, desde Platão, de apresentar-se à consciência de todo educador, e nunca foi resolvido de maneira definitiva: nosso próprio ensino não se acha sempre dividido entre as reivindicações opostas das "letras" e das "ciências"?

Sabe-se que, de modo geral, a civilização antiga não subscreveu essa condenação de Homero e não aceitou as soluções radicais propostas por Platão [81]: submeter os textos poéticos a uma severa censura, expurgá-los, corrigi-los, ainda que para isto fosse necessário reescrevê-los! A própria obra de Platão depôs contra ele: seus Diálogos não são bem o modelo mesmo duma poesia magnífica,

que não renuncia a nenhum dos procedimentos da arte, que termina por servir-se do próprio mito para instilar a persuasão por um encantamento quase mágico? Disso, sem dúvida, Platão, antes de todos, tinha consciência: "Também nós somos poetas", brada ele, dirigindo aos Trágicos um desafio cheio de ousadia [82]; e, meio sério, meio jocoso, propõe adotar-se o próprio texto de suas Leis, para explicação nas aulas [83].

Mas não somente isto: cada página de seus Diálogos testemunha, de maneira brilhante, quanto a cultura pessoal de Platão se havia nutrido e beneficiado do ensino tradicional dos poetas: a citação de Homero, dos líricos, dos trágicos, brota espontaneamente de sua pena, serve para exprimir seu pensamento profundo, que ela sustenta tanto quanto o ilustra. Pelo uso que dela faz, Platão demonstra, contra si mesmo, não apenas a fecundidade dessa cultura literária, mas também o proveito que o espírito filosófico podia dela tirar.

Entretanto, não se deveria considerar essa crítica como uma facécia vã: ela não foi suficiente para banir Homero da cidade, assim como a crítica do Emilio não expulsou o deleitoso La Fontaine das nossas escolas -- mas não deixou de infiltrar-se, por sua vez, na tradição antiga, como uma interrogação levantada, um repto, um desafio, e cada geração, cada letrado teve, por sua vez, de reconsiderá-la.


Notas:

[23] [PLATÃO] O Político, 259b. 
[24] Idem, 292b. 
[25] Idem, 259bc. 
[26] Fedro, 270a s. 
[27] Idem, 270b.
[28] O Sofista, 267e.
[29] Hipias Maior, 298b. 
[30] A República, VII,
[31] Górgias, 527e. 514a s.
[32] ARISTÓTELES, Partes dos Animais, 639 a 1 s.
[33] ELIANO DE PRÊNESTO, Histórias Variadas, IX, 10; PORFÍRIO, Da Abstinência, 36, 112; SÃO BASÍLIO DE CESARÉIA, Sermões, XXII, 9. 
[34] EPIGRATES ap. ATENEU, Banquete dos Sofistas, II, 59 D, 10. 
[35] DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas dos Filósofos, IV, 19. 
[36] PLATÃO, As Leis, I, 41cd; II, 652a.
[37] Ap. ATENEU, Banquete dos Sofistas (ed. Casaubon), II, 59 D. 
[38] ARISTÓTELES, Metafisica, VI-VIII. 
[39] PLATÃO, As Leis, VI, 754cd; 765d; VII, 801d; 804c; 813e; 809a.
[40] A República, V, 451d-457b; As Leis, VII, 804d-805b; 813b. 
[41] Idem, 794c; 802e; 813b.
[42] A República, VII, 536d. 
[43] Idem, II, 376e; cf. VII, 521de. 
[44] ARISTÓFANES, As Nuvens, 961 s. 
[45] PLATÃO, As Leis, VII, 808d.
[46] Idem, I,  643bc.
[47] Idem, VII, 793e-794b. 
[48] Idem, 795d-796d. 
[49] Idem, 796a, d; VIII, 830a. 
[50] Idem, VII, 795d-796a; VIII, 814cd. 
[51] Idem, 832d-833d. 
[52] Idem, 833d-834a. 
[53] Idem, VII, 794c; 804d-806c; 813b; VIII, 829e; 833cd.
[54] Idem, VII, 823c; 824a.
[55] Idem, 804cd; 813e. 
[56] A República, III, 410c-412a.  
[57] Idem, 406ab; Protágoras, 316e; Fedro, 227d. 
[58] As Leis, II,  654b. 
[59] Idem, 653d s.; VII, 795e; 814e-816d.
[60] Idem, 796c. 
[61] Idem, II, 653de. 
[62] Idem, 654a-655b. 
[65] PLATÃO, A República, III, 398c-403c.
[66]. Idem, 401d. 
[67] As Leis, VII, 812be. 
[68] Idem, II, 656ce; III, 700a-701c. 
[69] A República, III, 398 c.  
[70] Idem, II, 376e.
[71] As Leis, VII, 809b. 
[72] Idem, 810b. 
[73] Idem, 810e. 
[74] Idem, 81la.
[75] Idem, 809b.
[76] Idem, VIII, 834e-835b.
[77] A República, 377a-392b.
[78] Idem, 595a-608b. 
[79] As Leis, VII, 810c-811b.
[80] A República, X, 607b. 
[81] Idem, III, 386c; 387b; As Leis, VII, 801d-802b; cf. VIII, 829de.
[82] As Leis, VII, 817b. 
[83] Idem, 811ce. 


