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Sobre o blog Summa Mathematicae

Este é um blog sobre Matemática em geral, com ênfase no período clássico-medieval, também sobre as Artes liberais (Trivium e Quadrivium), so...

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O ensino da Matemática (Quadrivium) no período clássico

Texto retirado de MARROU, Henri-Irénée. História da Educação na Antigüidade. 4ª Impressão, São Paulo, Editora Pedagógica Universitária Ltda. e Editora da Universidade de São Paulo, 1973. (Esta obra foi reeditada pelas Edições Kírion, Campinas em 2017).

OS ESTUDOS CIENTÍFICOS

Mas não eram tão somente os estudos literários que, em princípio, integravam o programa do ensino secundário: Platão e Isócrates, concordes por uma vez, recomendavam, a exemplos de Hípias, o estudo das matemáticas, tão preciosas para a formação do espírito.

ENSINO DAS MATEMÁTICAS

Diversos indícios permitem-nos entrever que esses conselhos não passaram desaparecidos na época helenística. No quadro que, por volta de 240 antes de Cristo, traçou das penas da vida humana (1) (quadro que dois séculos mais tarde seria retomado, por sua vez, pelo autor de Axiochos (2)), Teles escolhe precisamente os professores de aritmética e de geometria (άριθμητικός, γεωμέτρης) para caracterizar, juntamente com o monitor de equitação, o grau secundário da educação, interposto entre a escola primária e a efebia.

Um catálogo dos vencedores dos concursos escolares de Magnésia do Meandro, datado do segundo século antes de Cristo, menciona uma competição de aritmética (3), ao lado de provas de desenho, de música e de poesia lírica, num contexto que, por conseguinte, evoca o ensino do segundo grau. Assim também no colégio do "Diogeneion", em Atenas, os (futuros) efebos aprendiam, como nos diz Plutarco (4) [1], geometria e música, ao mesmo tempo que letras e retórica. Em Delfos, no primeiro século antes de Cristo, um astrônomo pronuncia conferências no ginásio (5).

Estes testemunhos, como se vê, são bastante esparsos, e devemos perguntar-nos se sua relativa raridade não constitui, precisamente, um indício do pequeno interesse que, na prática, o ensino helenístico dispensava às ciências.

O IDEAL DA ΕΓΚΥΚΛΙΟΣ ΠΑΙΔΕΙΑ

Teoricamente, pelo menos, tal princípio jamais foi posto em causa: as ciências matemáticas jamais cessaram de figurar, como as disciplinas literárias, no programa ideal da "cultura geral" dos gregos helenísticos, a έγκύκλοις παιδεία [2].

Com efeito, nos escritores da época helenística e romana encontram-se numerosas menções deste termo, que não caberia transcrever literalmente por "enciclopédia", noção esta bem moderna (a palavra data apenas do século XVI) [3] e que não corresponde, absolutamente, à expressão antiga. "Enciclopédia" evoca, para nós, um saber universal: por mais elástico que possam ter sido seus limites, a έγκύκλοις παιδεία jamais pretendeu abarcar a totalidade do saber humano: na verdade, de acordo com o sentido que reveste normalmente o vocábulo έγκύκλοις no grego helenístico, έγκύκλοις παιδεία significa, simplesmente, "educação vulgar, corrente, comumente transmitida" -- donde a tradução que propus: "cultura geral".

Tal noção sempre apresentou contornos bastante vagos: o uso que dela se faz hesita entre duas concepções: ora é a cultura geral que convém ao perfeito cavalheiro, sem referência explícita ao ensino, e que reúne o teor de toda a educação, secundária e superior, escolar e pessoal; ora é a cultura de base, a propedêutica, as προπαιδεύματα (6), que devem preparar o espírito para receber as formas superiores do ensino e da cultura, ou, numa palavra, o programa ideal do ensino secundário. Esta concepção é, em particular, a dos filósofos, seja quando denunciam a inutilidade da έγκύκλοις παιδεία para a cultura filosófica, como a fazem Epicuro (7) e, com ele, os cínicos (8) e cético (9) de todas as escolas, seja quando insistem em sua necessidade, como convêm em fazê-lo a maioria das seita (10) e, notadamente, desde Crisipo (11), os estóicos (12).

Depois disso, as fronteiras ficam muito mal definidas: entendida no sentido perfectivo do vocábulo "cultura", a έγκύκλοις παιδεία tendeu a absorver não somente a própria filosofia, mas também diversas técnicas, em número que varia segundo os autores: medicina, arquitetura, direito, desenho, arte militar [4]. Mas a essência de seu programa, aquela a que se restringem os filósofos, permanece sempre constituída pelo conjunto das sete artes liberais, que a Idade Média herdaria da tradição escolar da baixa Antiguidade e cuja lista, encerrada definitivamente pelos meados do primeiro século antes Cristo, entre Dionísio o Trácio e Varrão, compreendida, como se sabe, além das três artes literárias, o Trivium dos carolíngios --- gramática, retórica e dialética ---, as quatro disciplinas matemáticas do Quadrivium --- geometria, aritmética, astronomia e teoria musical ---, cuja divisão era tradicional desde Arquitas de Tarento (13), senão desde o próprio Pitágoras [5].

Podemos fazer ideia precisa do que seria a iniciação de um jovem grego em cada uma dessas ciências através da farta coleção de manuais que a época helenística nos legou [6]. Conquanto desde Arquimedes até Papo e Diofanto as épocas helenísticas e romanas tenham vista a ciência grega realizar ainda grandes progressos, o traço dominante desde período é dado por um esforço de acerto final de maturação dos resultados obtidos pelas gerações que se haviam sucedido a partir de Tales e de Pitágoras. É então que a ciência grega atinge esta forma perfeita que jamais ultrapassaria.

