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Este é um blog sobre Matemática em geral, com ênfase no período clássico-medieval, também sobre as Artes liberais (Trivium e Quadrivium), so...

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Como ler livros de Matemática, segundo Mortimer J. Adler

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O livro da Matemática
Globo Livros
Muitas pessoas têm medo de matemática e acham que jamais conseguirão ler textos relacionados a ela. Ninguém sabe direito por que isso acontece. Alguns psicólogos supõem que exista uma espécie de "cegueira para símbolos" - a incapacidade de deixar de lado a dependência em relação ao concreto e seguir uma alternância controlada de símbolos. Isso pode até conter alguma verdade, mas é preciso recordar que as palavras também se alternam, e que suas alternâncias, mais ou menos não controladas, são talvez ainda mais difíceis de acompanhar. Outros creem que o problema esteja no ensino da matemática. Se for isso, podemos ficar felizes por saber que atualmente há muitas pesquisas dedicadas à questão de como ensiná-la melhor.

    O problema é parcialmente este: não nos dizem, ou não nos dizem cedo o bastante para que entre em nossa cabeça, que a matemática é uma linguagem e que podemos aprendê-la como qualquer outra, inclusive a nossa própria. Temos de aprender nossa língua duas vezes: primeiro quando aprendemos a falar, depois quando aprendemos a ler. Felizmente, a matemática só tem de ser aprendida uma vez, já que é uma língua quase que totalmente escrita.

    Como já observamos, o aprendizado de uma nova língua sempre nos coloca diante de problemas de leitura elementar. Quando nos ensinaram a ler no ensino básico, o problema com que deparávamos era reconhecer certos símbolos arbitrários quando eles apareciam numa página e memorizar certas relações entre esses símbolos. Mesmo os melhores leitores continuam a ler, ao menos ocasionalmente, no nível elementar: por exemplo, sempre que esbarramos numa palavra que desconhecemos e temos de buscá-la no dicionário. Se ficamos confusos com a sintaxe de um período, também voltamos ao nível elementar. Somente quando esses problemas estão resolvidos é que podemos passar para a leitura em níveis mais elevados.

    Como a matemática é uma linguagem, ela tem seu próprio vocabulário, sua gramática e sua sintaxe, os quais devem ser aprendidos pelo leitor iniciante. Certos símbolos e relações entre símbolos têm de ser memorizados. O problema é diferente, porque a linguagem é diferente, mas não é mais difícil, teoricamente, do que aprender a ler inglês, francês ou alemão. No nível elementar, pode até ser mais fácil.

    Toda linguagem é um meio de comunicação entre os homens, sobre assuntos que os comunicadores conseguem compreender mutuamente. Os assuntos do discurso comum são sobretudo fatos e relações emocionais. Esses assuntos não são inteiramente compreensíveis por quaisquer duas pessoas diferentes, mas duas pessoas diferentes podem compreender uma terceira coisa que está fora e emocionalmente separada de ambas, como um circuito elétrico, um triângulo isósceles ou um silogismo. É sobretudo quando atribuímos conotações emocionais a essas coisas que temos dificuldade em entendê-las . A matemática nos permite evitar isso . Não há conotações emocionais nos termos, proposições e conotações matemáticas quando são devidamente usados.

    Também não nos dizem, ao menos não tão cedo quanto deviam, como a matemática pode ser bela e intelectualmente satisfatória. Talvez não seja tarde demais para perceber isso, desde que haja disposição para certo esforço. Pode-se começar com Elementos de Geometria, de Euclides, uma das obras mais belas e lúcidas já escritas, em qualquer gênero.

    Consideremos, por exemplo, as primeiras cinco proposições do Livro I dos Elementos. (Se houver à mão um exemplar desse livro, vale a pena dar uma olhada.) As proposições da geometria elementar são de dois tipos: (1) a formulação de problemas na construção de figuras; e (2) teoremas a respeito das relações entre as figuras ou entre suas partes . Os problemas de construção exigem que se faça algo, os teoremas exigem que se prove algo. Ao final de um problema euclidiano de construção, você encontrará as letras Q.E.F., que significam quod erat faciendum, "o que se devia fazer" . Ao final de um teorema euclidiano, você encontrará as letras Q.E.D., que significam quod erat demonstrandum, "o que se devia demonstrar " .

