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A língua latina e a Igreja


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Constituição Apostólica Veterum Sapientia - sobre o uso do Latim por Papa João XXIII 

1. A antiga sabedoria, contida nas obras literárias romanas e gregas, bem como os memoráveis ensinamentos dos antigos povos, devem ser entendidos como a aurora anunciadora do Evangelho, que o Filho de Deus, «juiz e mestre da graça e da ciência, luz e guia do gênero humano [1] anunciou nesta terra. De fato, os Padres e Doutores da Igreja reconheceram nestes antiqüíssimos e importantíssimos monumentos literários uma certa preparação dos ânimos para receber a celeste riqueza que Jesus Cristo «quando da plenitude dos tempos» [2], comunicou aos mortais; disto resulta claramente que, com o advento do Cristianismo, não se perdeu o quanto de verdade, de justo, de nobre e também de belo os séculos passados tinham produzido.

2. Por isso a Santa Igreja teve sempre em grande consideração os documentos daquela sabedoria e antes de tudo as línguas Latina e Grega, como vestimentas douradas da mesma sabedoria; aceitou ainda o uso de outras veneráveis línguas que floresceram nas regiões orientais, que muito contribuíram para o progresso do gênero humano e da civilização; as mesmas, usadas nas cerimônias religiosas ou na interpretação das Sagradas Escrituras, têm muito vigor ainda hoje em algumas regiões, como contínuas vozes de um uso antigo ainda vigoroso.

3. Na variedade destas línguas certamente se distingue aquela que, nascida no Lazio, depois auxiliou admiravelmente a difusão do Cristianismo nas regiões ocidentais. E ainda, não sem disposição da Divina Providência acontece que a língua, que por muitíssimos séculos havia unido tantos povos sob o Império Romano, tornou-se a própria língua da Sé Apostólica [3] e, guardada pela posteridade, uniu num mesmo vínculo, uns com outros, os povos cristãos da Europa.

De fato, pela sua própria natureza, a língua latina é capaz de promover, junto a qualquer povo, toda a forma de cultura; e como não suscita inveja e se apresenta imparcial para todos os povos, não é privilégio de ninguém, e, enfim, a todos aceita e reúne. Não se deve esquecer que a língua latina tem uma nobreza de estrutura e de gramática, permitindo a possibilidade de «um estilo conciso, rico, harmonioso, cheio de majestade e de dignidade» [4], que singularmente contribui à clareza e à seriedade.

4. Por estes motivos a Santa Sé cuidou carinhosamente da conservação e do desenvolvimento da língua latina e a considera digna de usar-la «como magnífica veste da doutrina celeste e das santíssimas leis» [5], no exercício do seu magistério, e quer que também seus ministros a usem. De fato, estes homens da Igreja, onde quer que se encontrem, usando a língua de Roma, podem mais rapidamente vir a saber o que se refere à Santa Sé e ter com ela e entre eles uma comunicação mais ágil.

«O conhecimento pleno e o uso dessa língua, tão ligada à vida da Igreja, não importa tanto à cultura e às letras quanto à Religião» [6], como o nosso predecessor de imortal memória Pio XI nos ensinou; ele, ocupando-se cientificamente do tema, indicou claramente os três dons dessa língua, de um modo admirável, conforme a natureza da Igreja: «De fato a Igreja, como mantém unidos no seu conjunto todos os povos e durará até a consumação dos séculos... exige, pela sua natureza, uma linguagem universal, imutável, não vulgar» [7].

5. E como é preciso, na verdade, que «cada Igreja se una à Igreja Romana» [8] e, do momento em que os Sumos Pontífices têm «autoridade episcopal, ordinária e imediata sobre todas as Igrejas e sobre cada Igreja em particular, sobre todos os pastores e sobre cada pastor e seus fiéis» [9] de qualquer rito, de qualquer nação, de qualquer língua que sejam, parece ser conseqüência natural que o meio de comunicação seja universal e o mesmo para todos, especialmente entre a Sé Apostólica e as Igrejas que seguem o mesmo rito latino. Assim, tanto os Pontífices Romanos, quando querem comunicar algum ensinamento aos povos católicos, como os Dicastérios da Cúria Romana, quando tratam de assuntos, quando emitem decretos dirigidos a todos os fiéis, usem sempre a língua latina, que é recebida por incontáveis pessoas, como voz da mãe comum.

6. E é necessário que a Igreja use uma língua não só universal, mas também imutável. Se, de fato, as verdades da Igreja Católica fossem confiadas a algumas ou a muitas línguas modernas que estão sujeitas a contínua mudança, e ainda, as quais nenhuma tem sobre as outras maior autoridade e prestígio, resultaria, sem dúvida alguma que, devido às suas variações, não seria manifestado a muitos com suficiente precisão e clareza o sentido de tais verdades, nem, de outro lado, poderíamos dispor de alguma língua comum e estável, com que confrontar o significado das outras. Pelo contrário, a língua latina, há tempo imune àquelas variações que o uso diário do povo costuma introduzir nas palavras, deve ser considerada estável e imóvel, visto que o significado de algumas novas palavras que o progresso, a interpretação e a defesa das verdades cristãs exigem, já foram há tempo definitivamente adquirido e precisado.

7. Finalmente, como a Igreja Católica, tendo sido fundada por Cristo Nosso Senhor, excede significativamente em dignidade a todas as sociedades humanas, é sumamente conveniente que ela use uma língua não popular, mas rica de majestade e de nobreza.

8. Além disso, a língua latina, que «com todo o direito podemos chamar católica» [10], pois é própria da Sé Apostólica, mãe e mestra de todas as Igrejas, e consagrada pelo uso perene, deve ser mantida como «tesouro de incomparável valor» [11] e como porta através da qual se abre a todos o acesso às mesmas verdades cristãs, transmitidas dos antigos tempos, para interpretar o testemunho da doutrina da Igreja [12] e, enfim, o mais idôneo vínculo, mediante o qual a época atual da Igreja se mantém unida aos tempos passados e ao futuro de modo admirável.

9. Na verdade, ninguém pode duvidar que a língua latina e a cultura humanística sejam providas daquela força intrínseca, e mais capacitada, a instruir e formar as tenras mentes dos jovens. Através dela, de fato, formam-se, amadurecem, se aperfeiçoam as melhores capacidades da alma; a finura da mente e a capacidade de juízo se aguçam; além disso, a inteligência da criança é mais convenientemente preparada para compreender e julgar no justo senso cada coisa; enfim, aprende-se a pensar e a falar com suma ordem.

10. Refletindo sobre todos estes méritos, compreende-se porque os Pontífices Romanos tão freqüente e sumamente louvaram não só a importância e a excelência da língua latina, mas também prescreveram seu estudo e sua prática aos ministros sagrados de todo o clero, sem omitir em denunciar os perigos derivantes do seu abandono.

Também Nós, impelidos por esses gravíssimos motivos, como os nossos Predecessores e Sínodos Provinciais [13], com a firme vontade queremos nos empenhar para que o estudo e o uso desta língua, restituída à sua dignidade, faça sempre maiores progressos. E como neste nosso tempo começou-se a contestar em muitos lugares o uso da língua Romana e muitíssimos pedem o parecer da Sé Apostólica sobre tal assunto, decidimos, com oportunas normas enunciadas neste documento, proceder de tal modo que o antigo e jamais interrupto costume da língua latina seja conservado e, se de alguma forma ele foi colocado em desuso, seja completamente restabelecido.

Além disso, como é o nosso pensamento sobre tal tema, acreditamos tê-lo suficiente e claramente declarado quando dirigimos estas palavras a ilustres estudiosos do Latim: «Infelizmente há muitos que, seduzidos exageradamente pelo extraordinário progresso das ciências, têm a presunção de repelir ou de limitar o estudo do Latim e de outras disciplinas do gênero... Justamente movidos por esta necessidade, Nós julgamos que se deva tomar o caminho oposto. E como a alma se nutre e compenetra de tudo aquilo que mais honra a natureza e a dignidade do homem, com maior ardor se deve assimilar aquilo que enriquece e embeleza o espírito, para que os míseros mortais não sejam frios, áridos e privados de amor, como as máquinas que fabricam» [14].

11. Após ter examinado e considerado atentamente estas coisas, com a segura consciência do Nosso serviço, e no exercício da Nossa autoridade, definimos e ordenamos o quanto segue:

§ 1. Que os Bispos e os Superiores das Ordens religiosas se empenhem eficazmente para que nos seus Seminários e nas suas Escolas, nas quais os jovens são preparados para o sacerdócio, todos se voltem com empenho à vontade da Sé Apostólica e obedeçam com a maior diligência a estas Nossas prescrições.

§ 2. Os mesmos Bispos e Superiores Gerais das Ordens religiosas, movidos de paterna solicitude, deverão vigiar para que nenhum dos seus subordinados, ansioso de novidades, escreva contra o uso da língua latina no ensino das sagradas disciplinas e nos sagrados ritos da Liturgia e, com opiniões preconceituosas, se permita de diminuir a vontade da Sé Apostólica na matéria e de interpretá-la erroneamente.

§ 3. Como está estabelecido nas disposições quer do Código do Direto Canônico quer pelos Nossos Predecessores, os aspirantes ao Sacerdócio, antes de iniciar os estudos eclesiásticos verdadeiros e específicos, sejam instruídos na língua latina com sumo cuidado e com método racional, por mestres extremamente capazes, por um conveniente período de tempo, «também para que, atingindo disciplinas que exigem maior empenho... não aconteça que, ignorando a língua, não possam alcançar a completa compreensão das doutrinas e nem mesmo exercitar-se nas discussões escolásticas, por meio das quais a mente dos jovens se afinam na defesa da verdade» [15]. E queremos que esta norma seja estendida também àqueles que, chamados pela vontade divina a receber as sagradas ordens em idade avançada, se aplicaram pouco ou nada nos estudos humanísticos. Ninguém, na verdade, deve ser introduzido no estudo das disciplinas filosóficas ou teológicas se não tenha sido plena e perfeitamente instruído nesta língua e saiba bem usá-la.

§ 4. Se, ainda, em algum país, por ter adotado um programa de estudo próprio de escolas públicas do Estado, o estudo da língua latina tenha sofrido diminuições prejudiciais a um ensinamento sólido e eficiente, decretamos que, em tal caso, seja completamente restabelecida a ordem tradicional do ensino de tal língua para a formação dos sacerdotes: porque todos devem persuadir-se que, também neste campo, o método de instrução dos futuros sacerdotes deve ser escrupulosamente defendido, não só quanto ao número e gênero das matérias, mas também relativamente aos períodos de tempo necessários para ensiná-las. E se, por exigências circunstanciais de tempo e de lugar, se devem acrescentar, por necessidade, disciplinas comuns, nesse caso ou se prolongue o curso dos estudos ou se resuma a matéria, ou, enfim, se adie o estudo para um outro momento.

§ 5. As mais importantes disciplinas sagradas, como foi freqüentemente ordenado, devem ser ensinadas na língua latina, a qual, como o demonstra a experiência de muitos séculos, «é reconhecida como a mais apta para explicar a íntima e a profunda natureza das noções e das formas com absoluta clareza e lucidez» [16]; com mais razão ainda porque ela se enriqueceu com palavras apropriadas e precisas, para defender inequivocamente a integridade da fé católica, e não sujeita a dubiedades de qualquer vazia verbosidade. Por isso, aqueles que na Universidade ou nos Seminários ensinam tais disciplinas são obrigados a falar em Latim e usar textos escritos em Latim. Se alguns, por ignorar a língua latina, não podem obedecer estas prescrições da Santa Sé, devem ser gradativamente substituídos por docentes especificamente preparados para tal. Se, ainda, alunos e professores apresentem dificuldades, é preciso que estas sejam vencidas pela firmeza dos Bispos e dos Superiores religiosos e pela boa disposição dos docentes.

§ 6. Como a língua latina é língua viva da Igreja, que deve ser continuamente adequada às crescentes necessidades da linguagem e enriquecida com novos apropriados e convenientes vocábulos, segundo uma regra constante, universal e conforme o espírito da antiga língua latina – regra já seguida pelos Santos Padres e pelos melhores escritores «escolásticos» -- confiamos a responsabilidade à Sagrada Congregação dos Seminários e das Universidades de Estudos de fundar uma Academia de Estudos latinos. Tal Academia, na qual é preciso que seja constituído um Colégio de Professores especializadíssimos em Latim e Grego, convocados de diversas partes do mundo, será sobretudo destinada a, não diferentemente do que acontece nas Academias nacionais constituídas para o incremento das línguas nacionais dos respectivos países, prover ao mesmo tempo um ordenado desenvolvimento do estudo da língua latina e acrescentar, se preciso, o léxico com palavras adequadas à sua natureza e ao seu caráter, e que tenha, paralelamente, cursos sobre o Latim para cada época, mas principalmente da época Cristã. Nessas escolas, todos os estudantes serão também instruídos para uma consciência mais profunda do latim, ao seu uso, a um modo de escrever apropriado e elegante, ou a ensiná-lo nos Seminários e nos Colégios eclesiásticos, ou a redigir decretos ou sentenças, ou a melhorar a correspondência das Congregações da Santa Sé, nas Cúrias, nas Dioceses, nos escritórios das Ordens religiosas.

§ 7. Como a língua latina está estreitamente ligada à grega, e pelo conjunto da sua estrutura e importância dos seus textos transmitidos de geração em geração, é necessário que também nesta sejam instruídos os futuros ministros das artes das escolas inferiores e médias, como muitas vezes os Nossos Predecessores ordenaram, para que, quando se aplicarem às disciplinas superiores, em especial os cursos acadêmicos sobre as Sagradas Escrituras e a Sagrada Teologia, eles tenham as condições necessárias para se aproximar e interpretar exatamente não só as fontes gregas da filosofia «escolástica», mas também os textos originais das Sagradas Escrituras, da Liturgia e dos Padres gregos.

§ 8. Ordenamos ainda à mesma Sagrada Congregação de preparar um programa de estudos da língua latina, que todos devem observar com extremo cuidado, de modo que, todos que o seguirem adquiram o respectivo conhecimento e prática daquela língua. Se for necessário, as Comissões dos Ordinários poderão regular diversamente o programa, mas nunca alterar ou diminuir sua natureza e o seu fim. Entretanto, os Bispos não devem atuar conforme suas decisões sem a devida análise e aprovação da Sagrada Congregação.

12. Finalmente, em virtude da Nossa Autoridade Apostólica queremos e ordenamos que quanto estabelecemos, decretamos, ordenamos nesta Nossa Constituição seja definitivamente fixado e sancionado, não obstante quaisquer prescrições em contrário, embora digna de especial menção.

Dado em Roma, junto a S. Pedro, no dia 22 de fevereiro, Festa da Cátedra de S. Pedro Apóstolo, no ano de 1962, quarto do Nosso Pontificado. 

João Papa XXIII.

Notas:

[1] TERTULL., Apol., 21: Migne, P. L., 1, 394.

[2] S. PAOLO, Epist. agli Efesini, 1, 10. 

[3] Epist. S. Congr. Stud. Vehementer sane ad Ep. universos, 1-7-1908: Enchirid. Cler. n° 830. Cfr. anche Epist. Ap. Pio XI Unigenitus Dei Filius, 19-3-1924: A.A.S. 16 (1924), 141. 

[4] Pio XI, Epist. Ap. Officiorum omnium, 1-8-1922: A.A.S. 14 (1922), 452-453.  

[5] Pio XI, Motu Proprio Litterarum Latinarum, 20-10-24: A.A.S. 

[6] Pio XI, Epist. Ap. Officiorum omnium, 1-8-1922: A.A.S. 14 (1922), 452. 

[7] Ibidem. 

[8] S. IRENEO, Adv. Hær, 3, 3, 2: Migne, P. G., 7, 848. 

[9] Cfr. C.I.C., can. 218, par. 2. 

[10] Cfr. Pio XI, Epist. Ap. Officiorum omnium, 1-8-1922: A.A.S. 14 (1922), 453. 

[11] Pio XII, Alloc. Magis quam, 23-11-1951: A.A.S. 43 (1951), 737. 

[12] Leone XIII, Epist. Encicl. Depuis le Jour, 8-9-1899: Acta Leonis XIII 19 (1899), 166. 

[13] Cfr. Collectio Lacensis, soprattutto vol. III, 1018 s. (Conc. Prov. Wesmonasteriense, a. 1859); vol. IV, 29 (Conc. Prov. Parisiense, a. 1849); vol. IV, 149, 153 (Conc. Prov. Rhemense, a. 1849); vol. IV, 359, 361 (Conc. Prov. Amenionense, a. 1849); vol. IV, 394, 396 (Conc. Prov. Burdigalense, a. 1850); vol. V, 61 (Conc. Prov. Strigoniense, a. 1858); vol. V, 664 (Conc. Prov. Colocense, a. 1863); vol. VI, 619 (Synod. Vicariatus Sutchenensis, a. 1803). 

[14] Al Congresso Internazionale Ciceronianis Studiis provehendis, 7-9-1959: in Discorsi, Messaggi, Colloqui del S. Padre Giovanni XXIII, I, pp. 334-335; cfr. anche Alloc. ad cives diocesis Placentinæ Roman peregrinantes habita, 15-4-1959: su L'Osservatore Romano, 16-4-1959; Epist. Pater misericordiarum, 22-8-1961: A.A.S. 53 (1961); Alloc. in solemni auspicatione Insularum Philippinarum de Urbe Habita, 7-10-1961: su L'Osservatore Romano, 9-10 ottobre 1961; Epist. Iucunda laudatio, 8-12-1961: A.A.S. 53 (1961), 812. 

[15] Pio XI, Epist. Ap. Officiorum omnium, 1-8-1922: A.A.S. 14 (1922), 453. 

[16] Epist. S. Congr. Stud. Vehementer sane ad Ep. universos, 1-7-1908: Enchirid. Cler. n° 821. 

NOTA: como não encontramos em nenhum site oficial da Igreja Católica (desde o site do Vaticano, passando pelo site da CNBB, CELAN, etc.) a versão na língua portuguesa da importantíssima CONSTITUIÇÃO APOSTÓLICA VETERUM SAPIENTIA, promulgada pelo Papa João XXIII em fevereiro de 1962, tomamos a iniciativa de lhes apresentar a tradução que elaboramos a partir da versão italiana, publicada no site UNAVOX - http://www.unavox.it/doc05.htm.

Assim, solicitamos a todos que nos informem de eventual publicação oficial da Igreja naquela língua, para que possamos imediatamente substituir a nossa versão, acima, pela oficial.

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Leia mais em Quem matou o Latim nas escolas?

Leia mais em A Verdadeira Importância do Latim, por Napoleão Mendes



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Educação Clássica: um modelo de retórica

Retrato de Antonio Vieira (1608-1697), padre e escritor
jesuíta português, evangelizador dos Índios do Brasil -
Gravura de Arnold van Westerhout (1651-1725)


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Apresentamos o Sermão da Sexagésima, de Padre António Vieira, texto que demonstra bem as partes de um discurso retórico estudados na Educação Clássica. Disponível no LINK. Grifos nossos.

Fonte: Sermões Escolhidos. v.2, São Paulo: Edameris, 1965.

Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br> A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo. Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Texto-base digitalizado por: NUPILL - Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística <http://www.cce.ufsc.br/~alckmar/literatura/literat.html> Universidade Federal de Santa Catarina

Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para <bibvirt@futuro.usp.br>.

Estamos em busca de patrocinadores e voluntários para nos ajudar a manter este projeto. Se você quer ajudar de alguma forma, mande um e-mail para <bibvirt@futuro.usp.br> e saiba como isso é possível.


Sermão da Sexagésima -  Padre António Vieira. Pregado na Capela Real, no ano de 1655.

Semen est verbum Dei. S. Lucas, VIII, 11.

I

E se quisesse Deus que este tão ilustre e tão numeroso auditório saísse hoje tão desenganado da pregação, como vem enganado com o pregador! Ouçamos o Evangelho, e ouçamo-lo todo, que todo é do caso que me levou e trouxe de tão longe.

