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Algumas filosofias da Matemática

Arquimedes pensativo, por Domenico Fetti

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Tempo de leitura: 38 minutos.

REALISMO, NOMINALISMO E CONCEPTUALISMO

Genial. Contudo, até o leitor mais benevolente pode questionar se Platão não foi um pouco além da conta; Aristóteles certamente achava que foi. Mas é importante entender que, descontados certos detalhes e floreios retóricos, até muitas pessoas que não são solidárias à cosmovisão global de Platão admitem que sua teoria é altamente plausível e defensável, e ela sempre teve defensores de peso, inclusive nos dias atuais. O motivo é que é notoriamente dificílimo evitar algo pelo menos similar à teoria de Platão se quisermos que a matemática, a linguagem, a ciência e a própria estrutura do mundo da experiência façam sentido.

Para entender o porquê, consideremos três tipos de coisas (embora haja outras) que têm toda a aparência de ser objetos abstratos como os que Platão postula, isto é, entidades existentes fora do tempo e do espaço e fora da mente humana. Os primeiros são os universais, dos quais já vimos exemplos. Além deste ou daquele triângulo específico, temos a “triangularidade” universal; além deste ou daquele ser humano, temos “o humano” universal; além desta ou daquela coisa vermelha, temos a “vermelhidão” universal; e, em geral, cada coisa específica parece exemplificar várias características universais. As coisas específicas são únicas e irrepetíveis – há apenas um Sócrates, um Aristóteles, um George W. Bush etc. – mas os aspectos que exemplificam (por exemplo, “humano”) são repetíveis e comuns a muitas coisas e, portanto, “universais”.

Um segundo exemplo são os números e outras entidades matemáticas. Os números não são objetos físicos: o numeral “2” não é o número 2, assim como o nome “George Bush” não é a mesma coisa que o homem George Bush, e apagar todos os numerais 2 que todas as pessoas já escreveram não fará com que de repente 2 + 2 = 4 seja falso. Tampouco são os números puramente mentais: como acontece com as verdades geométricas, as verdades da matemática em geral são coisas que nós antes descobrimos que inventamos; de alguma forma elas já estão “por aí” esperando que as encontremos; portanto, não é necessário que pensemos sobre elas para que sejam verdadeiras. São ainda verdades necessárias, não contingentes. Saber, digamos, que há nuvens sobre Vênus é saber um fato contingente, isto é, que poderia não ter ocorrido. Por exemplo, poderia ser que Vênus nunca tivesse existido, ou que sua órbita o levasse para tão perto do Sol, que qualquer atmosfera que tivesse teria sido dissipada há muito tempo; e, seja como for, em algum momento do futuro o Sol se expandirá e engolirá tanto Vênus como as nuvens que o recobrem, incinerando-os completamente. Mas conhecer mesmo um fato matemático simples, como 2 + 2 = 4, é conhecer uma verdade necessária, que não poderia não ocorrer [10]; 2 e 2 já eram 4 muito antes de alguém saber disso e continuariam 4 ainda que todos nos esquecêssemos disso ou morrêssemos. Aliás, continuaria a ser verdade que 2 + 2 = 4 ainda que todo o universo despencasse sobre si mesmo. Mas se essa verdade matemática é de tal modo necessária, então as coisas a respeito das quais é verdadeira – os números – também devem existir de modo necessário, fora do tempo e do espaço e independente de qualquer mente.

Por fim, temos o que os filósofos chamam de proposições – declarações sobre o mundo, sejam verdadeiras ou falsas, que são distintas das frases que as expressam. “John é solteiro” e “John não é comprometido” são frases diferentes, mas expressam a mesma proposição. “A neve é branca” e “Schnee ist weiss” também são frases diferentes – na verdade, aquela é do português e esta do alemão – mas expressam, do mesmo modo, exatamente a mesma proposição, a saber, a proposição de que a neve é branca. Quando a mente cogita qualquer pensamento de qualquer tipo, seja verdadeiro ou falso, é em última análise uma proposição que cogita, não uma frase. Esse é o motivo pelo qual podemos todos cogitar os mesmos pensamentos apesar de estarmos separados por diferentes línguas, épocas e lugares: quando pensam que a neve é branca, Sócrates e George Bush estão pensando exatamente a mesma coisa, apesar do fato de que um deles expressa esse pensamento em grego na Atenas do século V antes de Cristo e o outro em inglês no Texas do século XXI. Diferindo de qualquer frase, aliás de qualquer outra sequência física de sons ou formas que se pode usar para expressá-las, as proposições são em algum sentido distintas do mundo material. Porém, como uma proposição ou é verdadeira ou é falsa ainda que ninguém a cogite – novamente, 2 + 2 = 4 continuaria verdadeiro mesmo que nos esquecêssemos disso amanhã, 2 + 2 = 5 seria falso mesmo que todos passássemos a acreditar que é verdadeiro e a neve já era branca muito antes de ser vista por alguém –, parece seguir-se que as proposições também são independentes de qualquer mente.

