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O ensino dos números no Primário antigo

Homero, poeta grego do século IX a.C.
Pintura de Jean-Baptiste Auguste Leloir de 1841

Tempo de leitura: 6 minutos.

Texto retirado de MARROU, Henri-Irénée. História da Educação na Antigüidade. 4ª Impressão, São Paulo, Editora Pedagógica Universitária Ltda. e Editora da Universidade de São Paulo, 1973. (Esta obra foi reeditada pelas Edições Kírion, Campinas em 2017).

O CÔMPUTO

Não havia, no início, ambição muito maior em seu modesto programa matemático: limitava-se a ensinar a contar, no sentido restrito da palavra: aprendia-se a lista dos números inteiros, cardinais [49] e ordinais [50], tanto pelos nomes como pelos símbolos (sabe-se que os gregos notavam os algarismos por meio das letras do alfabeto, que alcançou vinte e sete sinais pelo acréscimo do digama, do koppa e do sampi, de maneira a dispor de três séries de nove sinais, para as unidades, as dezenas e as centenas [51]). Este estudo era simultâneo ao do silabário ou dos dissílabos [52].

Era também na escola elementar, pelo menos suponho-o (9), que se aprendia a contar pelos dedos, técnica bem diferente da que usamos sob esse nome: a Antigüidade conheceu toda uma arte, rigorosamente codificada, permitindo simbolizar, por meio das duas mãos, todos os números inteiros de $1$ a $1.000.000$. Com os três últimos dedos da mão esquerda, segundo estivessem mais ou menos abaixados e dobrados sobre a palma, representavam-se as unidades, de $1$ a $9$; as dezenas, pela posição relativa do polegar e do indicador dessa mesma mão; as centenas e os milhares, de igual maneira, com o polegar e o índex, e com os três últimos dedos, na mão direita; as dezenas e as centenas de milhares, pela posição relativa da mão, seja esquerda, seja direita, com relação ao peito, ao umbigo, ao fêmur; o milhão, enfim, pelas duas mãos entrelaçadas. Essa técnica está de todo esquecida hoje entre nós, mas teve grande aceitação, no Ocidente, até às escolas medievais; persiste ainda hoje no Oriente muçulmano. Atestada como de uso corrente no mundo mediterrâneo a partir do Alto Império romano, apareceu talvez mais cedo, nos últimos séculos anteriores a Cristo.

Depois dos números inteiros, aprendia-se, sempre sob o duplo ponto de vista da nomenclatura e da notação, uma série de frações: as da arure ou da dracma [53]:

o $1/8$ escreve-se $c$ $xx$ (seja, um meio óbolo e dois calcos),
o $1/12$ escreve-se $x$ (um calco), etc. [54].

Como o mostra a escolha destas unidades concretas, saimos aqui da aritmética para entrar no sistema métrico: seu estudo é bem atestado, a partir dos séculos II e III da nossa era, por diversos papiros contendo tabelas metrológicas [55], por exemplo dos múltiplos e submúltiplos do pé [56]. Mas isto era, antes, uma iniciação à vida prática, que estudo matemático propriamente dito.

Assim, no começo da era helenística, a aritmética escolar se limitava a muito poucas coisas: o manual do século III ao qual muitas vezes já me reportei contém apenas, além disso, uma tábua dos quadrados [57], cujo fim aliás é, talvez, completar, até $640.000$, a lista dos símbolos numéricos. Tem-se de esperar até o século I a.C. para ver aparecerem num papiro, em seguida aos cálculos de quadrados ($2 \times 2 = 4;$ $3 \times 3 = 9; 4 \times 4 = 16$), estes exercícios de aplicação sobre as frações da dracma, dos quais encontramos o equivalente na escola latina do tempo de Horácio [58]: o $1/4$ de dracma é $1$ óbolo e $1/2$: o $1/12$ é $1/2$ óbolo; $1/4 + 1/12 = 1/3...$ [59]. Em seguida aparecem cálculos mais complexos, de modo que cabe perguntar-se se este papiro, aparentemente de origem escolar, conduz-nos realmente a uma escola primária. Somente na época copta, nos séculos IV-V d.C. encontram-se, em tabuletas que certamente pertenceram a crianças, tabuadas muito elementares de adição: “$8$ (e) $1:9; 8$ (e) $2:10...; 8$ (e) $8:16; 2$ (vezes) $8:16; 8$ (e) $7:15; 7$ (e) $8:15$ [60]. Mesmo nesta época, sempre que se encontram exercícios aritméticos elevando-se um grau acima destes balbucios, a escrita mostra, por sua destreza e sua perfeição, que são obra de adulto e não mais de criança [61] (10).

