Postagem em destaque

COMECE POR AQUI: Conheça o Blog Summa Mathematicae

Primeiramente quero agradecer bastante todo o apoio e todos que acessaram ao Summa Mathematicae . Já são mais de 100 textos divulgados por a...

Mais vistadas

Mostrando postagens com marcador Educação medieval. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Educação medieval. Mostrar todas as postagens

Sobre o Ensino em S. Tomás de Aquino

Santo Tomás de Aquino, escrevendo em
frente do crucifixo, por Antonio Rodríguez

RECEBA NOSSAS ATUALIZAÇÕES

DIGITE SEU EMAIL:

Verifique sua inscrição no email recebido.


Tempo de leitura: 46 minutos. 

Texto retirado do livro Sobre o ensino (De magistro) e Os sete pecados capitais, de S. Tomás de Aquino, com tradução e estudos introdutórios por  Luiz Jean Lauand, Editora Martins Fontes, 2000.

Apresentação

Apresentamos ao leitor dois importantes estudos de Tomás de Aquino: um dedicado ao ensino, outro à ética: Sobre o ensino e Os sete pecados capitais.

No estudo e apêndices que os acompanham, mais do que esmiuçar as teses que o leitor irá encontrar no próprio texto de Tomás, optamos por privilegiar, em cada caso, o referencial mais amplo que permita situar - no quadro de sua filosofia - cada um desses opúsculos do Aquinate: assim, apresentamos os conceitos fundamentais da antropologia e do conhecimento como prólogo ao Sobre o ensino e um enquadramento da ética - em sentenças do próprio Tomás - como Apêndice aos Pecados capitais, além de uma seleção especial de sentenças sobre a inveja e a avareza.

Sobre o ensino, o De magistro, é a questão 11 das Quaestiones Disputatae de Veritate [1] de Tomás e segue o sistema geral dessas aulas do Aquinate (por essa razão, retomamos em sua introdução algumas considerações que tecíamos ao apresentar, para esta mesma coleção, as questões sobre a verdade e o verbo [2]).

O opúsculo Os sete pecados capitais compõe-se de uma seleção de trechos das obras Questões disputadas sobre o mal [3] e da Suma teológica.

LUIZ JEAN LAUAND
março de 2000


Introdução

Sendo o De magistro de Tomás uma das questões disputadas sobre a verdade (a de nº 11), comecemos por relembrar o papel que essas questões tinham na universidade medieval .

A quaestio disputata, essência da universidade medieval

Da primeira regência de Tomás na Universidade de Paris procedem as Quaestiones Disputatae de Veritate. Essas questões foram disputadas em Paris de 1256 a 1259: as questões 1 a 7 (sobre a verdade; o conhecimento de Deus; as idéias divinas; o verbum; a Providência Divina; a predestinação e o "livro da vida") são do ano letivo 1256-7; as de 8 a 20 (sabedoria angélica; comunicação angélica ; a mente como imagem da Trindade; o ensino; a profecia como sabedoria; o êxtase; a fé; a razão superior e a inferior; a sindérese; a consciência; o conhecimento de Adão no Paraíso; o conhecimento da alma depois da morte e o conhecimento de Cristo nesta vida), de 1257-8, e as de 21 a 29 (a bondade; o desejo do bem e a vontade; a vontade de Deus; o livre-arbítrio; o apetite dos sentidos; as paixões humanas; a gra­ça; a justificação do pecador e a graça da alma de Cristo), de 1258-9.

A quaestio disputara, como bem salienta Weisheipl [1], integra a própria essência da educação escolástica: "Não era suficiente escutar a exposição dos grandes livros do pensamento ocidental por um mestre; era essencial que as grandes idéias se examinassem criticamente na disputa." E a disputatio, na concepção de um filósofo da universidade como Pieper, transcende o âmbito organizacional do studium medieval e chega até a constituir a própria essência da universidade em geral [2].

Para que o leitor possa bem avaliar o significado de uma quaestio disputara em S. Tomás, apresentaremos o modus operandi dessas quaestiones, procurando também indicar a ratio pedagógica que as informa.

Uma quaestio disputata está dedicada a um tema - como por exemplo a verdade ou o verbum - e divide-se em artigos, que correspondem a capítulos ou aspectos desse tema . Naturalmente, por detrás da "técnica pedagógica" está um espírito: a quaestio disputata, como analisaremos em tópico ulterior, traduz a própria idéia de inteligibilidade - devida ao Verbum (o Logos divino, o Filho) -, ao mesmo tempo que a de incompreensibilidade, a de pensamento "negativo" , também fundada no Verbum...

Procurando veicular, operacionalizar em método a vocação de diálogo polifônico - que constitui a razão de ser da universitas -, primeiro enuncia-se a tese de cada artigo (já sob a forma de polêmica: "Utrum... [3]") e a quaestio começa por um videtur quod non... ("Parece que não..."), começa por dar voz ao adversário pelas obiectiones, objeções à tese que o mestre pretende sustentar. 

Já aí se mostra o caráter paradigmático e atemporal (e atual...) da quaestio disputara, a essência da universidade, assim discutida por Pieper: "Houve na universidade medieval a instituição regular da disputatio, que, por princípio, não recusava nenhum argumento e nenhum contendor, prática que obrigava, assim, à considera­ção temática sob um ângulo universal. Um homem como Santo Tomás de Aquino parece ter considerado que precisamente o espírito da disputatio é o espírito da universidade." [4] E prossegue: "O importante é que, por trás da forma externa de disputa verbal regulamentada, a disputa - com toda a agudeza de um confronto real - dá-se no elemento do diálogo. Este ponto decisivo é hoje, para a universidade, mil vezes mais importante do que pode ter sido alguma vez para a universidade medieval."

Nos textos de Tomás, após as objeções, levantam-se contra-objeções (sed contra, rápidas e pontuais sentenças colhidas em favor da tese do artigo; ou algumas vezes in contrarium, que defendem uma terceira posição que não é a da tese nem a das obiectiones). Após ouvir estas vozes, o mestre expõe tematicamente sua tese no corpo do artigo, a responsio (solução) . Em seguida, a responsio ad obiecta, a resposta a cada uma das objeções do início.

Torna-se dispensável dizer que não se entende por quaestio disputata nada que tenha que ver com sutilezas enfadonhas e estéreis. Por outro lado, o que afirmamos acima sobre o diálogo e a impossibilidade de dar resposta cabal, de esgotar um assunto filosófico não significa, evidentemente, que na quaestio disputata não se deva tomar uma posição e defendê-la: não se trata, de modo algum, de agnosticismo. Podemos conhecer a verdade, mas não podemos esgotá-la. Posto que o homem pode conhecer a verdade (e na medida em que o pode fazer), a discussão filosófica chega a uma responsio, a uma certa determinatio.

Finalmente, dentre as características da quaestio disputata de S. Tomás de Aquino, destaquemos a de dar voz ao adversário com toda a honestidade, formulando sem distorções, exageros ou ironia (o que, em geral, nem sempre ocorre nas polêmicas e debates de hoje), as posições contrárias às que se defendem. Nesse sentido, Pieper faz notar que em S. Tomás a objetividade chega a tal ponto que o leitor menos avisado pode tomar como do Aquinate aquilo que ele recolhe dos adversários a modo de objeção. A propósito [5], é o caso do tão celebrado Carl Prantl, que interpretou como se fosse a posição de Tomás objeções brilhantemente por ele apresentadas às suas próprias teses.

O De magistro e a Antropologia Filosófica

Na "questão disputada" De magistro, Tomás de Aquino expõe sua concepção de ensino/aprendizagem em oposição às doutrinas dominantes da época. Por detrás de questões pedagógicas encontram-se, na verdade, concepções filosóficas - a Filosofia da Educação é inseparável da Antropologia Filosófica - e teológicas.

A antropologia de Tomás - revolucionária para a época - afirma o homem em sua totalidade (espiritual, sim, mas de um espí­rito integrado à matéria) e está em sintonia com uma teologia (também ela dissonante para a época) que, precisamente para afirmar a dignidade de Deus criador, afirma a dignidade do homem e da criação como um todo: material e espiritual. Sugestiva nesse sentido é, por exemplo, a luta que Tomás teve de travar na Universidade de Paris para defender a tese da unicidade da alma no homem: a mesma e única alma é responsável pelos atos mais espirituais e mais prosaicos no homem (a teologia dominante - pensando dar glória a Deus - separava "a alma espiritual" das "outras duas" - sensitiva e vegetativa - em favor de uma antropologia "espiritualista" e desencarnada).

Nesse quadro de oposição a um cristianismo demasiadamente espiritualista e que pretende exagerar o papel de Deus e aniquilar a criatura, compreendem-se as colocações de Tomás e até mesmo os artigos selecionados para a questão: art. 1 - Se o homem - ou somente Deus - pode ensinar e ser chamado mestre; art. 2 - Se se pode dizer que alguém é mestre de si mesmo; art. 3 - Se o homem pode ser ensinado por um anjo; art. 4 - Se ensinar é um ato da vida ativa ou da vida contemplativa.