A posição de que os universais, os números e/ou as proposições existem objetivamente, à parte de qualquer mente humana e distintos de qualquer aspecto material ou físico do mundo, é chamada de realismo e a Teoria das Formas de Platão talvez seja a sua versão mais famosa (embora não a única, como veremos). As posições alternativas tradicionais são o nominalismo, que nega que os universais e similares sejam reais, e o conceptualismo, que reconhece sua realidade mas insiste que eles existem apenas na mente; e, como o realismo, cada uma dessas posições vem em diversos modelos. O debate entre essas três correntes é antigo e extremamente complicado [11]. Pode parecer ainda, à primeira vista, bastante improdutivo, esotérico e irrelevante para a vida prática. Mas nada pode estar mais longe da verdade. O fato é que não é exagerado afirmar que virtualmente todas as grandes controvérsias religiosas, morais e políticas das últimas décadas – aliás, dos últimos séculos – repousam de algum modo em discordâncias sobre o “problema dos universais” (como é conhecido), ainda que esse fato esteja implícito ou não seja notado. Isso inclui a disputa entre os “neoateus” e seus adversários, por mais ignorantes que aqueles (embora, com frequência, também estes) sejam das verdadeiras raízes da questão. Quando fez a famosa observação de que “ideias têm consequências” [livro], Richard Weaver não estava afirmando o fato banal de que aquilo em que acreditamos afeta o modo como agimos; estava se referindo às radicais implicações sociais e morais do abandono do realismo e da adoção do nominalismo para a civilização ocidental moderna [12].

Examinaremos essas consequências no momento devido. Por ora, analisemos brevemente algumas das razões que fazem com que o realismo, de uma forma ou de outra, pareça inescapável até para muitos pensadores visceralmente inclinados a rejeitá-lo; e por que as tentativas de escapar dele – a saber, o nominalismo e o conceptualismo – parecem, em última análise, indefensáveis, por maior que seja o entusiasmo (ou o desespero) com que se tenta defendê-las.

Já aludimos a alguns dos argumentos que se seguem, mas será útil resumi-los e torná-los mais explícitos. (Alguns também são levemente técnicos; rogo a tolerância do leitor.) Em prol da simplicidade, alguns deles serão formulados de maneira “platônica”; realistas de outras correntes os modificariam ligeiramente.

1. O argumento doum sobre o múltiplo”: A “triangularidade”, a “vermelhidão”, o “humano” etc. não são redutíveis a nenhum triângulo, objeto vermelho ou ser humano específico, nem mesmo a uma coleção de triângulos, objetos vermelhos ou seres humanos. Pois qualquer triângulo, objeto vermelho ou ser humano específico, ou até o conjunto completo dessas coisas, poderia deixar de existir sem que a triangularidade, a vermelhidão e o humano deixassem de poder ser representados novamente. Essas coisas também podem ser, e muitas vezes são, representadas ainda que nenhuma mente humana esteja ciente disso. Portanto, a triangularidade, a vermelhidão, o humano e outros universais não são nem coisas materiais, nem conjuntos de coisas materiais, nem dependentes de mentes humanas para existir.

2. O argumento da geometria: Na geometria, lidamos com linhas perfeitas, círculos perfeitos e assemelhados e descobrimos fatos objetivos a respeito deles. Como são objetivos – nós não os inventamos e não poderíamos alterá-los se quiséssemos – esses fatos não dependem da nossa mente. Como são necessários e inalteráveis (ao contrário dos fatos que dizem respeito a coisas materiais) e como nenhuma coisa material tem a perfeição que os objetos geométricos têm, eles também não dependem do mundo material. Portanto, são fatos que dizem respeito a uma “terceira esfera” de objetos abstratos.

