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O professor e a docência em S. Tomás de Aquino

S. Tomás de Aquino, por Sandro Botticelli, 1481.

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Tempo de leitura: 27 minutos.

Artigo publicado em Notandum 33, set-dez 2013 - CEMOrOC-Feusp / IJI-Universidade do Porto e disponível no LINK.


O professor e a docência em Tomás de Aquino, por Jean Lauand [1]

Resumo: Este estudo, notas de comunicação oral no “XIV Seminário Internacional Cemoroc: Filosofia e Educação - Religião e Cultura”, analisa os fundamentos da docência em Tomás de Aquino: a interação professor aluno, a Pedagogia da admiração e o papel do concreto no pensamento e no ensino.

Palavras Chave: Tomás de Aquino. Docência. Ensino. Aprendizagem.

Abstract: This paper, originally a communication to the “XIV Seminário Internacional Cemoroc: Filosofia e Educação - Religião e Cultura”, examines the foundations of teaching according to Thomas Aquinas: teacher-student interaction, Pedagogy of wonder and the sense of concrete in thinking and teaching.

Keywords: Thomas Aquinas. Teaching. Learning.


Tomás de Aquino e a vocação de professor

Os grandes pensadores têm seus estilos, seus modos de filosofar, suas fontes de inspiração. Se Agostinho é fundamentalmente um escritor; Tomás é, por vocação, um professor e é na docência que forma seu pensamento.

Numa famosa passagem, seu primeiro biógrafo, Guilherme de Tocco afirma que, em suas aulas, Tomás introduzia novas questões, de maneira nova, com novos argumentos, com um método novo etc. Mesmo descontando a novidade “de conteúdo” de seu ensino, certamente há novidade em seu modo de ensinar: não por acaso o próprio Prólogo da monumental Suma Teológica é dedicado a propor uma alternativa às aborrecidas aulas/livros tão comuns na época.

O doutor da verdade católica deve não apenas ensinar aos que estão mais adiantados, mas também instruir os principiantes, segundo o que diz o Apóstolo: “Como a criancinhas em Cristo, é leite o que vós dei a beber, e não alimento sólido”. Por esta razão nos propusemos nesta obra expor o que se refere à religião cristã do modo mais apropriado à formação dos iniciantes. Observamos que os noviços nesta doutrina encontram grande dificuldade nos escritos de diferentes autores, seja pelo acúmulo de questões, artigos e argumentos inúteis; seja porque aquilo que lhes é necessário saber não é exposto segundo a ordem da própria disciplina, mas segundo o que vai sendo pedido pela explicação dos livros ou pelas disputas ocasionais; seja ainda pela repetição freqüente dos mesmos temas, o que gera no espírito dos ouvintes cansaço e confusão. No empenho de evitar esses e outros incovenientes, confiando no auxílio divino, apresentar a doutrina sagrada sucinta e claramente, conforme a matéria o permitir. (São Paulo: Paulus, 2001)

O professor assume o ponto de vista do iniciante: voz média

Essa tomada de posição ao lado dos novatos, dos alunos, dos jovens, já nos diz algo sobre a vocação de professor (e vocação, como ensina Julián Marías, é aquilo que não se pode deixar de fazer). Para além dos estereótipos com que políticos em campanha a maltratam, é certeira, em seu insuspeitado núcleo profundo, a sentença de Guimarães Rosa “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”: aprender é uma recompensa para o professor que assume o ponto de vista do iniciante.

Para compreender esse aprender do professor é necessário, antes de mais nada, desfazermo-nos das interpretações simplórias que pretendem homogeneizar professor e aluno: ninguém ensina, todos aprendem etc. E ver o que acontece, de algum modo, com o ensinar naquela misteriosa dialética da voz média.