Ecce exiit qui seminat, seminare. Diz Cristo que «saiu o pregador evangélico a semear» a palavra divina. Bem parece este texto dos livros de Deus. Não só faz menção do semear, mas também faz caso do sair: Exiit, porque no dia da messe hão-nos de medir a semeadura e hão-nos de contar os passos. O Mundo, aos que lavrais com ele, nem vos satisfaz o que dispendeis, nem vos paga o que andais. Deus não é assim. Para quem lavra com Deus até o sair é semear, porque também das passadas colhe fruto. Entre os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear são os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão; os que semeiam sem sair, são os que se contentam com pregar na Pátria. Todos terão sua razão, mas tudo tem sua conta. Aos que têm a seara em casa, pagar-lhes-ão a semeadura; aos que vão buscar a seara tão longe, hão-lhes de medir a semeadura e hão-lhes de contar os passos. Ah Dia do Juízo! Ah pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais paço; os de lá, com mais passos: Exiit seminare.

Mas daqui mesmo vejo que notais (e me notais) que diz Cristo que o semeador do Evangelho saiu, porém não diz que tornou porque os pregadores evangélicos, os homens que professam pregar e: propagar a Fé, é bem que saiam, mas não é bem que tornem. Aqueles animais de Ezequiel que tiravam pelo carro triunfal da glória de Deus e significavam os pregadores do Evangelho que propriedades tinham? Nec revertebantur, cum ambularent: «Uma vez que iam, não tornavam». As rédeas por que se governavam era o ímpeto do espírito, como diz o mesmo texto: mas esse espírito tinha impulsos para os levar, não tinha regresso para os trazer; porque sair para tornar melhor é não sair. Assim arguis com muita razão, e eu também assim o digo. Mas pergunto: E se esse semeador evangélico, quando saiu, achasse o campo tomado; se se armassem contra ele os espinhos; se se levantassem contra ele as pedras, e se lhe fechassem os caminhos que havia de fazer? Todos estes contrários que digo e todas estas contradições experimentou o semeador do nosso Evangelho. Começou ele a semear (diz Cristo), mas com pouca ventura. «Uma parte do trigo caiu entre espinhos, e afogaram-no os espinhos»: Aliud cecidit inter spinas et simul exortae spinae suffocaverunt illud. Outra parte caiu sobre pedras, e secou-se nas pedras por falta de humidade»: Aliud cecidit super petram, et natum aruit, quia non habebat humorem. «Outra parte caiu no caminho, e pisaram-no os homens e comeram-no as aves»: Aliud cecidit secus viam, et conculcatum est, et volucres coeli comederunt illud. Ora vede como todas as criaturas do Mundo se armaram contra esta sementeira. Todas as criaturas quantas há no Mundo se reduzem a quatro géneros: criaturas racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como os animais; criaturas vegetativas, como as plantas; criaturas insensíveis, como as pedras; e não há mais. Faltou alguma destas que se não armasse contra o semeador? Nenhuma. A natureza insensível o perseguiu nas pedras, a vegetativa nos espinhos, a sensitiva nas aves, a racional nos homens. E notai a desgraça do trigo, que onde só podia esperar razão, ali achou maior agravo. As pedras secaram-no, os espinhos afogaram-no, as aves comeram-no; e os homens? Pisaram-no: Conculcatum est. Ab hominibus (diz a Glossa).

Quando Cristo mandou pregar os Apóstolos pelo Mundo, disse-lhes desta maneira: Euntes in mundum universum, praedicate omni creaturae: «Ide, e pregai a toda a criatura». Como assim, Senhor?! Os animais não são criaturas?! As árvores não são criaturas?! As pedras não são criaturas?! Pois hão os Apóstolos de pregar às pedras?! Hão-de pregar aos troncos?! Hão-de pregar aos animais?! Sim, diz S. Gregório, depois de Santo Agostinho. Porque como os Apóstolos iam pregar a todas as nações do Mundo, muitas delas bárbaras e incultas, haviam de achar os homens degenerados em todas as espécies de criaturas: haviam de achar homens homens, haviam de achar homens brutos, haviam de achar homens troncos, haviam de achar homens pedras. E quando os pregadores evangélicos vão pregar ar a toda a criatura, que se armem contra eles todas as criaturas?! Grande desgraça!

Mas ainda a do semeador do nosso Evangelho não foi a maior. A maior é a que se tem experimentado na seara aonde eu fui, e para onde venho. Tudo o que aqui padeceu o trigo, padeceram lá os semeadores. Se bem advertirdes, houve aqui trigo mirrado, trigo afogado, trigo comido e trigo pisado. Trigo mirrado: Natum aruit, quia non habebat humorem; trigo afogado: Exortae spinae suffocaverunt illud; trigo comido: Volucres caeli comederunt illud; trigo pisado: Conculcutum est. Tudo isto padeceram os semeadores evangélicos da missão do Maranhão de doze anos a esta parte. Houve missionários afogados, porque uns se afogaram na boca do grande rio das Amazonas; houve missionários comidos, porque a outros comeram os bárbaros na ilha dos Aroãs; houve missionários mirrados, porque tais tornaram os da jornada dos Tocatins, mirrados da fome e da doença, onde tal houve, que andando vinte e dois dias perdido nas brenhas matou somente a sede com o orvalho que lambia das folhas. Vede se lhe quadra bem o Notum aruit, quia non habebant humorem! E que sobre mirrados, sobre afogados, sobre comidos, ainda se vejam pisados e perseguidos dos homens: Conculcatum est! Não me queixo nem o digo, Senhor, pelos semeadores; só pela seara o digo, só pela seara o sinto. Para os semeadores, isto são glórias: mirrados sim, mas por amor de vós mirrados; afogados sim, mas por amor de vós afogados; comidos sim, mas por amor de vós comidos; pisados e perseguidos sim, mas por amor de vós perseguidos e pisados.

Agora torna a minha pergunta: E que faria neste caso, ou que devia fazer o semeador evangélico, vendo tão mal logrados seus primeiros trabalhos? Deixaria a lavoura? Desistiria da sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, só porque tinha lá ido? Parece que não. Mas se tornasse muito depressa a buscar alguns instrumentos com que alimpar a terra das pedras e dos espinhos, seria isto desistir? Seria isto tornar atrás? -- Não por certo. No mesmo texto de Ezequiel com que arguistes, temos a prova. Já vimos como dizia o texto, que aqueles animais da carroça de Deus, «quando iam não tornavam»: Nec revertebantur, cum ambularent. Lede agora dois versos mais abaixo, e vereis que diz o mesmo texto que «aqueles animais tornavam, e semelhança de um raio ou corisco»: Ibant et revertebantur in similitudinem fulgoris coruscantis. Pois se os animais iam e tornavam à semelhança de um raio, como diz o texto que quando iam não tornavam? Porque quem vai e volta como um raio, não torna. Ir e voltar como raio, não é tornar, é ir por diante. Assim o fez o semeador do nosso Evangelho. Não o desanimou nem a primeira nem a segunda nem a terceira perda; continuou por diante no semear, e foi com tanta felicidade, que nesta quarta e última parte do trigo se restauraram com vantagem as perdas do demais: nasceu, cresceu, espigou, amadureceu, colheu-se, mediu-se, achou-se que por um grão multiplicara cento: Et fecit fructum centuplum.

Oh que grandes esperanças me dá esta sementeira! Oh que grande exemplo me dá este semeador! Dá-me grandes esperanças a sementeira porque, ainda que se perderam os primeiros trabalhos, lograr-se-ão os últimos. Dá-me grande exemplo o semeador, porque, depois de perder a primeira, a segunda e a terceira parte do trigo, aproveitou a quarta e última, e colheu dela muito fruto. Já que se perderam as três partes da vida, já que uma parte da idade a levaram os espinhos, já que outra parte a levaram es pedras, já que outra parte a levaram os caminhos, e tantos caminhos, esta quarta e última parte, este último quartel da vida, porque se perderá também? Porque não dará fruto? Porque não terão também os anos o que tem o ano? O ano tem tempo para as flores e tempo para os frutos. Porque não terá também o seu Outono a vida? As flores, umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva o vento; aquelas poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto, só essas são as venturosas, só essas são as que aproveitam, só essas são as que sustentam o Mundo. Será bem que o Mundo morra à fome? Será bem que os últimos dias se passem em flores? -- Não será bem, nem Deus quer que seja, nem há-de ser. Eis aqui porque eu dizia ao princípio, que vindes enganados com o pregador. Mas para que possais ir desenganados com o sermão, tratarei nele uma matéria de grande peso e importância. Servirá como de prólogo aos sermões que vos hei-de pregar, e aos mais que ouvirdes esta Quaresma.

II

Semen est verbum Dei.

O trigo que semeou o pregador evangélico, diz Cristo que é a palavra de Deus. Os espinhos, as pedras, o caminho e a terra boa em que o trigo caiu, são os diversos corações dos homens. Os espinhos são os corações embaraçados com cuidados, com riquezas, com delícias; e nestes afoga-se a palavra de Deus. As pedras são os corações duros e obstinados; e nestes seca-se a palavra de Deus, e se nasce, não cria raízes. Os caminhos são os corações inquietos e perturbados com a passagem e tropel das coisas do Mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que atravessam, e todas passam; e nestes é pisada a palavra de Deus, porque a desatendem ou a desprezam. Finalmente, a terra boa são os corações bons ou os homens de bom coração; e nestes prende e frutifica a palavra divina, com tanta fecundidade e abundância, que se colhe cento por um: Et fructum fecit centuplum.

Este grande frutificar da palavra de Deus é o em que reparo hoje; e é uma dúvida ou admiração que me traz suspenso e confuso, depois que subo ao púlpito. Se a palavra de Deus é tão eficaz e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus? Diz Cristo que a palavra de Deus frutifica cento por um, e já eu me contentara com que frutificasse um por cento. Se com cada cem sermões se convertera e emendara um homem, já o Mundo fora santo. Este argumento de fé, fundado na autoridade de Cristo, se aperta ainda mais na experiência, comparando os tempos passados com os presentes. Lede as histórias eclesiásticas, e achá-las-eis todas cheias de admiráveis efeitos da pregação da palavra de Deus. Tantos pecadores convertidos, tanta mudança de vida, tanta reformação de costumes; os grandes desprezando as riquezas e vaidades do Mundo; os reis renunciando os ceptros e as coroas; as mocidades e as gentilezas metendo-se pelos desertos e pelas covas; e hoje? -- Nada disto. Nunca na Igreja de Deus houve tantas pregações, nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto se semeia a palavra de Deus, como é tão pouco o fruto? Não há um homem que em um sermão entre em si e se resolva, não há um moço que se arrependa, não há um velho que se desengane. Que é isto? Assim como Deus não é hoje menos omnipotente, assim a sua palavra não é hoje menos poderosa do que dantes era. Pois se a palavra de Deus é tão poderosa; se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, porque não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta, tão grande e tão importante dúvida, será a matéria do sermão. Quero começar pregando-me a mim. A mim será, e também a vós; a mim, para aprender a pregar; a vós, que aprendais a ouvir.

III

Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermão, há-de haver três concursos: há-de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, e necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus?

Primeiramente, por parte de Deus, não falta nem pode faltar. Esta proposição é de fé, definida no Concílio Tridentino, e no nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou à terra o semeador, uma parte se logrou e três se perderam. E porque se perderam estas três? -- A primeira perdeu-se, porque a afogaram os espinhos; a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira, porque a pisaram os homens e a comeram as aves. Isto é o que diz Cristo; mas notai o que não diz. Não diz que parte alguma daquele trigo se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causa por que ordinariamente se perdem as sementeiras, é pela desigualdade e pela intemperança dos tempos, ou porque falta ou sobeja a chuva, ou porque falta ou sobeja o sol. Pois porque não introduz Cristo na parábola do Evangelho algum trigo que se perdesse por causa do sol ou da chuva? -- Porque o sol e a chuva são as afluências da parte do Céu, e deixar de frutificar a semente da palavra de Deus, nunca é por falta: do Céu, sempre é por culpa nossa. Deixará de frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos, ou pela dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por falta das influências do Céu, isso nunca é nem pode ser. Sempre Deus está pronto da sua parte, com o sol para aquentar e com a chuva para regar; com o sol para alumiar e com a chuva para amolecer, se os nossos corações quiserem: Qui solem suum oriri facit super bonos et malos, et pluit super justos et injustos. Se Deus dá o seu sol e a sua chuva aos bons e aos maus; aos maus que se quiserem fazer bons, como a negará? Este ponto é tão claro que não há para que nos determos em mais prova. Quid debui facere vineae meae, et non feci? -- disse o mesmo Deus por Isaías.

Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar por parte de Deus, segue-se que ou é por falta do pregador ou por falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim. Se fora por parte dos ouvintes, não fizera a palavra de Deus muito grande fruto, mas não fazer nenhum fruto e nenhum efeito, não é por parte dos ouvintes. Provo.

Os ouvintes ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que caiu nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul exortae spinae suffocaverunt illud. O trigo que caiu nas pedras, nasceu também, mas secou-se: Et natum aruit. O trigo que caiu na terra  boa, nasceu e frutificou com grande multiplicação: Et natum fecit fructum centuplum

De maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que caiu na má terra, não frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é tão funda, que nos bons faz muito fruto e é tão eficaz que nos maus ainda que não faça fruto, faz efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas pedras. Os piores ouvintes que há na Igreja de Deus, são as pedras e os espinhos. E porquê? -- Os espinhos por agudos, as pedras por duras. Ouvintes de entendimentos agudos e ouvintes de vontades endurecidas são os piores que há. Os ouvintes de entendimentos agudos são maus ouvintes, porque vêm só a ouvir sutilezas, a esperar galantarias, a avaliar pensamentos, e às vezes também a picar a quem os não pica. Aliud cecidit inter spinas: O trigo não picou os espinhos, antes os espinhos o picaram a ele; e o mesmo sucede cá. Cuidais que o sermão vos picou e vós, e não é assim; vós sois os que picais o sermão. Por isto são maus ouvintes os de entendimentos agudos. Mas os de vontades endurecidas ainda são piores, porque um entendimento agudo pode ferir pelos mesmos fios, e vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra vontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes dana mais, porque quanto as setas são mais agudas, tanto mais facilmente se despontam na pedra. Oh! Deus nos livre de vontades endurecidas, que ainda são piores que as pedras! A vara de Moisés abrandou as pedras, e não pôde abrandar uma vontade endurecida: Percutiens virga bis silicem, et egressae sunt aquae largissimae. Induratum est cor Pharaonis. E com os ouvintes de entendimentos agudos e os ouvintes de vontades endurecidas serem os mais rebeldes, é tanta a força da divina palavra, que, apesar da agudeza, nasce nos espinhos, e apesar da dureza nasce nas pedras.

Pudéramos arguir ao lavrador do Evangelho de não cortar os espinhos e de não arrancar as pedras antes de semear, mas de indústria deixou no campo as pedras e os espinhos, para que se visse a força do que semeava. E tanta a força da divina palavra, que, sem cortar nem despontar espinhos, nasce entre espinhos. É tanta a força da divina palavra, que, sem arrancar nem abrandar pedras, nasce nas pedras. Corações embaraçados como espinhos corações secos e duros como pedras, ouvi a palavra de Deus e tende confiança! Tomai exemplo nessas mesmas pedras e nesses espinhos! Esses espinhos e essas pedras agora resistem ao semeador do Céu; mas virá tempo em que essas mesmas pedras o aclamem e esses mesmos espinhos o coroem.

Quando o semeador do Céu deixou o campo, saindo deste Mundo, as pedras se quebraram para lhe fazerem aclamações, e os espinhos se teceram para lhe fazerem coroa. E se a palavra de Deus até dos espinhos e das pedras triunfa; se a palavra de Deus até nas pedras, até nos espinhos nasce; não triunfar dos alvedrios hoje a palavra de Deus, nem nascer nos corações, não é por culpa, nem por indisposição dos ouvintes.

Supostas estas duas demonstrações; suposto que o fruto e efeitos da palavra de Deus, não fica, nem por parte de Deus, nem por parte dos ouvintes, segue-se por consequência clara, que fica por parte do pregador. E assim é. Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque não faz fruto a palavra de Deus? -- Por culpa nossa.

IV

Mas como em um pregador há tantas qualidades, e em uma pregação tantas leis, e os pregadores podem ser culpados em todas, em qual consistirá esta culpa? -- No pregador podem-se considerar cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz. A pessoa que é, e ciência que tem, a matéria que trata, o estilo que segue, a voz com que fala. Todas estas circunstâncias temos no Evangelho. Vamo-las examinando uma por uma e buscando esta causa.

Será porventura o não fazer fruto hoje a palavra de Deus, pela circunstância da pessoa? Será porque antigamente os pregadores eram santos eram varões apostólicos e exemplares, e hoje os pregadores são eu e outros como eu? -- Boa razão é esta. A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não diz Cristo: saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit, qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita diferença. Uma coisa é o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa é o governador e outra o que governa. Da mesma maneira, uma coisa é o semeador e outra o que semeia; uma coisa é o pregador e outra o que prega. O semeador e o pregador é nome; o que saneia e o que prega é ação; e as ações são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome, não importa nada; as ações, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o Mundo. O melhor conceito que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? -- o conceito que de sua vida têm os ouvintes.

Antigamente convertia-se o Mundo, hoje porque se não converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obra são tiros sem bala; atroam, mas não ferem. A funda de David derrubou o gigante, mas não o derrubou com o estalo, senão com a pedra: Infixus est lapis in fronte ejus. As vozes da harpa de David lançavam fora os demónios do corpo de Saul, mas não eram vozes pronunciadas com a boca, eram vozes formadas com a mão: David tollebat citharam, et percutiebat manu sua. Por isso Cristo comparou o pregador ao semeador. O pregar que é falar faz-se com a boca; o pregar que é semear, faz-se com a mão. Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras. Diz o Evangelho que a palavra de Deus frutificou cento por um. Que quer isto dizer? Quer dizer que de uma palavra nasceram em palavras? -- Não. Quer dizer que de poucas palavras nasceram muitas obras. Pois palavras que frutificam obras, vede se podem ser só palavras! Quis Deus converter o Mundo, e que fez? -- Mandou ao Mundo seu Filho feito homem. Notai. O Filho de Deus, enquanto Deus, é palavra de Deus, não é obra de Deus: Genitum non factum. O Filho de Deus, enquanto Deus e Homem, é palavra de Deus e obra de Deus juntamente: Verbum caro factum est. De maneira que até de sua palavra desacompanhada de obras não fiou Deus a conversão dos homens. Na união da palavra de Deus com a maior obra de Deus consistiu a eficácia da salvação do Mundo. Verbo Divino é palavra divina; mas importa pouco que as nossas palavras sejam divinas, se forem desacompanhadas de obras. A razão disto é porque as palavras ouvem-se, as obras vêem-se; as palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos. No Céu ninguém há que não ame a Deus, nem possa deixar de o amar. Na terra há tão poucos que o amem, todos o ofendem. Deus não é o mesmo, e tão digno de ser amado no Céu e na Terra? Pois como no Céu obriga e necessita a todos a o amarem, e na terra não? A razão é porque Deus no Céu é Deus visto; Deus na terra é Deus ouvido. No Céu entra o conhecimento de Deus à alma pelos olhos: Videbimus eum sicut est; na terra entra-lhe o conhecimento de Deus pelos ouvidos: Fides ex auditu; e o que entra pelos ouvidos crê-se, o que entra pelos olhos necessita. Viram os ouvintes em nós o que nos ouvem a nós, e o abalo e os efeitos do sermão seriam muito outros.

