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Este é um blog sobre Matemática em geral, com ênfase no período clássico-medieval, também sobre as Artes liberais (Trivium e Quadrivium), so...

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Música e a Educação da criança

Canção dos Anjos, 1881 -
William Adolphe Bouguereau

1) Introdução.

Cultivar até à excelência a virtude e a inteligência são os requisitos imediatos da vida contemplativa; nisto afirmamos consistir aquela fase da pedagogia a que chamamos de intencional, por supor a intenção do aluno de alcançar este objetivo.

Antes disso, porém, temos a pedagogia não intencional, que consiste em uma preparação para o trabalho intencional da virtude e da inteligência em que no mais das vezes o aluno não tem condições de compreender o fim último de seus esforços.

Foi no fim do VII da Política e no VIII da mesma obra que Aristóteles abordou este assunto, analisando a educação da criança desde os seus primeiros anos. Entretanto, deixou este tratado incompleto ainda nos próprios princípios.

Santo Tomás de Aquino não chegou a comentar sequer este texto inacabado de Aristóteles. Seu comentário se interrompe ao longo do III da Política; um de seus discípulos, seguindo a orientação do mestre, completou o comentário até o ponto em que Aristóteles havia escrito. Este discípulo que continuou o Comentário demonstra conhecer bem a obra e o pensamento de Tomás, de modo que o Comentário à Política escrito pelos dois autores tem sido publicado como uma só obra, apenas com uma pequena nota assinalando o ponto em que termina o texto de Tomás e se inicia o do discípulo.

Não é difícil, ademais, supor o que Tomás de Aquino pensaria sobre Aristóteles nos textos que ele não comenta. A não ser em pouquíssimos pontos onde Aristóteles afirma algo manifestamente inconciliável com o conjunto do pensamento de Tomás, este último sempre concorda com o primeiro e, o mais freqüentemente, aprofunda o pensamento de Aristóteles. De modo que pode-se dizer que o presente capítulo desta trabalho, baseado no texto com que um aluno de Tomás de Aquino completou o Comentário à Política que ele havia deixado inacabado, não foge ao pensamento de Tomás de Aquino.

2) Princípio geral para a educação da criança.

O final do Comentário ao VII da Política, que inicia a abordagem dos requisitos remotos da educação em seus primeiros estágios, abordagem que infelizmente encontra-se interrompida ainda em seus começos, enuncia um princípio geral a ser observado em tudo quanto irá e iria ser tratado posteriormente.

Depois de ter declarado qual é o fim último da vida humana, diz o Comentário, deve-se considerar como se deve proceder para tornar os homens bons e aplicados em se ordenarem a este fim. Devemos distinguir três coisas que para isso são necessárias: a natureza, o costume, que nesta passagem é para Aristóteles um termo pelo qual se designam as disposições do apetite, e a razão [588].

É necessário considerar se as crianças devem ser instruídas primeiramente segundo a razão ou inteligência, ou se devem ser instruídas segundo o costume ou apetite. E antes mesmo disto, deve-se considerar se não devem ser bem dispostas segundo o corpo antes que tratemos de bem dispor as suas almas. De fato, é necessário harmonizar entre si estas coisas do modo devido para que tratemos de dispor em primeiro lugar àquilo que a natureza previu que deve ser disposto em primeiro lugar [589].

Ora, é manifesto nas coisas que são segundo a natureza e segundo a arte que qualquer geração começa por algum princípio imperfeito e termina em algo perfeito e final. O termo e fim natural do homem é a razão e a inteligência em ato e não em potência; pelo que importa ordenar primeiro o corpo do que a alma, e o apetite antes que a inteligência [590]. De fato, observa-se que o apetite precede segundo a via da geração o intelecto e a razão em ato, pois o irascível e a concupiscência estão nas crianças imediatamente desde o nascimento, enquanto que o intelecto e a razão em ato não estão senão depois de um certo tempo [591].