Estamos tão acostumados a pensar que o verbo só admite duas formas de voz - voz ativa e voz passiva - que nem podemos imaginar uma terceira forma. Ativa e passiva - assim pensamos à primeira vista - esgotam todas as possibilidades (o que poderia haver além de "Eu bebi a água" e "A água foi bebida por mim"?) e na lígua espanhola a expressão "por activa y por pasiva" significa "todas as possibilidades", "todas as formas", como quando se diz: "Ya lo hemos intentado por activa y por pasiva, sin llegar a conseguir una solución". E como o pensamento está em dependência de interação dialética com a linguagem, o fato de nossa língua (como, em geral, as línguas modernas) não admitirem uma terceira opção - a voz média, que não é ativa nem passiva - constitui um grave estreitamento em nossas possibilidades de percepção da realidade, precisamente porque a língua nos impõe o binômio ativa/passiva. A voz média é um rico recurso - encontrado por exemplo no grego - , que permite expressar (e perceber e pensar) situações de realidade que não se enquadram bem como puramente ativas nem como puramente passivas. Isto é, há ações que são protagonizadas por mim, mas que, na realidade, não o são em grau predominante: há tal influência do exterior e de outros fatores que não posso propriamente dizer que são plenamente minhas. O eu - como na clássica sentença de Ortega - estende-se à circunstância: Yo soy yo y mi circunstancia. O latim se vale de verbos chamados depoentes precisamente para essas ações minhas mas que não são predominantemente minhas; eu as protagonizo, mas não sou senhor delas, estou condicionado fortemente por fatores que transcendem o eu e sua vontade de ação. É o caso, por exemplo, do verbo nascor, nascer (nascer-nascido). O verbo nascer, a rigor, não é ativo nem passivo: eu nasço ou sou nascido? Sim, certamente sou eu que nasço, mas estou longe de exercer de modo totalmente ativo e independente esta ação ("Com licença, eu vou nascer..."); e por isto o inglês usa nascer na passiva: I was born... O mesmo acontece, por exemplo com o morrer: a ação é minha, mas não o é... Com a perda da voz média, o português perdeu não apenas um recurso de linguagem, mas sobretudo um poderoso recurso de pensamento, de captação / expressão de imensas regiões da realidade. De fato, é uma violência para com a realidade que empreguemos, por exemplo, o verbo "surtar" como ativo: "O Giba é assim, ele surta a toda hora". Como se o pobre Gilberto tivesse algum controle sobre o que o faz surtar... As canções de Paulinho da Viola trabalham muito com a voz média. O samba “Timoneiro” - do qual procede o verso: "Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar..." - é um maravilhoso exemplo dessas ações que o latim expressa por verbos depoentes. Não sou plenamente dono do meu navegar; quem me navega é o mar. “E o mar não tem cabelos que a gente possa agarrar...”.

Referir-se ao ensinar como “ação puramente ativa”, independente, seria tão incompleto como considerar o dançar “ação puramente ativa”. Como dizia o poeta: “o verdadeiro bailarino não baila é bailado”: não se dança assim sem mais; dança-se com [2], dança-se “to the music” etc. E quando o parceiro é um Fred Astaire até um cabide é capaz de dançar...

E a mesma dependência se dá no ato de ensinar: no qual o aluno se apropria de algo que, em princípio era só do mestre; e vice-versa.

Em edição anterior deste evento, na conferência “Por uma Pedagogia da Admiração” [3] procuramos mostrar que, numa filosofia como a de Pieper e Tomás, o abalo da admiração está na base do filosofar e de todo conhecimento profundo, e então é necessário, pela própria natureza das coisas, que o aluno seja guiado a descobrir esse caráter admirável da matéria de que se trata (evidentemente, com isto não estamos nos referindo ao fato banal de que o professor deve tornar a matéria amena e interessante). O sentido íntimo do aprender consiste no conhecimento do mundo real e de sua estrutura e, por isso, para que haja verdadeira aprendizagem é necessário que o aluno seja guiado pelo caminho da admiração, de percepção do mirandum, daquilo que é admirável, onde o mundo perde seu caráter evidente e quotidiano.

Assim, do professor se exige – também dele – a capacidade de admirar-se! A admiração não é apanágio do aluno, que reflete sobre aquele tema por vez primeira. Precisamente um dos momentos em que a filosofia do ensino de Pieper torna-se mais penetrante é quando trata da comunicação professor-aluno: nessa mútua relação, cada um se apropria do que, em princípio, era só do outro.