Vai um pregador pregando a Paixão, chega ao pretório de Pilatos, conta como a Cristo o fizeram rei de zombaria, diz que tomaram uma púrpura e lha puseram aos ombros; ouve aquilo o auditório muito atento. Diz que teceram uma coroa de pinhos e que lha pregaram na cabeça; ouvem todos com a mesma atenção. Diz mais que lhe ataram as mãos e lhe meteram nelas uma cana por ceptro; continua o mesmo silêncio e a mesma suspensão nos ouvintes. Corre-se neste espaço uma cortina aparece a imagem do Ecce Homo; eis todos prostrados por terra, eis todos a bater no peito eis as lágrimas, eis os gritos, eis os alaridos, eis as bofetadas. Que é isto? Que apareceu de novo nesta igreja? Tudo o que descobriu aquela cortina, tinha já dito o pregador. Já tinha dito daquela púrpura, já tinha dito daquela coma e daqueles espinhos, já tinha dito daquele ceptro e daquela cana. Pois se isto então não fez abalo nenhum, como faz agora tanto? -- Porque então era Ecce Homo ouvido, e agora é Ecce Homo visto; a relação do pregador entrava pelos ouvidos a representação daquela figura entra pelos olhos. Sabem, Padres pregadores, porque fazem pouco abalo os nossos sermões? -- Porque não pregamos aos olhos, pregamos só aos ouvidos. Porque convertia o Baptista tantos pecadores? -- Porque assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos, o seu exemplo pregava aos olhos. As palavras do Baptista pregavam penitência: Agite poenitentiam. «Homens, fazei penitência» -- e o exemplo clamava: Ecce Homo: «eis aqui está o homem» que é o retrato da penitência e da aspereza. As palavras do Baptista pregavam jejum e repreendiam os regalos e demasias da gula; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem que se sustenta de gafanhotos e mel silvestre. As palavras do Baptista pregavam composição e modéstia, e condenavam a soberba e a vaidade das galas; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem vestido de peles de camelo, com as cordas e cilício à raiz da carne. As palavras do Baptista pregavam despegos e retiros do Mundo, e fugir das ocasiões e dos homens; e o exemplo Clamava: Ecce Homo: eis aqui o homem que deixou as cortes e as sociedades, e vive num deserto e numa cova. Se os ouvintes ouvem uma coisa e vêem outra, como se hão-de converter? Jacob punha as varas manchadas diante das ovelhas quando concebiam, e daqui procedia que os cordeiros nasciam malhados. Se quando os ouvintes percebem os nossos conceitos, têm diante dos olhos as nossas manchas, como hão-de conceber virtudes? Se a minha vida é apologia contra a minha doutrina, se as minhas palavras vão já refutadas nas minhas obras, se uma cousa é o semeador e outra o que semeia, como se há-de fazer fruto?

Muito boa e muito forte razão era esta de não fazer fruto a palavra de Deus; mas tem contra si o exemplo e experiência de Jonas. Jonas fugitivo de Deus, desobediente, contumaz, e, ainda depois de engolido e vomitado iracundo, impaciente, pouco caritativo, pouco misericordioso, e mais zeloso e amigo da própria estimação que da honra de Deus e salvação das almas, desejoso de ver subvertida a Nínive e de a ver subverter com seus olhos, havendo nela tantos mil inocentes; contudo este mesmo homem com um sermão converteu o maior rei, a maior corte e o maior reinado do Mundo, e não de homens fiéis senão de gentios idólatras. Outra é logo a causa que buscamos. Qual será?

V

Será porventura o estilo que hoje se usa nos púlpitos? Um estilo tão empeçado, um estilo tão dificultoso, um estilo tão afectado, um estilo tão encontrado a toda a arte e a toda a natureza? Boa razão é também esta. O estilo há-de ser muito fácil e muito natural. Por isso Cristo comparou o pregar ao semear: Exiit, qui seminat, seminare. Compara Cristo o pregar ao semear, porque o semear é uma arte que tem mais de natureza que de arte. Nas outras artes tudo é arte: na música tudo se faz por compasso, na arquitectura tudo se faz por regra, na aritmética tudo se faz por conta, na geometria tudo se faz por medida. O semear não é assim. É uma arte sem arte caia onde cair. Vede como semeava o nosso lavrador do Evangelho. «Caía o trigo nos espinhos e nascia» Aliud cecidit inter spinas, et simul exortae spinae «Caía o trigo nas pedras e nascia»: Aliud cecidit super petram, et ortum. «Caía o trigo na terra boa e nascia»: Aliud cecidit in terram bonam, et natum. Ia o trigo caindo e ia nascendo.

Assim há-de ser o pregar. Hão-de cair as coisas hão-de nascer; tão naturais que vão caindo, tão próprias que venham nascendo. Que diferente é o estilo violento e tirânico que hoje se usa! Ver vir os tristes passos da Escritura, como quem vem ao martírio; uns vêm acarretados, outros vêm arrastados, outros vêm estirados, outros vêm torcidos, outros vêm despedaçados; só atados não vêm! Há tal tirania? Então no meio disto, que bem levantado está aquilo! Não está a coisa no levantar, está no cair: Cecidit. Notai uma alegoria própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só de três nasceu; para o sermão vir nascendo, há-de ter três modos de cair: há-de cair com queda, há-de cair com cadência há-de cair com caso. A queda é para as coisas, a cadência para as palavras, o caso para a disposição. A queda é para as coisas porque hão-de vir bem trazidas e em seu lugar; hão-de ter queda. A cadência é para as palavras, porque não hão-de ser escabrosas nem dissonantes; hão-de ter cadência. O caso é para a disposição, porque há-de ser tão natural e tão desafectada que pareça caso e não estudo: Cecidit, cecidit, cecidit.

Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim o estilo do mais antigo pregador que houve no Mundo. E qual foi ele? -- O mais antigo pregador que houve no Mundo foi o céu. Coeli enarrant gloriam Dei et opera manuum ejus annuntiat Firmamentum -- diz David. Suposto que o céu é pregador, deve de ter sermões e deve de ter: palavras. Sim, tem, diz o mesmo David; tem palavras e tem sermões; e mais, muito bem ouvidos. Non sunt loquellae, nec sermones, quorum non audiantur voces eorum. E quais são estes sermões e estas palavras do céu? -- As palavras são as estrelas, os sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do céu, com o estilo que Cristo ensinou na terra. Um e outro é semear; a terra semeada de trigo, o céu semeado de estrelas. O pregar há-de ser como quem semeia, e não como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas: Stellae manentes in ordine suo. Todas as estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não é ordem que faça lavor. Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte há-de estar branco, da outra há-de estar negro; se de uma parte dizem luz, da outra hão-de dizer sombra; se de uma parte dizem desceu, da outra hão-de dizer subiu. Basta que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hão-de estar sempre em fronteira com o seu contrário? Aprendamos do céu o estilo da disposição, e também o das palavras. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há-de ser o estilo da pregação; muito distinto e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas e muito claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham muito que entender os que sabem. O rústico acha documentos nas estrelas para sua lavoura e o mareante para sua navegação e o matemático para as suas observações e para os seus juízos. De maneira que o rústico e o mareante, que não sabem ler nem escrever entendem as estrelas; e o matemático, que tem lido quantos escreveram, não alcança a entender quanto nelas há. Tal pode ser o sermão: -- estrelas que todos vêem, e muito poucos as medem.

Sim, Padre; porém esse estilo de pregar não é pregar culto. Mas fosse! Este desventurado estilo que hoje se usa, os que o querem honrar chamam-lhe culto, os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto não é escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado. E possível que somos portugueses e havemos de ouvir um pregador em português e não havemos de entender o que diz?! Assim como há Lexicon para o grego e Calepino para o latim, assim é necessário haver um vocabulário do púlpito. Eu ao menos o tomara para os nomes próprios, porque os cultos têm desbaptizados os santos, e cada autor que alegam é um enigma. Assim o disse o Ceptro Penitente, assim o disse o Evangelista Apeles, assim o disse a Águia de África, o Favo de Claraval, a Púrpura de Belém, a Boca de Ouro. Há tal modo de alegar! O Ceptro Penitente dizem que é David, como se todos os ceptros não foram penitência; o Evangelista Apeles, que é S. Lucas; o Favo de Claraval, S. Bernardo; a Águia de África, Santo Agostinho; a Púrpura de Belém, S. Jerónimo; a Boca de Ouro, S. Crisóstomo. E quem quitaria ao outro cuidar que a Púrpura de Belém é Herodes que a Águia de África é Cipião, e que a Boca de Ouro é Midas? Se houvesse um advogado que alegasse assim a Bártolo e Baldo, havíeis de fiar dele o vosso pleito? Se houvesse um homem que assim falasse na conversação, não o havíeis de ter por néscio? Pois o que na conversação seria necessidade, como há-de ser discrição no púlpito?

Boa me parecia também esta razão; mas como os cultos pelo pulido e estudado se defendem com o grande Nazianzeno, com Ambrósio, com Crisólogo, com Leão, e pelo escuro e duro com Clemente Alexandrino, com Tertuliano, com Basílio de Selêucia, com Zeno Veronense e outros, não podemos negar a reverência a tamanhos autores posto que desejáramos nos que se prezam de beber destes rios, a sua profundidade. Qual será logo a causa de nossa queixa?

VI

Será pela matéria ou matérias que tomam os pregadores? Usa-se hoje o modo que chamam de apostilar o Evangelho, em que tomam muitas matérias, levantam muitos assuntos e quem levanta muita caça e não segue nenhuma não é muito que se recolha com as mãos vazias. Boa razão é também esta. O sermão há-de ter um só assunto e uma só matéria. Por isso Cristo disse que o lavrador do Evangelho não semeara muitos géneros de sementes, senão uma só: Exiit, qui seminat, seminare semen. Semeou uma semente só, e não muitas, porque o sermão há-de ter uma só matéria, e não muitas matérias. Se o lavrador semeara primeiro trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio semeara milho grosso e miúdo, e sobre o milho semeara cevada, que havia de nascer? Uma mata brava, uma confusão verde. Eis aqui o que acontece aos sermões deste género. Como semeiam tanta variedade, não podem colher coisa certa. Quem semeia misturas, mal pode colher trigo. Se uma nau fizesse um bordo para o norte, outro para o sul, outro para leste, outro para oeste, como poderia fazer viagem? Por isso nos púlpitos se trabalha tanto e se navega tão pouco. Um assunto vai para um vento, outro assunto vai para outro vento; que se há-de colher senão vento? O Baptista convertia muitos em Judeia; mas quantas matérias tomava? Uma só matéria: Parate viam Domini: a preparação para o Reino de Cristo. Jonas converteu os Ninivitas; mas quantos assuntos tomou? Um só assunto: Adhuc quadraginta dies, et Ninive subvertetur: a subversão da cidade. De maneira que Jonas em quarenta dias pregou um só assunto; e nós queremos pregar quarenta assuntos em uma hora? Por isso não pregamos nenhum. O sermão há-de ser de uma só cor, há-de ter um só objecto, um só assunto, uma só matéria.

Há-de tomar o pregador uma só matéria; há-de defini-la, para que se conheça; há-de dividi-la, para que se distinga; há-de prová-la com a Escritura; há-de declará-la com a razão; há-de confirmá-la com o exemplo; há-de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão-de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar; há-de responder às dúvidas, há-de satisfazer às dificuldades; há-de impugnar e refutar com toda a força da eloquência os argumentos contrários; e depois disto há-de colher, há-de apertar, há-de concluir, há-de persuadir, há-de acabar. Isto é sermão, isto é pregar; e o que não é isto, é falar de mais alto.

Não nego nem quero dizer que o sermão não haja de ter variedade de discursos, mas esses hão-de nascer todos da mesma matéria e continuar e acabar nela. Quereis ver tudo isto com os olhos? Ora vede. Uma árvore tem raízes, tem tronco, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim há-de ser o sermão: há-de ter raízes fortes e sólidas, porque há-de ser fundado no Evangelho; há-de ter um tronco, porque há-de ter um só assunto e tratar uma só matéria; deste tronco hão-de nascer diversos ramos, que são diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria e continuados nela; estes ramos hão-de ser secos, senão cobertos de folhas, porque os discursos hão-de ser vestidos e ornados de palavras. Há-de ter esta árvore varas, que são a repreensão dos vícios; há-de ter flores, que são as sentenças; e por remate de tudo, há-de ter frutos, que é o fruto e o fim a que se há-de ordenar o sermão. De maneira que há-de haver frutos, há-de haver flores, há-de haver varas, há-de haver folhas, há-de haver ramos; mas tudo nascido e fundado em um só tronco, que é uma só matéria. Se tudo são troncos, não é sermão, é madeira. Se tudo são ramos, não é sermão, são maravalhas. Se tudo são folhas, não é sermão, são versas. Se tudo são varas, não é sermão, é feixe. Se tudo são flores, não é sermão, é ramalhete. Serem tudo frutos, não pode ser; porque não há frutos sem árvore. Assim que nesta árvore, à que podemos chamar «árvore da vida», há-de haver o proveitoso do fruto, o formoso das flores, o rigoroso das varas, o vestido das folhas, o estendido dos ramos; mas tudo isto nascido e formado de um só tronco e esse não levantado no ar, senão fundado nas raízes do Evangelho: Seminare semen. Eis aqui como hão-de ser os sermões, eis aqui como não são. E assim não é muito que se não faça fruto com eles.

Tudo o que tenho dito pudera demonstrar largamente, não só com os preceitos dos Aristóteles, dos Túlios, dos Quintilianos, mas com a prática observada do príncipe dos oradores evangélicos, S. João Crisóstomo, de S. Basílio Magno, S. Bernardo. S. Cipriano, e com as famosíssimas orações de S. Gregório Nazianzeno, mestre de ambas as Igrejas. E posto que nestes mesmos Padres, como em Santo Agostinho, S. Gregório e muitos outros, se acham os Evangelhos apostilados com nomes de sermão e homilias, uma coisa é expor, e outra pregar; uma ensinar e outra persuadir, desta última é que eu falo, com a qual tanto fruto fizeram no mundo Santo António de Pádua e S. Vicente Ferrer. Mas nem por isso entendo que seja ainda esta a verdadeira causa que busco.

VII

Será porventura a falta de ciência que há em muitos pregadores? Muitos pregadores há que vivem do que não colheram e semeiam o que não trabalharam. Depois da sentença de Adão, a terra não costuma dar fruto, senão a quem come o seu pão com o suor do seu rosto. Boa razão parece também esta. O pregador há-de pregar o seu, e não o alheio. Por isso diz Cristo que semeou o lavrador do Evangelho o trigo seu: Semen suum. Semeou o seu, e não o alheio, porque o alheio e, o furtado não é bom para semear, ainda que o furto seja de ciência. Comeu Eva o pomo da ciência, e queixava-me eu antigamente desta nossa mãe; já que comeu o pomo, por que lhe não guardou as pevides? Não seria bem que chegasse a nós a árvore, já que nos chegaram os encargos dela? Pois por que não o fez assim Eva? Porque o pomo era furtado, e o alheio é bom para comer, mas não é bom para semear: é bom para comer, porque dizem que é saboroso; não é bom para semear, porque não nasce. Alguém terá experimentado que o alheio lhe nasce em casa, mas esteja certo, que se nasce, não há-de deitar raízes, e o que não tem raízes não pode dar fruto. Eis aqui por que muitos pregadores não fazem fruto; porque pregam o alheio, e não o seu: Semen suum. O pregar é entrar em batalha com os vícios; e armas alheias, ainda que sejam as de Aquiles, a ninguém deram vitória. Quando David saiu a campo com o gigante, ofereceu-lhe Saul as suas armas, mas ele não as quis aceitar. Com armas alheias ninguém pode vencer, ainda que seja David. As armas de Saul só servem a Saul, e as de David a David; e mais aproveita um cajado e uma funda própria, que a espada e a lança alheia. Pregador que peleja com as armas alheias, não hajais medo que derrube gigante.

Fez Cristo aos Apóstolos pescadores de homens, que foi ordená-los de pregadores; e que faziam os Apóstolos? Diz o texto que estavam: Reficientes retia sua: «Refazendo as redes suas; eram as redes dos Apóstolos, e não eram alheias. Notai: Retia sua: Não diz que eram suas porque as compraram, senão que eram suas porque as faziam; não eram suas porque lhes custaram o seu dinheiro, senão porque lhes custavam o seu trabalho. Desta maneira eram as redes suas; e porque desta maneira eram suas, por isso eram redes de pescadores que haviam de pescar homens. Com redes alheias, ou feitas por mão alheia, podem-se pescar peixes, homens não se podem pescar. A razão disto é porque nesta pesca de entendimentos só quem sabe fazer a rede sabe fazer o lanço. Como se faz uma rede? Do fio e do nó se compõe a malha; quem não enfia nem ata, como há-de fazer rede? E quem não sabe enfiar nem sabe atar, como há-de pescar homens? A rede tem chumbada que vai ao fundo, e tem cortiça que nada em cima da água. A pregação tem umas coisas de mais peso e de mais fundo, e tem outras mais superficiais e mais leves; e governar o leve e o pesado, só o sabe fazer quem faz a rede. Na boca de quem não faz a pregação, até o chumbo é cortiça.

As razões não hão-de ser enxertadas, hão-de ser nascidas. O pregar não é recitar. As razões próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória, e os homens não se convencem pela memória, senão pelo entendimento.

Veio o Espírito Santo sobre os Apóstolos, e quando as línguas desciam do Céu, cuidava eu que se lhes haviam de pôr na boca; mas elas foram-se pôr na cabeça. Pois por que na cabeça e não na boca, que é o lugar da língua? Porque o que há-de dizer o pregador, não lhe há-de sair só da boca; há-lhe de sair pela boca, mas da cabeça. O que sai só da boca pára nos ouvidos; o que nasce do juízo penetra e convence o entendimento. Ainda tem mais mistério estas línguas do Espírito Santo. Diz o texto que não se puseram todas as línguas sobre todos os Apóstolos, senão cada uma sobre cada um: Apparuerunt dispertitae linguae tanquam ignis, seditque supra singulos eorum. E por que cada uma sobre cada um, e não todas sobre todos? Porque não servem todas as línguas a todos, senão a cada um a sua. Uma língua só sobre Pedro, porque a língua de Pedro não serve a André; outra língua só sobre André, porque a língua de André não serve a Filipe; outra língua só sobre Filipe, porque a língua de Filipe não serve a Bartolomeu, e assim dos mais. E senão vede-o no estilo de cada um dos Apóstolos, sobre que desceu o Espírito Santo. Só de cinco temos escrituras; mas a diferença com que escreveram, como sabem os doutos, é admirável. As penas todas eram tiradas das asas daquela pomba divina; mas o estilo tão diverso, tão particular e tão próprio de cada um, que bem mostra que era seu. Mateus fácil, João misterioso, Pedro grave, Jacob forte, Tadeu sublime, e todos com tal valentia no dizer, que cada palavra era um trovão, cada cláusula um raio e cada razão um triunfo. Ajuntai a estes cinco S. Lucas e S. Marcos, que também ali estavam, e achareis o número daqueles sete trovões que ouviu S. João no Apocalipse. Loquuti sunt septem tonitrua voces suas. Eram trovões que falavam e desarticulavam as vozes, mas essas vozes eram suas: Voces suas; «suas, e não alheias», como notou Ansberto: Non alienas, sed suas. Enfim, pregar o alheio é pregar o alheio, e com o alheio nunca se fez coisa boa.

Contudo eu não me firmo de todo nesta razão, porque do grande Baptista sabemos que pregou o que tinha pregado Isaías, como notou S. Lucas, e não com outro nome, senão de sermões: Praedicans baptismum poenitentiae in remissionem peccatorum, sicut scriptum est in libro sermonun Isaiae prophetae. Deixo o que tomou Santo Ambrósio de S. Basílio; S. Próspero e Beda de Santo Agostinho; Teofilato e Eutímio de S. João Crisóstomo.

VIII

Será finalmente a causa, que tanto há buscamos, a voz com que hoje falam os pregadores? Antigamente pregavam bradando, hoje pregam conversando. Antigamente a primeira parte do pregador era boa voz e bom peito. E verdadeiramente, como o mundo se governa tanto pelos sentidos, podem às vezes mais os brados que a razão. Boa era também esta, mas não a podemos provar com o semeador, porque já dissemos que não era ofício de boca. Porém o que nos negou o Evangelho no semeador metafórico, nos deu no semeador verdadeiro, que é Cristo. Tanto que Cristo acabou a parábola, diz o Evangelho que começou o Senhor a bradar: Haec dicens clamabat. Bradou o Senhor, e não arrazoou sobre a parábola, porque era tal o auditório, que fiou mais dos brados que da razão.