Não é de estranhar, portanto, que Tomás comece discutindo a objeção: "Se o homem - ou somente Deus - pode ensinar e ser chamado mestre" (o fato curioso é que Tomás discuta isso precisamente como professor em sala de aula...). O exagero do papel de Deus - no caso em relação à aprendizagem - é por conta daquela teologia que considera tão sublime a intelecção humana que, em cada caso que ela ocorre, requereria uma iluminação imediata de Deus . Tomás, em seu realismo, admite uma iluminação de Deus, mas esta iluminação Deus no-la deu de uma vez por todas, dotando-nos da "luz natural da razão", aliás, dependente das coisas mais sensíveis e materiais...

Assim, no debate acadêmico no qual se gera o De magistro encontraremos - uma e outra vez - a objeção com que se abre o trabalho: "Diz a Escritura (Mt 23, 8): 'Um só é vosso mestre' (...) ao que diz a Glosa [6]: 'não atribuais a homens a honra divina e não usurpeis o que é de Deus'."

Para bem entender este e outros temas do De magistro é oportuno oferecer um resumo dos conceitos básicos da antropologia filosófica de Tomás (como se sabe, em boa medida tomada de Aristóteles).

O homem e a alma em Tomás

A palavra-chave para entendermos a doutrina de Tomás sobre o homem é "alma" , que, classicamente, designa o princípio da vida. Chamemos, desde já, a atenção para o fato de que, ao longo deste estudo, aparecerão outras palavras cujo sentido filosófico clássico não coincide exatamente com o sentido usual que lhes damos hoje: "potência", "ato", "matéria", "forma" etc.

O referencial a que Tomás se remete nestes temas é a doutrina basicamente estabelecida por Aristóteles em seu Peri PsychéSobre a alma. A "psicologia" de Aristóteles emergiu como uma reação de equilíbrio e moderação ante o exagerado espiritualismo da antropologia de Platão (que tem encontrado sucessivas versões tanto no Ocidente como no Oriente...). O espiritualismo platônico é uma certa tomada de posição radicalmente dualista diante da questão: "O que é o homem?". Platão situa espírito e matéria como realidades justapostas, disjuntas, em união fraca e extrínseca no homem. O homem, para Platão, seria primordialmente espírito (e o corpo seria, nessa visão, algo assim como um mero cárcere do espírito) [7].

Do ponto de vista aristotélico, esse dualismo platônico atenta contra a intrínseca unidade substancial do homem, ao desprezar a dimensão material do ser humano, exagerando a separação entre o espiritual e o corpóreo. E é esta unidade o que, afinal, permite a cada homem proferir o pronome "eu", englobando tanto o espírito quanto o corpo. Para os platônicos (e para a teologia dominante em Paris no tempo de Tomás), o homem seria essencialmente espírito, em extrínseca união com a matéria: a matéria não faria parte da realidade propriamente humana. Já para Tomás há, no homem, uma união intrínseca de espírito e matéria [8].

Do ponto de vista de Aristóteles e Tomás, a questão "O que é o homem?" é inquietante porque a realidade humana se apresenta como fenômeno muito complexo, integrando em si a unidade harmônica de espírito e matéria. Assim, a dimensão corporal é plenamente afirmada e reconhecida como integrante da natureza humana: o fato, afinal evidente, de que o homem é um animal , compartilhando uma dimensão material - um corpo, uma bioquímica... - com os outros animais [9]. Mas, se por um lado afirma-se a realidade corpórea, por outro afirma-se, com igual veemência, que há também, no homem, uma transcendência do âmbito meramente biológico: certas características que, classicamente, têm sido chamadas de espirituais, ligadas - como veremos mais adiante - às duas faculdades espirituais da alma humana : a inteligência e a vontade.

Potência-Ato. Matéria-Forma. Alma

O realismo aristotélico é considerado um dualismo equilibrado e apresenta uma grande unidade em sua concepção teórica, uma unidade centrada no conceito de "alma". É muito importante destacar essa unidade. Para Aristóteles e para Tomás a filosofia do homem é uma extensão da filosofia do ser vivo em geral, e esta, por sua vez, continua a mesma linha de análise filosófica do ser material em geral. Afirma-se pois, plenamente, a realidade espiritual, mas em articulação, em íntima conexão com a matéria.

A filosofia de Tomás reconhece uma impressionante unidade no mundo material: a mesma estrutura de análise filosófica do ente físico em geral, de uma pedra, digamos, é aplicada a todos os viventes e, também, ao homem, que é um ente espiritual.

Não é o caso aqui de examinarmos com detalhes técnicos os conceitos filosóficos que integram essa análise. Em todo caso, vale a pena mencionar, brevemente, alguns desses conceitos como: potência e ato; matéria e forma; alma e espírito.

Potência e ato são dois modos distintos e fundamentais de ser. Sendo modos fundamentais de ser são, a rigor, indefiníveis. Aristóteles contenta-se com descrevê-los: potência é a possibilidade, a potencialidade de vir a ser ato. E o ser-em-ato é aquele que propriamente é, enquanto o ser-em-potência pode vir a ser ato. O exemplo clássico é o da semente (potência) que pode vir a ser árvore (a árvore real é o ato contido na potência, na potencialidade da semente). Encontramos, ainda hoje, vestígios desse uso aristotélico da palavra "ato". Nesse sentido, é interessante notar o tributo que a língua inglesa paga a Aristóteles : para referir-se ao que realmente é, à realidade de fato, o inglês diz actually, que significa, ao pé da letra, o advérbio do ato, atualmente, significando: de verdade, de fato. E quando, em português, dizemos que algo é exato, estamos pensando em ex-actu, ex - a partir de / - actu, a realidade [10]

Para a análise do ser vivo (como para a análise do ser físico em geral) Tomás, seguindo Aristóteles, aplica o binômio ato-potência, sob a formulação matéria-forma. Devemos pensar estas palavras "matéria" e "forma" não no sentido usual que lhes damos hoje, mas num outro sentido, naquele que recebem no quadro da filosofia aristotélica da natureza, denominada hilemoifismo (literalmente: matéria-forma; hilé-morjé).

Assim, matéria ou matéria-prima [11] deve ser entendida simplesmente como potencialidade, como pura possibilidade de ser ente físico. Uma potência que se vê realizada (atualizada) pela união com o ato que é a forma (substancia [12]) . Desse modo, um ser físico qualquer, digamos, um diamante é composto de maté­ria e forma, em união intrínseca : a matéria-prima é a pura potência de ser ente físico e a forma substancial é o ato primeiro, fundamental, que determina a atualização dessa potência. Assim, se o diamante é um ser físico, é porque tem possibilidade, potencialidade de sê-lo (e assim todo ser físico tem matéria-prima, potencialidade de ser um ente físico).

Essa potencialidade da matéria-prima é realizada, atualizada, recebe seu ato, sua realidade, pela forma substancial: aquele componente que faz com que o diamante seja diamante e não, digamos, um gato ou uma orquídea . O diamante, a orquídea, o gato e o homem têm algo em comum: todos são seres físicos que se constituem, portanto, da pura potencialidade indeterminada que é a matéria-prima. Mas são distintos pela forma que cada um tem e que faz com que cada um seja o que é: o diamante é diamante porque tem forma substancial de diamante; Mimi é gato porque tem forma substancial de gato; João é homem porque tem forma substancial de homem [13].

E é tal a unidade de sua consideração do cosmos, que Tomás emprega o mesmo binômio matéria-forma para indicar tanto a composição substancial de uma pedra quanto a de um homem, que é um ser espiritual.

Nesse contexto é fácil entender o conceito de alma. Alma é pura e simplesmente uma forma: a forma substancial do vivente. Certamente, a alma é uma forma muito especial (daí que também receba um nome especial), mas é uma forma [14].

Sempre que houver vida - e a vida caracteriza-se por um modo especial de interagir com o exterior a partir de uma interioridade - essa vida implica uma especialidade de forma do vivente: a alma. Desse modo, pode-se falar em alma de um vegetal, alma de uma samambaia, em alma de uma formiga ou de um cão e, também, em alma humana (neste caso, trata-se de uma alma espiritual) . A alma (como, aliás, todas as formas substanciais) é um princípio de composição substancial dos viventes. Ou melhor, um co-princípio (em intrínseca união com o outro co-princí­pio: a matéria-prima). É pela alma que se constitui e se integra o vivente enquanto tal , e ela é também a fonte primeira de seu agir, de suas operações.

Estas são, aliás, as duas definições que Aristóteles e Santo Tomás dão da alma.

1ª definição: Alma é o ato primeiro do corpo natural organizado (Tomás de Aquino, De anima II, 1, 412, a 27, b.S).

Esta definição diz, pura e simplesmente, que a alma é forma substancial para o vivente: o princípio ativo constituinte da unidade e do ser do vivente.

2ª definição: Alma é aquilo pelo que primeiramente vivemos, sentimos, mudamos de lugar e entendemos... (Tomás de Aquino, De anima II, 2, 414, a 12).

Também esta segunda definição caracteriza a alma como forma substancial, mas, neste caso, enfatizando a forma substancial enquanto fonte radical das operações do sujeito. O cão late ou morde não porque tem boca, sim, mas em última instância, porque é vivo, porque tem forma substancial, alma de cão.

A alma e suas potências: os fatores na operação

A alma não opera diretamente, e é por esta razão que Aristó­teles diz: "A alma é aquilo pelo que primeiramente sentimos, mudamos de lugar etc." "Primeiramente" , aqui, significa que não é a alma diretamente que vê, anda, conhece ou quer, mas o vivente opera tudo isto por meio das potências ("potências" aqui, não no sentido entitativo, mas no sentido de potências operativas: faculdades) da alma: a potência visual, a potência motriz etc.