Assim, o professor deve ter o carisma de algo muito mais profundo do que o mero domínio de “técnicas didáticas”: deve ser capaz, tal como Tomás de posicionar-se com os principiantes.

“É justamente isto o que caracteriza o professor: que ele se esforça e consegue e sai-se bem na tarefa de não só falar e formular, mas pensar a partir da situação do primeiro encontro” [4].

No contato com os alunos, o mestre adquire a simplicidade e a capacidade de admirar a realidade sem no entanto perder a maturidade e a experiência do espírito formado, uma simplicitas de atitude que deve se transformar em simplicitas de comunicação.

Do mesmo modo, aprender (sempre que se trate do genuíno aprender) é crescer numa realidade em que o estudante não teria ingresso, mas que lhe é tornada acessível por sua união confiada com o mestre, “pela identificação amorosa com quem ensina” [5] (Pieper lembra que o amor leva ao mútuo voltar-se e à semelhança e por isso dá-se essa troca entre mestre e aluno).

O aluno recebe do mestre a segurança de quem já trilhou o árduo caminho do conhecimento e a confiança de que é possível atingir a meta; o professor recebe do aluno o olhar de admiração.

A escola como skholé

Esse seu professar de professor é tão arraigado que Tomás tem de defender a possibilidade de um religioso dedicar-se ao estudo e à docência e mostrar que a docência é uma das formas mais elevadas de vida espiritual, em total harmonia com a vida contemplativa: Maius est illuminare quam lucere! Iluminar é mais do que ter luz. Escola deriva de skholé, aquela atitude indicada por Aristóteles como condição do filosofar: a tradução por “lazer” não seria perfeita, pois a skholé é principalmente atitude: a alma em festa que se abre para o saber. Talvez as escolas que preservem hoje o sentido de skholé sejam as escolas de samba: os integrantes dedicam-se com amor à escola e não precisam ser coagidos por listas de presença, ameaças de reprovação etc.

Nesse quadro, Tomás propugna por aulas agradáveis e divertidas: bem humoradas [6]. Ao tratar do brincar na Summa, a afirmação central de Tomás encontra-se em II-II,168,3 ad 3 : Ludus est necessarius ad conversationem humanae vitae, o lúdico é necessário para a vida humana (e para uma vida humana). Daí decorrem importantes conseqüências para a educação, entre elas a de que o ensino não pode ser aborrecido e enfadonho: o fastidium é um grave obstáculo para a aprendizagem [7].

Também na Suma, no tratado sobre as paixões, Tomás analisa um interessante efeito da alegria e do prazer na atividade humana, o que ele chama metaforicamente de dilatação: que amplia a capacidade de aprender, tanto em sua dimensão intelectual, quanto na da vontade (o que designaríamos, hoje, por motivação):

A largura é uma dimensão da magnitude dos corpos e só metaforicamente aplica-se às disposições da alma. “Dilatação” indica uma extensão, uma ampliação de capacidade e se aplica à “deleitação” [Tomás joga com as palavras dilatatio-delectatio] com relação a dois aspectos. Um provém da capacidade de apreender que se volta para um bem que lhe convém e, por tal apreensão, o homem percebe que adquiriu uma certa perfeição que é grandeza espiritual: e por isso se diz que pela deleitação sua inteligência cresceu, houve uma dilatação. O segundo aspecto diz respeito à capacidade apetitiva que assente ao objeto desejado e repousa nele como que abrindo-se a ele para captá-lo mais intimamente. E, assim, dilata-se o afeto humano pela deleitação, como que entregando-se para acolher interiormente o que é agradável (I-II, 33, 1).