Perguntaram ao Baptista quem era? Respondeu ele: Ego vox clamantis in deserto: Eu sou uma voz que anda bradando neste deserto. Desta maneira se definiu o Baptista. A definição do pregador, cuidava eu que era: voz que arrazoa e não voz que brada. Pois por que se definiu o Baptista pelo bradar e não pelo arrazoar; não pela razão, senão pelos brados? Porque há muita gente neste mundo com quem podem mais os brados que a razão, e tais eram aqueles a quem o Baptista pregava. Vede-o claramente em Cristo. Depois que Pilatos examinou as acusações que contra ele se davam, lavou as mãos e disse: Ego nullam causam invenio in homine isto: Eu nenhuma causa acho neste homem. Neste tempo todo o povo e os escribas bradavam de fora, que fosse crucificado: At illi magis clamabant, crucifigatur. De maneira que Cristo tinha por si a razão e tinha contra si os brados. E qual pôde mais? Puderam mais os brados que a razão. A razão não valeu para o livrar, os brados bastaram para o pôr na Cruz. E como os brados no Mundo podem tanto, bem é que bradem alguma vez os pregadores, bem é que gritem. Por isso Isaías chamou aos pregadores «nuvens»: Qui sunt isti, qui ut nubes volant? A nuvem tem relâmpago, tem trovão e tem raio: relâmpago para os olhos, trovão para os ouvidos, raio para o coração; com o relâmpago alumia, com o trovão assombra, com o raio mata. Mas o raio fere a um, o relâmpago a muitos, o trovão a todos. Assim há-de ser a voz do pregador, um trovão do Céu, que assombre e faça tremer o Mundo.

Mas que diremos à oração de Moisés? Concrescat ut pluvia doctrina mea: fluat ut ros eloquim meum: Desça minha doutrina como chuva do céu, e a minha voz e as minhas palavras como orvalho que se destila brandamente e sem ruído. Que diremos ao exemplo ordinário de Cristo, tão celebrado por Isaías: Non clamabit neque audietur vox ejus foris? Não clamará, não bradará, mas falará com uma voz tão moderada que se não possa ouvir fora. E não há dúvida que o praticar familiarmente, e o falar mais ao ouvido que aos ouvidos, não só concilia maior atenção, mas naturalmente e sem força se insinua, entra, penetra e se mete na alma. Em conclusão que a causa de não fazerem hoje fruto os pregadores com a palavra de Deus, nem é a circunstância da pessoa: Qui seminat: nem a do estilo: Seminare; nem a da matéria: Semen; nem a da ciência: Suum; nem a da voz: Clamabat. Moisés tinha fraca voz; Amós tinha grosseiro estilo; Salamão multiplicava e variava os assuntos; Balaão não tinha exemplo de vida; o seu animal não tinha ciência; e contudo todos estes, falando, persuadiam e convenciam. Pois se nenhuma destas razões que discorremos, nem todas elas juntas são a causa principal nem bastante do pouco fruto que hoje faz a palavra de Deus, qual diremos finalmente que é a verdadeira causa?

IX

As palavras que tomei por tema o dizem. Semen est verbum Dei. Sabeis, Cristãos, a causa por que se faz hoje tão pouco fruto com tantas pregações? É porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus. Falo do que ordinariamente se ouve. A palavra de Deus (como diria) é tão poderosa e tão eficaz, que não só na boa terra faz fruto, mas até nas pedras e nos espinhos nasce. Mas se as palavras dos pregadores não são palavras de Deus, que muito que não tenham a eficácia e os efeitos da palavra de Deus? Ventum seminabunt, et turbinem colligent, diz o Espírito Santo: «Quem semeia ventos, colhe tempestades». Se os pregadores semeiam vento, se o que se prega é vaidade, se não se prega a palavra de Deus, como não há a Igreja de Deus de correr tormenta, em vez de colher fruto?

Mas dir-me-eis: Padre, os pregadores de hoje não pregam do Evangelho, não pregam das Sagradas Escrituras? Pois como não pregam a palavra de Deus? Esse é o mal. Pregam palavras de Deus, mas não pregam a palavra de Deus: Qui habet sermonem meum, loquatur sermonem meum vere, disse Deus por Jeremias. As palavras de Deus, pregadas no sentido em que Deus as disse, são palavras de Deus; mas pregadas no sentido que nós queremos, não são palavras de Deus, antes podem ser palavras do Demónio. Tentou o Demónio a Cristo a que fizesse das pedras pão. Respondeu-lhe o Senhor: Non in solo pane vivit homo, sed in omni verbo, quod procedit de ore dei. Esta sentença era tirada do capítulo VIII do Deuteronómio. Vendo o Demónio que o Senhor se defendia da tentação com a Escritura, leva-o ao Templo, e alegando o lugar do salmo XC, diz-lhe desta maneira: Mille te deorsum; scriptum est enim, quia Angelis suis Deus mandavit de te, ut custodiant te in omnibus viis tuis: «Deita-te daí abaixo, porque prometido está nas Sagradas Escrituras que os anjos te tomarão nos braços, para que te não faças mal.» De sorte que Cristo defendeu-se do Diabo com a Escritura, e o Diabo tentou a Cristo com a Escritura. Todas as Escrituras são palavra de Deus: pois se Cristo toma a Escritura para se defender do Diabo, como toma o Diabo a Escritura para tentar a Cristo? A razão é porque Cristo tomava as palavras da Escritura em seu verdadeiro sentido, e o Diabo tomava as palavras da Escritura em sentido alheio e torcido; e as mesmas palavras, que tomadas em verdadeiro sentido são palavras de Deus, tomadas em sentido alheio, são armas do Diabo. As mesmas palavras que, tomadas no sentido em que Deus as disse, são defesa, tomadas no sentido em que Deus as não disse, são tentação. Eis aqui a tentação com que então quis o Diabo derrubar a Cristo, e com que hoje lhe faz a mesma guerra do pináculo do templo. O pináculo do templo é o púlpito, porque é o lugar mais alto dele. O Diabo tentou a Cristo no deserto, tentou-o no monte, tentou-o no templo: no deserto, tentou-o com a gula; no monte, tentou-o com a ambição; no templo, tentou-o com as Escrituras mal interpretadas, e essa é a tentação de que mais padece hoje a Igreja, e que em muitas partes tem derrubado dela, senão a Cristo, a sua fé.

Dizei-me, pregadores (aqueles com quem eu falo indignos verdadeiramente de tão sagrado nome), dizei-me: esses assuntos inúteis que tantas vezes levantais, essas empresas ao vosso parecer agudas que prosseguis, achaste-las alguma vez nos Profetas do Testamento Velho, ou nos Apóstolos e Evangelistas do Testamento Novo, ou no autor de ambos os Testamentos, Cristo? É certo que não, porque desde a primeira palavra do Génesis até à última do Apocalipse, não há tal coisa em todas as Escrituras. Pois se nas Escrituras não há o que dizeis e o que pregais, como cuidais que pregais a palavra de Deus? Mais: nesses lugares, nesses textos que alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido em que Deus os disse? É esse o sentido em que os entendem os padres da Igreja? É esse o sentido da mesma gramática das palavras? Não, por certo; porque muitas vezes as tomais pelo que toam e não pelo que significam, e talvez nem pelo que toam. Pois se não é esse o sentido das palavras de Deus, segue-se que não são palavras de Deus. E se não são palavras de Deus, que nos queixamos que não façam fruto as pregações? Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos, e não havemos de querer dizer o que elas dizem?! E então ver cabecear o auditório a estas coisas, quando devíamos de dar com a cabeça pelas paredes de as ouvir! Verdadeiramente não sei de que mais me espante, se dos nossos conceitos, se dos vossos aplausos? Oh, que bem levantou o pregador! Assim é; mas que levantou? Um falso testemunho ao texto, outro falso testemunho ao santo, outro ao entendimento e ao sentido de ambos. Então que se converta o mundo com falsos testemunhos da palavra de Deus? Se a alguém parecer demasiada a censura, ouça-me.

Estava Cristo acusado diante de Caifás, e diz o Evangelista S. Mateus que por fim vieram duas testemunhas falsas: Novissime venerunt duo falsi testes. Estas testemunhas referiram que ouviram dizer a Cristo que, se os Judeus destruíssem o templo, ele o tornaria a reedificar em três dias. Se lermos o Evangelista S. João, acharemos que Cristo verdadeiramente tinha dito as palavras referidas. Pois se Cristo tinha dito que havia de reedificar o templo dentro em três dias, e isto mesmo é o que referiram as testemunhas, como lhes chama o Evangelista testemunhas falsas: Duo falsi testes? O mesmo S. João deu a razão: Loquebatur de templo corporis sui. Quando Cristo disse que em três dias reedificaria o templo, falava o Senhor do templo místico de seu corpo, o qual os Judeus destruíram pela morte e o Senhor o reedificou pela ressurreição; e como Cristo falava do templo místico e as testemunhas o referiram ao templo material de Jerusalém, ainda que as palavras eram verdadeiras, as testemunhas eram falsas. Eram falsas, porque Cristo as dissera em um sentido, e eles as referiram em outro; e referir as palavras de Deus em diferente sentido do que foram ditas, é levantar falso testemunho a Deus, é levantar falso testemunho às Escrituras. Ah, Senhor, quantos falsos testemunhos vos levantam! Quantas vezes ouço dizer que dizeis o que nunca dissestes! Quantas vezes ouço dizer que são palavras vossas, o que são imaginações minhas, que me não quero excluir deste número! Que muito logo que as nossas imaginações, e as nossas vaidades, e as nossas fábulas não tenham a eficácia de palavra de Deus!

Miseráveis de nós, e miseráveis dos nossos tempos! Pois neles se veio a cumprir a profecia de S. Paulo: Erit tempus, cum sanam doctrinam non sustinebunt: Virá tempo, diz S. Paulo, «em que os homens não sofrerão a doutrina sã. Sed ad sua desideria coacervabunt sibi magistros prurientes auribus: Mas para seu apetite terão grande número de pregadores feitos a montão e sem escolha, os quais não façam mais que adular-lhes as orelhas. A veritate quidem auditum avertent, ad fabulas auten convertentur: Fecharão os ouvidos à verdade, e abri-los-ão às fábulas». Fábula tem duas significações: quer dizer fingimento e quer dizer comédia; e tudo são muitas pregações deste tempo. São fingimento, porque são sutilezas e pensamentos aéreos, sem fundamento de verdade; são comédia, porque os ouvintes vêm à pregação como à comédia; e há pregadores que vêm ao púlpito como comediantes. Uma das felicidades que se contava entre as do tempo presente era acabarem-se as comédias em Portugal; mas não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se; passaram-se do teatro ao púlpito. Não cuideis que encareço em chamar comédias a muitas pregações das que hoje se usam. Tomara ter aqui as comédias de Plauto, de Terêncio, de Séneca, e veríeis se não acháveis nelas muitos desenganos da vida e vaidade do Mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais verdadeiros, e muito mais sólidos, do que hoje se ouvem nos púlpitos. Grande miséria por certo, que se achem maiores documentos para a vida nos versos de um poeta profano, e gentio, que nas pregações de um orador cristão, e muitas vezes, sobre cristão, religioso!

Pouco disse S. Paulo em lhe chamar comédia, porque muitos sermões há que não são comédia, são farsa. Sobe talvez ao púlpito um pregador dos que professam ser mortos ao mundo, vestido ou amortalhado em um hábito de penitência (que todos, mais ou menos ásperos, são de penitência; e todos, desde o dia que os professamos, mortalhas); a vista é de horror, o nome de reverência, a matéria de compunção, a dignidade de oráculo, o lugar e a expectação de silêncio; e quando este se rompeu, que é o que se ouve? Se neste auditório estivesse um estrangeiro que nos não conhecesse e visse entrar este homem a falar em público naqueles trajos e em tal lugar, cuidaria que havia de ouvir uma trombeta do Céu; que cada palavra sua havia de ser um raio para os corações, que havia de pregar com o zelo e com o fervor de um Elias, que com a voz, com o gesto e com as ações havia de fazer em pó e em cinza os vícios. Isto havia de cuidar o estrangeiro. E nós que é o que vemos? Vemos sair da boca daquele homem, assim naqueles trajos, uma voz muito afectada e muito polida, e logo começar com muito desgarro, a quê? A motivar desvelos, a acreditar empenhos, a requintar finezas, a lisonjear precipícios, a brilhar auroras, a derreter cristais, a desmaiar jasmins, a toucar primaveras, e outras mil indignidades destas. Não é isto farsa a mais digna de riso, se não fora tanto para chorar? Na comédia o rei veste como rei, e fala como rei; o lacaio, veste como lacaio, e fala como lacaio; o rústico veste como rústico, e fala como rústico; mas um pregador, vestir como religioso e falar como... não o quero dizer, por reverência do lugar. Já que o púlpito é teatro, e o sermão comédia se quer, não faremos bem a figura? Não dirão as palavras com o vestido e com o ofício? Assim pregava S. Paulo, assim pregavam aqueles patriarcas que se vestiram e nos vestiram destes hábitos? Não louvamos e não admiramos o seu pregar? Não nos prezamos de seus filhos? Pois por que não os imitamos? Por que não pregamos como eles pregavam? Neste mesmo púlpito pregou S. Francisco Xavier, neste mesmo púlpito pregou S. Francisco de Borja; e eu, que tenho o mesmo hábito, por que não pregarei a sua doutrina, já que me falta o seu espírito?

X

Dir-me-eis o que a mim me dizem, e o que já tenho experimentado, que, se pregamos assim, zombam de nós os ouvintes, e não gostam de ouvir. Oh, boa razão para um servo de Jesus Cristo! Zombem e não gostem embora, e façamos nós nosso ofício! A doutrina de que eles zombam, a doutrina que eles desestimam, essa é a que lhes devemos pregar, e por isso mesmo, porque é mais proveitosa e a que mais hão mister. O trigo que caiu no caminho comeram-no as aves. Estas aves, como explicou o mesmo Cristo, são os demónios, que tiram a palavra de Deus dos corações dos homens: Venit Diabolus, et tollit verbum de corde ipsorum! Pois por que não comeu o Diabo o trigo que caiu entre os espinhos, ou o trigo que caiu nas pedras, senão o trigo que caiu no caminho? Porque o trigo que caiu no caminho: Conculcatum est ab hominibus: Pisaram-no os homens; e a doutrina que os homens pisam, a doutrina que os homens desprezam, essa é a de que o Diabo se teme. Dessoutros conceitos, dessoutros pensamentos, dessoutras sutilezas que os homens estimam e prezam, dessas não se teme nem se acautela o Diabo, porque sabe que não são essas as pregações que lhe hão-de tirar as almas das unhas. Mas daquela doutrina que cai: Secus viam: daquela doutrina que parece comum: Secus viam; daquela doutrina que parece trivial: Secus viam; daquela doutrina que parece trilhada: Secus viam; daquela doutrina que nos põe em caminho e em via da nossa salvação (que é a que os homens pisam e a que os homens desprezam), essa é a de que o Demónio se receia e se acautela, essa é a que procura comer e tirar do Mundo; e por isso mesmo essa é a que deviam pregar os pregadores, e a que deviam buscar os ouvintes. Mas se eles não o fizerem assim e zombarem de nós, zombemos nós tanto de suas zombarias como dos seus aplausos. Per infamiam et bonam famam, diz S. Paulo: O pregador há-de saber pregar com fama e sem fama. Mais diz o Apóstolo: Há-de pregar com fama e com infâmia. Pregar o pregador para ser afamado, isso é mundo: mas infamado, e pregar o que convém, ainda que seja com descrédito de sua fama?, isso é ser pregador de Jesus Cristo.

Pois o gostarem ou não gostarem os ouvintes! Oh, que advertência tão digna! Que médico há que repare no gosto do enfermo, quando trata de lhe dar saúde? Sarem e não gostem; salvem-se e amargue-lhes, que para isso somos médicos das almas. Quais vos parece que são as pedras sobre que caiu parte do trigo do Evangelho? Explicando Cristo a parábola, diz que as pedras são aqueles que ouvem a pregação com gosto: Hi sunt, qui cum gaudio suscipiunt verbum. Pois será bem que os ouvintes gostem e que no cabo fiquem pedras?! Não gostem e abrandem-se; não gostem e quebrem-se; não gostem e frutifiquem. Este é o modo com que frutificou o trigo que caiu na boa terra: Et fructum afferunt in patientia, conclui Cristo. De maneira que o frutificar não se ajunta com o gostar, senão com o padecer; frutifiquemos nós, e tenham eles paciência. A pregação que frutifica, a pregação que aproveita, não é aquela que dá gosto ao ouvinte, é aquela que lhe dá pena. Quando o ouvinte a cada palavra do pregador treme; quando cada palavra do pregador é um torcedor para o coração do ouvinte; quando o ouvinte vai do sermão para casa confuso e atónito, sem saber parte de si, então é a preparação qual convém, então se pode esperar que faça fruto: Et fructum afferunt in patientia.

Enfim, para que os pregadores saibam como hão-de pregar e os ouvintes a quem hão-de ouvir, acabo com um exemplo do nosso Reino, e quase dos nossos tempos. Pregavam em Coimbra dois famosos pregadores, ambos bem conhecidos por seus escritos; não os nomeio, porque os hei-de desigualar. Altercou-se entre alguns doutores da Universidade qual dos dois fosse maior pregador; e como não há juízo sem inclinação, uns diziam este, outros, aquele. Mas um lente, que entre os mais tinha maior autoridade, concluiu desta maneira: «Entre dois sujeitos tão grandes não me atrevo a interpor juízo; só direi uma diferença, que sempre experimento: quando ouço um, saio do sermão muito contente do pregador; quando ouço outro, saio muito descontente de mim.»

Com isto tenho acabado. Algum dia vos enganastes tanto comigo, que saíeis do sermão muito contentes do pregador; agora quisera eu desenganar-vos tanto, que saíreis muito descontentes de vós. Semeadores do Evangelho, eis aqui o que devemos pretender nos nossos sermões: não que os homens saiam contentes de nós, senão que saiam muito descontentes de si; não que lhes pareçam bem os nossos conceitos, mas que lhes pareçam mal os seus costumes, as suas vidas, os seus passatempos, as suas ambições e, enfim, todos os seus pecados. Contanto que se descontentem de si, descontentem-se embora de nós. Si hominibus placerem, Christus servus non essem, dizia o maior de todos os pregadores, S. Paulo: Se eu contentara aos homens, não seria servo de Deus. Oh, contentemos a Deus, e acabemos de não fazer caso dos homens! Advirtamos que nesta mesma Igreja há tribunas mais altas que as que vemos: Spectaculum facti sumus Deo, Angelis et hominibus. Acima das tribunas dos reis, estão as tribunas dos anjos, está a tribuna e o tribunal de Deus, que nos ouve e nos há-de julgar. Que conta há-de dar a Deus um pregador no Dia do Juízo? O ouvinte dirá: Não mo disseram. Mas o pregador? Vae mihi, quia tacui: Ai de mim, que não disse o que convinha! Não seja mais assim, por amor de Deus e de nós.

Estamos às portas da Quaresma, que é o tempo em que principalmente se semeia a palavra de Deus na Igreja, e em que ela se arma contra os vícios. Preguemos e armemo-nos todos contra os pecados, contra as soberbas, contra os ódios, contra as ambições, contra as invejas, contra as cobiças, contra as sensualidades. Veja o Céu que ainda tem na terra quem se põe da sua parte. Saiba o Inferno que ainda há na terra quem lhe faça guerra com a palavra de Deus, e saiba a mesma terra que ainda está em estado de reverdecer e dar muito fruto: Et fecit fructum centuplum.

NUPILL - Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística

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Leia mais em O que é o Trivium? - por Roberto Helguera

Leia mais em Para entender O Trivium, por José Monir Nasser



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Sobre Euclides, sua Geometria e seus Elementos - parte 2


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Tempo de leitura: 73 minutos. 

Continuamos com apresentação da Introdução do livro Os Elementos de Euclides, traduzido por Irineu Bicudo, Editora Unesp, 2009.

A parte I pode ser encontrada AQUI e a parte III aqui (em breve).