    As primeiras três proposições do Livro I dos Elementos são todas problemas de construção . Por quê? Uma resposta é que as construções são necessárias para as provas dos teoremas. Isso não fica claro nas quatro primeiras proposições, mas já pode ser visto a partir da quinta, que é um teorema. Ela diz que, num triângulo isósceles (um triângulo com dois lados iguais), os ângulos da base são iguais. Isso requer o uso da Proposição 3, que diz que uma linha menor é uma parte de uma linha maior. Como a Proposição 3, por sua vez, depende do uso da construção que há na Proposição 2, e a Proposição 2 depende da Proposição 1, vemos que essas três construções são necessárias para a Proposição 5.

    Também podemos interpretar as construções como instrumentos que servem a outro propósito. Elas têm uma semelhança óbvia com os postulados; tanto as construções quanto os postulados afirmam a possibilidade de realizar operações geométricas. No caso dos postulados, a possibilidade é pressuposta; no das proposições, provada. A prova, é claro, envolve o uso de postulados. Assim, podemos perguntar, por exemplo, se existe mesmo o tal do triângulo equilátero definido na Definição 20. Sem nos preocuparmos aqui com a espinhosa questão da existência dos objetos matemáticos, podemos ver que a Proposição 1 mostra que, a partir do pressuposto de que existem linhas retas e círculos, segue-se que existem triângulos equiláteros.

    Retornemos à Proposição 5, o teorema a respeito da igualdade dos ângulos da base de um triângulo isósceles. Quando se chega à conclusão, após uma série de passos que se referem a proposições anteriores e aos postulados, a proposição está provada. Assim, ficou demonstrado que se algo é verdadeiro (no caso, a hipótese de que um triângulo isósceles existe), então algo mais também é verdadeiro, isto é, a conclusão. A proposição afirma uma relação se-então. Ela não afirma a verdade da hipótese nem afirma a verdade da conclusão, exceto quando a hipótese é verdadeira. Essa conexão entre a hipótese e a conclusão também não é considerada verdadeira enquanto a proposição não for provada. É exatamente a veracidade dessa conexão que é provada, e nada mais.

    Será exagerado dizer que isso é belo? Achamos que não. O que temos aqui é uma exposição verdadeiramente lógica de um problema verdadeiramente limitado. Há algo muito atraente tanto na clareza da exposição quanto na natureza limitada do problema. O discurso comum, ou mesmo um discurso filosófico excelente, tem dificuldades para limitar desse modo seus problemas . E o uso da lógica em problemas filosóficos quase nunca é tão claro quanto aqui.

    Considere a diferença entre o argumento da Proposição 5, como exposto aqui, e o mais simples dos silogismos:

Todos os animais são mortais.

Todos os homens são animais.

Logo, todos os homens são mortais.

    Nele também há algo satisfatório. Podemos tratá-lo como se fosse um raciocínio matemático. Pressupondo que animais e homens existam, e que os animais sejam mortais, daí se segue uma conclusão que oferece a mesma certeza que aquela sobre os ângulos de um triângulo; estamos pressupondo algo sobre coisas reais, algo que pode ou não ser verdade. É preciso que examinemos nossos pressupostos, de um modo diferente de como os examinamos na matemática. Isso não prejudica a proposição de Euclides. Não lhe interessa se os triângulos isósceles existem. Se existem, diz, e se são definidos assim e assado, então segue-se absolutamente que seus ângulos de base são iguais. Não pode haver qualquer dúvida a respeito disso, agora e para sempre.

Trecho extraído do livro "Como Ler Livros - O guia clássico para a leitura inteligente" de Mortimer J. Adler & Charles Van Doren. Editora É Realizações 2010. Pág. 268-271.


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