Por mais estranho que o fato possa parecer de início, tem-se realmente de reconhecer que “as quatro operações”, esta humilde bagagem matemática de que toda criança, entre nós, se acha desde bem cedo munida, permanecem na Antigüidade muito além do horizonte da escola primária. O uso, bastante comum, de instrumentos para cálculos e do ábaco (11) supõe que o conhecimento da adição não estava muito difundido entre o público e, na verdade, constatamos que poucos o possuem sólido, mesmo nos meios cultos e de época tardia.


Notas Complementares:

(9) O cômputo digital: Cf. D. E. Smith, History of Mathematics, Boston, 1925, t. II, ps. 196-202; E. A. BECHTEL, The Finger-counting among the Romans, ap. Classical Philology, IV (1909), ps. 25 e segs.; FROEHNER, ap. Annuaire de la Societé Française de Numismatique et d'Archéologie, VIII (1884), ps. 232-238; J.-G. LEMOINE, Les Anciens procédés de calcul sur les doigts en Orient et en Occident, ap. Revue des Études islamiques, VI (1932), ps. 1-60; A. CORDOLIANI, Études de comput, I, ap. Bibliothèque de l'École des Chartes, CHI (1942), ps. 62-65.

Apresentam-se dois problemas sobre o assunto:

a) a data do seu aparecimento. As únicas exposições ex professo que possuímos são, para o Ocidente, o tratado de BEDA o Venerável (século VIII; P. L., t. 90, c. 685-693) : os manuscritos são acompanhados de curiosas pranchas ilustradas) e, para o Oriente, algumas páginas de RHABDAS (alias NICOLAS ARTAVASDOS de Esmirna, século XIV), texto e tradução ap. P. TANNERY, Mémoires scientifiques, IV, ps. 90-97. Mas algumas alusões, tecnicamente exatas, atestam-lhe o uso na Roma imperial, desde o século I:

Plínio (N. H., XXXIV, 33) fala numa estátua de Jano, consagrada pelo rei Numa (?), cujos dedos representavam o número 365: sejam quais forem a data real da consagração e as intenções do escultor, esse testemunho atesta que os contemporâneos de Plínio o Antigo interpretavam o gesto desse Jano em função das normas do cômputo. Ver ainda JUVENAL (X, 248: um centenário conta o número dos seus anos na mão direita) e principalmente APULEIO (Apol., 89, 6-7), são JERÔNIMO (Adv. Jovinian., I, 3) santo AGOSTINHO (Serm. 175, 1), MARCIANO CAPELLA (VII, 746).

O sistema não era propriamente exclusivo dos meios latinos: um fato anedótico citado por PLUTARCO (Reg. Imp. Apopht., 174 B); ÉLIO ARISTIDES (XLVI D., 257; cf. Suídas, t. I, p. 339, 3752) indica que era conhecido pelo menos em sua época (século II depois de Jesus Cristo) e, se a anedota tem fundamento histórico, já no século IV antes de Jesus Cristo: Orontes, genro do rei Artaxerxes II (404-358) comparava os amigos dos reis, sucessivamente poderosos ou miseráveis, segundo gozavam de simpatia ou caíam em desagrado, aos dedos da mão que, sucessivamente, representam as dezenas de milhar (mão esquerda apoiada sobre esta ou aquela parte do corpo) ou as simples unidades (mão esquerda estendida à frente do corpo); cf. ainda Anth. Pal., XI, 2.