A História

(...) é impossível para um historiador ressuscitar
integralmente o passado (...)
Jacque Le Goff

As Sereias: consta que elas cantavam, mas de uma maneira 
que não satisfazia, que apenas dava a entender em
que direção se abriam as verdadeiras fontes e a verdadeira
felicidade do canto. Entretanto, pelos seus cantos imperfeitos, 
que não passavam de um canto ainda por vir,
conduziam o navegante em direção àquele espaço onde o
cantar começava de fato. Elas não o enganavam, 
levavam-no realmente ao objetivo.
Maurice Blanchot

Em geral, a natureza não propõe problemas fáceis, dado quase sempre o elevado número das variáveis neles envolvidas. Pela impossibilidade, consequência das dificuldades técnicas, de abrangê-las todas, o homem de ciência, ao abordar uma determinada questão, seleciona aquelas que julga mais significativas ao tratamento do caso considerado. Faz-se, assim, uma modelagem da realidade (o que quer que isso possa significar). Mas, então, a solução oferecida é sempre uma redução, apenas uma aproximação daquilo que a natureza sugerira. Há, pois, soluções mais ou menos compreensivas, dependendo da capacidade de cada cientista de lidar com um número conveniente das variáveis e da sua perspicácia (ou devemos chamá-la intuição) no escolhê-las importantes.

O mesmo se dá quando se procura escrever a história de um acontecimento, de uma cultura, de uma época. Apenas aproximações estão no domínio do historiador: boas ou más. Tudo o que ele pode almejar é que o seu relato seja “o canto da Sereia” que não engane, mas leve realmente ao objetivo. E isso, principalmente, ao dispormos de documentos para a consulta, na existência de fontes primárias. Falto delas, fica cheio de obstáculos o caminho para uma boa aproximação dos fatos ocorridos e dos feitos alcançados.

Tudo isso é avalizado pelo seguinte trecho de uma entrevista de um historiador brasileiro a um jornal de São Paulo [14]:

Julguei importante colocar a controvérsia historiográfica para ajudar o leitor a entender que não há possibilidade de reconstruir o passado como tal. A história é sempre uma construção, ainda que não seja arbitrária, pois procura a objetividade através do controle das fontes. Dependendo da maneira como tais fontes são interpretadas, surgem visões distintas, trazendo a marca da concepção do historiador e também do tempo.

Talvez, com uma boa dose de audácia, pudéssemos tomar por mote: “O Passado jaz morto e enterrado”.

Nesse caso, o que nos caberia fazer?

Cada historiador da Matemática – fixemo-nos no que nos diz respeito – age a partir de pequenas evidências, como o legista tenta, a partir de algum osso, reconstituir o verdadeiro rosto do morto, que não mais se mostra na polida superfície dos espelhos. Assim escreve G. R. Dherbey no prefácio à tradução francesa de Os sofistas, do italiano Mario Untersteiner:

Objetar-se-nos-á, talvez, que o conhecimento, no que concerne ao corpus sofístico, é bem mais difícil: os textos são extremamente fragmentários e mesmo, exceção feita a Górgias, pobres e raros. Mas não nos achamos aqui, como para toda a literatura pré-socrática aliás, em caso semelhante àquele da paleontologia? Cuvier empenhava-se, a partir de simples vestígios de animais pré-históricos, em reconstruir o esqueleto inteiro: o dente carnívoro e o dente moedor não impõem a mesma forma de mandíbula que, por sua vez, implica uma morfologia geral seja de predador, seja de ruminante. Cada elemento anatômico dá, de modo rigoroso, o todo, e dever-se-ia fazer ao pensamento a bondade de crê-lo tão coerente quanto a carcaça animal.

Mas essa convicção na coerência que pudesse fazer divisar o “esqueleto inteiro” com base em um “elemento anatômico” não se deve esperar do historiador, pois em geral um “elemento” será comum a vários “esqueletos”. É o que é razoável concluir do que observa Paul Tannery em La géométrie grecque [15]:

Separemos da história da Matemática a parte propriamente bibliográfica, quero dizer, a constatação material dos fatos: tal frase encontra-se em tal página, seja de tal edição de tal obra, seja de tal manuscrito arrolado sob o número tal em tal biblioteca; separemos ainda o que pode, como no Aperçu historique [Resumo histórico] de Michel Chasles, formar um dos principais atrativos do livro, mas que pertence, de fato, à Ciência mesma, bem longe de constituir uma parte integrante da sua história; quero dizer, os desenvolvimentos dados a tal método, as relações estabelecidas entre eles e outros mais recentes, enfim as demonstrações de teoremas ou soluções de problemas, quer concebidas no espírito dos procedimentos de outrora quer somente sugeridas pelo seu estudo.
Feita essa separação, o que resta na realidade? Um tecido de conjecturas que estão, aliás, em todos os graus de probabilidade, desde aquela que tem quase o valor de certeza, até a que mal difere da dúvida, para não falar de hipóteses ainda menos favorecidas; e ainda esse tecido assemelha-se à mortalha de Penélope porque, se é verdade que se pode considerar como indo sempre aumentando a probabilidade média dos resultados obtidos pela crítica, não é, de modo algum, o mesmo para a probabilidade especial de cada asserção particular; essa probabilidade é sujeita a variações contínuas, e raramente existe ponto pelo qual a opinião hoje dominante ache-se garantida contra uma exclusão momentânea, ou definitiva, após ou na vinda à luz de algum fato novo ou da aparição de alguma nova hipótese.

Ainda, para só ficarmos entre os grandes da história da matemática, reproduzimos as palavras de Otto Neugebauer [16]:

Das abóbadas do Museu Metropolitano de Nova York pende uma magnífica tapeçaria que conta a fábula do Unicórnio. No final, vemos o miraculoso animal capturado, graciosamente resignado ao seu destino em um recinto limitado por uma pequena e bem feita cerca. Essa imagem pode servir como símile para o que tentamos aqui. Erigimos engenhosamente, a partir de pequenos pedaços de evidência, a cerca dentro da qual esperamos ter prendido o que pode parecer uma criatura possível, vivente. A realidade, no entanto, pode ser amplamente diferente do produto da nossa imaginação; talvez seja vão esperar algo mais do que uma imagem agradável à mente construtora quando tentamos restaurar o passado.

Como um erudito alemão, ao escrever a última frase acima, Neugebauer deveria ter em mente a mesma cena do Fausto a que se refere E. Cassirer, a respeito do mito:

No Fausto de Goethe, há uma cena em que vemos o Doutor Fausto na cozinha da bruxa, esperando que esta lhe dê a beberagem mágica que o devolverá à juventude. Diante de um espelho encantado, tem subitamente uma visão maravilhosa. Aparece no espelho a imagem de uma mulher de beleza sobrenatural. Fausto sente-se arrebatado e atraído; mas Mefistófeles, que está ao seu lado, zomba de tanto entusiasmo. Ele é quem sabe das coisas; sabe que o que Fausto viu no espelho não era a forma de uma mulher real: era tão só uma criatura da sua própria imaginação (grifo nosso).

São múltiplos os perigos quando pretendemos trilhar o passado. Há terrenos alagadiços, falsas pontes, tenebrosos abismos. Estará o pote de ouro no final do arco-íris? Há o cedermos aos antigos os nossos olhos e nossas ideias. Prevenia-nos Levy-Bruhl, guardadas as proporções:

Em vez de nos substituirmos em imaginação aos primitivos que estudamos, e de fazê-los pensar como nós pensaríamos se estivéssemos no seu lugar, o que só pode conduzir a hipóteses quando muito verossímeis e quase sempre falsas, esforcemo-nos, pelo contrário, por nos pôr em guarda contra os nossos próprios hábitos mentais e tratemos de descobrir os dos primitivos através da análise das suas representações coletivas e das ligações entre essas representações.

Completemos Levy-Bruhl com o que tão enfaticamente afirma Lucien Febvre:

A esses antepassados, emprestar candidamente conhecimentos de fato – e, portanto, materiais de ideias – que todos possuímos, mas que para os mais sábios dentre eles era impossível obter; imitar tantos bons missionários que, em tempos, regressavam maravilhados das “ilhas”, pois todos os selvagens que tinham encontrado acreditavam em Deus (mais um pequeno passo e tornar-se-iam autênticos cristãos); dotarmos os contemporâneos do papa Leão, com uma generosidade imensa, das concepções do universo e da vida que a nossa ciência para nós forjou e cujo teor é tal que nenhum dos seus elementos, ou quase, habitou alguma vez o espírito de um homem da Renascença – porém, contam-se pelos dedos os historiadores, e refiro-me aos de maior envergadura, que recuam perante tal deformação do passado, tal mutilação da pessoa humana na sua evolução.

Pronto! Estamos junto ao templo sagrado da Matemática, esse “jogo de jovens” (“Nenhum matemático deveria jamais se permitir esquecer que a Matemática, mais do que qualquer outra arte ou ciência, é um jogo de jovens” – G. H. Hardy), criado por um povo de juventude eterna; “aquele que, em Delfos, contempla a densa multidão dos jônios, imagina que eles jamais haverão de envelhecer”.

Mostramos armadilhas, apontamos enganosos caminhos que se oferecem, sedutores, aos que se atrevem a desvelar o passado. Seja, pois, tudo aceito cum grano salis.

As portas do templo neste momento se abrem. Convidamo-lo, caro leitor, entremos.


Euclides e a tradição sobre ele


Tudo já foi dito uma vez, mas, como 
ninguém escuta, é preciso dizer de novo.
André Gide

Para testemunhos de como se constituiu e como se desenvolveu a geometria grega, ficamos estritamente dependentes de escassas notícias espalhadas em escritores antigos, muito do que foi extraído do trabalho desaparecido, já mencionado, História da Geometria, de Eudemo, um dos principais discípulos e colaboradores de Aristóteles.

Uma passagem dessa obra, conhecida como o Sumário de Eudemo ou o Catálogo dos geômetras, foi, no entanto, preservada por Proclus, que a retirou, bem provavelmente, dela própria. Traduzimos todo o passo, começando um pouco antes:

Por um lado, de fato, muitos dos mais velhos descreveram essas coisas, tendo-se proposto a fazer o elogio da matemática, e por isso apresentamos poucas das muitas nessas coisas, exibindo completamente o conhecimento e a utilidade da geometria. Por outro lado, depois dessas coisas, deve-se dizer da produção dela nesse período. Pois o divino Aristóteles dizendo: as mesmas opiniões frequentemente retornar aos homens segundo períodos determinados do todo, e não tomar as ciências uma organização durante o nosso tempo primeiramente ou o dos nossos conhecidos, mas também nem dizer em quantas outras circunvoluções, tanto tornadas quanto havendo de ser, aparecerem elas e também de novo desaparecerem.
Depois de que, dizemos, é preciso examinar as origens das artes e das ciências no período presente.
Visto que seja conhecido por muitos a geometria ter sido descoberta entre os egípcios primeiramente, tendo tomado a origem da ação de medir com cuidado as áreas.
Pois esta era necessária para aqueles pela ação de se elevar do Nilo, fazendo desaparecer os limites concernentes a cada um.
E nada é surpreendente começar a descoberta tanto dessa quanto das outras ciências pela necessidade, porque tudo o que é produzido na geração avança do imperfeito ao perfeito.
Possa, justamente, a mudança vir a acontecer, de fato, da sensação para o cálculo e desse para o pensamento.

Como, de fato, entre os fenícios, pelo comércio e as relações de negócio, o conhecimento dos números tomou o princípio exato, assim também entre os egípcios a geometria foi descoberta pela causa dita.

E Tales, primeiramente tendo ido ao Egito, transportou para a Grécia essa teoria e, por um lado, descobriu muitas coisas, e, por outro lado, mostrou os princípios de muitas para os depois dele, aplicando-se a umas de modo mais geral, a outras, de modo mais sensível.

E depois desse, Mamerco [?], o irmão do poeta Stesichorus, o qual é mencionado como tendo tido uma ligação de zelo em relação à geometria, e Hippias de Elis relatou-o como tendo adquirido uma reputação na geometria [17].

E depois desses, Pitágoras mudou a filosofia sobre ela em uma forma de educação livre, examinando do alto os princípios dela, explorando os teoremas tanto de um modo imaterial quanto intelectual, o qual então também descobriu a disciplina dos irracionais e a construção das figuras cósmicas. E depois desse, Anaxágoras de Clazomene ligou-se a muitas coisas das relativas à geometria, e Oinopedes de Quios, sendo por pouco mais jovem do que Anaxágoras, os quais também Platão mencionou nos Rivais como tendo adquirido uma reputação nas matemáticas.

Depois dos quais, Hipócrates de Quios, o que descobriu a quadratura da lúnula, e Teodoro de Cirene tornaram-se ilustres com relação à geometria.

Pois Hipócrates também compôs Elementos, o primeiro dos que são mencionados.

E Platão, tendo nascido depois desses, fez tomar muito grande progresso tanto as outras coisas matemáticas quanto a geometria, pelo zelo relativo a elas, o qual, é evidente, tanto de algum modo tendo tornado frequente as composições com os discursos matemáticos quanto despertado por toda parte a admiração relativa a elas dos que se ligam à filosofia.

E nesse tempo eram tanto Leodamas de Thasos quanto Árquitas de Taranto quanto Teeteto de Atenas, pelos quais os teoremas foram aumentados e avançaram para uma organização mais científica. E Neocleides, mais jovem do que Leodamas, e o discípulo desse, Léon, os quais resolveram muitas coisas em adição às dos antes deles, de modo a Léon compor também os Elementos de maneira mais cuidada tanto pela quantidade quanto pela utilidade das coisas demonstradas, e descobrir distinções, quando o problema procurado é possível e quando é impossível.

E Eudoxo de Cnido, por um lado, por pouco mais jovem que Léon, e, por outro lado, tendo-se tornado companheiro dos à volta de Platão, primeiro aumentou a quantidade dos chamados teoremas gerais, e às três proporções ajuntou outras três, e fez avançar em quantidade coisas tomadas a respeito da seção, com origem em Platão, servindo-se das análises sobre elas. E Amyclas de Heracleia, um dos discípulos de Platão e Menaechmus, que é discípulo de Eudoxo, tendo também frequentado Platão, e o seu irmão Deinostratus fizeram ainda mais perfeita a geometria toda. E Theudius de Magnésia pareceu ser o que excede tanto nas matemáticas quanto em relação à outra filosofia. Pois também arranjou convenientemente os Elementos e fez mais gerais muitas coisas das particulares. E, naturalmente, também Athenaeus de Cyzicus, tendo nascido durante os mesmos tempos, também se tornou ilustre, por um lado, nas outras matemáticas, e, por outro lado, principalmente na geometria. De fato, esses viveram com outros na Academia, fazendo as pesquisas em comum. E Hermotimus de Colofon fez avançar as coisas investigadas antes por Eudoxo e Teeteto, tanto descobriu mais muitas coisas dos Elementos quanto redigiu alguns dos Lugares. E Felipe de Mende, sendo discípulo de Platão e tendo sido exortado por ele para as matemáticas, tanto fazia as pesquisas segundo as indicações de Platão quanto produziu-as por si próprio quantas cria contribuir para a filosofia de Platão. Os que realmente expuseram as histórias promoveram as realizações dessa ciência até esse tempo [18].

Aí termina o Catálogo elaborado por Eudemo.

Além de fixar os nomes daqueles gregos que mais se distinguiram no esforço de dar à matemática aquela aparência de que seríamos herdeiros, o que mais chama a atenção é o fato de Euclides não ter sido o primeiro a coligir os Elementos. Mas, ao lado do que, como veremos, Proclus vai dar a seguir, há o ponto relevante de que apenas, dessas todas, só a obra de Euclides chegou até nós. Eis a marca do seu sucesso: ter dado conta e bem de praticamente tudo o que fizeram os seus predecessores. Ora, quando se tem em mente a dificuldade na confecção de cópias manuscritas, se um tratado trouxesse de forma bem posta e melhorada o que outros continham, passava-se, com vantagens, a copiar aquele em detrimento destes. Desse modo, o tempo fez com os trabalhos dos demais o que não conseguiu com os Elementos de Euclides: eliminou-os quase que totalmente da memória dos homens.

Em continuação ao Catálogo, com sentido de completamento, Proclus prossegue, agora pelo seu arbítrio e risco.

E não muito mais jovem do que esses é Euclides, o que reuniu os Elementos, tendo também, por um lado, arranjado muitas das coisas de Eudoxo e tendo, por outro lado, aperfeiçoado muitas das coisas de Teeteto, e ainda tendo conduzido as coisas demonstradas frouxamente pelos predecessores a demonstrações irrefutáveis.
E esse homem floresceu no tempo do primeiro Ptolomeu; pois, também Arquimedes, tendo vindo depois do primeiro, menciona Euclides, e, por outro lado, também dizem que Ptolomeu demandou-lhe uma vez se existe algum caminho mais curto que os Elementos para a geometria e ele respondeu não existir atalho real na geometria [19].

Acontece com Euclides o mesmo que com outros grandes matemáticos da Grécia Antiga: restam-nos apenas macérrimas informações sobre a vida e a personalidade do homem. No caso presente, a maior parte do que temos provém do que está dado acima, no trecho “Não muito mais jovem do que esses (...) não há caminho real para a geometria”, isto é, na parte acrescentada por Proclus ao Sumário de Eudemo. O próprio autor do acréscimo parece não ter conhecimento direto do lugar de nascimento do geômetra ou das datas em que nasceu e em que morreu. Procede antes por inferência:

(1) Arquimedes viveu imediatamente após o primeiro Ptolomeu;
(2) Arquimedes menciona Euclides;
(3) Há uma história sobre algum Ptolomeu e Euclides;
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(I) Euclides viveu no tempo do primeiro Ptolomeu.

(4) Euclides medeia entre os primeiros discípulos de Platão e Arquimedes;
(5) Platão morreu em 347/6 a.C.;
(6) Arquimedes viveu de 287 a 217 a.C.;

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(II) Euclides deve ter atingido o seu acúmen por volta de 300 a.C. (o que acorda bem com o fato de que o primeiro Ptolomeu reinara de 306 a 283 a.C.).

(7) Atenas era, à época, o mais importante centro de matemática existente;
(8) Os que escreveram Elementos antes de Euclides viveram e ensinaram em Atenas;
(9) O mesmo vale para os outros matemáticos de cujos trabalhos os Elementos de Euclides dependiam;

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(III) Euclides recebeu o seu treinamento matemático dos discípulos de Platão em Atenas.

Proclus, indo ainda mais longe, garante que Euclides era da escola platônica e que mantinha íntima relação com a filosofia dele [20] (“é platônico pela escolha e familiarizado com essa filosofia”) e que, por essa razão, teria se proposto por objetivo dos Elementos, como um todo, a construção das chamadas figuras platônicas [21] (“e donde precisamente propôs-se como objetivo do livro todo dos Elementos a construção das chamadas figuras platônicas”). Como os Elementos terminam, de fato, com a construção dos poliedros regulares, isto é, dos cinco sólidos ou figuras platônicas, sendo Proclus um neoplatônico, viu nisso a oportunidade para associar Euclides àquela escola. Aliás, parece-nos possível entender a expressão τέλος no papel de advérbio “no fim, em último lugar”, podendo-se verter parte da frase citada por “propôs-se no fim do livro todo dos Elementos a construção (...)”, o que é verdade. Abusaria, assim, Proclus de uma ambiguidade?

Que Euclides ensinara e fundara uma escola em Alexandria, aprendemos de uma observação de Pappus no Livro VII da sua A coleção matemática, ao comentar que Apolônio nos transmitiu oito livros sobre as cônicas, tendo completado os quatro livros das Cônicas de Euclides e a eles ajuntado outros quatro.

Pappus, 7.35:
E [Apolônio] pode ajuntar as coisas restantes ao “lugar”, tendo antes sido capaz de imaginar pelas coisas já escritas por Euclides sobre o “lugar”
e, tendo frequentado por muito tempo os discípulos de Euclides em Alexandria, por essa razão adquiriu esse hábito não ignorante de mente [22].

Há, por fim, um episódio relatado por Stobaeus nos seus Eclogarum physicarum et ethicaram Libri II [23]. Ei-lo:

(...) alguém que começara a estudar geometria com Euclides, tendo aprendido o primeira teorema, perguntou a Euclides: “Mas o que me será acrescido por aprender essas coisas?” E Euclides, tendo chamado o escravo: “Dê-lhe três óbolos, porque para ele é preciso lucrar com o que aprende” [24].


