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A Matematização do Mundo

Modelo sólido platônico de Kepler do Sistema
Solar no livro Mysterium Cosmographicum, 1597

Por José Carlos Zamboni

O escritor e físico argentino Ernesto Sábato ‒ que morreu, em 2011, com quase cem anos ‒ foi se aproximando de Deus muito devagar na longa estrada de sua vida. Na juventude foi comunista e ateu. Depois, anarquista e agnóstico. Aos oitenta anos de idade casou-se na Igreja Católica com a mulher ao lado de quem tinha vivido mais de sessenta anos. Em seu último livro, A resistência (publicado em 2000 aos oitenta e nove anos), confessou que já não sofria mais com a vinda da morte, pois sabia que ela não lhe subtrairia a vida.

Sábato tinha um pé na ciência, outro na literatura e na filosofia. Escreveu coisas interessantes sobre a tragédia da matematização do mundo, iniciada no glorioso e colorido Renascimento, cujo modelo de mundo e humanidade seria baseado na abstração matemática.

Cinco séculos mais tarde, ou seja, hoje, o mundo vive buscando modelos matemáticos para as soluções de seus problemas ‒ e, muitas vezes, criando com isto novos problemas. Basta pensar como influi, hoje, na vida de bilhões de pessoas a matematização da internet, cujos computadores organizam e controlam um número enorme de informações com uma rapidez surpreendente. O indivíduo de hoje não apenas sabe mais do que os homens de décadas passadas, como é induzido pelas “redes sociais” a decisões práticas, morais e até espirituais (inimagináveis em tempos não tão distantes assim).

Estamos cercados de máquinas. Os transumanistas acreditam até que o ser humano está condenado a ser máquina. Consideradas em si mesmas, as máquinas não são más; algumas tornam até mais fácil nossa luta com a natureza. Quando não estamos brigando com ela? O que inquieta é a possibilidade de o homem se transformar em etéreo e descarnado número, completamente robotizado. E pensar ‒ lembra Sábato ‒ que o precursor disto tudo foi o velho Platão, ao fantasiar um mundo perfeito, puramente mental, regido pela harmonia matemática. Terá sido por isto que ele foi tão admirado no Renascimento?

Duas coisas muito distantes entre si ameaçam o ser humano: sua metamorfose em número e sua regressão a besta. Todo pensamento dominado pela nostalgia da natureza e da pura animalidade está a um passo da barbárie. A natureza não é um cenário bucólico habitado por pastores e pastoras descarnados, mas um campo de batalha. Também a natureza foi afetada pelo pecado original. Por trás da aparente placidez das paisagens há muita tragédia virtual: maremotos, terremotos, secas, enchentes, relâmpagos, vírus e bactérias letais.

Quem ainda crê que os povos rústicos, mais próximos da natureza, viviam em doce e santa paz “originária”? Foi com ideias parecidas que os estruturalistas franceses, crentes no bom selvagem, dominaram as universidades há cinquenta anos. Em crítica literária, criaram um método de análise das obras que visava reduzi-las, ressentidamente, à condição de contos folclóricos, a partir de esquematizações binárias e oposições simplistas. Era, de algum modo, a matematização dos estudos literários, disfarçada de filosofia naturalista e pré-ambientalista.

Os homens não são nem anjos, nem bichos, diria Pascal. São apenas homens ‒ ou seja, têm espírito como os anjos e corpos como os bichos ‒, tentando defender-se precariamente da barbárie da natureza sempre ameaçadora, do perigo de retorno às selvas. E da barbárie do falso anjo, transformando a natureza e o homem em números gélidos, distantes, impassíveis. O pior é que os dois inimigos estão hoje amigavelmente enlaçados: selvageria e tecnologia.

Essa matematização da vida, segundo Sábato, torna as coisas abstratas mais importantes que as tangíveis: mata-se ou morre-se por coisas tão genéricas e abstratas como um partido político, uma classe social, uma ideologia.


Texto retirado do link.


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