A GEOMETRIA

No domínio da geometria, a ciência grega por excelência, o grande clássico é, sem dúvida, Euclides (330-275 aproximadamente), cujos Elementos alcançaram a glória de todos conhecida: diretamente ou indiretamente, forma eles a base de todo o ensino da geometria, não somente entre os gregos, mas também entre os romanos e os árabes e, depois entre os modernos (é sabido que, até uma data recente, os escolares britânicos utilizavam, como manual de geometria, uma tradução, levemente retocada, dos Elementos).

Não é, pois, necessário analisar longamente, aqui, o conteúdo e o método deste livro célebre: um e outro nos são familiares. A essência da exposição é formada pela seqüência dos teoremas às demonstrações. encadeadas a partir de uma série de definições e de αἰτήματα (termo que agrupa o que hoje distinguimos em axiomas e postulados). Ressaltarei, depois de tantos outros, o rigor lógico dessas demonstrações, o caráter estritamente racional da ciência: o geômetra raciocina sobre figuras inteligíveis e procede com extrema desconfiança em relação a tudo o que lembra a experiência sensível. Diversamente da pedagogia matemática de hoje, Euclides evita, tanto quanto possível (para escapar às dificuldade teóricas levantadas pela crítica eleata da noção de movimento), os procedimentos, a nós familiares, da rotação e da superposição: assim à demonstração de que num triângulo isósceles ABC os ângulos da base B e C são iguais, propriedade fundamental que demonstramos sem esforço, por simples giro, Euclides só chega à custa de longos rodeios; traça no prolongamento de AB e de AC, segmento iguais BD e CE, de modo a obter dois pares de triângulos iguais ABE e ACD, BCD e BCE... (14).

Ao método sintético sintético das demonstrações encadeadas, o ensino grego associava, intimamente aquilo que chamamos de análise, isto é, problemas, particularmente problemas, particularmente problemas de construção; os Elementos abrem-se com um exemplo característico: construir um triângulo equilátero sobre uma base dada (15). A importância metodológica dos problemas é, realmente, considerável (somente platônicos como Espeusipo, fechados em seu apriorismo, podiam pô-la em dúvida (16)): a construção permite demonstrar a existência real da figura considerada. O método que geralmente se seguia era o mesmo que hoje seguimos: supor o problema resolvido e, por ἁπαγωγή, reduzi-lo a proposições já estabelecidas. É sabido que a história da ciência grega mostra-se-nos toda balizada pelo estudo de tais problemas, os quais bem depressa, após a elementar duplicação do quadrado, deparam com dificuldades enormes ou intransponíveis: duplicação do cubo, trissecção do ângulo, quadratura do círculo.

Naturalmente, tais problemas se enquadram numa ordem estritamente especulativa: as aplicações numéricas e práticas, cálculos de áreas ou de volumes, não correspondem à geometria, mas a outras disciplinas, como a geodésia ou a metrologia, que eram, também por sua vez, objeto de ensino: possuimos manuais, como os de Hierão de Alexandria (segundo século antes de Cristo (17)), e papiro que oferecem exemplos concretos dos exercícios que eram propostos aos alunos (18); mas esse ensino dirigia-se somente aos futuros práticos agrimensores, empreiteiros, engenheiros ou carpinteiros; era um ensino, que não fazia parte da educação liberal e permanecia estranho ao ensino, propriamente dito, das matemáticas.

A ARITMÉTICA

As mesmas observações podem-se fazer com relação à aritmética: ciência teórica do número, negligencia ela, fiel aos conselhos de Platão, os problemas realísticos tão caros ao nosso ensino primário: problemas de lucro, de preço de venda ou de renda; a Antigüidade gabava o grande Pitágoras como tendo sido o primeiro a elevar a aritmética acima das necessidades dos comerciantes (19).

Não dispondo de um sistema de símbolos apropriados, a aritmética grega não pode ascender a um nível de generalidade e de perfeição tão alto como a geometria. É sabido (lembramo-lo mais acima) que os gregos utilizavam símbolos alfabéticos: três séries de noves sinais correspondiam às unidades, dezenas e centenas. Com um iota subscrito à esquerda, indicavam-se os milhares: o sistema permitia assim, teoricamente, nota todos os números inteiros de $1$ a $999.999$.

Menos maleável que o nosso sistema "árabe" de posição (que a civilização maia também descobriu, de seu lado), a notação grega, bastante cômoda para o uso prático, não permitia distinguir números elevados. Com efeito, os gregos não faziam a notação direta dos números superiores a $100.000$ (à diferença dos matemáticos da Índia dos séculos IV e V da nossa era, que gostavam de especular com números enormes, como $1.577.917.828$, diante dos quais um grego teria experimentado a angústia do ἄπειρον, do temível infinito). E, o que é mais grave, essa notação não permitia introduzir os números fracionários ou irracionais: é sob a forma geométrica que as matemáticas gregas levavam mais longe o estudo da noção de grandeza: isto se vê, particularmente, no livro X dos Elementos de Euclides, consagrado às grandezas irracionais.

A aritmética grega deve ser entendia, portanto, como a ciência do ἀριθμός no sentido preciso deste termos, isto é. do número inteiro. São ainda os Elementos de Euclides (20) que nos fornecem dele uma cômoda exposição, embora a Introdução Aritmética de Nicômaco de Gerasa (cerca de 100 anos depois de Cristo) tenha sido o manual que maior papel histórico desempenhou: logo adotado no ensino, abundantemente comentado, traduzido para o latim (e, mais tarde, para o árabe), sua influência foi tão profunda que desde então a aritmética suplantou a geometria e se tornou, em substituição a esta, a base e o campo mais importante do ensino das matemáticas.