Apenas isso a tradição nos transmite sobre o nosso personagem. 

Vale ponderar aqui que a tradição se interessa mais pela verossimilhança do que pela verdade, considerando aquela como uma metáfora desta. Desse modo, o diálogo entre Ptolomeu e Euclides que, diga-se de passagem, também é contado sobre a dupla rei-geômetra Alexandre e Menaechmus, pelo próprio Stobaeus na obra referida, metaforiza o fato de a geometria ter de ser aprendida sistematicamente, passo a passo, seguindo o trajeto exposto nos Elementos. A última história, por sua vez, representa, figuradamente, o que é frisado no Catálogo dos geômetras, que Pitágoras mudou a filosofia sobre a matemática “em uma forma de educação liberal”, ou seja, própria dos homens livres, que não se submetem senão a ganhos intelectuais. Da mesma maneira, quando a tradição nos dá como escrita sobre o pórtico da Academia a famosa frase “ninguém que ignore geometria entre” [25], não quer nos fazer crer estar ela realmente postada à entrada para, como a ígnea espada do arcanjo, que impedisse, aos não iniciados naquela ciência, o acesso a um tal Éden; antes condensa, metaforicamente, de modo admirável, tudo o que Platão dizia sobre a matemática: ser ela o vestíbulo, a via pela qual se chega à filosofia.

O que fica de tudo é o pouco conhecimento, e ainda assim incerto, que resta do homem que foi o nosso geômetra. É como se, daquela distante época, um aedo nos cantasse:

Diz o Tempo a Euclides:
Nas muitas dobras que tenho
No meu manto de negro tecido,
Escondo para sempre dos pósteros
A tua vida, as tuas dores,
As tuas alegrias fugazes,
O teu dia de cada dia.
Escondo-te o semblante, o sorriso,
A lágrima quente que escava
Profundos sulcos na face.
Escondo também os amores,
As tuas noites de insônia
E a dura luta diária
Rumo à verdade desnuda.
Escondo tudo o que foste
De todos os que virão.
Mas as muitas dobras que tenho
No meu manto de negro tecido,
Por mais que eu faça e refaça,
Não bastam para esconder
A obra que produziste.
Proclamo, pois, em alto som:
Os Elementos de Euclides
Sempiternos brilharão.


Outros trabalhos de Euclides


A importância extraordinária dos Elementos torna de somenos monta os demais trabalhos atribuídos ao geômetra, alguns dos quais chegaram até nós. São, na maior parte, pequenos planetas a orbitarem à volta daquela magna estrela. Conhecemo-los todos por menção de autores gregos.

Assim, na sequência do Sumário de Eudemo, Proclus faz-nos saber:

Também existem, de fato, muitas outras obras matemáticas desse homem, cheias de exatidão admirável e de visão científica.
Pois tais são tanto a Ótica quanto a Catóptrica, e tais também as a respeito dos Elementos de música, e ainda o livro sobre Divisões [26].

E, em continuação, elogiando os Elementos, faz referência a um outro trabalho:

E porque muitas coisas são vistas na aparência como sendo apoiadas na verdade e seguindo os princípios científicos, mas seguem o seu curso para o desvio dos princípios e enganam completamente os mais superficiais, ele também legou à posteridade métodos de percepção perspicaz dessas coisas, tendo os quais poderemos treinar os principiantes dessa teoria para a descoberta dos paralogismos, e a permanecer até o fim não enganados.
E assim então, essa obra, pela qual introduz-nos nessa preparação, ele intitulou Das falácias (...) [27]

Esse livro Das falácias perdeu-se, mas o seu intento é exposto claramente no excerto, e, como aparece num contexto que diz respeito aos Elementos, é lídimo supor não ultrapassar o domínio da geometria.

Vejamos os outros títulos citados pelo escoliasta.


Ótica e Catóptrica


Ambos foram editados por Heiberg no mesmo Volume VII (1895) da publicação pela Teubner Verlagsgesellschaft Euclidis opera omnia [28], de Heiberg–Menge. Aí a Ótica aparece na sua forma genuína e na recensão de Théon de Alexandria.

A Catóptrica, por sua vez, não é genuína e Heiberg tem para si que, no formato sobrevivente, possa ser de Théon. Possivelmente, Proclus teria se enganado ao pô-la na conta de Euclides, que não a produzira.

A Ótica é, de fato, um tratado de perspectiva. Parte da hipótese da existência de raios visuais retilíneos e busca determinar a parte que efetivamente vemos de um objeto distante dado.

A palavra catóptrica (que ousamos aportuguesar, com a acentuação regida pela analogia com ótica, variante de óptica) é um adjetivo grego derivado do substantivo neutro κατόπτρον “espelho”. Por isso, o título τὰ κατοπτρικά significaria “imagens refletidas”, ou melhor, Teoria da reflexão.


Elementos de música


Dois tratados são dados como de Euclides: Sectio canonis [29] “a teoria dos intervalos”, “Divisão da escala”, e εἰσαγωγή ἁρμονική “introdução à harmonia”, editados no Volume VIII das Euclidis opera omnia por Menge. O primeiro, baseado na teoria pitagórica da música, é matemático, concordando em geral, tanto na dicção quanto na forma das proposições, com o que está nos Elementos. O segundo é de Cleonides, um discípulo de Aristoxenes.


O livro das divisões (de figuras)


Essa obra, contrariando aparentemente a expectativa dos que conhecem apenas os Elementos, ocupa-se com a aplicação da geometria a problemas de cálculo, como os existentes na Babilônia. A diferença característica é o uso feito dos resultados dependentes de proposições daquele trabalho magno em lugar da abordagem numérica dos orientais.

Trata-se, em resumo, da divisão de figuras em outras que lhes sejam semelhantes ou dessemelhantes pela definição, isto é, do mesmo tipo ou de tipo diferente. Desse modo, um triângulo pode ser dividido em triângulos, ou seja, em figuras do mesmo tipo ou semelhantes pela definição, ou pode ser dividido em um triângulo e um quadrilátero, figuras dessemelhantes pela
definição.

É como nos diz Proclus (144.22-26)

... pois tanto o círculo é divisível em dessemelhantes pela definição quanto cada uma das retilíneas, e ele próprio, o autor dos Elementos, ocupou-se nas Divisões, dividindo as figuras dadas quer em semelhantes quer em dessemelhantes [30].

O texto grego dessa obra de Euclides perdeu-se, tendo sido redescoberto em árabe. Woepcke encontrou em um manuscrito em Paris um trabalho em árabe sobre a divisão de figuras. Traduziu-o e publicou-o em 1851 no Journal Asiatique. Esse tratado é expressamente atribuído a Euclides no manuscrito e acorda com o que Proclus diz sobre ele.

Além desses trabalhos cujo elenco é dado pelo comentarista, há mais, citados por outros autores.


Os Data


Os Data [31] foram incluídos por Pappus no Tesouro da análise.

Antes de tecer considerações sobre ele, queremos esclarecer alguns pontos relativos a Pappus.

Estamos todos cientes de que a Idade de Ouro da geometria grega findara com Apolônio de Perga. No entanto, a influência dos feitos do trio, Euclides, Arquimedes e Apolônio, não acabou com os seus dias. Tivemos uma sucessão de matemáticos, se não criativos, ao menos competentes, aptos a preservar a tradição. Geminus, por exemplo, escreveu uma obra de caráter quase enciclopédico sobre a classificação e o conteúdo da matemática, incluindo a história do desenvolvimento de cada assunto. Pappus (VIII, 3), falando sobre Arquimedes, abona a sua observação com um “como o declara também Geminus, o Matemático, no seu livro A ordenação da matemática” [32]. Apesar disso, o título do grande tratado de Geminus não está bem fixado, pois Eutocius de Áscalon, no seu comentário às Cônicas de Apolônio, menciona-o como A ciência matemática [33]. Já Proclus, no Comentário ao livro I dos elementos de Euclides, mune-nos de informações precisas sobre esse trabalho, sem jamais mencionar-lhe o título.

O começo da Era Cristã assiste a um acentuado decréscimo no interesse pelo estudo da geometria avançada. Assim Pappus, no século III, propõe-se a missão de reavivar a curiosidade sobre tal conhecimento.

A sua obra capital chegou-nos sob a designação de Coleção matemática. Em verdade, a maior parte dos manuscritos, sobretudo os mais antigos, vem apenas com a denominação A coleção [34], mas cópias menos antigas trazem um título mais completo no plural, As coleções matemáticas [35]. Consiste ela em uma ampla recolha de proposições extraídas de um número grande de obras de outros matemáticos, quase todas hoje infelizmente desaparecidas. Está longe, porém, de ser uma simples compilação, e excede de muito o quadro de apenas um comentário, uma vez que não se limita a expor proposições notáveis, devidas aos seus predecessores. Fá-las acompanhar de uma multidão de lemas, destinados a esclarecer as passagens mais complexas das suas demonstrações. Mas, há muito mais. Dá-nos frequentemente demonstrações alternativas. Estende-as a casos particulares ou análogos, aplica-os à solução de problemas novos ou à daqueles já resolvidos de outra maneira, e completa o todo com numerosas proposições novas, que indicam pesquisas bem avançadas nesse domínio e o calibre matemático do seu autor.

A obra é composta por oito livros (capítulos, como os chamaríamos hodiernamente), sendo o sétimo sobremodo importante para a história da geometria, por ser a única fonte do que conhecemos sobre um conjunto de trabalhos perdidos relativos à geometria avançada, que os antigos chamavam “lugar resolvido/analisado” ou “Tesouro da análise” [36]. A denominação Tesouro da análise, corrente na língua inglesa, Treasure of Analysis, parece ter sido sugerida por James Gow que, em nota na página 211 da sua A Short History of Greek Mathematics [37], faz as seguintes e, a nosso ver, pertinentes considerações filológicas:

A palavra τόπος aqui não significa locus (“lugar”), mas tem o seu significado aristotélico de “store-house” (“depósito, ou figuradamente, tesouro”). Então, no começo do Livro VI de Pappus, τόπος ἀστρονομούμενος significa “o tesouro astronômico”... Τόπος ἀναλυόμενος significa “o tesouro da análise”, como na retórica de Aristóteles, τόποι ou κοινοὶ τόποι são coleções de “lugares comuns”, [isto é] observações e críticas a que os retóricos podem sempre recorrer. A tradução de τόπος ἀναλυόμενος como “locus resolutus”, “lieu résolu” ou “aufgelöster Ort” é portanto enganadora e levou, acredito, a alguma concepção errônea.

Pappus indica-lhe de pronto a natureza, afirmando:

O chamado Tesouro da análise, Hermodoro meu filho, é uma matéria especial preparada como auxílio, depois da produção dos elementos comuns, para os que querem aprender nas linhas a potência inventiva dos problemas que se lhes estendem à frente e que se constituiu útil para isso somente [38].

Prossegue, um pouco mais adiante:

E dos preditos livros do Tesouro da análise, a ordem é esta [39]: dos Data de Euclides, um livro... [40]; dos Porismata de Euclides, três [41]; ... dos Lugares em uma superfície de Euclides, dois... [42] Existem 32 livros [43].

Portanto, dentre outros, Pappus arrola três outros trabalhos de Euclides não mencionados por Proclus.

Retornemos, agora, aos Data, cujo texto sobreviveu e foi editado, juntamente com o comentário feito por Marinus de Neapolis, discípulo de Proclus, por Menge no Volume VI de Euclidis opera omnia.

Os Data são um conjunto de 95 proposições (Pappus fala em 90), precedido agora por uma introdução explanatória de Marinus. Este observa que Euclides deveria ter começado com uma definição geral de δεδομένον “dado” e depois passar aos vários casos que inclui, concluindo que, na sua opinião, a melhor definição seria “cognoscível e passível de obtenção” [44].

Eis algumas das definições de Euclides no início da obra:

1. Áreas e também linhas e ângulos são ditos dados em magnitude, iguais aos quais podemos obter [45].
4. Pontos e também linhas e ângulos são ditos ter sido dados em posição, aqueles que se mantêm sempre sobre o mesmo lugar [46].
6. E um círculo é dito ter sido dado em posição e em magnitude, aquele do qual, por um lado, o centro foi dado em posição, e, por outro lado, o raio, em magnitude [47].

As proposições que seguem as definições lidam com magnitudes, linhas, figuras retilíneas e círculos, nessa ordem.

A palavra “dado” é empregada em dois sentidos. Significa, primeiramente, “realmente dado”, e, em segundo lugar, “dado por implicação”, e as proposições são todas para esse efeito de que certa descrição parcial de uma magnitude ou de uma figura geométrica envolva uma descrição mais completa; assim aquela de um triângulo como equilátero envolve a sua descrição como equiângulo.

Pappus mostra com exemplos como os Data prestam serviço à Análise. Esta começa com uma construção suposta que satisfaça as condições propostas. Tais condições, sendo convertidas em elementos dados da figura, envolvem outros que são dados por implicação, e esses, por sua vez, envolvem outros, até que, passo a passo, cada um deles é legitimado, e chega-se a uma construção da qual se obtém uma síntese.

Os Data são, de fato, sugestões para as etapas mais usuais na Análise.


Os Porismata


Proclus (301.21-302.13) procura elucidar o que se deve entender tecnicamente por porismata [48]. Eis a explicação:

O porisma [substantivo neutro em grego] é uma das expressões geométricas. E isso significa duas coisas. Pois, denominam-se porismata tanto quantos teoremas são ajudados no seu estabelecimento pelas demonstrações de outros, como sendo golpes de sorte e ganhos dos que procuram, como quantas coisas, por um lado, são procuradas, e, por outro lado, têm necessidade de descoberta e não de produção só nem de simples teoria.

Pois porque, por um lado, é preciso considerar os na base dos isósceles iguais, esse conhecimento é, então, das coisas que são.

Por outro lado, dividir o ângulo em dois ou construir um triângulo ou subtrair ou acrescentar, todas essas coisas demandam uma ação de alguém, mas achar o centro do círculo dado ou achar a maior medida comum de duas magnitudes comensuráveis dadas ou quantas coisas que tais estão, de alguma maneira, entre problemas e teoremas.

Pois, nem são produções nessas coisas das procuradas, mas são descobertas, nem simples teorias.

Pois é preciso conduzir o procurado sob a vista e fazer o procurado diante dos olhos.

Portanto, tais coisas são também quantos porismata Euclides escreveu, tendo composto três livros de porismata [49].

Pappus também fala sobre os porismata nos seguintes termos:

E todas as espécies deles não são dos teoremas nem dos problemas, mas de algum modo no meio dessas, existindo forma, por poderem os enunciados deles assumir certa forma ou como dos teoremas ou como dos problemas, pelo que também aconteceu dos muitos geômetras, os que consideram apenas a forma do enunciado, uns tomarem-nos por ser, no gênero, teoremas, outros, problemas [50].

Com toda certeza, Proclus usava as palavras de Pappus. De qualquer modo, pela distinção feita, há os porismata que são meros corolários, isto é, consequências diretas das demonstrações de outros teoremas, e os há como proposições que, não sendo tecnicamente quer teoremas quer problemas, participam da natureza de uns e dos outros.

O tratado de Euclides jaz escondido nas dobras do negro manto do tempo, mas, porque Pappus o tratou de modo extensivo, acrescentando-lhe tantos lemas, alguns geômetras, e dentre eles o francês do século XIX, Michel Chasles (nos Les trois livres des porismes d’Euclide réstablis [51], Paris, Mallet-Bachelier, 1860), tentaram, com maior ou menor êxito, restaurá-lo.

O objetivo de um porisma não é aquele de um teorema, isto é, a descrição de uma nova propriedade, nem o de um problema, ou seja, efetivar uma construção ou alterar uma dada; é antes achar e trazer à vista uma coisa que coexiste necessariamente com certas coisas dadas, como a maior medida comum coexiste com duas magnitudes comensuráveis dadas, ou como o centro coexiste com um círculo dado.

Detenhamo-nos um pouco nas interessantes considerações feitas por Chasles no seu Aperçu historique des méthodes en géométrie [52], p.12-15:

Segundo o prefácio do Sétimo livro das coleções matemáticas de Pappus, parece que esse tratado dos porismata distinguia-se por um talento penetrante e profundo e era eminentemente útil para a resolução dos problemas mais complicados (collectio artifi ciosissima multarum rerum, quae spectant ad analysin diffi ciliorum et generalium problematum [“reunião engenhosíssima de muitas coisas que visam à análise dos problemas difíceis e gerais”]). Trinta e oito lemas, que esse sábio comentarista deixou-nos para a inteligência desses porismata, provam-nos que formavam um conjunto de propriedades da linha reta e do círculo, da natureza daquelas que nos fornece, na geometria recente, a teoria das transversais.
Pappus e Proclus são os únicos geômetras da Antiguidade que fizeram menção dos porismata; mas, já no tempo do primeiro, a significação dessa palavra estava alterada, e as definições que dela ele nos dá são obscuras. A de Proclus não é apropriada a esclarecer as primeiras. Também foi um grande problema entre os Modernos saber a nuança precisa que os Antigos haviam estabelecido entre os teoremas e os problemas por um lado, e esse terceiro gênero de proposições, chamadas porismata, que participava, ao que parece, de uns e dos outros; e saber particularmente o que eram os Porismata de Euclides.

Pappus, é verdade, transmitiu-nos os enunciados de trinta proposições pertencentes a esses porismata: mas esses enunciados são tão sucintos e tornaram-se tão defeituosos pelas lacunas e a ausência de figuras, que diziam a respeito deles que o célebre Halley, tão profundamente versado na geometria antiga, confessou não compreender nada deles, e que, até cerca da metade do último século, embora geômetras de grande mérito tenham feito dessa matéria o objeto das suas meditações, nenhum enunciado havia ainda sido restabelecido.

Foi R. Simson que teve a glória de descobrir a significação de vários desses enigmas, bem como a forma dos enunciados que era própria desse gênero de proposições. Eis o sentido da definição que o geômetra deu dos porismata:

O porisma é uma proposição na qual se anuncia poder determinar, e em que se determinam efetivamente, coisas que têm uma relação indicada com coisas fixas e conhecidas e com outras coisas variáveis ao infinito; estas estando ligadas entre si por uma ou várias relações conhecidas, que estabelecem a lei de variação, à qual estão submetidas.

Exemplo: sendo dados dois eixos fixos, se de cada ponto de uma reta baixam-se perpendiculares $p$ e $q$ sobre esses dois eixos, poder-se-á encontrar um comprimento de linha $a$ e uma razão $\alpha$ tais que se tenha entre essas duas perpendiculares a relação $(p-a)/q=\alpha$. (Ou, segundo o estilo antigo, a primeira perpendicular será maior, relativamente à segunda, por uma dada somente em razão.)

Aqui, as coisas fixas dadas são os dois eixos; as coisas variáveis são as perpendiculares $p, q$; a lei comum, à qual essas duas coisas variáveis estão sujeitas, é que o ponto variável, de onde essas perpendiculares são baixadas, pertence a uma reta dada; enfim, as coisas a encontrar são a linha $a$ e a razão $\alpha$, que estabelecerão, entre as coisas fixas e as coisas variáveis da questão, a relação prescrita.

Esse exemplo é suficiente para fazer compreender a natureza dos porismata, como a concebeu R. Simson, cuja opinião foi geralmente adotada desde então.

Todavia, devemos acrescentar que nem todos os geômetras reconheceram, na obra de Simson, a verdadeira previsão daquela de Euclides. Por nós, adotando o sentimento do ilustre professor de Glasgow, diremos porém que não encontramos no seu trabalho a previsão completa do grande enigma dos porismata. Essa questão, com efeito, era complexa, e as suas diferentes partes exigiam todas uma solução que se procura, em vão, no tratado de Simson.