3. O argumento da matemática em geral: As verdades matemáticas são necessárias e inalteráveis, ao passo que o mundo material e a mente humana são contingentes e mutáveis. Essas verdades já eram verdadeiras antes de o mundo material ou as nossas mentes existirem e continuariam a ser verdadeiras se estes deixassem de existir. Assim, os objetos a respeito dos quais essas verdades são verdades – números e similares – não podem ser nem mentais nem materiais, mas abstratos. Além disso, a série de números é infinita, mas há apenas uma multiplicidade finita de coisas materiais e apenas uma multiplicidade finita de ideias em qualquer mente humana ou conjunto de mentes humanas; logo, as séries numéricas não podem ser identificadas com nada material nem como nada mental. 

4. O argumento da natureza das proposições: As proposições não podem ser identificadas nem com algo material nem com algo mental. Pois algumas proposições (por exemplo, verdades matemáticas como 2 + 2 = 4) são necessariamente verdadeiras e, portanto, continuariam verdadeiras ainda que nem o mundo material nem a mente humana existissem. Muitas proposições contingencialmente verdadeiras também continuariam verdadeiras em tais circunstâncias: “César foi assassinado nos Idos de Março” continuaria verdadeiro ainda que o mundo inteiro e todas as mentes humanas saíssem da existência amanhã. Ainda que nem o mundo material nem mente humana alguma jamais tivessem existido, a proposição “não há nem mundo material nem qualquer mente humana” teria sido verdadeira, caso em que não seria algo nem material nem mental. E assim por diante [13]. 

5. O argumento da ciência. As leis e classificações científicas, sendo de aplicação geral ou universal, necessariamente fazem referência a universais; e o interesse da ciência é descobrir fatos objetivos, independentes de qualquer mente. Assim, aceitar os resultados da ciência é aceitar que existem universais independentes da mente. Além disso, a ciência usa formulações matemáticas, e dado que (como observado acima) a matemática diz respeito a uma esfera de objetos abstratos, quem aceita os resultados da ciência fica, portanto, obrigado a aceitar que há tais objetos [14].

Esses argumentos são diretos. Existem também os indiretos, isto é, aqueles que mostram a impossibilidade de as alternativas ao realismo estarem corretas. Considere o nominalismo, que sustenta que não existem universais, nem números, nem proposições [15]. Onde acreditamos haver universais, afirma o nominalista, há apenas termos gerais, palavras que aplicamos a muitas coisas. Assim, por exemplo, há o termo geral “vermelho”, que aplicamos a vários objetos, mas não existe “vermelhidão” nenhuma. Evidentemente, surge com isso a questão de por que aplicamos o termo “vermelho” precisamente às coisas que aplicamos, e é difícil compreender qual outra resposta plausível poderia haver além de “porque todas elas têm a vermelhidão em comum”, o que nos leva novamente, no fim das contas, a afirmar a existência dos universais. O nominalista pode tentar evitar essa conclusão alegando que chamamos coisas diferentes de “vermelhas” porque elas lembram umas às outras, sem especificar em que aspecto o fazem. Isto é manifestamente implausível – não é simplesmente óbvio que elas lembram umas às outras com respeito à sua vermelhidão? – mas há outros problemas também:

6. O problema do regresso vicioso: Como Bertrand Russell observou, a própria “semelhança” a que o nominalista recorre é um universal [16]. Um sinal de “Pare” se assemelha a um caminhão de bombeiros, motivo pelo qual classificamos ambos de “vermelhos”. A grama lembra a pele do Incrível Hulk, razão pela qual chamamos a ambas de “verdes”. E assim por diante. O que temos, pois, são múltiplas representações de um mesmo universal, “semelhança”. Ora, o nominalista pode tentar evitar esta consequência dizendo que só chamamos todos esses exemplos de “semelhança” porque eles lembram uns aos outros, sem especificar em que aspecto o fazem. Mas aí, em vez de ser resolvido, o problema apenas surge novamente em um grau superior. Esses vários casos de semelhança se assemelham a vários outros casos de semelhança, de modo que temos uma semelhança de ordem superior, que será ela mesma um universal. E se o nominalista tentar evitar este universal aplicando mais uma vez a estratégia original, apenas enfrentará o mesmo problema novamente em um grau ainda mais elevado, ad infinitum.