Plínio (N. H., XXXIV, 88) descreve também uma estátua de homem (que seria talvez Crisipo) contando nos dedos, atribuída ao escultor Eubúlides (II: cf. C. Robert, ap. Pauly-Wissowa, VI, c. 871-875, s. v. Eubulidès n.º 10; poderíamos datá-la de aproximadamente 204 antes de Jesus Cristo). Heródoto já se referia ao assunto (VI, 63; 65) mas não é certo de que se tratasse já, então, do sistema codificado por Beda. Na verdade, os vasos com figuras encarnadas, que parecem representar jogadores de morra, não nos apresentam uma mímica que possa ser interpretada em função dessas regras (G. LAFAYE, ap. DAREMBERG-SAGLIO, III, 2, ps. 1889b-1890b, s. v. Micatio; K. SCHNEIDER, ap. PAULY-WISSOWA, XV, 2, c. 1516-1517, s. v. Micare). Entretanto, cf. talvez uma das pinturas de vasos consagrados à Représentation de la vente de l'huile à Athènes (sob este título: F. J. M. DE WAELE, Revue Archéologique, 5, XXIII (1926), ps. 282-295): trata-se de uma “peliké” com desenhos negros (E. PERNICE, ΣΙΦΩΝ, ap: Jahrbuch d. deutsch, archaelog. Instituts, VIII (1893), p. 181), onde se vê uma comerciante cujos dedos da mão esquerda representariam o número $31$; cf. ainda Ar. Vesp., 656.

Os únicos monumentos com figuras de origem antiga e que provam o uso do sistema Beda-Rhabdas são as singulares tabuinhas do Gabinete das Medalhas da Biblioteca Nacional, assinaladas pela primeira vez por Froehner (art. citado, enquanto se espera o catálogo de J. Babelon, Col. Froehner, t. II, n.º 316-327, e a nossa prancha). Deve tratar-se de fichas de jogo; não se encontrou nenhuma indicando um número superior a $16$. A técnica de sua fabricação permite relacioná-las à indústria de brinquedos alexandrina da época imperial (na verdade, a maioria dos exemplares conhecidos provém do Egito; alguns, de Roma). Lamentavelmente, é difícil determinar a data: há discordância entre os numismatas; consultei J. Babelon e P. Le Gentilhomme sobre o assunto: o primeiro inclina-se pelo Alto Império, o segundo para uma época mais recente, depois de Constantino.

b) Onde e quando se aprendia esse cômputo? Os textos da época romana mostram-nos o seu uso inteiramente habitual (os advogados, por exemplo, servem-se dele no tribunal: QUINT, XI, 3, 117; não vejo por que não teria sido ensinado na escola primária: devido ao seu caráter qualitativo (um símbolo para cada número inteiro), parece conciliar-se naturalmente com o ensino da numeração.

(10) A aritmética na escola primária: a classificação dos papiros matemáticos deve ser feita com uma crítica severa. Importa não catalogar apressadamente como “papiros escolares” (como o faz P. CΟLLART, Mélanges Desrousseaux, ps. 79-80) aqueles cujo caráter, para nós modernos, é elementar. E extremamente instrutivo constatar que, em pleno século IV depois de Jesus Cristo, um adulto instruído, um funcionário como o Hermesion dos PSI, 22, 958, 959, sentia a necessidade de copiar com sua própria mão uma tabela de multiplicação no mesmo caderno em que, ao mesmo tempo que redigia horóscopos, fazia as suas contas administrativas. Cf. também, no século VI, as grandes tabelas metrológicas do P. London, V, 1718, estabelecendo minuciosamente, por exemplo, as “conversões” da artaba e de cada um dos seus submúltiplos, em unidades inferiores: sentir-nos-íamos tentados a interpretá-las como um manual de ensino primário (entre nós, as “conversões” do sistema métrico representam um papel tão importante!): ora, essas tabelas foram feitas pelo próprio Fl. Dioscoro, singular personagem que conhecemos bem, “tipo perfeito do fidalgo camponês bizantino, grande proprietário em Afroditô-Kôm Ishgâw, protocometa, advogado, poeta enfim nas horas vagas” (Assim o descrevo ap. Mélanges d'Archéologie et d'Histoire, LVII (1940), p. 129). Desde que homens instruídos, como esses, sentiam a necessidade de organizar para si tais mementos, isso significa que esses conhecimentos matemáticos elementares não eram realmente adquiridos na escola. Não há razão para se supor que seja isto efeito da “decadência”: que o Sócrates de XENOFONTE (Mem. IV, 4, 7) pergunte a Hípias se $2 \times 2 = 5$ não nos prova nada sobre o ensino da aritmética na escola primária.