Assim, dever-se-lhe-ia demandar:

1. Qual era a forma dos enunciados dos porismata;
2. Quais eram as proposições que entravam na obra de Euclides; notadamente aquelas cuja indicação, muito imperfeita, foi-nos deixada por Pappus;
3. Quais foram a intenção e o objetivo filosófico de Euclides, compondo essa obra em uma forma inusitada;
4. Sob que pontos de vista merecia a eminente distinção que lhe faz Pappus entre as outras obras da Antiguidade; porque só a forma do enunciado de um teorema não lhe constitui o mérito e a utilidade;
5. Quais são os métodos, ou as operações efetivas que mais se aproximam, sob uma outra forma, dos porismata de Euclides, e que os suprem na resolução de problemas; porque não se pode crer que uma doutrina tão bela e tão fecunda desaparecesse completamente da ciência dos geômetras;
5. E, enfim, haveria que dar uma interpretação satisfatória de diferentes passagens de Pappus sobre esses porismata; por exemplo, daquela em que diz que os modernos, não podendo tudo achar por eles próprios, ou, por assim dizer, “porismar” completamente, mudaram a significação da palavra; porque, se o porisma consistisse apenas na forma do seu enunciado, como parece resultar do tratado de R. Simson, seria sempre fácil “porismar” todas as proposições que fossem suscetíveis disso; e não se vê por que os modernos haveriam encontrado dificuldades que lhes tivessem feito mudar a significação da palavra.

E Chasles conclui o parágrafo relativo aos porismata afirmando que, pela importância do assunto, sobretudo pelas suas relações com as teorias que formam o domínio da geometria do seu tempo, dará continuidade ao parágrafo na Nota III, “Sur les porismes d’Euclide” [53], p.274-83, em que “tentaremos mesmo apresentar algumas ideias novas sobre essa grande questão dos porismata”.

O exposto, cremos, basta, quanto a tal obra de Euclides.


Lugares em uma superfície


Na Nota II que acresce sua obra citada, assim se exprime Chasles sobre os Lugares em uma superfície [54], cujos dois livros, segundo Pappus, também jazem submersos “em negro vaso de água do esquecimento”:

Montucla diz, na página 172 do primeiro volume da sua Histoire des mathématiques, que os Lieux à la surface de Euclides eram superfícies; e, na página 215 do mesmo volume, que eram linhas de dupla curvatura sobre superfícies curvas, como a hélice sobre um cilindro circular. É possível que os antigos designassem, em geral, por essa palavra, as superfícies e as curvas que aí eram traçadas. Mas, quais eram verdadeiramente os Lieux à la surface de Euclides?
Para responder a essa questão não nos resta outra indicação a não ser quatro lemas de Pappus relativos àquela obra; e como esses lemas tratam somente de seções cônicas, devemos pensar que Euclides considerava somente as superfícies que chamamos, hoje em dia, do segundo grau. E somos levados a crer que essas superfícies eram de revolução. Porque, por um lado, é certo que as superfícies de revolução do segundo grau tinham sido estudadas anteriormente a Arquimedes, pois após ter enunciado algumas propriedades das suas seções por um plano, ele diz, no final da proposição XII do seu livro Sobre esferoides e conoides, “as demonstrações de todas essas proposições são conhecidas”. Além disso, observamos que o último lema de Pappus é a propriedade principal do foco e da diretriz de uma cônica; e esse teorema parece-nos ter podido servir para demonstrar que o lugar de um ponto, cujas distâncias a um ponto fixo e a um plano devam estar entre elas em uma relação constante, é um esferoide ou um conoide, ou então para demonstrar que a seção desse lugar por um plano conduzido pelo ponto fixo é uma cônica tendo o seu foco nesse ponto, e cuja diretriz é a interseção do plano dessa curva pelo ponto fixo.
Desse modo, parece-nos provável que os Lieux à la surface de Euclides tratassem de superfícies do segundo grau, de revolução, e de seções feitas por um plano nessas superfícies, como o cone.

Já Gow [55] comenta que o próprio significado do título τόποι πρὸς ἐπιφανεία [56] ocasionou alguma controvérsia. Continuemos com ele:

O Prof. De Morgan diz francamente que não o entende e é evidente que Eutocius estava na mesma condição, pois fala, após descrever outros loci [“lugares”] muito bem, que os τόποι πρὸς ἐπιφανεία derivam o seu nome “da peculiaridade deles [57] e assim os deixa. O Prof. Chasles supõe que o livro contenha proposições sobre “superfícies do segundo grau, de revolução, e seções ali feitas por um plano”: e refere-se ao fato de que Arquimedes, no final da “Proposição XII” do seu Conoides e Esferoides, diz que certas proposições sobre seções de conoides φανεραί ἐστι (isto é, “são claras”, não “são bem conhecidas” como Chasles entende) e de que os quatro lemas que Pappus dá sobre esse livro de Euclides dizem respeito a seções cônicas. Heiberg, no entanto, por uma bem elaborada análise de todas as passagens nas quais τόποι de vários tipos são descritos, chega à conclusão de que τόποι πρὸς ἐπιφανεία significa simplesmente “loci que são superfícies”, e que o tratado de Euclides lida sobretudo com as superfícies curvas do cilindro e do cone. Que essas superfícies eram consideradas como loci antes do tempo de Euclides é evidente pela solução de Árquitas ao problema da duplicação do cubo.

Como se pode ver pelas passagens acima, e julgamos constituírem elas tudo o que se possa falar sobre esse trabalho de Euclides, estava aberta a temporada das conjecturas. E nada de mal nisso. É mesmo um ampliar de horizontes, um ganho em visão sobre os métodos dos antigos. Afinal, não há quem afiance ser a influente filosofia de Plotino o resultado da sua má compreensão das ideias de Platão? Ou, como quer o poeta, seja a metafísica uma consequência de se estar mal disposto (restando-nos, assim, como à “pequena suja”, tirar “o papel de prata, que é de folha de estanho”, cuidando para não deitar “tudo para o chão”, e comer chocolates)? [58]


As cônicas


Conforme com o já expresso, Pappus, tratando das Cônicas de Apolônio, atribuiu a Euclides um tratado sobre Seções cônicas [59] em quatro livros que teriam formado o fundamento dos quatro primeiros livros da obra de Apolônio. Infelizmente, talvez até pelo magnífico trabalho deste, o daquele não conseguiu vencer o destino das obras suplantadas por outras na Antiguidade e não sobreviveu.

Aristeu, o velho (cerca de 320 a.C.), escreveu um Elementos de seções cônicas, em cinco livros que, segundo Pappus, Euclides tinha em alta conta. Desse modo, não pode haver dúvidas quanto a essa obra de Aristeu ter precedido a de Euclides.

Arquimedes refere-se frequentemente a proposições sobre cônicas como bem conhecidas e não necessitando de demonstrações, adicionando em três casos que elas estavam provadas nos “elementos de cônicas”. Porém, não menciona Euclides, como se a mera denominação de “Elementos” bastasse por subentende-lhe o nome.

É razoável supor, como resultado do testemunho de Pappus, que, se Aristeu desenvolvera a teoria de modo original, Euclides teria posto em forma tudo o que fora adquirido à sua época, com mãos de grande sistematizador, e que as suas Cônicas eram uma obra de referência e assim permanecera até o aparecimento da de Apolônio.

No endereçamento a Eudemo, que conhecera em Pérgamo, do Livro I do seu tratado, Apolônio frisa que, dos oito livros que o constituem, os quatro primeiros são devotados a uma introdução elementar e passa a descrever-lhes o conteúdo. Sobre o terceiro deles assevera:

E o terceiro também [contém] muitos e extraordinários teoremas, úteis tanto para a síntese dos lugares sólidos quanto para as determinações, dos quais os mais numerosos e os mais belos são novos [60], e tendo-os observado, fomos capazes de ver não sendo sintetizado por Euclides o lugar nas três e quatro linhas [61], mas uma partezinha ao acaso dele e isso não de modo feliz [62]. Pois não era possível sem as coisas achadas por nós ter sido completada a síntese [63].

Está aí, pois, mencionado um ponto em que o geômetra de Pérgamo
melhora o trabalho em questão de Euclides. Este teria tratado apenas analiticamente “o lugar nas três e quatro linhas” [64]. O referido lugar é definido por Pappus (VII, 36) nos seguintes termos:

Se forem dadas três linhas em posição e de um ponto linhas retas forem traçadas para encontrar as três dadas em ângulos dados, e a razão do retângulo sob duas das linhas assim traçadas para o quadrado da terceira for dada, o ponto jazerá em um lugar sólido dado em posição, isto é, em uma das três cônicas. Se quatro linhas forem dadas em posição e quatro linhas retas forem traçadas como antes, e a razão dos retângulos sob dois pares for dada, similarmente o ponto jazerá sobre uma cônica.

É bom lembrar, de passagem, que a cônica como um locus ad quattuor lineas foi usado por Newton nos seus Principia.

É possível, com base nos primeiros livros das Cônicas de Apolônio e nas referências feitas por Arquimedes, propor, com bom grau de acerto, uma lista de proposições que figurariam no trabalho de Euclides. É o que faz Thomas L. Heath em A History of Greek Mathematics [65], II, 121-126.

Para concluir, é preciso lembrar que os nomes elipse, hipérbole e parábola são devidos não a Euclides ou a Aristeu, mas a Apolônio. Aparecem, respectivamente, nos complexos enunciados das proposições I.13, I.12 e III.45 das Cônicas. Ilustremos tal complexidade com o enunciado da proposição I.13 em que se define elipse:

Caso um cone seja cortado por um plano pelo eixo [66], e seja cortado também por um outro plano que encontra cada lado do triângulo pelo eixo [67], ao passo que nem conduzido paralelo à base do cone nem contrariamente [68], e o plano, no qual está a base do cone e o plano que corta se encontrem segundo uma reta que é em ângulos retos ou com a base do triângulo pelo eixo ou com a mesma sobre uma reta [69], a que seja conduzida paralela à seção comum dos planos da seção do cone até o diâmetro da seção [70], será, elevada ao quadrado, uma área posta junto a alguma reta [71], em relação à qual o diâmetro da seção tem uma razão que o quadrado sobre a conduzida, do vértice do cone paralela ao diâmetro da seção até a base do triângulo, para o contido pelas interceptadas por elas sobre as retas do triângulo [72], tendo como largura a que é interceptada por ela a partir do diâmetro em relação ao vértice da seção [73], deficiente por uma figura semelhante e também semelhantemente posta ao contido tanto pelo diâmetro quanto pelo parâmetro [74], e seja chamada tal seção uma elipse [75].

Como bem observa Paul Ver Eecke, naquela que foi a primeira tradução francesa do texto grego de Apolônio (p.28, nota 4):

Esse enunciado, que é tão complicado quanto aquele da proposição anterior [em que se define hipérbole], reduz-se a dizer que, na seção cônica considerada, o quadrado da ordenada equivale a uma área retangular que, aplicada segundo o parâmetro, isto é, tendo o parâmetro como comprimento, e tendo a abscissa como largura, é diminuída de uma área, semelhante àquela que tem como comprimento o parâmetro e como largura o diâmetro. Por consequência, se designarmos por $y$ a ordenada, por $x$ a abscissa, por $a$ o diâmetro, e por $p$ o parâmetro, o enunciado da proposição traduzir-se-á pela relação
$$y^2 = px - (p/a) x^2,$$
que é a equação cartesiana da elipse referida a eixos oblíquos, dos quais um é o diâmetro, o outro, a tangente na sua extremidade.

Presta, ainda, esse tradutor, na nota 5, páginas 28-9, o seguinte esclarecimento a respeito do termo elipse [76]:

Criando a nova denominação ἔλλειψις, que conservamos na palavra “elipse”, Apolônio abandonava a perífrase “seção de cone reto acutângulo” dos seus predecessores, aí compreendido Arquimedes, que consideravam a curva em questão como obtida unicamente pela seção plana, perpendicular a uma geratriz, do cone reto acutângulo. A origem da denominação recebeu, aliás, explicações diferentes. Eutocius, no seu comentário (ver ed. Heiberg, v.II, p.174), adota primeiramente para o verbo radical ἔλλειψις o sentido de “ser deficiente”, e observa que a soma do ângulo do cone de origem e do ângulo formado pelo eixo da curva com a geratriz do cone é menor do que dois ângulos retos. Adotando em seguida para o mesmo verbo o sentido de “ser defeituoso por algum lugar”, observa que a curva em questão não é senão um “círculo imperfeito”. Por outro lado, Heath (Appolonius of Perga, Cambridge, 1896, p.12), impelido pelas duas explicações de Eutocius, faz o nome elipse derivar da propriedade da curva, como é enunciada na proposição de Apolônio, isto é, do fato de que o quadrado da ordenada equivale a certa área à qual faz falta certa outra área.

Encontra-se no grande dicionário grego-inglês de Leddell–Scott para a Oxford, no verbete ἔλλειψις: ... 2ª seção cônica elipse (assim chamada porque o quadrado sobre a ordenada é igual a um retângulo com altura igual à abscissa e aplicado ao parâmetro, mas deficiente em relação a ele).


Os fenômenos


Obra que o famélico olvido não conseguiu devorar, chegou até nós e foi publicada por Menge no Volume VIII, p.2-156, de Euclidis opera omnia, edição já várias vezes aludida.

Os phaenomena (Φαινόμενα, “aparências do céu”) são um texto com 18 proposições e um prefácio e a sua autenticidade foi abonada por Pappus (VI, p.594-632), que dá alguns lemas, ou proposições explanatórias a respeito.

Φαινόμενα é a forma do nominativo neutro plural do particípio presente passivo do verbo φαίνω. O significado desse verbo nas formas transitivas é “mostrar, trazer à luz, fazer conhecer”, e nas formas intransitivas, que aqui nos interessa, “tornar-se visível, vir à luz, mostrar-se, aparecer” (aliás, o nosso termo “fantasma”, isto é, “aparição”, deriva desse verbo); daí, τὰ Φαινόμενα (os fenômenos/phaenomena) significar, literalmente, “as coisas que são vistas; as aparências”, tendo na astronomia o sentido particular de “as aparências do céu; os fenômenos celestes”.

O prefácio de Euclides é uma afirmação das considerações que mostram o universo como uma esfera e é seguido por algumas definições de termos técnicos. Entre esses, o uso de ὁρίζων, particípio presente ativo do verbo ὁρίζω (“limitar”), como substantivo, significando “círculo que limita; horizonte”, e a expressão µεσημβρίνος κύκλος, “círculo meridiano”, que ocorrem aí pela primeira vez.

O trabalho é uma coleção de demonstrações geométricas de proposições estabelecidas pela observação sobre fenômenos celestes – o aparecimento e o pôr-se de estrelas – e baseia-se na obra Περὶ κινουμένης σφαίραςSobre esferas em movimento” de Autolycus, referida várias vezes pelo alexandrino, porém sem nomeá-lo. Por exemplo, a proposição I de Autolycus é citada na quinta de Euclides, a segunda, nas quarta e sexta, e a décima, na segunda.

Euclides também aproveita um trabalho sobre geometria esférica (Sphaerica) de autor desconhecido. Assim, no prefácio, faz alusão ao fato de que, se sobre uma esfera dois círculos se bissectem, são ambos grandes círculos, e, na demonstração, supõe frequentemente que o leitor conheça outros teoremas do tipo. Quando o trabalho de Euclides é comparado com a obra posterior, Spherica, de Theodosius, vê-se terem ambos recorrido ao mesmo original ancestral que, conjectura-se, teria sido escrito por Eudoxo.

No estilo de Aristóteles, sobre “os outros trabalhos de Euclides” τοσαῦτα εἰρήσθω “fique dito esse tanto”

[Continua]

Notas:

[14] BORIS, Fausto. Folha de S. Paulo.

[15] [A geometria grega].

[16] NEUGEBAUER, O. The Exact Sciences in Antiquity. Nova York: Dover Publications, Inc.,1969.

[17] καὶ Ἱππίας ὁ Ἠλεῖος ἱστόρησεν ὡς ἐπὶ γεωμετρίᾳ δόξαν αὐτοῦ λαβόντος.