Já a tristeza e o fastio produzem um estreitamento, um bloqueio, ou, para usar a metáfora de Tomás, um peso que bloqueia o espírito (aggravatio animi) [8]. Daí que Tomás recomende a quem ensina, o uso didático de formulações divertidas: para descanso dos ouvintes e para que seja ouvido com gosto (libenter audiat - II-II,177,1): o que acontece quando “se fala, de tal modo que deleite os ouvintes” (dum aliquis sic loquitur quod auditores delectet - II-II,177,1).

E, tratando do relacionamento humano em geral, Tomás chega a afirmar que ninguém agüenta um dia sequer com uma pessoa aborrecida e desagradável [9]. Em outras palavras: chatice é pecado e aula aborrecida ofende a Deus.

O referencial antropológico de Tomás: “Anima forma corporis

Naturalmente, a pedagogia de Tomás assenta-se sobre sua concepção de homem.

Há, para a compreensão dessa antropologia, um parágrafo da Contra Gentiles extremamente sugestivo e que resume, como num espelho convexo, algumas das principais teses de que nos ocuparemos aqui. Discutindo “de que modo a alma espiritual pode ser forma do corpo” - precisamente um de nossos temas fundamentais -, Tomás afirma:

Sempre se verifica o fato de que o ínfimo de uma ordem de ser superior é limítrofe ao supremo da ordem inferior. Assim, certos ínfimos do gênero animal, mal superam a vida das plantas, como é o caso da ostra, que é imóvel, só tem tato e está fixa como as plantas. Daí que S. Dionísio diga que `a sabedoria divina enlaçou os fins dos superiores com os princípios dos inferiores'. No âmbito corporal há também algo, o corpo humano, harmonicamente disposto, que também se enlaça com o ínfimo do superior, a alma humana, que está no último grau das realidades espirituais. Tal enlace manifesta-se no próprio modo de conhecer da inteligência humana. Daí que a alma espiritual humana seja como que um certo horizonte e fronteira entre as realidades corpóreas e as incorpóreas: ela mesma é incorpórea e, no entanto, é forma de corpo (CG 2,68).

Destaquemos o ponto mais importante para nós: a afirmação de que a alma é forma do corpo ("anima forma corporis") é a afirmação de uma profunda unidade. Unidade entre o espiritual e o material, no ser humano; unidade entre o intelectual e o sensível, no conhecimento!

Em torno desse marco essencial, discutiremos, brevemente, a posição de Tomás em relação a alguns aspectos do conhecimento e do ensino.

Espírito e matéria: o objeto próprio da inteligência

A unidade da filosofia de Tomás, manifesta-se em diversos âmbitos: não só a constituição fundamental do ser humano dá-se por integração de espírito e matéria (é precisamente isto o que significa a sentença central "anima forma corporis"), mas também na ordem da operação - sobretudo no caso do conhecimento - ocorre a mesma harmônica unidade.

Não operamos diretamente pela alma, mas por meio de suas potências. Em um ato tão simples como, digamos, um homem ver a cor de uma árvore, intervém uma constelação de fatores: Fulano de Tal [10], que vê porque tem alma [11]; mas a alma não é princípio imediato da operação, ela age, no caso, por meio de sua potência visual, cujo ato incide sobre o objeto cor (obiectum formalis), que por sua vez radica no objeto árvore.

Ora, cada potência da alma é proporcionada a seu objeto: a potência auditiva não capta cores, a potência visual não atua sobre aromas.

O caso do conhecimento intelectual é mais complexo: o intelecto é reconhecido, por Tomás, como capaz de abertura, sem limites, para o real. Diz ele:

As naturezas intelectuais, porém, têm maior afinidade com o todo do que as outras naturezas; pois, uma substância intelectual qualquer é, de certo modo, todas as coisas, já que pode apreender a totalidade do real pelo seu intelecto; ao passo que qualquer outra substância participa apenas de um setor particular do ser" (CG 3, 112).

e

Diz-se que a alma é de certo modo todas as coisas porque é naturalmente apta para conhecer tudo. E, desse modo, é possível que num único ente esteja toda a perfeição do universo. Daí que esta seja, segundo os filósofos (pagãos), a plenitude de perfeição a que a alma pode aspirar: reproduzir em si a ordem do universo como um todo e suas causas" (Ver. 2,2).

