Postagem em destaque

Sobre o blog Summa Mathematicae

Este é um blog sobre Matemática em geral, com ênfase no período clássico-medieval, também sobre as Artes liberais (Trivium e Quadrivium), so...

Mais vistadas

O Heliocentrismo: O cônego Nicolau Copérnico

Sistema heliocêntrico copernicano do
universo, século XVII - Johannes Hevelius
"Tão grande é sem dúvida esta obra
divina do Sumo Artífice".
-- Nicolau Copérnico

A ideia da revolução copernicana que chega ao grande público é sinteticamente esta: o heliocentrismo proposto por Nicolau Copérnico teria, de certo modo, desequilibrado a estrutura do mundo como entendia a Bíblia. Além disso, distanciando o homem do centro geográfico do universo, o teria destronado, negando assim, implicitamente, a sua origem divina (e por conseguinte a sua diferença ontológica em relação às outras criaturas). Copérnico seria, portanto, um daqueles cientistas -- na verdade, o primeiro deles -- que colocou em crise a fé num Deus transcendente, Criador e Providência, própria da Europa cristã, alargando o universo ao infinito, no qual o homem ia se reduzindo. Assim escreveu recentemente Umberto Veronesi, em Scienza e futuro dell'uomo (2010): com Copérnico a "posição" do homem "que diríamos quase divina enquanto criatura de Deus, desmorona para voltar a ser parte de um processo evolutivo que inclui animais, plantas e todos seres vivos. O homem é assim redimensionado, daí nasce o pensamento científico moderno". Essa interpretação da revolução copernicana é absolutamente anti-histórica e totalmente falsa. Não se encontra nenhuma verificação quando se lê o próprio Copérnico, e nem em Galileu Galilei, muito menos nos devotíssimos Kepler e Pascal, para citar apenas alguns dos primeiros e mais célebres "copernicanos". "Deve-se dizer com clareza -- escreve o historiador da ciência Paulo Musso -- que o fim do geocentrismo não significou absolutamente, como hoje se busca insistentemente fazer crer, o fim do antropocentrismo, entendido no sentido de uma radical desvalorização do homem e da sua importância na concepção global do cosmo". Para um cristão, de fato, na época de Copérnico, como antes e depois dele, "o valor do homem não pode depender da sua colocação geográfica, nem de algum outro fato material, mas somente de sua relação com o infinito" [1].

Um dos dos temores de Copérnico, escreve a sua biógrafa Dava Sobel, é que

seus colegas astrônomos [ligados ao sistema aristotélico-ptolomaico, N.d.A] teriam observado que a Terra estava bem no centro de tudo, não porque a morada do gênero humano merecesse um lugar de honra, mas bem ao contrário, porque no centro era o lugar onde caía e perecia as coisas materiais e, por isso, a ruína, a mudança e morte estavam no destino dos habitantes da Terra. Em suma, a Terra era o centro não porque era o auge, mas porque era a parte baixa da criação, e não se devia ter a ousadia de meter o Sol, que muitos chamavam de luz celeste, no buraco infernal posto no centro do cosmo [2].

Portanto, a perda da centralidade física da Terra não significa, para Copérnico, uma perda da verdadeira centralidade do homem, ligada à sua natureza espiritual, a suas peculiaridades excepcionais e únicas (pensamento, liberdade, razão...) e nem exatamente a sua posição geográfica.

Muitos anos depois, observando os céus com o telescópio, Galileu Galilei descobriu que existem depressões e asperezas na Lua e que o Sol tem manchas, e isso significa que ele vai se apagando. Tal descoberta irá afastar definitivamente a ideia pagã dos planetas divinos, sem que com isso a dignidade d Terra fosse rebaixada -- "nobilíssima e admirável", e não mais, como para os aristotélicos, "esgoto de sordidezas terrenas e de feiura" [3]. Isso a elevará ao nível dos outros corpos celestiais, reafirmando indiretamente a centralidade não apenas geográfica e material, mas, sobretudo, substancial e espiritual do homem. Não são as estrelas-divindades que controlam os homens (como o corolário para a astrologia, o horóscopo etc.), mas como já era claro aos primeiros cristãos, são os homens que, em vez de diminuírem-se, honram-se, reconhecendo o rastro da própria origem divina, de poder ler e compreender as leis que regulam os astros, por um lado reduzido à matéria criada em movimento, e por ouro, como repetirá insistentemente Kepler, que gostava de citar o Salmo Coeli enarrant gloriam Dei (Sl 18), enaltecendo os sinais evidentes da grandeza e da beleza do Criador.

Também é exatamente esse o pensamento de Copérnico quando na sua obra mais célebre, o De revolutionibus, no capítulo I, renega o vitalismo pagão e assim define o cosmo: "A máquina do universo (machina mundi), que foi criada para nós pelo melhor  e mais perfeito Artífice".