Estudavam-se, então, as propriedade do número inteiro; distinguiam-se os números pares e os ímpares, e, em seguida, entre os pares, distinguiam-se números parmente pares (do tipo $2^n$), parmente ímpares (2 multiplicado por um número ímpar), imparmente pares, $2^{n+1}(2m +1)$. De outro ponto de vista, distinguiam-se os números primos, compostos primos entre si, de fatores comuns; os números iguais e desiguais, múltiplos e sub-múltiplos, superparciais e sub-superparciais (ou sejam, os números de fórmula $\dfrac{m+1}{m}$), etc. As proporções e as médias (aritméticas, geométricas, harmônicas, esta última estabelecida pela relação $\dfrac{a}{b} = \dfrac{m-a}{b-m}$)...

A esse estudo, surpreendentemente desenvolvido em suas minúcias, mas que, na verdade, pertence à ciência matemática, juntavam-se --- o que nos causa bastante estranheza --- considerações qualitativas e estéticas acerca das propriedade dos números. Não me refiro às classificação dos números compostos (isto é, dos números formados pelo produtos de diversos fatores), classificação esta de origem pitagórica, que a aritmética helenística levara, como se vê pela obra de Nicômaco, a um alto grau de precisão: números planos (produtos de dois fatores) e números sólidos (produtos de três fatores), e, entre os primeiros, números quadrado, triangulares, retangulares (distinguiam-se os "promekes", de fórmula $m(m+1)$ e os "heteromekes", de fórmula $m(m+n)$ sendo $n> 1$); entre os números sólidos, distinguiam-se os cúbicos, os piramidais, os paralelepipóides: $m^2(m+1)$, etc. Tal nomenclatura era perfeitamente legítima: os antigos representavam-se o número (inteiro) como uma coleção de unidade, de mônadas, figuradas por pontos materiais, e era, pois, cabível estudar-lhes os modos de reunião e unir, assim, a aritmética e a geometria.

Refiro-me, antes, à interpolação de juízos de valor, de ordem estética e às vezes moral, que se patenteia, por exemplo, na designação de números perfeitos, dada a números que, como 28, são iguais à soma de suas parte alíquotas ($28 = 1 + 2 + 4 + 7 + 14$), de números amigos (φίλιοι), como 220 e 284, cada um dos quais é iguais soma das partes alíquotas do outro ($220 = 1 + 2 + 4 + 71 + 142$ e $284 = 1 + 2 + 4 + 5 + 10 + 11 + 20 + 22 + 44 + 55 + 110$). Refiro-me, ainda, às especulações, por vezes espantosamente pueris, feitas acerca das propriedades maravilhosas dos dez primeiros números, desta década a que se reduza a toda série numérica: o fascínio pelas virtudes da unidade, princípio de todas as coisas, indivisível e imutável, que jamais extravasa de sua natureza própria através da multiplicação $(1\times 1 = 1)$... E, ainda, à "perfeição" do número três, o primeiro número que tem começo, meio e fim, representado cada um destes termos pela unidade $(1 + 1 + 1 = 3)$; também à estrutura harmoniosa e à pujança do quaternário, da τετρακτύς: $1 + 3 = 2 \times 2 = 4$, e à soma $1 + 2 + 3 + 4 = 10$, o quaternário engendrando a década... Era natural que se passasse, daí, à associação de um valor simbólico a cada um desses primeiros números: é sabido que os Pitágoras juravam pelo quaternário, "fonte da natureza eterna" (21). A unidade, isto é, a mônada, era objeto de uma verdadeira mística: "É nela que resida todo o Inteligível e o Inengendrado, a natureza das Ideias, Deus, o Espírito, o Belo, o Bem e cada uma das essências inteligíveis..." (22); o número Sete é Atena, a deusa sem genitora e sem genitura: não é ele o único número que não gera nenhum dos outros números da década e que não é, ele próprio, gera por nenhum outro? (23) Mas o Sete é também (e não apenas isto) Ares, Osíris, a Fortuna, a Ocasião, o sono, a voz, o canto, Clio ou Adrastéia (24).

Tudo isto provém do velho pitagorismo, mas a ciência grega jamais conseguiu despojar desses elementos qualitativos sua concepção do número: Nicômaco de Gerasa, o mesmo que nos legou a Introdução Aritmética, dedicou a esta aritmologia, a esta teologia do número, uma obra especial, os Theologoumena arithmetica; dela nos apenas o comentário, pormenorizado aliás, feito pelo patriarca Fócion (25), mas encontramos seu eco em vários tratados da baixa época romana (26).

A MÚSICA

É também a Pitágoras que remonta a terceira das ciências matemáticas, a das leis numéricas que regem a música. Dispomos de uma farta literatura, escalonada desde Aristóxeno até Boécio, que nos permite avaliar com exatidão, a amplitude dos conhecimentos da Antigüidade neste domínio [7]. A ciência "musical" compreendia duas partes: o estudo da estrutura dos intervalos e o estudo da rítmica. O primeiro, harmônico ou canônico, analisava as relações numéricas que marcam os intervalos da gama: $\dfrac{2}{1}$ para a oitava, $\dfrac{3}{2}$ para a quinta, $\dfrac{4}{3}$ para a quarta, $\dfrac{5}{4}$ e $\dfrac{6}{5}$ para as terças, maior e menor, e assim por diante: $\dfrac{9}{8}$, o excesso da quinta sobre a quarta ($\dfrac{3}{2}:\dfrac{4}{3} = \dfrac{9}{8}$), mede o tom (maior); a teoria leva muito adiante: para dar conta das sutilezas de acorde que os músicos gregos chamavam χροαί, era preciso chegar a medir o duodécimo de tom.