Essa abertura para o todo é, aliás, precisamente, a concepção clássica de espírito, que é a característica dos entes dotados de intelecto: “A alma espiritual - diz Tomás na sua pesquisa sobre a verdade - está essencialmente disposta a ‘convenire cum omni ente’ (...) o ser espiritual ‘é capaz de apreender a totalidade do real’” [12].

O homem, capax universi, chamado a relacionar-se com o todo do real (convenire cum ommni ente) [13], realiza essa vocação do espírito a partir do sensível, da experiência, que incide sobre o fenômeno. Daí que naquela passagem básica (CG 2,68), citada no tópico anterior, Tomás tenha dito que o enlace espírito-matéria “manifesta-se no próprio modo de conhecer da inteligência humana”, uma inteligência espiritual integrada ao sensível.

Assim se compreende o extraordinário relevo que Tomás, em sua doutrina sobre o conhecimento, dá ao concreto, ao fenômeno, ao sensível: “É conatural ao homem atingir o conhecimento do inteligível pelo sensível. E é pelo signo que se atinge o conhecimento de alguma outra coisa” [14].

Como vimos, dizer que a inteligência é uma faculdade espiritual é dizer que seu campo de relacionamento é a totalidade do ser: todas as coisas visíveis e invisíveis são-lhe, em princípio, objeto. Contudo, a relação da inteligência humana com seus objetos não é uniforme. Dentre os diversos entes e diferentes modos de ser, alguns são mais direta e imediatamente acessíveis à inteligência.

É o que Tomás chama de objeto próprio de uma potência: aquela dimensão da realidade que se ajusta, por assim dizer, sob medida, à potência [15]. Não que a potência não possa incidir sobre outros objetos, mas o obiectum proprium é sempre a base de qualquer captação: se pela visão, captamos, por exemplo, número e movimento (digamos, sete pessoas correndo), é porque vemos a cor, objeto próprio da visão.

Próprio da inteligência humana - potência de uma forma ordenada à matéria - é atingir a essência a partir da sensação: seu objeto próprio são as essências das coisas sensíveis. “O intelecto humano, porém - diz Tomás, contrapondo a inteligência do homem à do anjo -, que está acoplado ao corpo, tem por objeto próprio: a essência, a natureza das coisas existentes corporalmente na matéria. E, mediante a natureza das coisas visíveis, ascende a algum conhecimento das invisíveis” [16].

Nessa afirmação, central, espelha-se, como dizíamos, a própria estrutura ontológica do homem.

O conhecimento a partir do sensível, base da Pedagogia do concreto.

Dessa afirmação decorre, imediatamente, que mesmo as realidades mais espirituais são alcançadas através do sensível. "Ora - prossegue Tomás -, tudo o que nesta vida conhecemos, é conhecido por comparação (per comparationem) com as coisas sensíveis naturais" [17].

Essa sentença, além do mais, sugere-nos que o sentido extensivo e metafórico está presente na linguagem de modo muito mais amplo e intenso do que, à primeira vista, poderíamos supor. E é neste enquadramento que se compreende a doutrina de Tomás como Pedagogia do concreto: todo o nosso conhecimento – mesmo o mais espiritual, mesmo o mais abstrato – dá-se per comparationem ad res sensibiles naturales [18].

Ao contrário dos anjos - diz Tomás (I,107,1, corpus e ad1) -, que “falam” diretamente entre si, o pensamento de um homem está oculto (clauditur mens hominis) para outros homens pela “espessura” do corpo (grossitiem corporis). E, assim, é necessário, para a manifestação do pensamento, a mediação do signo sensível. Esta é a razão pela qual a educação, a comunicação e o ensino dão-se por comparação com a realidade sensível (exemplo): “Daí que também quando queremos fazer alguém entender algo, propomos-lhe exempla” [19].