É conveniente, portanto, distinguir os diversos fatores presentes numa operação qualquer de um vivente. O mesmo vivente pode estar exercendo ou não tal operação e, no entanto, está continuamente vivo, está sendo informado pela alma. Daí que seja necessário distinguir a alma (substancial, sempre atuante) de suas potências operativas (que podem estar operando ou não). A potência visual ou a motriz não estão atuando quando, por exemplo, estou dormindo, mas a alma, princípio vital, está sempre presente, como forma substancial do vivente.

Enumeremos os diversos fatores que concorrem nas opera­ções do vivente.

1) O próprio vivente. O sujeito, João, que faz esta ou aquela operação (por exemplo, ver ou ouvir).

2) A alma. Se João realiza tais e tais operações é porque é vivente e, em última instância, porque é dotado de alma. Se ele fosse pedra, não veria nem ouviria.

3) As potências da alma. Pois não é a alma diretamente que vê , ouve, se locomove etc. Ela realiza estas operações por meio de suas potências. A alma é dotada de uma potência visual, que realiza o ato de ver; de uma potência auditiva , que realiza o ato de ouvir etc.

4) Os atos das potências. Sabemos que a alma é dotada de diferentes faculdades, precisamente porque são distintos os atos que o vivente realiza: o ato de ver é diferente do de ouvir; pensar é distinto de querer etc.

5) Os objetos (formais) dos atos. Podemos dizer que se esses atos (de ver e de ouvir, por exemplo) são diferentes é porque são diferentes seus objetos: o objeto do ato de ver é a cor; o objeto do ato de ouvir é o som.

6) O objeto material. Claro que o mesmo objeto material - uma fogueira, por exemplo - pode ser apreendido por diversas potências, mas cada uma o apreende pelo seu particular objeto formal (a potência visual capta a cor do fogo; a auditiva , seu crepitar; o olfato se ocupa do cheiro de queimado etc.).

Os três graus de vida. Espírito e inteligência no homem

Vida é a capacidade de realizar operações com espontaneidade e imanência, portanto, por iniciativa própria, a partir de si mesmo e operações que terminam no próprio sujeito.

Três graus de vida correspondem a três graus de espontaneidade e de imanência na realização das operações. E correspondem também a três tipos de alma: vegetativa, sensitiva e intelectiva.

Ao primeiro grau de vida - a vida vegetativa - corresponde um ínfimo grau de espontaneidade e imanência: o vegetal é senhor apenas da mera execução da operação: do seu "nutrir-se", do seu crescimento, de sua reprodução.

Note-se de passagem que, na medida em que subimos na escala da vida, ao mesmo tempo que a alma vai crescendo em espontaneidade e imanência ocorre também uma ampliação de seu campo de relacionamento: desde o limitado meio que circunda uma planta ao mundo sem fronteiras do espírito humano.

A alma em cada grau de vida é - como princípio vital - única e realiza todas as funções dos graus inferiores: a alma espiritual responsável pelas delicadas poesias que João da Silva compõe é a mesma e única que é o princípio de operações vegetativas, como a circulação de seu sangue ou sua digestão.

Para além da mera execução das operações - que caracteriza a vida vegetativa -, a alma sensitiva do animal é responsável também - e isto diferencia o animal da planta - pelo sentir, pelo conhecimento sensível: pela apreensão (cognoscitiva) de realidades concretas e particulares que o circundam.

Assim, pelo conhecimento, que é claramente um fator importante em suas operações, o animal é mais dotado de espontaneidade e imanência do que o vegetal : o gato Mimi percebe este pires de leite, apreende-o com seus sentidos, e este conhecimento é responsável pelo seu movimento em direção a ele. Assim, os animais têm uma dimensão de vida superior à das plantas: são mais donos de suas operações e de suas interações com o ambiente, porque são capazes de sentir, isto é, são capazes de conhecimento de realidades sensíveis, de conhecimento de realidades particulares e concretas.

Essas faculdades do sentir ou faculdades do conhecimento sensível são os sentidos: a visão, a audição etc. [15]. Estão presentes nos animais e no homem. O conhecimento dos outros animais, porém, não transcende o âmbito do sensível, do concreto: esta cor, este cheiro, este som...

No caso do homem (que é o caso da vida intelectiva), sua alma, além das características próprias e peculiares, realiza todas as operações dos graus inferiores de vida. A alma humana não só é responsável pela realização das operações ligadas às faculdades da vida vegetativa - a circulação do sangue, a digestão etc. -; a mesma e única alma realiza também as operações sensitivas (pró­prias da vida animal, como o conhecimento sensível) e, além de tudo isto, essa mesma alma irrompe numa dimensão nova: a do espírito.

A alma humana está dotada de duas potências espirituais: a inteligência e a vontade.

Para nossa questão, interessa-nos especialmente a inteligência. Se o conhecimento sensível versa sobre a realidade particular e concreta (este vermelho, este sabor salgado, esta forma triangular etc.), a inteligência humana transcende, supera esse âmbito do particular, do material e do concreto e pode versar sobre o universal. A geometria, por exemplo, como conhecimento intelectual humano, não se ocupa desta forma triangular do recorte de papel que tenho diante dos olhos; ela trata, sim, do triângulo abstrato. E diz: "A soma dos ângulos internos do triângulo vale dois retos. "Destaquemos, nessa afirmação, seu caráter abstrato e universal: pouco importa se o triângulo é azul ou amarelo, se é acutângulo, retângulo ou obtusângulo; a inteligência versa sobre "o triângulo". E para "o triângulo": "A soma dos ângulos internos é dois retos. " Já a medicina estuda hepatologia, independentemente deste ou daquele fígado concreto.

Esta capacidade da inteligência de apreender o universal e abstrato abre um mundo sem fronteiras para o conhecimento: ele não se limita à realidade concreta que o circunda, mas atinge todo o ser. E precisamente essa abertura para a totalidade do real é o que se chama de espírito. Espírito é a capacidade de travar relações com a totalidade do real. Daí que Tomás repita, uma e outra vez, a sentença aristotélica: "Anima est quodammodo omnia", "A alma humana, sendo espiritual, é, de certo modo, todas as coisas"...

Podemos agora, com base na definição de inteligência como faculdade de conhecimento espiritual do homem, rever, com luzes novas, os conceitos básicos de Tomás.

Contra todo dualismo que tende a separar exageradamente no homem a alma espiritual e a matéria, Tomás afirma a intrínseca união, a substancial união de ambos os princípios: a alma espiritual, como forma, requer - em tudo e por tudo - a integração com a matéria. Pense-se, por exemplo, em todo o tema - hoje mais agudo e atual do que nunca - das doenças psicossomáticas: da relação, digamos, entre um desgosto ou uma crise existencial, por um lado, e uma gastrite ou uma úlcera, por outro. Mas o exemplo mais veemente dessa integração é encontrado na discussão do objeto próprio da inteligência humana.

Como dizíamos, não operamos diretamente pela alma, mas por meio de suas potências operativas. Ora, cada potência da alma é proporcionada a seu objeto: a potência auditiva não capta cores, a potência visual não atua sobre aromas.

Dizer que a inteligência é uma potência espiritual é dizer que seu campo de relacionamento é a totalidade do ser: todas as coisas - visíveis e invisíveis - são inteligíveis, "calçam" bem, combinam com a inteligência. Contudo, a relação da inteligência humana com seus objetos não é uniforme. Dentre os diversos entes e modos de ser, há alguns que são mais direta e imediatamente acessíveis à inteligência. É o que Tomás chama de objeto próprio de uma potência: aquela dimensão da realidade que se ajusta, por assim dizer, "sob medida" à potência (ou, melhor dizendo, é a potência que se ajusta àquela realidade). Não que a potência não incida sobre outros objetos, mas o objeto próprio é sempre a base de qualquer captação: se pela visão captamos, por exemplo, nú­mero e movimento (e vemos, digamos, sete pessoas correndo), é porque vemos a cor, objeto próprio da visão. Ora, próprio da inteligência humana - potência de uma forma espiritual acoplada à matéria - é a abstração: seu objeto próprio são as essências abstratas das coisas sensíveis. Próprio da inteligência humana é apreender a idéia abstrata de "cão" por meio da experiência de conhecer pelos sentidos diversos cães: Lulu, Duque e Rex...

Assim, Tomás afirma: "O intelecto humano, que está acoplado ao corpo, tem por objeto próprio a natureza das coisas existentes corporalmente na matéria. E, mediante a natureza das coisas visíveis, ascende a algum conhecimento das invisíveis" (S. Th. I, 84, 7). E nesta afirmação, como dizíamos, espelha-se a própria estrutura ontológica do homem: mesmo as realidades mais espirituais só são alcançadas, por nós, através do sensível. "Ora - prossegue Tomás -, tudo o que nesta vida conhecemos, é conhecido por comparação com as coisas sensíveis naturais." Esta é a razão pela qual o sentido extensivo e metafórico está presente na linguagem de modo muito mais amplo e intenso do que, à primeira vista, poderíamos supor.