Mas quem é Copérnico? Quem é o homem que primeiro propõe vivamente um sistema complexo baseado sobre a hipótese heliocêntrica (apesar de não demonstrada), e que expande, por assim dizer, o universo, embora continue considerando-o finito?

Arthur Koetler o define como um "clérigo conservador e tímido", ou seja, tudo menos um revolucionário como Francesco d'Arcais, Margherita Hack e Francesco Barone, que concordavam com ele. Ulianich recorda que Copérnico foi um clérigo pertencente à Congregação reformada dos Cônegos Agostinianos, e que, como filósofo, sustentava a necessidade de buscar a verdade em todas as coisas, quatenus id a Deo rationi humanae premissum est [4]. Seu objetivo como cientista era "buscar e colher, através da experiência, uma realidade que já foi constituída no seu ser 'ab optimo et regularíssimo omnium Opifice' "[5]. 

***

Nascido em 1473 em Torùn, na atual Polônia, muito cedo Copérnico fica órfão de pai. Quem cuida dele e dos irmão é um tio materno, Lukasz Watzenrode, clérigo que depois se tornou bispo de Vármia. Em 1497, depois dos estudos na Universidade de Cracóvia, e direito canônico em Bolonha, torna-se cônego em Frombork. Em 1500, nós os encontramos empregado na chancelaria pontifícia de Roma. Inicia os estudos de medicina em Pádua, e conclui os de Direito em Ferrara, enquanto colabora com o tio bispo, tornando-se seu físico privado.

É nesse período, por volta de 1507, que começa a elaborar a sua teoria heliocêntrica. Em 1512, torna-se chanceler do capítulo de cônegos da catedral de Frombork, enquanto em 1513, a pedido do Concílio de Latrão e de Paulo de Midelburgo, matemático e astrônomo, seu admirador e bispo de Fossombrone, copila uma proposta de reforma do calendário que envia a Roma.

O calendário em questão é o gregoriano, assim nomeado porque fora promovido pelo Papa Gregório XII, com a ajuda de grandes cientistas eclesiásticos como Calvius e Danti. O calendário, recorda Paolo Musso, "foi o primeiro verdadeiramente preciso que a humanidade tinha visto em toda a sua história, tanto é verdade que o usamos ainda hoje em plena era espacial, ainda que com alguma pequena modificação" [6].

Em 1523, Copérnico foi nomeado administrador geral para a sé arquidiocesana de Vármia. Em 1537, o seu nome está na lista dos quatro candidatos ao título de Bispo de Vármia. Enquanto exercia várias funções eclesiásticas e atividades médica, cuidando dos enfermos frequentemente de forma gratuita, segundo o seu primeiro biógrafo (sacerdote e astrônomo Pierre Gassendi, 1654), em 1543 publicou e, Nuremberg, por seu discípulo Rethicus, o seu De revolutionibus orbium coelestium, Morre no mesmo ano em Frombork [7] e é sepultado na catedral da cidade, próximo ao altar de São Venceslau, na qual tinha sido designado cônego, para provar mais uma vez, se fosse necessário, a sua fé e a estima da qual gozava.

Mas por que Copérnico havia publicado o seu pequeno e inovador volume tão tarde? Em parte, devia temer perseguições e ataques. Porém, mais do que ser perseguido, talvez temesse não ser compreendido. Foi o próprio Copérnico a escrever que não faltaria quem, vendo contradizer a opinião comum e a cosmologia de Aristóteles e Ptolomeu, teria zombado das suas opiniões. Mas essas resposta é incompleta e parcial.

Na verdade, Copérnico já tinha na época inúmeros admiradores como, por exemplo, Johann A. Widmannstetter, secretário do Papa, conquistando louvor e sucesso. Porém, já era consciente de quanto as suas  observações eram ainda imprecisas. As demonstrações da teoria heliocêntrica viriam, de fato, somente em 1850, graças ao físico Jean-Bernard Léon Foucault e o seu famoso Pêndulo.

A obra de Copérnico, depois de muitas incertezas, apareceu com uma dedicatória ao Papa Paulo III.

Também podemos dizer que talvez não teria sido publicada se não fosse pelas pressões de um cristão protestante como Rheticus e por alguns clérigos. Em primeiro lugar, o cônego Tiedemann Giese, que se tornou depois Bispo de Julme, que é talvez o seu amigo mais íntimo, o primeiro a quem Copérnico havia revelado os "secretos conhecimentos astronômicos" [8] --- Giese foi também o autor, com outros clérigos depois dele, de um tratado sobre a compatibilidade entre o sistema heliocêntrico e a Bíblia ---; além dele, o Cardeal Nikolaus vom Schönberg, Arcebispo de Cápua e homem de confiança de três papas, que no dia 1º de novembro de 1536 escreveu a Copérnico para convidá-lo formalmente a publicar o livro de que tonha ouvido Widmannstetter falar tão bem (a carta de Von Schönberg foi colocada precisamente na abertura do De revolutionibus).