Na base de todo ensino, sempre está o retorno ao concreto. Na famosa questão sobre o ensino - I, 117, 1 -, Tomás afirma que um homem nada pode ensinar a outro homem, senão movendo, pelo seu ensino “o discípulo a que este, por sua própria inteligência, forme os conceitos intelectuais, cujos signos o mestre lhe propõe exteriormente” (I, 117, 1 ad 3).

Se o conhecimento que se obtém por busca própria dá-se pela aplicação de princípios universais a casos particulares – que recebe da memória ou da experiência, proporcionadas pelos sentidos [20] –, o mesmo ocorre com o ensino.

Portanto, o mestre pode contribuir para a aprendizagem do discípulo, propondo-lhe alguns auxílios para a inteligência, como: proposições menos universais (cum proponit ei aliquas propositiones minus universales), exemplos sensíveis (sensibilia exempla) ou comparações (similia) que conduzam o intelecto do educando ao conhecimento das verdades desconhecidas.

Para Tomás, o próprio Deus (que, pelo Seu conhecimento, criou o homem) assume essa pedagogia. Ao discutir a legitimidade do uso de metáforas e parábolas na Sagrada Escritura, Tomás afirma a conveniência do ensino por comparações (sub similitudine corporalium) [21], pois o ensino por comparações sensíveis é o mais adequado à natureza do homem, espírito intrinsecamente unido à matéria (conveniens est... spiritualia sub similitudine corporalium tradere). “É conatural ao homem atingir o inteligível pelo sensível, pois todo conhecimento tem, para nós, origem no sensível” [22].

E na parte mais nobre do artigo [23], o sed contra, Tomás lembra que Deus diz da revelação de Si mesmo: "Pelos profetas proponho símiles" [24].

Na filosofia da educação de Tomás, encontramos ainda outras importantes considerações sobre a Pedagogia do concreto, mas, neste evento, limitar-nos-emos às acima indicadas.

Recebido para publicação em 09-03-13; aceito em 21-04-13

Notas:

[1] Prof. Titular Sênior da Feusp. Prof. Titular dos Programas de Pós Graduação em Educação e em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. ejanlaua@usp.br.

[2] Nesse sentido, em um de seus shows de fim de ano, Roberto Carlos, meio sem jeito expressou essa verdade - tão evidente quanto esquecida - ao anunciar que ia interpretar a canção de Mc Leozinho: “Se ela dança, eu danço”: “Esse ano eu estava ouvindo rádio e um dia ouvi uma canção, um funk. E fiquei pensando: caramba, que letra maneira! Verdade! Um funk com uma letra que é uma poesia, uma coisa bonita, da maior simplicidade (...). Esse funk aí dá até que dava para eu cantar...” (www.youtube.com/watch?v=8ehUQ wRIV0I).

[3] http://www.hottopos.com/isle10/23-34Jean.pdf

[4] Pieper, J. “Thomas von Aquin als Lehrer” in Weistum-Dichtung-Sakrament. München: Kösel, 1954, p. 147.

[5] Ibidem, p. 147.

[6] Veja-se, a este respeito, nosso “Deus Ludens - O Lúdico no Pensamento de Tomás de Aquino”, prova de erudição do concurso de Professor Titular na Feusp: www.hottopos.com/notand7/jeanludus.htm#_ftn1.

[7] Suma Teológica, prólogo.

[8] I-II, 37, 2, ad 2.

[9] I-II, 114, 2 ad 1.

[10] O sujeito último da operação de ver, que exerce este ato precisamente porque é um vivente, isto é dotado de alma.

[11] A alma não só é principium vitae (I,75,1 etc.) e - para retomar as duas clássicas definições do De Anima - ato primeiro do corpo natural organizado (“Anima est actus primus corporis physici organici habentis vitam in potentia” - II De Anima I 230), mas também princípio de operações, aquilo pelo que primeiramente sentimos e conhecemos intelectualmente (“Anima est primum quo et vivimus, et sentimus, et movemur, et intelligimus” - II De Anima 4 273).

[12] PIEPER, Josef Was heisst Philosophieren?, 8. Aufl., München, Kösel, 1980, p. 44.