Contra todo dualismo que tende a separar exageradamente no homem a alma espiritual e a matéria, Tomás afirma a intrínseca união e mútua ordenação de ambos os princípios. Contra todo "espiritualismo", Tomás conclui: "É evidente que o homem não é só a alma, mas um composto de alma e de corpo" (Summa theologica I, 75, 4). E esta união se projeta na operação espiritual que é o conhecimento: "A alma necessita do corpo para conseguir o seu fim, na medida em que é pelo corpo que adquire a perfeição no conhecimento e na virtude" (C.G. 3, 144.).

Para Tomás o conhecimento intelectual (abstrato) requer o conhecimento sensível. É sobre os dados do conhecimento sensí­vel que atua o intelecto, em suas duas funções: intelecto agente e paciente.

A seguir apresentaremos um resumo tipificado (com as limitações que se dão nesses casos...) de como ocorre uma apreensão intelectual: o sujeito cognoscente está diante de um objeto determinado, digamos, João diante de um gato, Mimi. O que se conhece, segundo Tomás, é a própria realidade (ainda que para isso sejam necessários certos intermediários: as espécies...). Na passagem da impressão sensível para a idéia abstrata, o intelecto vai exercer duas funções: a de intelecto agente e a de intelecto paciente (ou passivo). Por isso, Tomás compara o intelecto a um olho que emite luz sobre aquilo que ele mesmo vê.

Todo conhecimento começa pelos sentidos: uma vez que os sentidos apreendem uma imagem (imagem em qualquer dimensão sensível, não só visual, mas também auditiva etc.), essa imagem assim interiorizada (que recebe o curioso nome de "fantasma") é oferecida ao intelecto (agente) para que - para além das impressões sensíveis (a determinada cor, aspecto, cheiro etc. deste gato concreto) - torne "visível" sua essência abstrata de gato. Nesse sentido, um filósofo contemporâneo, ]ames Royce, compara a ação do intelecto agente a um tubo emissor de raios X que torna visí­vel a estrutura óssea (na comparação: a essência) subjacente à pele (comparada aos aspectos sensíveis): esta é visível em nível de luz normal (conhecimento sensível); aquela (a essência), em nível de raios X (na comparação: o conhecimento intelectual). Esse "fantasma" despojado de suas características particularizantes [16], abstraído, é oferecido ao intelecto passivo (que só é passivo no sentido de que depende da ação do intelecto agente), para que produza o conceito. Na metáfora, o intelecto paciente poderia ser comparado ao filme virgem de raios X (com a ressalva de que o filme é totalmente passivo, enquanto o intelecto reage ativamente para formar o conceito) . O conceito, por sua vez, é meio para a união com o próprio objeto. O intelecto agente está assim ligado à atividade de aquisição do conhecimento; o paciente, ao estado de saber.

O conhecimento é assim uma apropriação imaterial, intencional [17] de formas (acidentais ou substanciais) sensíveis ou não, pelas quais o sujeito se une à própria realidade do objeto (que tem a forma materialmente, constituindo-o como tal ente). A potência intelectiva de posse de formas está in-formada, conhece.

A segunda potência espiritual: a vontade

Mas o homem - tal como os outros animais - não é só inteligência. Há nele, além disso, uma dinâmica , um tender à posse efetiva (e não meramente cognoscitiva) de objetos, e isto é o que se chama, classicamente, apetite. Um animal, um cachorro, por exemplo, não só tem um conhecimento, digamos, de um osso (conhecimento que, no caso do animal, não supera o âmbito do sensível, do particular, do concreto), mas tende a esse osso realmente, tende à posse efetiva do osso: é o que, como dizíamos, se chama apetite (um apetite que, no caso dos animais, está limitado também ao âmbito do sensível, do particular, do concreto).

Apetite é a tendência a aproximar-se do bem (daquilo que o conhecimento apresenta como bem) e afastar-se do mal. Naturalmente, o apetite está ligado ao conhecimento e dele decorre: porque farejou o osso é que o cachorro procura roê-lo; porque viu o lobo é que a ovelha foge... Ora, assim como no homem há, além do conhecimento sensível um conhecimento intelectual, assim também, além do apetite sensível, estamos dotados de uma outra potência apetitiva que se articula com o conhecimento intelectual: é a vontade. A vontade é, pois, a potência apetitiva espiritual, o apetite que decorre do conhecimento intelectual. Esta é a razão pela qual podemos nos motivar não só pela obtenção de uma realidade particular e concreta, digamos, um sorvete de creme, mas também ser motivados por: "a justiça", "a dignidade", "o bem", "os direitos do homem", "a honra" etc. Se o objeto formal de todo apetite é o bem, o objeto formal da vontade, enquanto apetite intelectual, é o bem intelectualmente conhecido como tal.

O problema do ensino no De magistro

O problema do ensino, como não poderia deixar de ser, é proposto por Tomás nos quadros de sua antropologia e doutrina sobre o conhecimento.

A própria palavra "educação", ainda que não apareça em Tomás, é como que sugerida diversas vezes em suas análises: trata-se de um eduzir o conhecimento em ato a partir da potência: "scientia educatur de potentia in actum (art. 1, obj. 10); a mente extrai o ato dos particulares dos conhecimentos universais (ex universalibus cognitionibus mens educitur - art. 1, solução); leva ao ato (educantur in actum - art. 1, ad 5) [18].

Ensinar é, pois, uma edução do ato; uma condução da potência ao ato que só o próprio aluno pode fazer. Tomás está distante de qualquer concepção do ensino como transmissão mecâ­nica; o professor, tudo o que faz é en-signar (insegnire), apresentar sinais para que o aluno possa por si fazer a edução do ato de conhecimento, no sentido da sugestiva acumulação semântica que se preservou no castelhano: enseñar (ensinar/mostrar): o mestre mostra! Nesse contexto, é altamente sugestiva a genial comparação da aprendizagem com a cura e a do professor com o médico, no art. 1.

Tomás, ainda no art. 1 (solução) , contesta algumas concep­ções da época, como a da existência de um único intelecto agente, separado, para todos os homens. Para ele, os que afirmam que Deus é o único agente (também no caso do ensino) atentam contra o plano do próprio Deus, causa primeira que age também pelas criaturas (causas próximas): "Ignoram a dinâmica que rege o universo pela articulação de causas concatenadas: Deus pela excelência de sua bondade confere às outras realidades não só o ser, mas também que possam ser causa."

No art. 2, Tomás aprofunda na discussão do ensino em oposição à aquisição de conhecimentos por si próprio. E conclui afirmando a superioridade do ensino.

O art. 3 é dedicado à curiosa questão da possibilidade de o homem ser ensinado por um anjo: "se bem que só Deus infunda na mente a luz da verdade, o anjo ou o homem podem remover impedimentos para a percepção da luz" (Em contr. 6). E estuda também de que formas o homem pode ser ensinado por um anjo (o anjo, ao contrário do homem, não raciocina - o intelecto angé­lico atinge diretamente o conhecimento e não precisa dos enlaces lógicos e dos silogismos, que classicamente se chamam razão).

No art. 4, Tomás mostra o caráter, ao mesmo tempo ativo e contemplativo, do ensinar

Cronologia

Contexto em que ocorre o nascimento de Tomás

c. 1170. Nascimento de São Domingos em Caleruega (Castela).

1182. Nascimento de Francisco de Assis. Francisco e Domingos irão fundar, no começo do séc. XIII, as ordens mendicantes: franciscanos e dominicanos. As ordens mendicantes, voltadas para a vida urbana, e, posteriormente, para a Universidade, sofrerão duras perseguições em Paris.

c. 1197. Nascimento de Alberto Magno, um dos primeiros grandes pensadores dominicanos, mestre de Tomás.

1210. Primeira proibição eclesiástica de Aristóteles em Paris.

1215. Estatutos fundacionais da Universidade de Paris. Inglaterra: Carta Magna.
Fundação da Ordem dos Pregadores.

1220. Coroação do imperador Frederico II.

1224-5. Nascimento de Tomás no castelo de Aquino, em Roccasecca (reino de Nápoles). Filho de Landolfo e Teodora. Seu pai e um de seus irmãos pertencem à aristocracia da corte de Frederico II.
Frederico II funda a Universidade de Nápoles para competir com a Universidade de Bolonha (pontifícia).

1226. Morte de São Francisco de Assis.

Infância e adolescência no Reino de Nápoles

1231. Tomás é enviado como oblato à abadia de Monte Cassino (situada entre Roma e Nápoles). Monte Cassino, além de abadia beneditina, é também um ponto crucial na geopolítica da região: é um castelo de divisa entre os territórios imperiais e pontifícios.

1239-44. Tomás estuda Artes Liberais na Universidade de Nápoles e toma contato com a Lógica e a Filosofia Natural de Aristóteles, em pleno processo de redescoberta no Ocidente. Conhece também a recém-fundada ordem dominicana, que - junto com a franciscana - encarna o ideal de pobreza e de renova­ção moral da Igreja.

Juventude na Ordem dos Frades Pregadores

1244. Tomás integra-se aos dominicanos de Nápoles, sob forte oposição da família, que tinha para o jovem Tomás outros planos que não o de ingressar numa
ordem de pobreza.

1245-8. Superada a oposição da família, Tomás faz seu noviciado e estudos em Paris. A Universidade de Paris, desde há muito, goza de um prestígio incomparável.

1248. Sexta Cruzada.

1248-52. Tomás com Alberto Magno em Colônia, onde em 1250-1 recebe a ordenação sacerdotal.