7. O problema de que “as palavras também são universais”: O nominalista afirma que não há universais como “vermelhidão”, apenas termos gerais como “vermelho”. Contudo, esta afirmação parece obviamente autocontraditória, uma vez que o próprio termo “vermelho” é um universal. Você enuncia a palavra “vermelho”, eu enuncio a palavra “vermelho”, Sócrates enuncia a palavra “vermelho” e todas são obviamente enunciações específicas da mesma palavra, que existe para além das nossas várias enunciações dela. (Segundo a formulação usual dos filósofos, cada enunciação é um diferente token [espécime, exemplar] do mesmo type [tipo, palavra única].) Em verdade, esta é a única razão pela qual a proposta nominalista tem alguma plausibilidade (se é que ela tem alguma plausibilidade): Que a mesma palavra se aplique a muitas coisas pode parecer suficiente (pelo menos se você não pensar com cuidado na da questão) para gerar nossa impressão intuitiva de que há algo em comum entre elas. Mas, novamente, se é a mesma palavra, temos, uma vez que há diferentes enunciações dela, situação idêntica à do “um sobre o múltiplo” que o nominalista quer evitar. Para escapar desse resultado, ele pode afirmar que quando você, eu e Sócrates dizemos a palavra “vermelho”, na verdade nós não estamos enunciando a mesma palavra de maneira alguma, mas apenas palavras que se parecem umas com as outras. Isto seria, é claro, simplesmente de uma estupidez cristalina, além de um desespero patético. Na barganha, implicaria que a comunicação é impossível, uma vez que jamais estaríamos usando as mesmas palavras (aliás, você jamais usaria a mesma palavra mais de uma vez nem quando estivesse falando consigo mesmo, mas apenas palavras que lembram umas às outras) – neste caso, por que o nominalista está falando conosco? E o recurso à “semelhança” abriria novamente a porta ao problema do regresso vicioso.

Em geral, é dificílimo defender o nominalismo de um modo que não leve de volta, pela porta dos fundos, à adesão sub-reptícia aos universais ou outros objetos abstratos, em cujo caso a posição é autocontraditória. Por razões como esta, o conceptualismo procura escapar do realismo não negando que os universais existam, mas antes negando apenas que existam fora da mente. É uma tentativa de chegar a um meio termo entre o realismo e o nominalismo. Mas ele também enfrenta dificuldades que são consideradas em geral insuperáveis:

8. O argumento da objetividade dos conceitos e do conhecimento. Quando eu e você consideramos qualquer conceito – o conceito de um cachorro, digamos, ou de vermelhidão, ou aliás do próprio conceptualismo – cada um de nós está considerando o mesmo conceito; não é que você esteja considerando o seu conceito específico de vermelho e eu esteja considerando o meu, sem que haja nada em comum entre eles. Similarmente, quando cada um de nós considera várias proposições e verdades, estamos considerando as mesmas proposições e verdades. Assim, por exemplo, quando você pensa no Teorema de Pitágoras e eu penso no Teorema de Pitágoras, cada um de nós está pensando sobre uma única e mesma verdade; não é que você esteja pensando sobre o seu próprio Teorema de Pitágoras pessoal e eu esteja pensando no meu (o que quer que isso significasse). Assim, os conceitos (e, portanto, os universais) e as proposições não existem apenas na mente, subjetivamente, mas independentemente dela, objetivamente. Relacionado a este argumento há outro:

9. O argumento da possibilidade de comunicação: Suponha que, como sugere o conceptualismo, os universais e as proposições não fossem objetivos, mas existissem apenas nas nossas mentes. Nesse caso, nossa comunicação seria impossível. Pois toda vez que você dissesse algo – “A neve é branca”, por exemplo – os conceitos e proposições que expressasse seriam coisas que existiriam apenas na sua mente e assim seriam inacessíveis a todas as outras pessoas. Sua ideia de “neve” seria inteiramente diferente da minha ideia de “neve”, e como você só teria acesso à sua ideia e eu só teria acesso à minha, nós jamais diríamos a mesma coisa quando falássemos a respeito da neve ou, aliás, a respeito de qualquer outra coisa. Mas isto é absurdo: nós somos capazes de nos comunicar e apreender os mesmos conceitos e proposições. Logo, essas coisas não são subjetivas nem dependentes da mente, mas objetivas, como afirma o realismo.