Portanto, como é necessário dispor aquilo que se ordena ao fim antes de dispor o próprio fim, e o corpo se ordena ao intelecto e à razão como a um fim, e o apetite se ordena à inteligência assim como a matéria à forma, será preciso primeiro ocupar-se do corpo do que da alma; e depois, na alma, daquilo que pertence ao apetite por causa do intelecto e tendo em vista ao mesmo, e por causa do intelecto cuidar de tudo quanto há na alma. De fato, todas as partes da alma e os seus hábitos se ordenam à perfeição que é segundo o intelecto [592].

3) A educação do nascimento ao terceiro ano.

O alimento mais conveniente às crianças logo após o parto, diz o Comentário, é o leite natural, e mais ainda o leite da mulher do que o dos animais, e ainda maximamente o da própria mãe do que o de outra. Aqueles que são alimentados com o leite da própria mãe crescerão melhor dispostos segundo a natureza [593].

Logo após o nascimento é importante acostumar as crianças a pequenos movimentos, por exemplo, das mãos, dos pés e de outras partes. E, segundo diz Avicenna, com o movimento deve-se procurar a consonância da música e a voz da canção para produzir na criança o deleite da consonância musical por causa do que será dito mais adiante [594].

4) A educação do terceiro ao quinto ano.

Nesta idade as crianças não são capazes do aprendizado por causa de sua tenra compleição e imperfeição das virtudes, nem podem fazer grandes trabalhos. Por isso é necessário exercitá-las em pequenos movimentos que podem ser feitos em diversas ações e brincadeiras. As brincadeiras não devem declinar à servilidade, nem ser muito trabalhosas ou violentas, para que não prejudiquem as virtudes por causa do excesso, nem muito moles e remissas, para que não se transformem em causa de preguiça [595].

Nesta idade devem ser exercitadas em ouvir pequenas histórias e fábulas, para que se exercitem no falar e nas razões dos nomes. Deve-se observar porém que, nesta idade, tudo em que as crianças forem acostumadas, movimentos, ações, brincadeiras, histórias e fábulas que ouvem e também que vêem, sejam imagens das coisas em que depois deverão tratar seriamente, e como que um caminho para as coisas que depois deverão estudar ou em que se ocupar, pois as coisas que por primeiro nos acostumamos mais inclinam posteriormente, já que aquilo de que temos costume nos é mais deleitável [596].

Deve-se evitar que ouçam, nesta idade, coisas torpes. Ao contrário, o bom legislador deveria exterminar completamente da cidade os discursos torpes sobre o que é venéreo e outras coisas que estão além da razão e honestidade, pois pelo fato de discorrer sobre o que é torpe segue-se a inclinação à ação torpe. Freqüentemente ocorre que, falando de alguma ação torpe, mais freqüentemente se pense sobre a mesma, e do freqüente pensamento segue-se uma inclinação maior a esta ação. Isto que deve ser universalmente proibido na cidade, deve ser maximamente proibido aos jovens e na presença deles, de modo que nem falem nem ouçam falar a respeito. De fato, tudo quanto ouvem ou vêem ou operam nesta primeira idade é admirado como coisa nova, por causa do que é melhor lembrado e se faz mais deleitável, pois as coisas admiráveis são deleitáveis e às coisas nas quais nos deleitamos mais facilmente nos inclinamos [597].

Deve-se evitar nesta idade que as crianças vejam o que é desonesto; de fato, diz o Filósofo, se devemos exterminar da cidade fazer ou dizer o que é torpe, manifesto é que deve-se evitar também o ver estas coisas, pois pelo vê-las produz-se a imaginação e a memória das mesmas, e isto principalmente nas crianças, as quais vivem da admiração [598].

5) A educação do quinto ao sétimo ano.

Nesta idade as crianças devem examinar as disciplinas em que irão ser posteriormente educadas. Por exemplo, se deverão ser educadas na música, devem ser levadas a ouvir os músicos, para que, pelo ouvido e pela inspeção de tais coisas adquiram o costume e mais se inclinem às mesmas [599].

6) A educação do sétimo ao décimo quarto ano.

As crianças podem aprender música depois dos sete anos. Há três finalidades na educação musical das crianças: para que brinquem [600], para que se tornem puras [601] e para acostumá-las a julgar retamente e deleitar-se segundo a razão, dispondo-as à virtude [602].