1250. Morre Frederico II.

Os anos de maturidade

1252-9. Tomás professor em Paris. Inicialmente (1252-6), como bacharel sentenciário e, de 1256 a 1259, como mestre regente de Teologia. Escreve o Comentário às sentenças de Pedro Lombardo. Em 1259, come­ça a redigir a Summa contra Gentiles. Em defesa da causa das ordens mendicantes, perseguidas, escreve em 1256 o Contra impugnantes Dei cultum et religionem.

1260-1. Tomás é enviado a Nápoles para organizar os estudos da Ordem. Continua a compor a Contra
Gentiles.

1261-4. O papa Urbano IV - pensando numa união entre o Oriente cristão e a cristandade ocidental - leva Tomás por três anos a sua corte em Orvieto.

1264. Tomás conclui a Summa contra Gentiles.

1265. Tomás é enviado a Roma com o encargo da dire­ção da escola de Santa Sabina. Começa a escrever seus comentários a Aristóteles e a Summa theologica. Nascimento de Dante Alighieri.

1266. Nascimento de Giotto.

1267. Um novo papa, Clemente IV, chama Tomás à sua corte em Viterbo, onde permanece até o ano seguinte.

1269-72. Tomás exerce sua segunda regência de cátedra em Paris. Escreve o Comentário ao Evangelho de João. Recrudesce a perseguição contra as ordens mendicantes na Universidade de Paris.

1272-3. Tomás regente de Teologia em Nápoles.

1274. Tomás morre a caminho do Concílio de Lyon.

1277. Condenação, por parte do bispo de Paris, de 219 proposições filosóficas e teológicas (algumas de Tomás) em Paris.

1280. Morte de Alberto Magno.

1323. Tomás é canonizado por João XXII

Notas:

Apresentação

[1] O texto latino de que fundamentalmente nos valemos para essa tradução do De Veritate é o da edição eletrônica feita por Roberto Busa, Thomae Aquinatis Opera Omnia cum hypertextibus in CD-ROM. Milão, Editaria Elettronica Editei, 1992 (Textus Leoninus aequiparatus).

[2] Cf. Tomás de Aquino, Verdade e conhecimento, São Paulo, Martins Fontes, 1999; trad. e estudos introdutórios de Luiz Jean Lauand e M. B. Sproviero. Nessa edição, o leitor encontrará um estudo biobibliográfico sobre Tomás que traz também alguns outros textos do Aquinate (das Questões disputadas sobre a verdade e do Comentário ao Evangelho de João). E em outro volume desta mesma "Coleção Clássicos"- Cultura e Educação na Idade Média, L. J. Lauand (org.) - encontram-se outros quatro pequenos estudos de Tomás de Aquino sobre o amor, o estudo, o bom humor e o reinado de Cristo (comentário ao salmo 2).

[3] O texto latino de que nos valemos para a tradução dos artigos do De Malo é o texto crítico da edição leonina: S. Thomae Aquinatis Doctoris Angelici, Opera Omnia iussu Leonis XIII, P. M. edita, curo et studio fratrum praedicatorum, Romae 1882 ss., reproduzido na edição I vizi capitali (intr., trad. e nota di Umberto Galeazzi), Milão, Biblioteca· Universale Rizoli, 1996. A Summa e as sentenças seguem a edição eletrônica feita por Roberto Busa, Thomae Aquinatis Opera Omnia cum hypertextibus in CD-ROM. Milão, Editoria Elettronica Editel, 1992.

Introdução

[1] Weisheipl, ]ames A. Tomás de Aquino - Vida, obras y doctrina, Pamplona, Eunsa, 1994, p. 235.

[2] Pieper, Abertura para o todo: a chance da Universidade, São Paulo, Apel, 1989, p. 44.

[3] Utrum é o "se" latino que indica uma entre duas possíveis opções (daí neutrum, "nem um nem outro").

[4] Pieper, Abertura..., pp. 44-5.

[5]. Cf. Pieper, Wahrheit der Dinge, Munique, Kösel, 1951, pp. 113 ss.

[6] Entre as autoridades citadas por Tomás está a Glosa. A Glosa - ordinária e interlinear (esta mais breve) - deriva dos ensinamentos de Anselmo de Laon e de sua escola (séc. XII) e utiliza muito material exegético anterior.

[7] Platão chega a admitir a existência de três almas no homem, que correspondem às três funções da mesma e única alma humana na doutrina aristotélica.

[8] União extrínseca é a que se dá, digamos, entre um indivíduo e sua roupa ou entre o queijo e a goiabada; união intrínseca é a que ocorre, por exemplo, entre um objeto e sua cor (a cor não se dá sem o objeto e nem se dá objeto sem cor).

[9] E aqui é interessante notar a força do realismo de Tomás: a própria expressão "outros animais", em suas diversas formas latinas - alia animalia, aliis animalibus etc. - aparece nada menos do que cerca de quatrocentas vezes na obra do Aquinate.

[10] Um terno exato em suas medidas e feitura é um terno feito a partir da realidade do sujeito que vai usá-lo, e não, digamos, um terno comprado pronto e mal-ajustado a quem o usa...

[11] Conceito que, aliás, não coincide com a acepção industrial que hoje damos à expressão "matéria-prima".

[12] A forma substancial é aquela que, em união com a matéria-prima, constitui a substância do sujeito. Naturalmente, há também formas acidentais (cor, tamanho etc.) que inerem na substância.

[13] Cabe aqui uma breve explicação sobre o modo como a filosofia chegou a esses conceitos. Para analisar a realidade material, Aristóteles parte da experiência dos fenômenos da unidade substancial de cada ente, de cada sujeito. Aristóteles parte também da realidade das mudanças substanciais, isto é, aquelas, por assim dizer, mais sérias, nas quais o que muda é não já esta ou aquela qualidade acidental do sujeito (que ficou mais alto, mais gordo, mais corado, ou mudou de lugar...), mas o próprio sujeito: uma coisa, X deixa de ser o que era e passa a ser outra coisa: Y (para mero efeito de exemplificação didática, pensemos em um pedaço de madeira que se queima e deixa de ser a substância que era - madeira - e passa a ser outra coisa: cinza). Nesses casos de mudança substancial, o novo ser Y não proveio do nada (mas, evidentemente, de X) e o ser X não se reduziu ao nada (deixou de ser X e passou a ser Y). Examinando, portanto, esses casos de mudança de substância, vemos que há algo que permanece e algo que muda (o que indica que a substância é composta de dois elementos: um que permanece, outro que muda). O que permanece é a matéria-prima, realizada, atualizada, em cada caso, por um fator determinante dessa potência que faz com que X seja X e Y seja Y: a forma substancial.

[14] Sempre que falo desse ponto, lembro-me do comentário jocoso (mas pleno de sentido...) feito por um aluno. "Com a palavra 'alma' (em relação às demais formas)- dizia ele- dá-se algo de semelhante ao que ocorre com certas denominações de sanduíche: os sanduíches com queijo são prefixados por cheesecheese-burger, cheese-dog etc. Mas o 'misto quente' é um sanduíche tão tradicional, tão especial, que ninguém o chama de cheese-presunto, mas por um nome também especial: 'misto quente'". Brincadeiras à parte, podemos dizer que a alma é uma forma, mas uma forma muito especial, porque atua, in-forma o vivente, constituindo o princípio da vida e, portanto, recebe o nome especial de alma.

[15] A filosofia clássica divide as potências dos conhecimentos sensíveis, ou seja, os sentidos, em: sentidos externos (basicamente os tradicionais cinco sentidos) e sentidos internos, em número de quatro: sentido comum, imagina­ção, memória e capacidade estimativa.

[16] Outra operação importante nesse processo é a collatio, a confrontação (feita pelo sentido interno chamado "capacidade cogitativa", que participa do intelecto) entre esta impressão e outras semelhantes, preparando a formação do conceito intelectual.

[17] No sentido de intentio, o conhecimento que se apropria de uma forma.

[18] Daí também que Tomás afirme que a aquisição do conhecimento, com as devidas ressalvas, pode ser comparado às "razões seminais", aquelas potencialidades que "não se tornam ato por nenhum poder criado, mas estão inscritas na natureza só por Deus" (obj. 5). Ressalvas, pois se trata de potencialidades que não procedem da criatura, mas que podem ser conduzidas ao ato pela ação do ensino humano (resposta ã obj. 5).

***

Leia mais em O professor e a docência em S. Tomás de Aquino

Leia mais em Progresso e Tradição em Pedagogia



Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae

Nossa página no Instagram @summamathematicae e YouTube.



A educação medieval segundo o Diário de um estudante

Gravura do século XVII de Hugo de São Vitor, detalhe do livro.

RECEBA NOSSAS ATUALIZAÇÕES

DIGITE SEU EMAIL:

Verifique sua inscrição no email recebido.


Tempo de leitura: 8 minutos.

Texto disponível no LINK.

A educação medieval segundo o Diário de um estudante, escrito por Walafried Strabo (806-849)

Não são poucas as vezes que podemos nos deparar com a declaração “A igreja privou o conhecimento na idade média”, essa postura quase orquestrada é bastante comum tanto em sala de aula do ensino fundamental e médio, quanto dentro de uma universidade. E o pior, a curiosa afirmação é dita constantemente por professores que ocupam a cadeira de medieval na academia. Não tenho a intenção com o presente trabalho de ser um advogado da igreja, porém busco defender o homem medieval das acusações injustas que vem sendo levantadas. Visto que a maioria destes docentes ao serem indagados por algum aluno sobre a posição da Igreja como aquela que privava a educação afim de obter poder, não realizam nenhuma intervenção corretiva e acabam por reforçar essa ideia obscurantista.