Todos estes números encontram-se, ainda hoje, em nossos tratados de acústica: sabemos que representam a relação das frequências que marcam a altura de cada som. Os antigos não dispunham de meio de medir, diretamente, a frequência das vibrações sonoras; faziam-no indiretamente, medindo, no monocórdio, o comprimento da corda vibrante, ou, então, o comprimento do tudo sonoro (comprimento estes que são inversamente proporcionais à frequência das vibrações). A descoberta de tais relações constitui uma das mais  notáveis proezas da ciência grega, e hoje podemos compreender por que não somente a escola pitagórica, mas todo o pensamento antigo, ficou por ela deslumbrado: não se havia conseguido estabelecer correspondência entre um número definido e, além disso, simples $(2, 3/2, \cdots)$, e a impressão subjetiva e o valor estético que constitui a noção de intervalo justo, de consonância (oitava, quinta ...)? Como duvidar, diante disto, de que seja o número a tessitura secreta do cosmos, de que todo o universo seja número?

Menos complicada em sua elaboração numérica, mas não menos precisa e não menos fecunda, era a teoria do ritmo: sequência de durações determinadas, o ritmo podia ser, mais facilmente ainda, reduzido a combinações simples de valores aritméticos, iguais, duplos ou sesquiálteros (exatamente como falamos, ainda, em ritmos binários e ternários). À diferença da nossa, a rítmica musical (e poética) dos gregos procedia não por divisão e subdivisões de um valor inicial (nossa semibreve), mas da adição de valores unitários indivisíveis, o "primeiro tempo" (χρόνος πρῶτος) de Aristóxeno: sistema mais matizado, compreendo ritmos mais ricos e mais complexos do que a nossa incipiente teoria do solfejo. Neste terreno, também, o luminoso gênio racional da Hélade construiu um monumento imperecível (κτῆμά ἐς ἀεί), que pertence ao tesouro de nossa tradição ocidental: seja-me permitido lembrar que o estudo dos fragmentos que conservaram dos Elementos Rítmicos de Aristóxeno permitiu a Westphal fazer uma sugestiva e aprofundada análise do ritmo das fugas do Cravo bem temperado [8].

A ASTRONOMIA

De desenvolvimento talvez mais tardio, também a astronomia matemática grega realizou, por sua vez, conquistas notáveis, particularmente no curso do período helenístico, desde Aristarco de Samos (310-250) e Hiparco (fim do segundo século a. C.): suas messes estão reunidas e, de certo modo, codificadas na Suma que representam os trezes livros do Almagesta deste último [9].

Este livro notável --- que alcançou tão grande sucesso na Idade Média bizantina, árabe e latina --- foi usado, como obra didática, por exemplo na escola neoplatônica de Atenas, no Baixo Império; para a iniciação elementar, entretanto, nas escolas gregas dispunha, de manuais mais modestos, como (sem falar na obra de Arato, à qual me reportarei mais adiante) a Introdução aos Fenômenos, do estóico Gemino de Rodes (século I a. C.): pequeno tratado, despretensioso, que começa por uma exposição sobre o zodíaco e as constelações, prossegue pelo estudo da esfera celeste --- eixo, polos, círculos (ártico, trópico, equador...) ---, do dia e da noite, dos meses, das fases da Lua, dos planetas, e termina com um calendário do nascer e do pôr das estrelas, fornecendo, ao mesmo tempo, muito dados numéricos.

Esse manual não é único em seu gênero: sabemos da existência ou possuímos os restos de uma serie bastante numerosa deles; alguns forma encontrados em papiros, como o tratado elementar, em 23 colunas, contido no Papiro de Letronne I (27) e que se apresenta como um resumo dos princípios de Eudoxo, segundo nos revela seu título acróstico --- Εὔδοξον τέχνη.

Das quatro disciplinas matemáticas, a astronomia era a mais popular, e objeto da mais viva curiosidade: esses interesse não era puramente especulativo e deve ser relacionado ao gosto, sempre crescente, que a sociedade helenístico-romana manifestou pela astrologia. Astrologia e astronomia era, de fato, inseparáveis (as duas palavras aparecem, praticamente, como equivalentes): um verdadeiro cientista, como Ptolomeu, pôs seu nome não somente num tratado de verdadeira astronomia, como Almagesta, mas também num manual de astrologia, o famoso Tetrabiblos. Contudo não há nenhum indício que nos permita afirmar que a astronomia houve penetrado nas escolas ou figurasse no programa do ensino liberal.

RETRATAÇÃO NO ESTUDO DAS CIÊNCIAS

É bem fácil, como se viu, fazer uma ideia do conteúdo e dos métodos do ensino das ciências na época helenística. O verdadeiro problema que desafia a sagacidade do historiador não é o de saber em que consistia esse ensino, mas o de averiguar a quem era ele ministrado.

A teoria, tal como fora formulada por Platão e Isócrates, e que na época helenística se exprimia pela fórmula da έγκύκλοις παιδεία, pretendia que as matemáticas fizessem parte de toda educação verdadeiramente liberal. Que se passava, realmente, na prática? A quem se dirigia o ensino das matemáticas: a todos ou a uma elite de especialistas? Estava ele integrado, como o pretendia a teoria, no ensino secundário, ou estava circunscrito apenas aos estudos superiores?

Problema difícil de resolver. O leitor não terá deixado de admirar-se do escasso número de testemunhos diretos que me foi possível reunir, no começo deste capítulo. É claro que se poderia empandeirá-los, mediante a anexação de alguns outros dados, sobretudo daqueles que deparamos nas fichas biográficas e bibliográficas referentes a certo número de escritores ou de personagens conhecidos. Diógenes Laércio fala-nos dos anos de formação do filósofo Arcesilau --- conduzindo-nos, assim, aos meados do século III a. C. (28). Como é natural, sua cultura tinha sólida base literária; ele admirava Píndaro e nunca deixava de começar e encerrar seu dia com uma leitura Homero; havia-se exercitado, ainda, na poesia e na crítica literária. Mas estudara também matemáticas e sabemos até os nomes de seus mestres, Autólico, o músico Xanto e o geômetra Hiponico; além do que a história registra, a propósito dos dois primeiros, que ele lhes seguira curso antes de proceder à decisiva escolha entre a filosofia e retórica, as duas formas rivais do ensino superior: tais estudos matemáticos inscrevem-se, pois, no caso particular de Arcesilau, no período que corresponde ao nosso ensino secundário.