[13] As citações de S. Tomás encontram-se respectivamente na Contra Gentiles III, 112 e De Veritate I, 1.

[14] III,60,4. Tomás usa signum para "palavra" e também no sentido de exemplos sensíveis, comparações com realidades concretas (e para muitos outros "sinais") etc. A atitude de Tomás de voltar-se para a realidade concreta, manifesta-se também no modo como considera a palavra uma realização especial do signo (signum), que, por sua vez, é "aquilo pelo que alguém chega a conhecer algo de outro" (III,60,4). O signo leva o sujeito a um conhecimento novo - a conhecer algo diferente do próprio signo. Naturalmente, há uma infinita variedade de signos: desde a fumaça, signo que indica o lugar e a intensidade do fogo, à bandeira branca da rendição. A palavra também é um signo: vox, quae non est significativa, verbum dici non potest (I,34,1), o som animado só é palavra se for significativo. Próprio da palavra é a significatio; não, porém, uma significação qualquer, mas aquela que pressupõe sempre um conceito; a palavra só se dá onde há conhecimento intelectual. Locutio est proprium opus rationis (I,91,3 ad 3); "falar -diz Tomás- é operação própria da inteligência". Ora, entre a realidade designada pela linguagem e o som da palavra proferida, há um terceiro elemento, essencial na linguagem, que é o conceptus, o conceito, a palavra interior (verbum interius), que se forma no espírito de quem fala e que se exterioriza pela linguagem, que constitui seu signo audível (o conceito, por sua vez, tem sua origem na realidade). Mas, se a palavra sonora é um signo convencional (a água pode chamar-se água, water, eau etc.), o conceito, pelo contrário, é um signo necessário da coisa designada: nossos conceitos se formam por adequação com a realidade (Esta nota resume idéias apresentadas no excelente capítulo de Josef Pieper "Was heisst Gott Spricht?" in Über die Schwierigkeit heute zu Glauben, München, Kösel, 1974).

[15] Ou, melhor dito, vice-versa...

[16] "Intellectus autem humani, qui est coniunctus corpori, proprium obiectum est quidditas sive natura in materia corporali existens; et per huiusmodi naturas visibilium rerum etiam in invisibilium rerum aliqualem cognitionem ascendit" (I,84,7).

[17] "Omnia autem quae in presenti statu intelligimus, cognoscuntur a nobis per comparationem ad res sensibiles naturales"(I,84,8).

[18] No ad tertium (da mesma I,84,8), Tomás enfrenta a objeção de que conhecemos realidades totalmente incorpóreas, sem imagens (como Deus ou a própria verdade): "Conhecemos as realidades incorpóreas, das que não possuímos imagens por comparação com os corpos sensíveis, dos que possuímos imagens". E conclui dizendo que só podemos conhecer a Deus por negação e por alguma comparação com a realidade corporal.

[19] "Et inde est etiam quod quando alium volumus facere aliquid intelligere, proponimus ei exempla" (I,84,7). Na época de S. Tomás, a palavra latina exempla (e suas correspondentes nas nascentes línguas nacionais: eisemple, enxiempla etc.) era usada para uma gama muito extensa, que abrange comparações, metáforas, parábolas, provérbios etc., como se pode comprovar até nos títulos das traduções que se apresentam em LAUAND, L. J. (org.) Oriente e Ocidente: Idade Média: Cultura Popular, S. Paulo, EDIX/ DLO-FFLCHUSP, 1995.

[20] Universalia principia applicat ad aliqua particularia, quorum memoriam et experimentum per sensum accipit. Tenha-se em conta que sentido, sensus, para Tomás não se refere somente aos sentidos externos, mas também aos internos, como a imaginação, a vis cogitativa etc.

[21] I, 1, 9.

[22] "Est autem naturale homini ut per sensibilia ad inteligibilia veniat: quia omnis nostra cognitio a sensu initium habet" (I,1,9).

[23] O citado I,1,9.

[24] "Et in manibus prophetarum assimilatus sum" (Os 12,10).

***

Leia mais em Dez mandamentos para professores

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