A primeiro questionamento necessário é saber o que representava a educação em um mosteiro para um cidadão comum na idade média. Cesário de Arles (c. 470-542), nascido em Chalon-sur-Saône, filho de burgúndios pobres, ao recordar da educação que recebeu na infância diz:

“Essa ilha santa acolheu minha pequenez nos braços de seu afeto. Como uma mãe ilustre e sem igual e como uma ama-de-leite que dispensa a todos os bens, ela se esforçou para me educar e me alimentar.”

Essa obra é analisada no artigo Valorización y educación del Niño en la Edad Media, op. cit., p.22. Pode-se perceber que o mosteiro é considerado por Cesário como uma mãe que se esforçou para educá-lo e alimentá-lo. O carinho e a felicidade que são apresentados por estas palavras não é de nos surpreender visto que na Idade Média, a Educação era vista como um instrumento para se alcançar a Sabedoria, que consequentemente, levaria o homem à Felicidade, um bem desejado por si mesmo e mais perfeito que todos os outros bens (al-Farabi, 2002: 43-44).  Tal sabedoria ao contrário do que é alegado estende-se a um vasto campo de conhecimento, evitando limitar-se apenas ao conhecimento religioso, afinal dentro dos mosteiros os estudantes eram orientados a considerar importante todo o conhecimento científico [1]. A base do currículo educacional medieval foi dada pela obra O casamento da Filologia e Mercúrio, do cartaginês Marciano Capela, escrita por volta de 410-427. Nela, o autor, influenciado pela enciclopédia de Varrão (Sobre as Nove Disciplinas), tratou das Sete Artes Liberais, damas de honra daquele casamento: 1) Gramática, 2) Retórica, 3) Dialética, 4) Aritmética, 5) Geometria, 6) Astronomia e 7) Harmonia. Marciano Capela deixou de lado a Medicina e a Arquitetura, por tratarem de coisas terrestres que “…não têm nada em comum com o céu.” (Citado em Nunes, 1979: 75). Então, fica claro e evidente que na idade média não se aprendia nos mosteiros apenas a repetir orações, rezar salmos e ler a bíblia, embora todas essas atividades fossem fundamentais para a vida dos homens desse período.

Gostaria de analisar neste momento a obra Diário de um estudante de Walafried Strabo que é o objeto deste trabalho. É necessário se ater ao que está escrito e perceber cada palavra respeitando seus significados afim de entender o que de fato o autor quer nos transmitir sobre a sua vida estudantil, suas expectativas, desafios e conquistas:

Eu era totalmente ignorante e fiquei muito maravilhado quando vi os grandes edifícios do convento (…) fiquei muito contente pelo grande número de companheiros de vida e de jogo, que me acolheram amigavelmente. Depois de alguns dias, senti-me mais à vontade (…) quando o escolástico Grimaldo me confiou a um mestre, com o qual devia aprender a ler. Eu não estava sozinho com ele, mas havia muitos outros meninos da minha idade, de origem ilustre ou modesta, que, porém, estavam mais adiantados que eu. A bondosa ajuda do mestre e o orgulho, juntos, levaram-me a enfrentar com zelo as minhas tarefas, tanto que após algumas semanas conseguia ler bastante corretamente (…) Depois recebi um livrinho em alemão, que me custou muito sacrifício para ler mas, em troca, deu-me uma grande alegria…”

Os grifos são meus, tenho a intenção de deixar em evidencia alguns trechos que chamam a atenção e por si respondem a algumas questões que insistentemente são apresentadas. Strabo reconhece que ao chegar ao mosteiro era completamente ignorante e ficou admirado com toda a estrutura que havia encontrado, foi bem recebido por um grande número de companheiros. Importante é a afirmação de que ele não estava sozinho, que havia muitos outros estudantes da mesma idade que ele, alguns de origem nobre e outros de procedência humilde. Por isso a afirmação de que a entrada no mosteiro era para poucos e principalmente apenas para os nobres deve ser colocada em dúvida diante deste relato. Aquilo que o jovem Strabo conquistou – aprender a ler – é uma realidade possível de se alcançar por “muitos” e sobretudo, pelos mais pobres dessa sociedade, segundo o autor, a admissão nesse ambiente pedagógico era amplo e sem descriminação de condição social. Outro dado que é possível notar é a eficácia deste sistema que fez com que o menino aprendesse a ler em um curto espaço de tempo. Logo, o latim que é tão impossível e difícil de aprender como dizem alguns, se tornou muito fácil para o menino, ou seja, deve-se assumir uma entre estas duas coisas: ou o modelo pedagógico dos mosteiros era muito eficiente, ou o latim não é um bicho de sete cabeças e os que afirmam isso no fundo só querem colocar obstáculos afim de conseguir dizer que os homens na idade média eram verdadeiramente ignorantes e não conseguiam ler devido à dificuldade do idioma. Seja qual for a alternativa escolhida outra questão que devemos observar é que não se ensinava apenas latim dentro de um mosteiro, e fica demonstrado que embora o aprendizado do idioma latino possa ter sido verificado, havia também o incentivo à leitura do alemão e, podemos considerar que provavelmente também, de outros idiomas. Deste modo, é possível verificar que as pessoas não deixaram de aprender a ler por seus livros serem em latim ou somente em latim. Conforme relata em seu diário o estudante Strabo, o aprendizado e o acesso à leitura era possível e motivo de grande alegria.


Fontes Primárias

AL-FARABI. El camino de la felicidad (trad., introd. y notas de Rafael Ramón Guerrero). Madrid: Editorial Trotta, 2002.


Bibliografia

[1] COSTA, Ricardo da. “A Educação Infantil na Idade Média”. In: LAUAND, Luiz Jean (coord.). VIDETUR 17. Porto: Universidade do Porto / USP, 2002, p. 13-20.

DE CASSAGNE, Irene (PUC – Buenos Aires – Argentina). Valorización y educación del Niño en la Edad Media, p. 20 (artigo consultado no site http://www.uca.edu.ar)

MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação – da Antigüidade aos nossos dias, op. cit., p. 135.

NUNES, Rui Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média, op. cit., p. 157-159 (SÖHNGEN, C. J. De medii aevi puerorum institutione in occidente. Diss. Amsterdam 1900).

Robson Oliveira

Fonte: humanitatis.net

***

Leia mais em A Educação Infantil na Idade Média - por Ricardo da Costa

Leia mais em A Pedagogia Medieval



Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae

Nossa página no Instagram @summamathematicae e YouTube.


Filosofia e Educação Clássica

Universidade: Estudantes de medicina. Artista Desconhecido.
Bibliothèque Nationale, Paris, França.

RECEBA NOSSAS ATUALIZAÇÕES

DIGITE SEU EMAIL:

Verifique sua inscrição no email recebido.

Tempo de leitura: 37 minutos.

Apresentamos o texto Das Artes Liberais à Filosofia nas Universidades Medievais [*] de Scott Randall Paine [**], publicado na Revista VERITAS. Porto Alegre v.42 nº 3. Setembro 1997, p. 569-578, disponível no LINK.

SÍNTESE - O presente ensaio não se entende como uma pesquisa crítico-histórica das artes liberais e do seu papel nas universidades medievais, mas antes como uma reflexão filosófica sobre a lógica intrínseca destas artes e a sua interação com a filosofia aristotélica.

ABSTRACT - The present essay isn't a critical/historical investigation about the liberal arts and their role in the universities of the Middle Ages, but rather a philosophícal reflectíon on the intrínsic logic of the quoted arts and their ínteraction with Aristotle's philosophy.

No artigo que se segue, vão ser empregados os recursos expressivos da Língua Portuguesa, vai ser apresentada e defendida a lógica dum argumento - ou pelo menos, uma hipótese de interpretação que exige uma articulação racional - e vão ser utilizados certos expedientes (ilustrações, apelos aos tópicos atuais, etc.) para agilizar a compreensão, da parte dos leitores, dos assuntos tratados. Costumamos agrupar esses três círculos de tarefas sob a tríplice designação de "gramática", "lógica" e "retórica".

Preparando este artigo, tive que contar as páginas, para ficar dentro dos parâmetros de uma revista. Tive mesmo que levar em conta o tamanho da superfície das páginas, para estimar o quanto eu poderia ampliar o meu desenvolvimento dos temas tratados. A publicação desta revista está prevista para um certo mês do ano, o mês mesmo sendo determinado pela posição do sol na abóbada celeste. Finalmente, a colocação do meu artigo aqui num lugar determinado da revista obedecia - podemos supor - ao desejo da redação de manter um certo ritmo entre as diversas contribuições, criando, enquanto possível, um diálogo coerente (uma certa melodia, se quiser, unificada por diversos temas e tons respeitantes à filosofia medieval) e assim estabelecer uma harmonia no conjunto deste número da revista.