Nos primeiros anos que seguiram a publicação da obra, a hipótese de Copérnico sofreu, como é óbvio, os ataques quase exclusivamente dos aristotélicos, de inúmeros pares, de Melanchthon e de Lutero. 

Em 1616, durante o caso Galilei, uma comissão de teólogos da Sagrada Congregação condenou algumas teses do De revolutionibus, ordenando que o livro não fosse destruído, mas interditado "até que fosse corrigido". Em particular, as correções, que cabiam numa página, implicavam a supressão do capítulo VIII do livro I (que consistia na refutação do geocentrismo dos antigos) [9]. O teólogos se enganaram (justificados pelo fato de que a tese de Copérnico não fora comprovada) não tanto no universo pudesse lhe diminuir a importância, mas simplesmente porque sustentavam que alguma passagens da Bíblia devia ter tomada literalmente. Mas isso não tira de Copérnico ter sido uma das glórias da Igreja: filho, não por acaso, da Europa cristã e das suas universidades; filho da Igreja, na qual foi educado e onde viveu sempre seguindo suas próprias hipóteses cosmológicas, a partir da fé grega e cristã no ordenamento racional do mundo, que traz em si, com sua "maravilhosa simetria", os sinais da harmonia e da beleza do seu Artífice [10].

Um primado nos estudos astronômicos que a Igreja conservou por longo tempo. É verdade que por alguns séculos serão as catedrais católicos a agir como embrionários de observatórios astronômicos [11], enquanto que os primeiros "organizados com critérios profissionais" nasceram na Itália somente na segunda metade do século XVIII, e graças a três sacerdotes: Padre Beccaria em Turim, Padre Boscovich em Milão e D. Piazzi em Palermo [12]. Piazzi será também o primeiro a descobrir um pequeno planeta (Ceres, 1801), como o jesuíta Padre Angelo Secchi será o pai da espectroscopia e o sacerdote Georges Henri Joseph Édouard Lemaître o teórico do Big Bang e o pai da cosmologia contemporânea.


Notas:

[1] Paolo Musso, La scienza e l'idea di ragione. Mimesis, Milão, 2011.

[2] Dava Sobel, Il segreto di Copernico. Rizzoli, Milão, 2012.

[3] Diálogos sobre os dois grandes sistemas do mundo.

[4] "Até o quanto é permitido à razão por Deus".

[5] Mesa redonda com Francesco d'Arcais, Francesco Barone, Margherita Hack, Emilio Segrè, Boris Ulianich (filósofo, historiador e ex-senador da esquerda independente), La conoscenza dell'universo, em "Civiltà delle macchine", ano XXI, nn. 1-2, 1973. É claríssimo, portanto, para Copérnico, continua Ulianich, que a "máquina do mundo" do universo "remete a um Criador, postula um Criador".

[6] Musso, op. cit., p. 43.

[7] Copernico e lo studio di Ferrara, Clueb, Bolonha 2003.

[8] Sobel, op. cit., p. 34.

[9] Nicolau Copérnico, La struttura del cosmo, comentado por J. Seidengart, Olschki, Florença, 2009, p. 17. 

[10] Copérnico sustenta em várias ocasiões que a sua visão do universo tinha sido guiado pela ideia de que o sistema aristotélico-ptolomaico fosse muito complexo e portanto, "feio"; por outro lado, muito mais simples, unitário, elegante e belo, seria um universo em que o Sol estivesse no centro, como todas as consequências que isso poderia trazer. Ele escreveu: "Encontramos, portanto, nesta ordem uma maravilhosa simetria do universo e uma forte ligação de harmonia que une o movimento e a grandeza das esferas, que não se pode encontrar de outro modo" (De revolutionibus, livro I, cap. X). Comenta Seidegart: "Eis o critério decisivo que consagra o sucesso do sistema heliocêntrico porque permite reduzir toda irregularidade aparente a uma mesma e única causa sem nenhum resíduo. Copérnico descobriu, portanto, a ordem autêntica dos corpos celestes que exprime as perfeições do amor divino" (Copérnico, op. cit.). O capítulo X termina assim: "Tão grande é sem dúvida essa obra divina do sumo Artífice".

[11] J. Heilbron, Il sole nella Chiesa: Le grandi chiese come osservatori astronomici. Compositori, Bolonha, 2005.

[12] Piero Bianucci, Storia sentimentale dell'astronomia. Longanesi, Milão, 2012, p. 159.

***

Texto retirado de AGNOLI, Francesco; BARTELLONI, Andrea. Cientistas de batina: de Copérnico, pai do heliocentrismo, a Lemaìtre, pai do Big Bang. 1 ed. Ecclesiae, 2018.


Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Total de visualizações de página