Nicolau de Damasco, historiador contemporâneo de Augusto, informa-nos diretamente, num texto autobiográfico (29), que inicialmente estudara gramática, depois retórica, música e matemáticas, antes de dedicar-se, por fim, à filosofia. O médico Galeno, nascido em Pérgamo em 129 d. C.,  também nos informa, no interessante tratado que dedica a Seus próprios Escritos, que em sua juventude estudara não somente gramática, dialética e filosofia, disciplinas a que mais tarde consagrou muitas obras (30), mais também geometria, aritmética e suas aplicações práticas (logística) (31).

Poder-se-iam juntar, sem dúvida, alguns outros testemunhos do mesmo gênero: não creio, porém, que sejam numerosos a ponto de modificarem nossa impressão de conjunto: na verdade, nota-se que, à medida que se avança, nos tempos helenísticos e romanos, o estudo das ciências, cada vez mais, cede terreno às disciplinas literárias. Invoco, entre meus leitores, o testemunhos de todos os humanistas: a leitura dos clássicos desta época bem mostra que a cultura helenística se havia tornado eminentemente literária e que as matemáticas nela ocupavam um lugar modesto. É de crer-se que estas não mais desempenhavam um papel muito atuante na formação dos espíritos.

Não creio que se possa, no plano educacional, contestar esta conclusão: os estudos literários praticamente acabaram por eliminar as matemáticas do programa do ensino secundário. Não há dúvida que o estudo das ciências não é abandonado, mas os que por ele se interessam, sejam estes especialistas, sejam filósofos que reputem as matemáticas uma propedêutica indispensável, nada mais podem esperar das escolas secundárias: urge-lhes alojar o estudo destas disciplinas no ensino superior. 

É significativo que um Teon de Esmirna tenha, no começo do século II da nossa era, julgado necessário escrever um epítome matemático em cinco livros (aritmética, geometria plana, geometria no espaço, astronomia e "música"), sob o título de Conhecimento Matemáticos Úteis ao Conhecimento de Platão: como ele próprio explica no começo (32), muitas pessoas que gostariam de estudar Platão não haviam tido oportunidade de exercitar-se o necessário, nas ciências matemáticas, desde a infância.

O testemunho dos neoplatônicos do Baixo Império é ainda mais significativo: eles são suficiente fiéis ao ensino da República para insistirem ainda, resolutamente, na necessidade de uma "purificação preliminar" do espírito (προκαθαρσία), através das matemáticas; mas os jovens que vêm sentar-se à sua escola receberam, apenas, uma formação estritamente literária, e é dentro mesmo da escola que urge proporcionar-lhes aquela iniciação científica [10]. Recordarei, a título de exemplo, a experiência de Proclo, cujos anos de aprendizado conhecemos bem, graças à biografia deixada por Marino de Néapoles. Sua primeira formação havia sido puramente literário: gramática e retórica (33); foi somente após sua conversão à filosofia que ele empreendeu o estudo das matemáticas, sob a direção de Héron, ao mesmo tempo que, conduzido por Olimpiodoro, iniciava o estudo da lógica de Aristóteles (34).

ARATO E O ESTUDO LITERÁRIO DA ASTRONOMIA

É-nos possível, num caso particularmente expressivo, surpreender esta invasão das disciplinas científicas pela técnica literária do "gramático". A astronomia, como já observei, era objeto de especial predileção; mas, se procurarmos determinar a forma em que esta ciência figurava nas escolas helenísticas [11], descobriremos surpresos, que seu estudo tinha como ponto de partida não um destes manuais elementares de teor matemático, a que fiz alusões, mas o poema, em 1154 hexâmetros, que Arato de Soles havia composto, por volta de 276-274 a. C., sob o título de Fenômenos (não se devendo destacar-lhe a segunda parte (35), consagrada aos Prognósticos).

Este texto conheceu uma divulgação extraordinária, contou  com uma constante preferência nos círculos escolas, como o atestam, fartamente, comentários, escólios e traduções, sem mencionar os monumentos figurativos: para a arte helênica, Arato é o Astrônomo, como Homero simboliza a poesia [12]. E, todavia, Arato não era um sábio, um técnico em astronomia: sua cultura era de cunho essencialmente literário e filosófico; ele pertencia ao círculo de espíritos de escol, reunidos na corte de Antígono Gônatas. Seu papel constituiu, apenas, em reduzir a versos, de ponta a ponta, dois trabalhos compostos em prosa, a saber, os Fenômenos, de Eudoxo de Cnidos, e a segunda parte do medíocre Περί σημείων, de Teofrasto. Tal como se nos apresenta, o poema de Arato nada tem de matemático; nada de números, algumas indicações bastante sumárias referentes à esferas celeste, seu eixo, os polos (36); o essencial é descrição, pormenorizada e "realista", das figuras tradicionalmente referidas às constelações: mostra-nos (37) Perseu, sustentando nos ombros sua esposa Andrômeda, a mão direita estendida em direção ao leito de sua sogra (Cassiopeia), avançando velozmente em meio a uma nuvem de poeira (uma miríade de estrelas que povoam esta região do céu)... O mesmo antropomorfismo na descrição do nascer e do por das constelações (38), que sucede a uma breve evocação dos planetas e dos círculos da esfera celeste (39). Os erros de observação não faltam: como o assinalava já o comentário de Hiparco (40), Arato ignora que as Plêiades apresentam, na verdade, sete, e não seis estrela visíveis a olho nu (embora a menor seja quase imperceptível (41)). Erros, ainda mais graves, encontram-se na segunda parte, os Prognósticos, que encerra muitas superstições populares.