Então, contar paginas é fazer aritmética; estimar dimensões espaciais é fazer geometria; a determinação dos meses durante o ano exige astronomia; e unificar os movimentos de uma multidão de coisas - de quaisquer coisas - segundo um certo ritmo e visando uma certa harmonia, é um tipo de música. Como no emprego das palavras para comunicar as minhas idéias, eu aproveitei espontaneamente a Gramática, a Lógica e a Retórica - na mesma forma, e com a mesma espontaneidade, para situar as minhas letras numa página, e para relacionarmos o meu artigo aos demais desta revista, aproveitamos a Aritmética, a Geometria, a Astronomia e a Música.

Ora, estas sete operações básicas de nossa vida cotidiana - cujos traços se poderia identificar em qualquer atividade humana - constituem a matéria estudada nas sete artes que formaram o programa de estudos pré-teológicos (e também pré-jurídicos e pré-médicos) durante a maior parte da Idade Média. Essas artes foram chamadas de artes liberais (artes liberales) por duas razões inter-relacionadas: primeiro, por serem as artes características dos homens livres, ou seja, dos homens relativamente libertados dos esforços e do investimento de tempo, requeridos pelo trabalho manual e as suas artes correspondentes, as artes servis (artes serviles); e, em segundo lugar, por serem as artes que desenvolvem e aprofundam os atos mais livres e nobres do espírito humano, aqueles atos que se desempenham, não para alcançar qualquer outro objetivo, mas por causa do valor e da excelência do ato mesmo.

O meu propósito neste artigo será de oferecer só uma primeiríssima abordagem das artes liberais e do seu espírito - se eu puder exprimir-me assim - para ajudar-nos a entender como a Idade Média encarou essas artes e o seu papel na educação. Queremos especialmente perguntar como este papel mudou em vista do surgimento da filosofia aristotélica integral nos séculos XII e XIII. Em que maneira e com que alcance inseriu-se esta problemática dentro da tradição intelectual do Ocidente, mesmo a despeito das múltiplas e insistentes reviravoltas operadas no Renascimento, na Ciência Nova do século XVII, na Ilustração, em relação ao patrimônio medieval?

1 - As artes liberais

Falando dum modo geral, podemos afirmar que o homem medieval - seja do tempo patrístico (marcado pelas primeiras tentativas de interpretação racional da revelação cristã), seja do tempo de transição entre a era carolíngea e os princípios do século XII (marcado mais pela absorção e transmissão do patrimônio dos gregos e dos Padres cristãos), seja da Alta Escolástica e os seus panoramas intelectuais quase ilimitados - o homem medieval era alguém a quem se tinha passado uma herança imensa, e em muitos aspectos, desordenada e desconhecida. As tribos germânicas que desceram no sul da Europa depois da queda do Império Romano descobriram ali um tesouro cultural que, na sua profundeza e na sua envergadura, ultrapassou, e até intimidou, a sua própria herança.

A filosofia e a arte dos gregos, mesmo imperfeitamente conhecidas, e o Evangelho e a obra teológica dos Padres da Igreja constituíram um conjunto de manuscritos e de tradições que, antes de mais nada, necessitaram organização, classificação e, com o tempo, com cada vez mais consciência dos impressionantes novos horizontes dessas obras, comentário. A caraterística, e muitas vezes ridicularizada tendência "sistematizadora" dos medievais, é devida em grande parte a isto. Ora, uma das classificações mais bem sucedidas e influentes era a das sete artes liberais.

Temos que ver este pequeno esquema de sete artes como a cristalização duma doutrina pedagógica remontando pelo menos até Platão [1]. Platão, mesmo sendo - como ele mesmo insistiu - também um herdeiro duma tradição prévia duma envergadura intelectual (atribuída por ele aos palaioí, os "anciãos'' [2], e por Aristóteles aos pampalaioi [3]), podemos supor que qualquer forma destas artes existia desde que o homem começou a articular a sua busca do saber numa maneira racional. Como constatamos no início, as sete atividades que essas artes pretendem dirigir pertencem à nossa vida humana duma maneira inalienável.

Os primeiros autores medievais que davam forma e uma certa interpretação a estas artes eram os chamados "compiladores'', começando com Marciano Capela (séc. V) e sua De nuptlis Mercurii et Philologiae; e Santo Agostinho e sua De doctrina christiana; depois, Cassiodoro (VI) e a sua De artibus ac disciplinis liberalium litterarum e, na mesma época, as diversas obras individuais dedicadas a estas artes de Boécio (VI); finalmente, apareceu aquela "Encylopedia Brittanica" da Idade Média, as Etymologiae, de Santo Isidoro de Sevilha.

Esta classificação e resumo duma tradição intelectual já existente presenciamos nesses autores numa maneira altamente pormenorizada, cada arte tendo um eminente auctor da Antigüidade como auctoritas. As fontes da Gramática são Donato (séc. IV) e Prisciano (VI); da Dialética é sobre tudo Aristóteles (nos diversos graus de familiarização com o seu Órganon ao longo dos séculos medievais); da Retórica são Cícero (séc. I a.C.) e Quintilião (séc. I d.C). Nas artes matemáticas, foi a Nicômaco de Gerasa (fins do séc. I) que os aritméticos olhavam; Euclides (fl. 300 a C.) ficou como o mestre incontestado da Geometria; e Tolomeo (séc. II) era o mesmo na Astronomia. Um clássico na arte de Música não existia na mesma forma como nas outras artes (o nome de Pitágoras era o mais citado, mas existem pouquíssimos textos remontando a ele mesmo, o texto sobre a música de Boécio sendo usado como o texto de preferência).

Assim achamos um sistema de artes que obedecia a uma certa lógica interna na sua transmissão de uma herança antiga. A numeração não era sempre a mesma e diversas artes não constantes em nossa lista foram incluídas por alguns, como, a título de exemplo, a História e a Arquitetura. Mas a correlação bíblica, introduzida por Cassiodoro entre as sete artes e um verso do livro dos Provérbios, ("A Sabedoria edificou sua casa, talhou sete colunas" Pv.9:1), contribuiu para consagrar o setenário como número padrão, convidando comparações ulteriores com os sete Arcanjos, os sete planetas (os cinco planetas visíveis, mais o Sol e a Lua, esses últimos considerados "planetas" segundo o sentido originário no grego: planes = vagabundo, o Sol e a Lua "vagabundeando" , juntamente com Mercúrio, Vênus, Marte, Saturno e Júpiter, contra o pano de fundo dos astros fixos), e as sete virtudes (as três teologais e as quatro morais). Mas eu prefiro, neste contexto, não me apoiar em qualquer vindicação bíblica ou teológica e sim examinar a lógica intrínseca das três artes triviais e das quatro artes quadriviais na sua própria estrutura.

Como já transpareceu nas ligações das sete artes com a nossa experiência comum, elas comportam evidentemente uma divisão em dois grupos: as três artes da linguagem e as quatro artes matemáticas. Comparações com a conhecida divisão das "duas culturas" de C.P. Snow, a arte e a literatura dum lado, e a ciência e a técnica no outro, não seriam totalmente erradas, mas a mente medieval não estava encarando essas coisas segundo os critérios nem de uma cientificidade moderna quanto à Matemática, nem de uma crítica literária moderna quanto às Letras. A divisão derivou mais de uma experiência humana tão simples quanto as percepções pelas quais distinguimos espontaneamente entre qualidade e quantidade, entre "assim" e "quanto", entre um grande homem e um homem grande.

O intelectual medieval entendeu todas as sete artes como justamente artes-não ciências, nem no sentido aristotélico, nem no sentido newtoniano, mas artes. Uma arte é, nesta perspectiva, a recta ratio factibilium, ou seja, uma racionalidade certa, metódica, quanto às coisas que ficam por produzir.

A única diferença entre as artes servis, ou mecânicas, e as liberais, era a natureza do produto que as artes criam: nas artes servis, o produto fica um objeto material (uma cadeira, uma casa, uma boa colheita, etc.), ao passo que nas artes liberais, a "obra" realizada era uma realidade imaterial, ou melhor dizendo, uma realidade lingüística: na Gramática, uma construção sintática ou morfológica; na Lógica, um silogismo; na Retórica, um discurso adaptado às necessidades e situação dos ouvintes, duma certa platéia; na Aritmética, um cálculo; na Geometria, uma medição das dimensões espaciais; na Astronomia, uma previsão dos cursos dos astros; na Música, uma harmonia. Na língua latina, as sete obras eram resumidas pelas palavras: lingua, ratio, tropus, numerus, angulus, astra, tonus.

Estas "obras de arte" eram, para o homem educado da Idade Média, os recursos intelectuais que ele precisava para navegar livremente na sua fé e no seu mundo. E a razão por que ele considerava o exercício destes atos como excelentes em si era por causa da sua ordenação intrínseca a uma "leitura" desta fé e deste mundo, uma leitura cuja suprema meta era nada menos do que a contemplação - seja metafisica, seja mística.

Pela leitura "quadrivial" da Natureza, o homem podia meditar, e mais e mais contemplar, o mistério de Deus como cognoscível através das obras das suas mãos (cf. Salmo 18, e a Carta aos Romanos 1:19). Pela leitura "trivial" da Bíblia, foi visada a contemplação de Deus nas suas obras, digamos, "sobrenaturais", ou seja, a sua intervenção na história humana para redenção e santificação de uma Humanidade desencaminhada.

Na evolução do pensamento medieval, a interpretação e o uso do trivium e do quadrivium em relação ao conhecimento de Deus, do homem e do mundo, mudaram e se adaptaram enquanto as ciências filosóficas e teológicas se destacaram progressivamente delas. É isto que abre uma perspectiva rica no nosso entendimento da filosofia medieval.