Argumentos similares aos dois últimos se originam com o lógico Gottlob Frege (1848-1925), cuja preocupação era defender o estatuto científico da lógica e da matemática contra uma doutrina conhecida como “psicologismo”, que tendia a reduzir as leis dessas a meros princípios psicológicos dirigindo a operação da mente humana [17]. Isso significa, de acordo com essa perspectiva, que a lógica e a matemática não descrevem a realidade objetiva, mas apenas o modo pelo qual a estrutura da mente faz com que pensemos sobre a realidade. Há óbvias afinidades entre o conceptualismo e esse tipo de ponto de vista, que deriva de pensadores como Immanuel Kant (a respeito do qual diremos algumas coisas em capítulos posteriores). Quando se acrescenta a ele (o que Kant não fez) a sugestão de que a estrutura da mente é determinada por circunstâncias culturais, históricas e sociais contingentes e em evolução, o resultado é uma forma de relativismo cultural bastante radical, na qual todos os nossos conceitos, assim como a lógica, a matemática, a ciência etc., são condicionados pela cultura e sujeitos a revisão, sem nenhuma relação necessária com a realidade objetiva.

Radical e totalmente contraditório, como são o psicologismo e o conceptualismo em geral. Pois se afirmamos que os conceitos, as regras da lógica etc. não são determinados por nenhuma correspondência necessária com a realidade objetiva, mas antes pelos efeitos exercidos na nossa mente por forças históricas, culturais e similares contingentes, ou mesmo pela nossa evolução biológica, então temos de explicar exatamente como isto funciona – isto é, temos de dizer precisamente quais foram as forças biológicas e/ou culturais responsáveis por isso, como elas formaram nossa mente e assim por diante – e teremos ainda de dar argumentos em defesa desta explicação. Mas tal explicação terá necessariamente de recorrer a vários universais (“pressões seletivas darwinianas”, “interesses de classe”, “mutações genéticas”, “tendências sociais” etc.) e a princípios científicos e matemáticos controladores dos processos relevantes; e para defendê-los será necessário recorrer às regras da lógica. Contudo, essas são as coisas mesmas que, segundo o ponto de vista em questão, não têm nenhuma validade objetiva e (como supostamente dependem dela para existir) não existiam antes de a mente existir. Logo, teorias como essa são totalmente autocontraditórias.

Suponha que, em vez disso, seguindo Kant, o conceptualista ou psicologista adote a posição menos radical de que embora os conceitos e/ou as regras da lógica e da matemática reflitam apenas as operações da mente e não a realidade objetiva, este é um fato necessário a respeito de nós, algo que não pode ser mudado por evolução biológica nem cultural. Em outras palavras, estamos presos aos conceitos e regras que temos e os aspirantes a engenheiros sociais simplesmente deram azar. Isto impediria que essa posição desmoronasse por incoerência? De maneira alguma. Pois, novamente, o defensor dela terá de explicar como é que sabe de tudo isso e como, então, a mente ficou assim, e se recorrer a conceitos, regras de lógica etc., dos quais acabou de nos dizer que não têm nenhuma relação com a realidade objetiva e que têm existência dependente da mente, estará assim, na prática, contradizendo o próprio argumento. Por outro lado, na medida em que afirma ser um fato necessário a respeito da mente que tenhamos precisamente os conceitos, as regras de lógica etc. que temos, então está afirmando assim ter conhecimento da natureza objetiva das coisas – especificamente, da natureza objetiva do funcionamento da mente – do tipo que deveria ter sido excluído pela sua teoria. Pois para formular e defender o que afirma ele precisa recorrer a certos universais (como “mente”), às regras da lógica etc.; e, novamente, sua teoria alega que estes não têm validade objetiva. Portanto, ele se vê em um dilema: se insiste, como sua teoria deve levá-lo a fazer, que os conceitos, as regras da lógica etc. não têm validade objetiva, será incapaz de defender a própria posição; se afirma que eles de fato têm validade, de modo a justificar sua pretensão de ter conhecimento sobre a natureza objetiva da mente, estará apenas contradizendo o próprio ponto de vista no ato mesmo de defendê-lo. De novo, a teoria é simplesmente incoerente [18].