Voltando à questão dos papiros, se muitos deles são difíceis de classificar e de testemunho ambíguo (tal como: P. London, III, 737, tabelas de somas; P. Oxy., 9 (t. I, p. 77) verso; 669, tabelas metrológicas), alguns são bastante reveladores: PLAUMANN (ABKK., XXXIV [1913], c. 223) nota, a propósito de PREISIGKE, Sammelbuch, 6220-6222, que, desde que os exercícios aritméticos se elevam de um grau acima do muito elementar (como: tabelas de frações, 1/2 ou 1/3, da série dos números inteiros; multiplicação do tipo $19 \times 55 = 4055$; $78 \times76 = 5928$; somas de números fracionários), a escrita, aqui do século VII, é a de um adulto e não mais de uma criança.

(11) Cálculo pelo ábaco: cf. E. GUILLAUME, ap. DAREMBERG-SAGLIO, I, ps. 1 b-3 b, s. v. Abacus, II; HULTSCH, ap. PAULY-WISSOWA, I, c. 5-10, s. v. Abacus, 9; A. NAGL, ibid., Suppl., III, c. 4-13; 1305.


Referências:

[49] E. Ziebarth, Aus der antiken Schule (ed. cit.), n.º 5l; Journal of Hellenic Studies, 28 (1908), 131, 16.

[50] Journal of Hellenic Studies, 28 (1908), 131, 16.

[51] Papiri greci e latini, Pubblicazione della Società Italiana per la ricerca dei Papiri greci e latini in Egitto, 250; Fr. PREISIGKE continuado por F. BILABEL, etc.), Sammelbuch grechischer Urkunden aus AEgypten, 6215. 

[52] O. Guéraud, P. Jouguet, Un Livre d'Ecolier du IIIe. siècle avant Jésus-Christ (ed. cit.), 21-26; Amtliche Berichte aus den königlischen Kunstsammlungen, montlich erscheinendes Beiblatt zum Jahrbuch der kgl. Preuszischen Kunstsemmlungen (Berlin), 34 (1913), 213; 218.  

[53] Journal of Hellenic Studies, 28 (1908), 132, 17.

[54] O. Guéraud, P. Jouguet, Un Livre d'Écolier du IIIe. siècle avant Jésus-Christ (ed. cit.), 235-242.

[55] B. P. Grenfell, A. S. Hunt, H. I. Bell, etc., The Oxyrhynchus Papyri, 1669 v.

[56] A. S. Hunt, J. de M. Johnson, V. Martin, Catalogue of the Greck Papyri in the John Rylands Library at Manchester, II, 64.

[57] O. Guéraud, P. Jouguet, Un Livre d'Écolier du IIIe. siècle avant Jésus-Christ (ed. cit.), 216-234. 

[58] Horácio, Epístola aos Pisanos (Arte Poética), 325 s.

[59] Papiri greci e latini (ed. cit.), 763. 

[60] Fr. Preisigke (continuado por F. Bilabel, etc.), Sammelbuch griechischer Urkunden aus AEgypten, 6215. 

[61] Idem, 6220-6222.

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