Notas Complementares

(8) O que era Academia: P. BOYANCÉ, Le Culte des Muses chez les Philosophes grecs, p. 261, resume o debate: uma associação de sábios (U. VON WILAMOWITZ-MÖLLENDORF, Platon 2, Berlim, 1920, ps. 270 segs; Antigonos von Karystos, Philogische Untersuchungen, IV, Berlim, 1881, ps. 279 segs.; H. USENER, Organisation der Wissenschaftlichen Arbeit, Vorträge und Aufsatze, Leipzig-Berlim, 1907, ps. 67 segs.), ou uma Universidade (E. HOWALD, Die Platonische Akademie und die moderne Universitas litterarum, Berna, 1921)?

(9) A Academia como tíase das musas: P. BOYANCE, ibid., ps. 261-267; sobre a heroificação de Platão, ibid., ps. 259-261, 267-275, e O. REVERDIN, La Religion de la Cité platonicienne, Paris, 1945.

(10) Sobre Les Procès d'impiété intentés aux Philosophes à Athènes aux Ve.-IVe siècles, cf. o trabalho, publicado sob este título, de E. DERENNE, ap. Bibliothèque de la Faculté de Philosophie et Lettres de l'Université de Liège, XLV. Liège, 1930.

(11) Caráter sagrado do sítio da Academia: CH. PICARD, Dans les Jardins du héros Académos, Institut de France, Séance publique annuelle des cinq Académies du jeudi 25 octobre 1934, Discours, Paris, 1934. Por iniciativa, e com o patrocínio de P. ARISTOPHRON (L'Académie de Platon, Paris, 1933), a Academia de Atenas empreendeu, no sítio, escavações que, infelizmente, foram interrompidas no momento em que começavam a tornar-se frutíferas: ver-lhe a crônica ap. Bulletin de Correspondance hellénique, de 1930 (t. LIV, ps. 459-460) a 1937 (t. LXII, ps. 458-459), ou Jahrbuch des Deutschen archäologischen Instituts, Archäologischer Anzeiger, notadamente 1934, c. 137-140 (plano: Abb. 8).

(12) A êxedra de Platão: para ajudar o leitor moderno na "composição de lugar", lembrarei os mosaicos (que embora romanos reproduzem um original helenístico) do museu de Nápoles e da cidade Torlonia-Albani, representando uma assembléia de filósofos (os Sete Sábios?): G. W. ELDERKIN, American Journal of Archaeology, XXXIX (1935), ps. 92-111; O. BRENDEL, Römische Mitteilungen, LI (1936), ps. 1-22 e ainda ELDERKIN ibid., LII (1937), ps. 223-226.

(13) Quadros murais usados na Academia para os exercícios práticos de classificação (cf. ARISTT., P. A., I, 639 a): A. DIES, Notice em sua edição do Politique, coleção "Budé", Paris, 1935, p. XXVII.

(14) Influência da medicina e, notadamente, da ciência higiênica sobre o pensamento de Platão: cf. W. JAEGER, no admirável capítulo que abre o tomo III de sua Paideia, ps. 3-45, "a medicina grega como paideia".


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