Tal caráter exotérico era, ainda, fortalecido pela maneira segundo a qual se orientava o estudo de Arato nas escolas helenísticas. Embora matemáticos e astrônomos não se furtassem a comentar os Fenômenos (conforme se vê, no segundo século antes de Cristo, por Átalo de Rodes e Hiparco), o poema era explicado mais frequentemente, por gramáticos. Do ponto de vista científico, o comentário destes limitava-se a uma introdução, bastante sumária, à esfera, definindo o que se entendia por eixo, polos, círculos (ártico, trópicos, equador, eclíptica); é possível que se valessem, para tal exposição, de um modelo da esfera celeste, mas, a julgar pelos escólios que conservaram, essa iniciação não ia muito longe em precisão matemática. O comentário era, antes tudo, literário, e estendia-se às etimologia e, principalmente, às lendas mitológicas relacionadas com a descrição de Arato.

Eis um ponto de capital importância: se a astronomia ocupa um lugar de certo destaque no programa das escolas secundárias, tal lugar ela deve a Arato, e é sob a forma de uma explicação de texto, de uma explicação essencialmente literária, que ela ali aparecia. Não obstante certa resistência da parte dos matemáticos (42), parece que o gramático, ou melhor, o professor de letras conseguiu, praticamente, eliminar os geômetras e outros professores especializados nas ciências. As matemáticas continuam representadas no ensino somente por pequenos detalhes, consignados de passagem num comentário, ou por introduções gerais, extremamente sumárias, elaboradas por alguns gramáticos com alguma tintura de ciência, como este Mnáseas de Corcira, cujo epitáfio foi descoberto, e que nos informa, orgulhosamente, ter-se dedicado à astronomia (43) e à geometria (44), tanto como ao comentário dos poemas homéricos (45).

Na época helenística, a educação clássica acaba com esta evolução, adquirindo um dos traços que vão caracterizar sua fisionomia definitiva. Com efeito, nada é mais característico da tradição clássica (podemos avaliá-lo pela influência que ela exerceu e ainda exerce sobre nossa educação) do que esta preeminência literária, esta adversão a alojar as matemáticas na base da formação geral dos espíritos: as matemáticas são respeitadas, são admiradas, mas entenda-se que permanecem circunscritas apenas aos especialistas, isto é, que exigem uma vocação específica.

Tal caráter manifesta-se na época helenística: estamos, então, longe de Hípias e de Platão, e mesmo de Isócrates. Enquanto ciência particular, as matemáticas, sem dúvida, continuam, como o recordei, a desenvolver-se e a evoluir; senão seu ensino, seu estudo continua difundindo-se amplamente; podemos, graças aos papiros, avaliar sua difusão no Egito: descobrem-se fragmentos dos Elementos de Euclides em Oxirrinco, no Fayum (46), tratados de ciência musical (47), de astronomia (48), problemas de geometria, Tudo isto é, porém, doravante, matéria de especialista: as matemáticas não mais se acham, realmente, representadas na cultura comum, como tampouco neste alicerce profundo, que assegura a unidade de todas as variedades da cultura de uma época, e que é a formação primeira do adolescente, a saber, o ensino secundário.


Referências:

(1) TELES ap. ESTOBEU, Extratos, 98, 72.
(2) [PLATÃO], "Axiochos", 366e.
(3) W. DITTENBERGER, Sylloge Inscriptionum Graecarum (3.ª ed.), 960, 17.
(4) PLUTARCO, Questões de Banquete, IX, 736 D.
(5) Bibliothèque de l'Ecole pratique des Hautes-Êtudes (section des Sciences historiques et philologiques), 272, 15.
(6) FILÃO DE ALEXANDRIA, Sobre os Estudos Preparatórios (ed. Cohn, t. III), 9; ORÍGENES, Carta a São Gregório o Taumaturgo, 1.
(7) DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas dos Filósofos, X, 6.
(8) [PSEUDO-CEBES], Quadro.
(9) SEXTO EMPÍRICO, Contra os Matemáticos.
(10) DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas dos Filósofos, II, 79; IV. 10; V, 29-33. 
(11) Idem, VII, 129; cf. QUINTILIANO, Instituição Oratória. I, 10, 15.
(12) SÊNECA O FILÓSOFO, Cartas a Lucílio, 88, 20.
(13) ARQUITAS DE TARENTO, frag. 1 (Diels, Fragmente der Vorsokratiker, § 47).
(14) EUCLIDES, Elementos de Geometria, I, pr. 5.
(15) Idem, I, pr. 1.
(16) PROCLO, Comentário aos "Elementos" de Euclides, I, p. 77, 15 s.
(17) HIERÃO DE ALEXANDRIA, Geometria; Geodésia; Estereometria.
(18) Papiro Ayer (American Journal of Philology, 19, 1898), 25 s; Mizraim, 3 (1936) 18 s.
(19) ESTOBEU, Extratos, I, 9, 2.
(20) EUCLIDES, Elementos de Geometria, VII-IX; cf. II.
(21) [PSEUDO-PITÁGORAS], Os Versos de Ouro. 47-48.
(22) TEON DE ESMIRNA, Aritmética, 40.
(23) Idem, 46.
(24) NICÔMACO DE GERASA ap. FÓCIO O PATRIARCA, Biblioteca (Migne, Patrologie Grecque, t. 103 ou t. 104), 187, 600 B; FILÃO DE ALEXANDRIA, De opficio mundi, 100.
(25) Idem, 187, 591 s. 
(26) ANATÓLIO DE LAODICÉIA, Sobre a Década (P. Tannery, Mémoires Scientifiques, III); TEON DE ESMIRNA, Aritmética, 37-49; [JÂMBLICO], Teologia dos Números; SANTO AGOSTINHO, Sobre a Música, I, 11 (18) - 12 (26).
(27) Notices et Extraits des Manuscrits de la Bibliothèque Nacional (ex-Imperial), XVIII, 2, 25-76.
(28) DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas dos Filósofos, IV, 29-33.
(29) Ap. SUIDAS, Lexicon, III, p. 468.
(30) GALENO, Sobre seus próprios Escritos (ed. Kühn, t. XIX), 11-18, ps. 39-48
(31) Idem, 11, p. 40.
(32) TEON DE ESMIRNA, Aritmética, 1.
(33) MARINO DE NEÁPOLIS, Vida de Proclo, 8.
(34) Idem, 9.
(35) ARATO DE SOLES, Os Fenômenos, 733 s.
(36) Idem, 19-27.
(37) Idem, 248-253.
(38) Idem, 559-732.
(39) Idem, 454-558.
(40) HIPARCO, Comentário aos "Fenômenos" de Arato, I, 6, 12.
(41) ARATO DE SOLES, Os Fenômenos, 254-258.
(42) Escólios de Arato, 19; 23.
(43) Inscriptiones Graecae, IX, 1, 880, 6-8.
(44) Idem, 8-9.
(45) Idem, 9-13.
(46) B. P. GRENFELL, A. S. Hunt, H. I. BELL, etc., The Oxyrhynchus Papyri, 29; B. P. GRENFELL, A. S. HUNT, D. G. HOGARTH, Fayûm Towns and their Papyri, 9.
(47) B. P. GRENFELL, A. S. Hunt, J. G. SYMLY, E. J. GOODSPEED, The Tebtunis Papyri, 694: TH. REINACH, Papytus Grecs et Démotiques (paris, 1905), 5; B. P. GRENFELL, A. S. Hunt, H. I. BELL, etc., The Oxyrhynchus Papyri, 9; 667; Papiro Hibeh, I, 13.
(48) Papyrus Letronne (Notices et Extraits des manuscrits de la Bibliothèque Nationale, t. XVIII), 1.