Teorias como essas são provocativas e têm, por razões óbvias, apelo emocional para adolescentes de todas as idades. Mas do ponto de vista racional, são totalmente desprezíveis; como disse certa vez David Stove, ao fim e ao cabo seus proponentes não têm a oferecer muito mais do que “um sorriso maroto” [19]. Para ser justo, é preciso observar que muitos naturalistas, materialistas e ateus concordariam de bom grado com a severidade dessa conclusão. Os religiosos que acreditam que os secularistas dominantes na academia são todos relativistas estão redondamente enganados. Ao menos nos departamentos de filosofia dominados pela “filosofia analítica”, que atualmente são majoritários nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha – em outros departamentos de humanidades e departamentos de filosofia fora desses países, e/ou dominados pela “filosofia continental”, às vezes a história é completamente diferente –, reina o mais absoluto desprezo ao menos pelas formas mais extremas de relativismo, subjetivismo e similares [20]. Não devemos atribuir aos secularistas crimes de que não são culpados. O que é verdade é que muitos naturalistas, materialistas e ateus sustentam posições que são exatamente tão dementes quanto as dos relativistas radicais, e sem dúvida todos sustentam posições que têm as mesmas consequências do relativismo extremo, ainda que não tenham essa intenção.

Mas eu divago; voltaremos a tudo isso em breve. A questão no momento é que conseguir formular uma defesa plausível ou do conceptualismo ou do nominalismo é, na melhor das hipóteses, muito difícil. Ademais, não há grande motivação intelectual para fazê-lo além de tentar evitar o realismo. É inútil recorrer (como se faz com frequência) ao famoso princípio da Navalha de Ockham como motivação; pois ela recomenda optar pela teoria mais simples e evitar postular a existência de algo a não ser que seja necessário fazê-lo, e a lição clara da história do debate sobre os universais, proposições, números e similares é que é de fato necessário “postular” a existência deles. O nominalismo e o conceptualismo são teorias “mais simples” do que o realismo no mesmo sentido em que a astronomia seria “mais simples” se negasse a existência de planetas e estrelas. É tentador dizer aos oponentes do realismo: Desistam. Não dá para fugir. Parem de resistir. Aceitem. Mas há motivo para que muitos pensadores estejam dispostos a rolar nus em caco de vidro e suco de limão para não aceitar o realismo; isto ficará evidente ao final deste livro, à medida que compreendemos as consequências bastante conservadoras e bastante religiosas do realismo e das ideias adjacentes.

Algo similar à teoria de Platão, pois, afigura-se claramente correto. Mas o “algo similar” é importante. Pois é possível ser realista sem abraçar até as últimas consequências a depreciação dos sentidos e a postulação de uma misteriosa esfera de objetos além do espaço e do tempo que caracterizam sua teoria. Isto nos leva finalmente a Aristóteles

Notas:

[10] Aqui, novamente, às vezes se ouvem argumentos péssimos no sentido contrário. Por exemplo, sugere-se às vezes que se o mundo físico fosse configurado de maneira tal que sempre que se colocasse dois objetos junto a outros dois objetos um quinto objeto aparecesse magicamente entre eles, este seria um caso em que 2 + 2 = 5. As pessoas que usam esses argumentos realmente deveriam se ouvir com mais cuidado. Pois de acordo com seu próprio relato, o que descreveram não foi 2 e 2 resultando em 5, mas antes o ato de colocar 2 objetos junto a outros 2 objetos (o que dá 4 no total) causando de repente e magicamente o aparecimento de um novo e quinto objeto. (“X causa Y” não quer dizer “X é igual a Y”).

[11] Ver Universals (McGill-Queen’s University Press, 2001), de J.P. Moreland, para uma introdução ao debate escrito de um ponto de vista solidário ao realismo.