[18] Ταῦτα μὲν οὖν πολλοι τῶν πρεσβυτέρων ἀνέγραψαν, τὴν μαθηματικὴν ἐγκωμιάζειν προθέμενοι, καὶ διὰ ταῦτα ὀλίγα ἀπὸ πολλῶν ἡμεῖς ἐν τούτοις παρεθέµεθα τὴν τῆς γεωμετρίας παντελῶς γνῶσιν καὶ ὠφέλειαν ἐπιδεικνύντες. τὴν δὲ γένεσιν αὐτῆς τὴν ἐν τῇ περιόδῳ ταύτῃ μετὰ ταῦτα λεκτέον.
ὁ μὲν γὰρ δαιμόνιος ᾽Αριστοτέλης εἰπῶν τὰ αὐτὰ δοξάσµατα πολλάκις εἰς ἀντρώπους ἀφικνεῖσθαι κατά τινας τεταγμένας περιόδους τοῦ παντός, καὶ μὴ καθ μας πρῶτον ἢ τοὺς ὑφ᾽ ἡμῶν γνωσθέντας τὰς ἐπιστήμας σύστασιν λαβεῖν, ἀλλὰ καὶ ἐν ἄλλαις περιφοραῖς οὐδεῖπειν ὁπόσαις ταῖς τε γενομέναις καὶ ταῖς αὖθις ἐσομέμαις ἐκφανῆναί τε καὶ ἀφανισθῆναι πάλιν αὐτάς.
ἐπεὶ δὲ χρὴ τὰς ἀρχὰς καὶ τῶν τεχνῶν καὶ τῶν ἐπιστημῶν πρὸς τὴν παροῦσαν περίοδον σκοπεῖν, λέγομεν.
ὅτι παρ᾿ Αἰγυπτίοις μὲν εὑρῆσθαι πρῶτον ἡ γεωμετρία παρὰ τῶν πολλῶν ἱστόρηται, ἐκ τῆς τῶν χώριῶν ἀνομετρήσεως λαβοῦσα τὴν γένεσιν.
ἀναγκαία γὰρ ἦν ἐκείνοις αὕτη διὰ τὴν ἄνοδον τοῦ Νείλου τοὺς προσήκοντος ὅρους ἑκάστοις ἀφανίζοντος. καὶ θαυμαστὸν οὐδὲν ἀπὸ τῆς χρείας ἄρξασθαι τὴν εὕρεσιν καὶ ταύτης καὶ τῶν ἄλλων ἐπιστημῶν, ἐπειδὴ πᾶν τὸ ἐν γενέσει φερόμενον ἀπὸ τοῦ ἀτελοῦς εἰς τὸ τέλειον πρόεισιν.
ἀπὸ αἰσθήσεως οὖν εἰς λογισμὸν καὶ ἀπὸ τούτου ἐπὶ νοῦν ἡ μετάβασις γένοιτο ἀν εἰκότως.
ὥσπερ οὖν παρὰ τοῖς Φοίνιξιν διὰ τὰς ἐμπορείας καὶ τὰ συναλλάγματα τὴν ἀρχὴν ἔλαβεν ἡ τῶν ἀριθμῶν ἀκριβὴν γνῶσις, οὕτω δὴ καὶ παρ᾿ Αἰγυπτίοις ἡ γεωμετρία διὰ τὴν εἰρημένην αἰτίαν εὕρηται.
Θαλῆς δὲ πρῶτον εἰς Αἴγυπτον ἐλθὼν μετήγαγεν εἰς τὴν Ἑλλάδα.
τὴν θεωρίαν ταύτην καὶ πολλὰ μὲν αὐτὸς εὗρειν, πολλῶν δὲ τὰς ἀρχὰς τοῖς μετ᾽ αὐτὸν ὑφηγήσατο, τοῖς μὲν καθολικώτερον ἐπιβάλλων, τοῖς δὲ αἰσθητικώτερον.
μετὰ δὲ τοῦτον Μάμερκος [?] ὁ Στησιχόρου τοῦ ποιητοῦ ἀδελφός, ὃς ἐφαψάμενος τὴν περὶ γεωμετρίαν σπουδῆς μνημονεύεται
καὶ ᾿Ιππίας ὁ ᾿Ηλεῖος ἱστόρησεν ὡς ἐπὶ γεωμετρίᾳ δόξαν αὐτοῦ λαβόντος.
ἐπὶ δὲ τούτοις Πυθαγόρας τὴν περὶ αὐτὴν φιλοσοφίαν εἰς σχῆμα παιδείας ἐλευθέ ρου μετέστησεν, ἄνωθεν τὰς ἀρχὰς αὐτῆς ἐπισκοπούμενος καὶ ἀὕλως καὶ νοερῶς τὰ θεωρήματα διερευνώμενος, ὃς δὴ και τὴν τῶν ἀλόγων πραγματείαν καὶ τὴν τῶν κοσμικῶν σχημάτων σύστασιν ἀνεῦρεν.
μετὰ δὲ τούτον Αναξαγόρας ὁ Κλαζομένιος πολλῶν ἐφήψατο τῶν κατὰ γεωμετρίαν.
καὶ Οἰνοπίδης ὁ Χῖος, ὀλίγῳ νεώτερος ὤν Αναξαγόρου, ὧν καὶ ὁΠλάτων ἐν τοῖς ἀντερασταῖς ἐμνημόνευσεν ὡς ἐπὶ τοῖς μαθήμασι δόξαν λαβόντων.
ἐφ οἷς Ἱπποκράτες ὁ Χῖος ὁ τὸν τοῦ μηνίσκου τετραγωνισμὸν εὑρών, καὶ Θεόδωρος ὁ Κυρηναῖος ἐγένοντο περὶ γεωμετρίαν ἐπιφανεῖς.
πρῶτος γὰρ ὁ ᾿Ιπποκράτης τῶν μνημονευμένων καὶ στοιχεῖα συνέγραψεν.
Πλάτων δ᾽ ἐπὶ τούτοις γενόμενος μεγίστην ἐποίησεν ἐπίδοσιν τὰ τε ἄλλα µαθήµατα καὶ τὴν γεωμε
τρίαν λαβεῖν διὰ τὴν περὶ αὐτὰ σπουδήν, ὅς που δῆλός ἐστι καὶ τὰ συγγράμματα τοῖς μαθηματικοῖς λόγοις καταπυκνώσας καὶ πανταχοῦ τὸ περὶ αὐτὰ θαῦμα τῶν φιλοσοφίας ἀντεχομένων ἐπεγείρων.
ἐν δὲ τούτῳ τῷ χρόνῳ καὶ Λεωδάμας ὁ Θάσιος ἦν καὶ Αρχύτας ὁ Ταραντῖνος καὶ Θεαίτητος ὁ ᾿Αθηνοῖος, παρὼν ἐπηυξήθη τὰ θεωρήματα καὶ προῆλθεν εἰς ἐπιστημονικωτέραν σύστασιν.
Δεωδάμαντος δὲ νεώτερος ὁ Νεοκλείδης καὶ ὁ τοῦτο μαθητὴς Λέων, οἱ πολλὰ προσευπόρησαν τοῖς πρὸ αὐτῶν, ὥστε τὸν Λέοντα καὶ τὰ στοιχεῖα συνθεῖναι τῷ τε πλήθει καὶ τῇ χρείῳ τῶν δεικνυμένων ἐπι μελέστερον, καὶ διορισμοὺς εὑρεῖν, πότε δυνατὸν ἐστι τὸ ζητούμενον πρόβλημα καὶ πότε ἀδύνατον.
Εὔδοξος δὲ ὁ Κνίδιος, Λέοντος μὲν ὀλίγῳ νεώτερος, ἑταῖρος δὲ τῶν περὶ Πλάτωνα γενόμενος, πρῶτος τῶν καθόλου καλουμένων θεωρημάτων τὸ πλῆθος ηὔξησεν καὶ ταῖς τρισὶν ἀναλογίαις ἄλλας τρεῖς προσέθηκεν καὶ τὰ περὶ τὴν τομὴν ἀρχὴν λαβόντα παρὰ Πλάτωνος εἴς πλῆθος προήγαγεν καὶ ταῖς ἀναλύσεσιν ἐπ᾿ αὐτῶν χρησάμενος.
᾽Αμύκλας δὲ ὁ Ἡρακλεώτης, εἷς τῶν Πλάτωνος ἑταίρων καὶ Μέναιχμος ἀκροατὴς ὧν Εὐδόξου καὶ Πλάτωνι δὲ συγγεγονὼς καὶ ὁ ἀδελφὸς αὐτοῦ Δεινόστρατος ἔτι τελεωτέραν ἐποίησαν τὴν ὅλην γεὠμετρίαν
Θεύδιος δὲ ὁ Μάγνης ἔν τε τοῖς μαθήμασιν ἔδοκεν εἶναι διαφέρων καὶ κατὰ τὴν ἄλλην φιλοσοφίαν. καὶ γαρ τὰ στοιχεῖα καλῶς συνέταξεν καὶ πολλὰ τῶν μερικῶν καθολικώτερα ἐποίησεν.
καὶ μέντοι ὁ Κυζικηνὸς ᾽ Αθήναιος κατὰ τοὺς αὐτοὺς γεγονὼς χρόνους καὶ ἐν τοῖς ἄλλοις μὲν µαθή μασι, μάλιστα δὲ κατὰ γεωμετρίαν ἐπιφανὴς ἐγένετο.
διῆγον οὖν οὗτοι μετ᾿ ἀλλήλων ἐν Ακαδημίᾳ κοινὰς ποιούμενοι τὰς ζητήσεις.
Ἑρμότιμος δὲ ὁ Κολοφώνιος τὰ ὑπ᾿ Εὐδόξου προηυπορημένα καὶ Θεαιτήτου προήγαγεν ἐπὶ πλέον καὶ τῶν στοιχειων πολλὰ ἀνεῦρε καὶ τῶν τόπων τινὰ συνέγραψεν.
Φίλιππος δὲ ὁ Μενδαῖος, Πλάτωνος ὧν μαθητὴς καὶ ὑπ᾿ ἐκείνου προτραπεὶς εἰς τὰ μαθήματα, καὶ τὰς ζητήσεις ἐποιεῖτο κατὰ τὰς Πλάτωνος ὑφηγήσεις καὶ ταῦτα προύβαλλεν ἑαυτῷ, ὅσα ὥετο τῇ Πλάτωνος φιλοσοφίᾳ συντελεῖν.
οἱ μὲν οὖν τὰς ἱστορίας ἀναγράψαντες μέχρι τούτου προάγουσι τὴν τῆς ἐπιστήμης ταύτης τελείωσιν.

[19] οὐ πόλυ δὲ τούτων νεώτερος ἐστιν Εὐκλείδης O τὰ στοιχεῖα συναγαγὼν καὶ πολλὰ μὲν τῶν Εὐδόξου συντάξας, πολλὰ δὲ τῶν Θεαιτήτου τελεωσάµενος, ἔτι δὲ τὰ μαλακώτερον δεικνύμενα τοῖς ἔμπροσθ εν εἰς ἀνελέγκτους ἀποδείξεις ἀναγαγών.
γέγονε δὲ οὗτος ὁ ἀνὴρ ἐπὶ τοῦ πρώτου Πτολεμαίου: καὶ γὰρ ὁ 'Αρχιμήδης ἐπιβαλὼν καὶ τῷ πρώτῳ µνημονεύει τοῦ Εὐκλείδου, καὶ μέντοι καὶ φασιν ὅτι Πτολεμοῖος ἠρετό ποτε αὐτόν, εἰ τίς ἐστιν περι γεωμετρίαν ὁδὸς συντομωτέρα τῆς στοιχειώσεως' ὁ δὲ ἀπεκρίνατο, μὴ εἶναι βασιλικὴν ἀτραπὸν ἐπὶ γεωμετρίαν.

[20] καὶ τῇ προαίρεσει δὲ Πλατωνικός ἐστι καὶ τῇ φίλοσοφίᾳ ταύτῃ οἰκεῖος.

[21] ὅθεν δὴ καὶ τῆς συμπάσης στοιχειώσεως τέλος προεστήσατο τὴν
τῶν καλουμένον Πλατωνικῶν σχημάτων

[22] προσθεῖναι δὲ τῷ τόπῳ τὰ λειπόμενα δεδύνηται προφαντασιωθεὶς τοῖς ὑπο Εὐκλείδου γεγραμμένοις ἤδη περί τοῦ τόπῳ καὶ σχολάσας τοῖς ὑπὸ Εὐκλείδου μαθηταῖς ἐν Αλεξανδρίᾳ πλεῖστον χρόνον, ὅθεν ἔσχε καὶ τὴν τοιαύτην ἕξιν οὐκ ἀμαθῃ.

[23] [Coletânea de coisas físicas e éticas].

[24] Παρ'Eὐκλείδῃ τις ἀρξάμενος γεωμετρεῖν, ὡς τὸ πρῶτον θεώρημα ἔμαθεν, ἤρετο τὸν Εὐκλείδην: τί δε μοι πλέον ἔσται ταῦτα μανθάνοντι; καὶ O Εὐκλείδης τὸν παῖδα καλέσας; δὸς, ἔφη, αὐτῷ τριώβολον, ἐπειδὴ δεῖ αὐτῷ, ἐξ ὧν μανθάνει, κερδαίνειν.

[25] ἀγεωμέτρητος μηδεὶς εἰσίτω.

[26] πολλὰ μὲν οὖν καὶ ἄλλα τοῦ ἀνδρὸς τούτου μαθηματικὰ συγγράμματα θαυμαστῆς ἀκριβείας καὶ ἐπιστημονικῆς θεωρίας μεστά.
τοιαῦτα γὰρ καὶ τὰ ὁπτικὰ καὶ τὰ κατοπτρικά, τοιαῦται δὲ καὶ αἱ κατὰ μουσικὴ στοιχειώσεις, ἔτι δὲ τὸ περὶ διαιρέσεων βιβλίον.

[27] ἐπειδὴ δὲ πολλὰ φαντάζεται μὲν ὡς τῆς ἀληθείας ἀντεχόμενα καὶ ταῖς ἐπιστημονικαῖς ἀρχαῖς ἀκο λουθοῦντα, φέρεται δὲ εἰς τὴν ἀπὸ τῶν ἀρχῶν πλάνην καὶ τοὺς ἐπιπολαιοτέρους ἐξαπατᾷ, μεθόδους παραδέδωκεν καὶ τῆς τούτων διορατικῆς φρονήσεως
ἃς ἔχοντες γυμνάζειν μὲν δυνησόμεθα τοὺς ἀρχομένους τῆς θεωρίας ταύτης πρὸς τὴν εὕρεσιν τῶν παραλογισμῶν, ἀνεξαπάτητοι δὲ διαμένειν.
καὶ τοῦτο δὴ σύγγραμμα, δι οὗ τὴν παρασκευὴν ἡμιν ταύτην ἐντίθησι, Ψευδαρίαν ἐπέγραψεν...

[28] [Obras completas de Euclides].

[29] κατατομὴ κανόνος.

[30] καὶ γὰρ ὁ κύκλος εἰς ἀνόμοια τῷ λόγῳ καὶ ἕκαστον τῶν εὐθυγράμμων διαιρετόν ἐστιν, ὅ καὶ αὐτὸς ὁ στοιχειωτὴς ἐν τοῖς διαιρέσεσι πραγματεύεται τὸ μὲν εἰς ὅμοια τὰ δοθέντα σχήματα διαιρῶν, τὸ δὲ εἰς ἀνόμοια.

[31] δεδοµένα.

[32] τῶν μαθημάτων τάξις.

[33] περὶ τῆς τῶν μαθημάτων θεωρίας.

[34] συναγωγή.

[35] μαθηματικοὶ συναγωγαί.

[36] τόπος ἀναλυόμενος.

[37] [Uma breve história da matemática grega].

[38] ὁ καλούμενος ᾿Αναλυόμενος, Ἑρμόδωρε τέκνον, κατὰ σύλληψιν ἰδία τίς ἐστιν ὕλη παρασκευασ
μένη μετὰ τὴν τῶν κοινῶν στοιχείων ποίησιν τοῖς βουλομένοις ἀναλαμβάνειν ἐν γραμμαῖς δύναμιν εὑρετικὴν τῶν προτεινομένων αὐτοῖς προβλημάτων, καὶ εἰς τοῦτο μόνον χρησίμη καθεστῶσα.

[39] τῶν δὲ προειρημένων τοῦ ᾿ Αναλυομένου βιβλίων ἡ τάξις ἐστὶν τοιαύτῃ.

[40] Εὐκλείδου Δεδομένων βιβλίον α.

[41] Ειυκλείδου Πορισμάτων τρία.

[42] Ἐὐκλείδου Τόπων πρὸς ᾿Επιφανείᾳ δύο.

[43] γίνεται βιβλία β,

[44] γνώριμον καὶ πόριμον.

[45] Δεδομένα τῷ μεγέθει λέγεται χωρία τε καὶ γραμμαὶ καὶ γωνίαν, οἷς δυνάμεθα ἴσα πορίσασθαι.

[46] Τῇ θέσει δεδόσθαι λέγονται σημεῖά τε καὶ γραμμοὶ καὶ γωνίαι, ἃ τὸν αὐτὸν ἀεὶ τόπον ἐπέχει.

[47] Τῇ θέσει δὲ καὶ τῷ μεγέθει κύκλος δεδόσθαι λέγεται, οὗ δέδοντα τὸ μὲν κέντρον τῇ θέσει ἡ δὲ ἐκ τοῦ κέντρου τῷ μεγέθει.

[48] πορίσματα.

[49] Ἕν τι τῶν γεωμετρικῶν ἐστιν ὀνομάτων τὸ πόρισμα
τοῦτο δὲ σεµαίνει διττόν
καλοῦσι γὰρ πορίσματα καὶ ὅσα θεωρήματα συγκατασκευάζεται τοῖς ἄλλων ἀποδείξεσιν, διον ἓρ µαια καὶ κέρδη τῶν ζητούντων ὑπάρχοντα, καὶ ὅσα ζητεῖται μὲν, εὑρέσεως δὲ χρήζει καὶ οὔτε γενέ σεὼς μόνης οὔτε θεωρίας ἁπλῆς.
ὅτι μὲν γὰρ τῶν ἰσοσκελῶν αἱ πρὸς τῇ βάσει ἴσαι θεωρῆσαι δεῖ, καὶ ὄντων δὴ τῶν πραγμάτων ἐστιν ἡ τοιαύτη γνῶσις.
τὴν δὲ γωνίαν δίχα τεμεῖν ἢ τρίγωνον συστήσασθαι ἢ ἀφελεῖν ἢ θέσθαι, ταῦτα πάντα ποίησίν τινος ἀπαιτεῖ, τοῦ δὲ δοθέντος κύκλου τὸ κέντρον εὑρεῖν, ἢ δυο δοθέντων συμμέτρων μεγεσθῶν τὸ μέγισ τον καὶ κοινὸν μέτρον εὑρεῖν, ἢ ὅσα τοιάδε, μεταξύ πώς ἐστι προβλημάτων καὶ θεωρημάτων.
οὔτε γὰρ γενέσεις εἰσὶν ἐν τούτοις τῶν ζητουμένων, ἀλλ᾽ εὑρέσεις, οὔτε θεωρία ψιλή.
δεῖ γὰρ ὑπ'ψιν ἀγαγεῖν καὶ πρὸ ὀμμάτων ποίησασθαι τὸ ζητούμενον.
τοιαῦτα ἄρα ἐστὶν καὶ ὅσα Εὐκλείδης πορίσματα γέγραφε, γ βιβλία πορισμάτων συντάξας.

[50] ἅπαντα δὲ αὐτῶν τὰ εἴδη οὔτε θεωρημάτων ἐστὶν οὔτε προβλημάτων
ἀλλὰ μέσον πως τούτων ἐχούσης ἰδέας, ὥστε τὰς προτάσεις αὐτῶν δύνασθαι σχημάζεσθαι ἢ ὡς θεώρη μάτων ἢ ὡς προβλημάτων
παρ’ ὃ καὶ συμβέβηκε τῶν πολλῶν γεωμετρῶν τοὺς μὲν ὑπολαμβάνειν αὐτὰ εἶναι τῷ γένει θεωρήματα τοὺς δὲ προβλήματα, ἀποβλέποντας τῷ σχήματι μόνον τῆς προτάσεως.

[51] [Os três livros dos porismas de Euclides restaurados].

[52] [Resumo histórico dos métodos em geometria].

[53] [Sobre os porísmas de Euclides].

[54] τόποι πρὸς ἐπιφανείᾳ.

[55] GOW, James, Α Short History of Greek Mathematics, Nova York: Chelsea, 1968,

[56] [Lugares em uma superf cie].

[57] ἀπὸ τῆς περι αὐτοὺς ἰδιοτῆτος.

[58] PESSOA, Ε Obra poética (volume nico). Rio de Janeiro: Companhia Nova Aguilar, 1965,

[59] κωνικά.

[60] τὸ δὲ τρίτον πολλὰ καὶ παράδοξα θεωρήματα χρήσιμα πρός τε τὰς συνθέσεις τῶν στερεῶν τόπων καὶ τοὺς διορισμούς
ὧν τὰ πλεῖστα καὶ κάλλιστα ξένα

[61] ἃ καὶ κατανοήσαντες συνείδομεν μὴ συντιθέµενον ὑπὸ Εὐκλείδου τὸν ἐπὶ τρεῖς καὶ τέσσαρας γραμ. μὰς τόπον

[62] ἀλλὰ μόριον τὸ τυχὸν αὐτοῦ καὶ τοῦτο οὐκ εὐτυχῶς

[63] οὐ γὰρ ἦν δυνατὸν ἄνευ τῶν προσευρημένων ἡμῖν τελειωθῆναι τὴν σύνθεσιν.

[64] τόπος ἐπὶ τρεῖς καὶ τέσσαρας γραμμάς.

[65] [História da matemática grega].

[66] ἐὰν κῶνος ἐπιπέδῳ τμηθῇ διὰ τοῦ ἄξονος

[67] τμηθῇ δὲ καὶ ἑτέρῳ ἐπιπέδῳ συμπίπτοντι μὲν ἑκατέρᾳ πλευρᾷ τοῦ διὰ ἄξονος τριγώνου

[68] μήτε δὲ παρὰ τὴν βάσιν τοῦ κώνου ἠγμένῳ μήτε ὑπεναντίως

[69] τὸ δὲ ἐπίπεδον, ἐν ᾧ ἐστιν ἡ βάσις τοῦ κώνου, καὶ τὸ τέμνον ἐπίπεδον συμπίπτῃ κατ᾿ εὐθεῖαν πρὸς ὁ ρθὰς οὖσαν ῆτοι τῇ βάσει τοῦ διὰ τοῦ ἄξονος τριγώνου ἢ τῇ ἐπ εὐθείας αὐτῇ

[70] ἥτις ἂν ἀπὸ τῆς τομῆς τοῦ κώνου παράλληλος ἀχθῇ τῇ κοινῇ τομῇ τῶν ἐπιπέδων ἕως τῆς διαμέτρου τῆς τομῆς

[71] δυνήσεταί τι χωρίον παρακείμενον παρά τινα εὐθείαν

[72] πρὸς ἣν λόγος ἔχει ἡ διάμετρος τῆς τομῆς, ὃν τὸ τετράγωνον τὸ ἀπὸ τῆς ἠἡγμένης ἀπὸ τῆς κορυφῆς το ὕ κώνου παρὰ τὴν διάμετρον τῆς τομῆς ἕως τῆς βάσεως τοῦ τριγώνου τρὸς τὸ περιεχόμενον ὑπὸ τῶν ἀπολαμβανομένων ὑπ’ αὐτῆς τρὸς ταῖς τοῦ τριγώνου εὐθείας

[73] πλάτος ἔχον τὴν ἀπολαμβανομένην ὑπ αὐτῆς ἀπὸ τῆς διαμέτρου πρὸς τῇ κορυφῇ τῆς τομῆς

[74] ἐλλεῖπον εἴδει ὁμοίῳ τε καὶ ὁμοίως κειμένῳ τοῦ περιεχομένῳ ὑπό τε τῆς διαμέτρου καὶ τῆς παρ᾽ἣ δύνανται.

[75] καλείσθω δὲ ἡ τοιαύτη τομὴ ἔλλειψις.

[76] ἔλλειψις.

[Continua em breve]

***

Leia mais em Sobre Euclides, sua Geometria e seus Elementos - parte 1

Leia mais em O Matemático Jesuíta Cristóvão Clávio



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