Notas complementares:

[1] A que época se refere o depoimento de Plutarco sobre o ensino das ciências do "Diogeneion" (Quaest. Conv., IX, 736 D) ? Parece impossível determiná-la com segurança. Plutarco diz simplesmente: "Sendo estratego, Amônio instituíra um exame no "Dieogeneion" para os efebos (sic: de fato, como vimos, esse colégio recebia os "melefebos", os jovens que, no ano seguinte, entrariam na efebia) que aprendiam as letras, a geometria, a retórica e a música". Muitos personagens tiveram o nome Amônio e não podemos afirmar que algum deles tenha sido estratego; como Plutarco não julga necessário esclarecer esse ponto, poder-se-ia supor que se trate do Amônio mais conhecido do nosso autor: o décimo-segundo referido no artigo dedicado aos Ammonios por PAULY-WISSOWA (I, c. 1862), ou seja, o filósofo platônico de quem Plutarco foi aluno em Atenas e do qual fala, ou faz falar, várias vezes em sua obra (cf. a Introduction de R. FLACELIÈRE à sua edição do tratado Sur l'E de Delphes, Annalaes de l'Université de Lyon, 3, Lettres, 11, ps. 8-10): remontaríamos assim à época de Nero. Mas essa é apenas uma hipótese.

[2] Dediquei à história da έγκύκλοις παιδεία um capítulos de minha tese, Saint Augustin et la Fin de la Culture antique, Paris, 1937, ps. 211-235. Faço questão de sublinhar os dois pontos em que hoje me parece necessário corrigir a doutrina em que me havia detido naquela ocasião: a) o aparecimento desse ideal da formação do espírito não deve ser situado, como eu o afirmava, na geração que sucede Aristóteles; como vimos, ele fora afinal, formulado, nitidamente, ao mesmo tempo por Platão e por Isócrates, concordes em juntar as matemáticas à instrução literária; pode-se, pois, evitar desacreditar (op. cit., p. 221, n. 1) o testemunho de DIÓGENES LAÉRCIO (II, 79) sobre Aristipo que comparava os que negligenciam a filosofia depois de ter estudado os έγκύκλια μαθήματα aos amantes de Penélope; b) já não estou mais tão certo que a concepção de έγκύκλοις παιδεία como "cultura geral" em oposição à "cultura propedêutica" seja o resultado de um "abastardamento", devido à decadência do ensino secundário na época romana (op. cit., ps. 226-227). Integrando a retórica, o programa da έγκύκλοις παιδεία ultrapassava, desde a origem, o domínio do ensino secundário propriamente dito; podia satisfazer plenamente um discípulo de Isócrates; somente os filósofos, herdeiros de Platão, viam-se obrigados a lhe conferir um caráter estritamente propedêutico. Sustento, em compensação, apesar das críticas de A.-J. FESTUGIÈRE (ap. Revue des Études grecques, LII [1939], p. 239), que esse programa não define mais do que um ideal, muito raramente e muito imperfeitamente realizado na prática.

[3] Enciclopédia é um conceito moderno: cf., ainda, meu Saint Augustin, ps. 228-229: o grego só conhece a έγκύκλοις παιδεία; a forma έγκύκλοιςπαιδεία só se encontra nos manuscritos de QUINTILIANO (I, 10, 1), e é sem dúvida uma corruptela devida aos copistas. O termo enciclopédia aparece no século XVI (em inglês: Elyot, 1531; em francês; Rabelais, 1532) e foi recriado ou pelo menos repensado, em função de uma etimologia radicando-o diretamente a κύκλος (o ciclo completo dos conhecimentos humanos), enquanto que no grego helenístico o adjetivo έγκύκλοις tinha um valor derivado muito menos forte: "em circulação", de onde "corrente", "vulgar", ou ainda "que volta periodicamente", ou seja, "quotidiano", "de cada dia".