[12] Richard M. Weaver, Ideas Have Consequences (University of Chicago Press, 1948). Como mencionado acima, a Teoria das Formas de Platão também é conhecida como Teoria das Ideias. O título do livro de Weaver é um jogo de palavras. [O livro de Weaver tem tradução em português pela É Realizações: As Ideias têm Consequências.]

[13] As dificuldades de identificar proposições com qualquer coisa material ou mental vão muito além disso e foram bem resumidas por Alvin Plantinga em Warrant and Proper Function (Oxford University Press, 1993), capítulo 6.

[14] D. M. Armstrong é um naturalista que endossa o realismo quanto aos universais com base no papel deles na ciência e W.V.O. Quine é um naturalista que aceita a existência de alguns objetos abstratos (embora, em verdade, antes de conjuntos que de números) com base no papel que a matemática desempenha na ciência. Armstrong ajusta isso com seu naturalismo ao tentar virilmente (embora em vão, como Moreland alega) mostrar que os universais não são abstratos. (Como veremos, Aristóteles faz algo similar, mas de um modo que nenhum naturalista poderia aprovar.) Quine o faz dando de ombros. (Mais gravemente, ele o faz ampliando a definição de “naturalismo” a um grau tal que qualquer coisa que a ciência nos leve a postular seja coerente com ele.)

[15] É possível ser nominalista com relação a apenas um tipo de objeto alegadamente abstrato, ou vários tipos, sem ser nominalista com relação a todos eles. Isto é, pode-se negar que um tipo de objeto abstrato exista enquanto se aceita que outro tipo existe. Mas quem tem atração pelo nominalismo geralmente procura ampliá-lo até onde ele pode ir, e é compreensível que o faça. Pois se o nominalismo é motivado pelo desejo de defender o materialismo ou o naturalismo, não faz muito sentido ser seletivo quanto a isso, uma vez que admitir que pelo menos alguns tipos de objetos abstratos (logo, não materiais e não naturais) existem enfraquece gravemente a plausibilidade do materialismo ou do naturalismo como posição global.

[16] Bertrand Russell, The Problems of Philosophy (Prometheus Books, 1988), capítulo 9.

[17] Ver, por exemplo, o ensaio “Thought”, de Frege, em The Frege Reader (Blackwell, 1997), editado por Michael Beaney.

[18] Para uma defesa mais extensa recente desse tipo de argumento, ver Crawford L. Elder, Real Natures and Familiar Objects (MIT Press, 2004), pp. 11–17.

[19] Stove, The Plato Cult , p. 62.

[20] A diferença entre “filosofia analítica” e “filosofia continental” é uma questão complicada. A narrativa simplista corriqueira é a seguinte: A filosofia analítica tende a enfatizar clareza de expressão, argumentação explícita e rigorosa e uso pesado das ferramentas da lógica simbólica moderna. Seus criadores tinham a propensão de pensar que a solução dos problemas tradicionais da filosofia poderia ser facilitada pela análise cuidadosa da linguagem em que haviam sido expressos, e também costumavam ver a ciência empírica como o paradigma da investigação racional. Ela é a escola de pensamento predominante no mundo de língua inglesa e seus heróis são pensadores como Frege, Russell, Wittgenstein, Carnap e Quine. A filosofia continental, em contrapartida, tende a ter caráter mais literário e humanista. Sua abordagem deriva do idealismo de Kant e Hegel e mais diretamente do método “fenomenológico” de analisar a experiência humana desde dentro, buscando assim formular uma descrição precisa do modo como o mundo se manifesta ao sujeito humano, colocando, enquanto isso, a questão da verdade objetiva entre parênteses. Essa abordagem tende a predominar no continente europeu, e seus heróis modernos são pensadores como Husserl, Heidegger, Sartre, Gadamer e Foucault. A típica queixa analítica quanto à filosofia continental é que ela é inexata, confusa, subjetivista, negligente com a ciência e escrita em prosa impenetrável. A típica queixa continental quanto à filosofia analítica é que ela é superficial, reducionista, anal-retentiva, negligente aos problemas humanos e chata.

***

Texto retirado do livro A Última Superstição: Uma Refutação do Neoateísmo, de Edward Feser. Edições Cristo Rei, 2017.


Leia mais em Sobre a Realidade das Matemáticas

Leia mais em Aristotelismo e Filosofia da Matemática



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