É coisa manifesta que pelo correto uso da música nos tornamos bem dispostos às virtudes. De fato, diz o Filósofo, os sacerdotes do monte Olimpo se utilizavam de muitas melodias para este fim [603].

A razão pela qual a música dispõe às virtudes consiste em que a música faz parte das coisas que são deleitáveis segundo si mesmas, e a virtude moral diz respeito como a uma matéria própria às deleitações, às tristezas e às demais paixões. Ora, é manifesto que nada acostuma tanto à geração dos hábitos morais e às ações das mesmas do que o reto julgamento dos movimentos das paixões e o deleitar-se nelas segundo a razão [604]. Acostumar-se, porém, a julgar o que é semelhante às ações e deleitações morais é acostumar-se a julgar das próprias ações morais e deleitar-se nelas.

Mas as harmonias musicais são semelhantes às paixões, aos hábitos e às ações morais [605], pois nas melodias musicais se encontram manifestamente imitações dos costumes, já que pelas diferenças das harmonias podem se dispor de modo imediato as paixões e os movimentos dos ouvintes de tal ou qual maneira. Assim é que a melodia lídia do sétimo tom retrai o espírito ao seu interior; a melodia lídia do quinto tom, também denominada de hipolídia, manifestamente predispõe à preguiça; a melodia dórica do primeiro tom dispõe os ouvintes à constância nas obras, pelo que é maximamente moral; a melodia frígia do terceiro tom recolhe fortissimamente o espírito do exterior ao interior [606].

Estes exemplos mostram como nas melodias encontramos as semelhanças das virtudes [607]; de onde que acostumar-se a julgar e a deleitar-se corretamente nas harmonias musicais é acostumar-se a julgar e a deleitar-se retamente nos hábitos e nas ações morais [608]. Deve-se, portanto, concluir que a música pode dispor à virtude, pelo que é importante educar e acostumar os jovens à mesma [609].

A música também pode purificar os jovens, porque a purificação é a corrupção de alguma paixão nociva que passa a não existir, o que se obtém pela geração do contrário, assim como a corrupção da ira se dá pela geração da mansidão [610].

7) A música como arte liberal.

O homem é dito livre quando ele é causa de si próprio sob a razão de causa movente e de causa final.

Ele é causa de si mesmo sob a razão de causa movente quando, mediante aquilo pelo qual ele possui natureza humana e é principal nele, isto é, a inteligência, é movido julgando e ordenando o modo e a razão do agir.

É causa de si mesmo sob a razão de causa final quando é movido ao bem e ao seu fim próprio segundo aquilo que há de principal nele, isto é, a inteligência; e tanto mais livre será segundo a natureza quanto mais for capaz de ser movido por aquilo que é principalíssimo nele e em direção ao seu fim e bem seguindo este mesmo principalíssimo [611].

Já o homem é dito servo quando não é capaz, por causa da indisposição da matéria, de mover-se pela inteligência própria, devendo por isso ser movido pela de outro; e quando nem também age por causa dela, mas por causa daquela de outro [612].

Neste sentido uma ciência era chamada liberal pelos antigos quando, por meio dela, o homem se dispunha segundo a inteligência ao seu fim próprio. E, entre as ciências liberais, aquela que é maximamente livre é aquela que dispõe de modo imediato a inteligência ao fim ótimo, isto é, aquela em cuja operação consiste a felicidade.

Aquelas que dispõem a inteligência ao fim ótimo do homem de modo mediato são menos livres, como o são as ciências posteriores nas quais o conhecimento que delas advém se ordena ao conhecimento das que lhe são superiores, embora estes conhecimentos já sejam tais que possam ser buscados por si mesmos.

Será minimamente liberal entre as ciências especulativas aquela em que minimamente se buscar o conhecimento por causa dela mesma e que se ordenar apenas através de muitos meios ao bem último do homem [613].

Embora a ciência maximamente liberal não possa ser mal usada quanto ao seu uso em si mesmo considerado, as ciências posteriores menos liberais podem ser mal usadas mesmo quando consideradas em si mesmas.