[4] Extensão variável do programa έγκύκλοις παιδεία: ver os testemunhos por mim citados ap. Saint Augustin..., p. 227, n. 1: VITR., I, 1, 3-10; GAL., Protrept., 14, ps. 38-39; MAR. VICTOR., ap. KEIL, Grammatici Latini, VI, p. 187; Scsol. em D. THR., ap. HILGARD, Grammatici Graeci, III, p. 112; PHILSTR., Gym., 1.

[5] O programa da έγκύκλοις παιδεία entre os filósofos helenísticos e romanos: ver o quadro descrito ap. Saint Augustun, ps. 216-217: Heraclides o Pôntico (DL., V, 86-88), Arcesilau (DL., IV, 29-33), PS. Cebes (Pinax), Filão (De Congr., pass.) Sêneca (Ep., 88, 3-14), Sexto Empírico (plano do Contra Matemáticos), Orígenes (Ep. ad Greg. 1; cf. EUS., H. E., VI, 18, 3-4), Anatólio de Laodicéia (EUS., H. E., VII, 32, 6; HIER., Vir. Ill., 73), Porfírio (TZETZ. Chil., XI, 532), Lactâncio (Inst., III, 25, 1); cf. ibid., p. 189, para Santo Agostinho (de Ord., II, 12, 35 segs.; II, 4, 13 segs.; De Quant. an., 23, 72; Retract., I, 6; Conf., IV, 16, 30.

Quanto à data do aparecimento do setenário das artes liberais, entre Dionísio o Trácio e Varrão, acompanho F. MARX, Prolegomena à sua edição de CELSO, ap. Corpus Medicorum Latinorum, I, Leipzig, 1915, p. x (cf. meu Saint Augustin, p. 220, n.º 2).

[6] História da geometria e da aritmética gregas: existem vários livros elementares sobre o assunto (a meu ver, o melhor é: D. E. SMITH, History of Mathematics, 2. vols., Boston, 1925), mas convém reler: J. Gow, A short history of Greek mathematics, Cambridge, 1884, que diversas obras mais recente se limitam a copiar. Sem dúvida, um estudo mais profundo não poderia ignorar os trabalhos de M. CANTOR, Vorlesungen über Geschichte der Mathematik, I4, Leipzig, 1922, e P. TANNERY, La Géométrie grecque. Comment son histoire nous est parvenue, ce que nous en savons, I, Paris, 1887, e os artigos reunidos na edição póstuma de suas Mémoires scientifiques, t. I-IV, Paris-Toulouse, 1912-1920.

[7] Sobre a ciência musical grega, cf. além de L. LALOY, Aristoxène de Tarente, e Th. REINACH, La Musique grecque, aos quais já remeti o leitor: M. EMMANUEL, Histoire de la Langue musicale, I, Paris, 1911, ps. 61-165; Grèce ('Art gréco-romain), ap. H. LAVIGNAC, Encyclopédie de la Musique, 1, I, ps. 377-537.

[8] R. G. H. WESTPHAL ligou o estudo da rítmica grega ao da rítmica de nossa música clássica: cf. suas conhecidas obras: Die Fragmente und Lehrsätze der grieschischen Rhythmiker (1861) e Allgemeine Theorie der musikalischen Rhythmik seit J. S. Bach (1881).

[9] Sobre a astronomia grega: é sempre interessante retomar: J.-B. DELAMBRE, Histoire de l'Astronomie ancienne, Paris, 1817; ver, em seguida: P. TANNERY, Recherches sur l'Histoire de l'Astronomie ancienne, Paris, 1893; J. HARTMANN, Astronomie, ap. Die Kultur der Gegenwart, III, 3, 3, Leipzig, 1921.

[10] Sobre o ensino das ciências nas escolas neoplatônicas: F. SCHEMMEL, Die Hochschule von Konstantinopel im IV. Jahrhundert, ap. Neue Jahrbücher das klassische Altertumsgeschichte und deutsche Literatur, 22 (1908), ps. 147-168; Die Hochschule von Athen im IV. und V. Jahrhundert, ibid., ps. 494-513;  Die Hochschule von Alexandreia in IV. und V. Jahrhundeert, ibid., 24 (1909), ps. 438-457; O. SCHISSEL VON FLESCHENBERG, Marinos von Neapolis und die neuplatonischen Tugendgrade, Atenas, 1928 (e a resenha de E. BRÉHIER, ap. Revue d'Histoire de la Philosophie, 1929, ps. 226-227); C. LACOMBRADE, Synesios de Cyrène, hellène et chrétien, Paris, 951, ps. 39-46, 64-71.

[11] O ensino de astronomia: cf. H. WEINHOLD, Die Astronomie in der antiker Schule, dissertação de Munique, 1912: obra excelente, mas o autor não percebeu as conclusões que se tiram dos fatos que tão bem reuniu; acrescentar L. ROBERT, ap. Études Épigraphiques et Philologiques (BEHE, 272), Paris, 1938, p. 15.

[12] Arato de Soles, representado em companhia da musa Urânia, como imagem típica da ciência astronômica: por exemplo, numa taça de prata do tesouro de Berthouville: Ch. PICARD, Monuments Piot, t. XLIV, 1950, ps. 55-60, pr. V., e em geral: K. SCHEFOLD, Die Bildnissse der antiken Dichter, Redner und Denker, Basileia, 1943. Sobre a vida e a obra de Arato, ver em último lugar V. BUESCU, edição de CICÉRON, Les Aratea (coleção de edições críticas do Instituto romeno de Estudos latinos, 1), Paris-Bucareste, 1941, ps. 15 segs.



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