De fato, se considerarmos esta questão não segundo determinado aspecto, mas em relação ao próprio fim último do homem considerado em si mesmo, não é possível fazer mau uso deste fim último. Nas coisas que são meios para se alcançar um fim, mesmo consideradas em si mesmas e não segundo algum determinado aspecto, pode ocorrer que sejam mal usadas. Isto ocorre quando pela consideração ou pelo exercício das mesmas alguém se afasta seja do próprio fim, seja das coisas que são mais próximas àquele fim; é o que acontece quando, pela consideração de alguma ciência posterior que trata de um conhecimento menos nobre alguém se afasta da consideração da ciência primeira que trata do conhecimento maximamente elevado [614].

É freqüente que isto ocorra com a música, porque muitos há que acabam por colocar nela o seu fim último. Mas a música não é o fim último do homem, este fato só vindo a ocorrer porque são poucos os homens que alcançam o fim último da vida, efetivamente uma coisa rara. Os homens encontram para isto muitos impedimentos, por parte da natureza, por parte do costume, por causas externas, ou mesmo porque fogem do trabalho necessário para alcançá-lo. Quando isto acontece muitos acabam por colocar seu fim último na música apenas por causa da deleitação que ela proporciona; pelo fato de não poderem alcançar a felicidade que reside no fim último do homem, acabam por buscar na música a deleitação por si mesma. A razão disto é que o fim último da vida humana possui deleitação, não qualquer deleitação, mas a deleitação máxima; a música, de modo semelhante, possui deleitação; por isso, os que buscavam a primeira que está no fim último, não a alcançando, tomam aquela que está na música por aquela que lhe é mais nobre, pela semelhança que nesta segunda encontram com a do fim último [615].

8) O plano de Aristóteles.

Era a intenção de Aristóteles, conforme manifestado nas últimas linhas do livro VII da Política, tratar da educação após os sete anos em três etapas; a primeira, dos sete aos catorze anos; a segunda, dos catorze aos vinte e um; a terceira, dos vinte e um aos trinta e sete [616].

Entretanto, tendo mencionado previamente algumas disciplinas em que conviria exercitar os jovens dos sete aos catorze anos, entre as quais figurava a música, após ter iniciado a tratar a respeito da música, interrompeu repentinamente o seu livro.


Notas:

[588] In libros Politicorum Expositio, L. VII, l. 12, 1220.

[589] Idem, loc. cit..

[590] In libros Politicorum Expositio, L. VII, l. 12, 1221.

[591] Idem, loc. cit..

[592] Idem, L. VII, l. 12, 1223.

[593] Idem, L. VII, l. 12, 1246.

[594] Idem, loc. cit..

[595] Idem, L. VII, l. 14, 1249.

[596] Idem, L. VII, l. 12, 1250.

[597] Idem, L. VII, l. 12, 1253.

[598] Idem, L. VII, l. 12, 1254.

[599] Idem, L. VII, l. 12, 1257.

[600] Idem, L. VIII, l. 2, 1290.

[601] Idem, L. VIII, l. 3, 1331.

[602] Idem, L. VIII, l. 3, 1290.

[603] Idem, L. VIII, l. 2, 1302.

[604] Idem, L. VIII, l. 2, 1307

[605] Idem, L. VIII, l. 2, 1308.

[606] Idem, L. VIII, l. 8, 1312.

[607] Idem, loc. cit..

[608] Idem, L. VIII, l. 2, 1308.

[609] Idem, L. VIII, l. 2, 1314-1315.

[610] Idem, L. VIII, l. 3, 1331.

[611] Idem, L. VIII, l. 1, 1266.

[612] Idem, loc. cit..

[613] Idem, L. VIII, l. 1, 1267.

[614] Idem, L. VIII, l. 1, 1268.

[615] Idem, L. VIII, l. 2, 1299-1300.

[616] Idem, L. VII, l. 12, 1258.

***

Trecho retirado capítulo VII A Pedagogia da Sabedoria IIIª Parte do livro Educação segundo a Filosofia Perene disponível no link.


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