Pensemos numa letra, qualquer letra, digamos "x". Para nós hoje em dia, esta letra representa um símbolo escrito - a maioria de nós diria provavelmente um símbolo arbitrário - para um som usado na fonética da nossa língua. Pensaríamos até em certos atributos quantitativos deste som, como a freqüência e a amplitude de suas vibrações, o volume do som e mesmo nos bits informáticos que constituem um "x" nos nossos computadores. Nosso entendimento de uma letra seria dominado por uma interpretação quantitativa.

Agora, tentemos reproduzir, aproximadamente, a maneira pela qual um Agostinho, um João Escoto Erígena, ou um Boaventura, abordariam o mesmo assunto. O que eles imaginariam, pensariam, refletindo na natureza de um "x"? Antes de mais nada, eles viriam neste símbolo, simultaneamente e sem conflito de perspectivas, uma letra que representa um som e um número que representa uma soma. Parece que na maioria das línguas tradicionais, ou seja, pré-modernas, as letras serviram tanto para os sons de linguagem no tempo, quanto para os números e dimensões dos corpos no espaço. Qualidades e quantidades ficaram inter-relacionadas na grafia mesma da linguagem humana.

Gramma e arithmos, letra e número, qualidade e quantidade, nomes e medidas - alguns iam tão longe a ponto de identificar as artes triviais com as artes do céu (não sem referências à tríade das artes como manifestação da Santíssima Trindade) e as artes quadriviais com as da terra (a quaternidade sendo símbolo natural para a ordem material - as quatro direções, os quatro elementos, as quatro estações etc.). Esta observação nos conduz à seguinte reflexão.

Das doutrinas teológicas do pensador medieval, nenhuma o marcou tão profundamente quanto a da Incarnação da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade em Jesus Cristo: Et Verbum caro factum est. Esta inesperada doutrina colocou diante da mente do cristão três fatos imprescindíveis da sua fé: 1) a vida, o ensinamento, a morte e a ressurreição de Cristo, o Verbo Encarnado, o falar mesmo de Deus entrado neste mundo - Cristo, como aquilo que Deus quis dizer a nós depois do pecado; 2) o mundo mesmo, na sua estrutura física e matemática, como aquilo que Deus quis dizer a nós antes do pecado, porque "todas a coisas foram feitas por ele [o Logos], e sem ele nada foi feito" (João 1:3), e "nele [no Logos] foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis [...] tudo foi criado por ele e para ele..." (Col. 1:16).

A doutrina cristã da criação pelo Logos implica um universo cheio de sentido, um certo prolongamento pela criação da mesma processão do Filho do Pai, em Deus, por geração; e enfim, 3) Deus precisamente como Trindade, entendendo por Deus alguém que fala, a Segunda Pessoa sendo o Verbo, a Expressão completa do Pai no Espirita Santo. Este último sentido do Verbo, o que Deus diz de Si Mesmo a Si Mesmo, fica reservado para os ouvidos das almas glorificadas, percebidas só imperfeitamente e esporadicamente pelos místicos nesta vida.

O ponto importante aqui é que as doutrinas-chave do cristianismo ensinam que tudo tem significado: o foco da fé cristã na pessoa e obra de Cristo, para este significado é que ambos, a Bíblia e o universo, são expressões do mesmo Logos, do mesmo Verbo, em duas vertentes complementares. E a harmonia entre estas duas expressões se radica na sua origem comum no Verbo que Deus diz de Si Mesmo a Si Mesmo.

Num sermão do século XIII, atribuído no passado a Tomás de Aquino, o homilista exprime um lugar comum sobre a relação entre a Bíblia e a Natureza: "Deus teve o cuidado de produzir para nós escritos excelentes, a fim de nos instruir em perfeição [.. .] Esses escritos encontram-se em dois livros: o livro da criação e o da Escritura. No primeiro, são tantas as criaturas quantos os escritos excelentes que nos ensinam a verdade sem mentira. E aí está por que Aristóteles, a quem perguntaram onde aprendera tanto e a tal .Ponto, respondeu: 'Nas coisas, que não sabem mentir"'.

Aqui achamos o motivo mais potente para a sistematização e esquematização das sete artes liberais nos dois grupos. Essas artes, herdadas dos gregos, apresentaram ao homem medieval os recursos para uma dupla alfabetização: pelo trivium, os meios necessários para ler a Sagrada Escritura, o livro de Deus ao mundo dos pecadores; e pelo quadrivium, os meios para ler o sentido e o simbolismo do mundo físico, o livro de Deus ao mundo já antes do pecado. O primeiro sentido da palavra artista, aquele que completou os seus estudos na Faculdade das Artes, era a pessoa que tinha aprendido a "ler" os dois livros: o livro da Bíblia e o livro da Natureza. Uma vez ''letrado", ele podia passar para a Faculdade de Direito, a de Medicina, ou a de Teologia, para estudar os próprios assuntos apresentados nos dois livros.

2 - O Trivium

As três artes de linguagem foram chamadas artes sermocinales (artes verbais) e governaram a maneira pela qual o homem enfrenta a realidade com o seu Logos, ou seja, a sua língua, as suas palavras. A prática mostra que nós experimentamos uma realidade já existente que nos esforçamos por nomear e descrever. Consideramos os nossos nomes e as nossas descrições adequadas na medida em que refletem a maneira de existir e de atuar das coisas mesmas. Este modo de existir foi por vezes chamado de modus essendi (o modo de ser) e foi tarefa da Gramática apanhar este modo de ser pela sua morfologia e a sua sintaxe.

Uma vez captando as coisas desta maneira rudimentar, a mente humana começa a pensar sobre o sentido das palavras e as suas inter-relações, comparando palavra com palavra, proposição com proposição e, finalmente, chegando a aprofundamentos do conhecimento através de inferências tiradas de certas proposições. Este aspecto do nosso encontro lingüístico com a realidade, esta elaboração interior pela razão dos dados da Gramática, este modus intelligendi (modo de entender) foi governado pela arte da Dialética (mais ou menos coincidente com o que chamamos hoje de Lógica).

Enfrentando as coisas com a Gramática, ponderando as coisas com a Lógica, o homem sente mais uma necessidade, uma necessidade imposta por sua própria natureza humana. Ele tinha começado a sua inter-relação lingüística com o mundo empregando o órgão dentro da sua boca - o mesmo órgão com que ele acolhe o alimento, saboreando-o e passando-o para o corpo para sua assimilação. A Gramática é também um "comer" da realidade, um saborear das coisas antes de passá-las para a razão. E analogamente ao processo de digestão, em que o corpo trabalha e assimila as comidas, tirando nutrimento delas, que a língua mesma não podia tirar, a razão também trabalha e assimila os conceitos e juízos que a Gramática presta, assimilando a realidade, por assim dizer, ao "organismo" do intelecto humano.

Ora, o próximo passo é evidente. O corpo não se alimenta e não digere o alimento apenas para existir, mas também, e sobretudo, para atuar e agir. O alimento presta energia física que quer exprimir-se, articular-se para o mundo externo. O mesmo é o caso com o conhecimento que acolhemos (ou "comemos") pela Gramática, e elaboramos (ou "digerimos") pela Lógica. Este conhecimento quer também exprimir-se para fora, quer voltar ao mundo de que foi tirado. E como a força física anda do aparelho digestivo através dos nossos membros para exprimir-se na locomoção, a força da linguagem passa do nosso intelecto para fora, voltando à mesma língua, para ser exprimida.

Mas notemos uma caraterística particular deste terceiro passo, seja no caso do processo biológico, seja no caso da linguagem: em ambos temos diante de nós um processo altamente adaptável, móvel, fluido mesmo. O que fazemos com a energia fornecida pelo alimento e elaborada pela digestão, fica indeterminado. Podemos fazer um passeio, jogar futebol, ou ficar sentados na poltrona e engordarmos. A digestão, em contraste, segue regras fixas e um itinerário predeterminado.

O mesmo é o caso com a linguagem. A Lógica tem regras estritas e um discurso predestinado - pelo menos para quem quer raciocinar com acerto e não sofrer aquela indigestão intelectual que chamamos de incoerência. Mas quando exprimimos o que sabemos, temos novos parâmetros que também requerem atenção: o ouvinte, as suas emoções, a sua situação, os seus preconceitos, etc. Quem quer não somente acolher a realidade gramaticalmente, entendê-la logicamente, mas também comunicar o seu conhecimento e as suas idéias eficazmente, precisa de mais uma arte. O modus communicandi (o modo de comunicar ou ensinar) exige a arte da Retórica.

Ora, estes três momentos do uso da linguagem foram aplicados ao estudo dos textos, sobretudo, claramente, do texto dos textos, a Bíblia, mas também dos clássicos gregos e romanos. Este exercício contemplativo da interpretação do texto da Bíblia segundo as três artes triviais passou por diversas fases de ênfase. Nos primeiros séculos da Idade Média, o interesse era talvez mais gramatical, na Alta Escolástica, mais lógico, e na transição ao tempo moderno, com o surgimento do humanismo renascentista, mais retórico. Mas estas simplificações ignoram a complexidade dos assuntos e dos autores dessas épocas. Certos Padres (Agostinho e Crisóstomo, por exemplo) estavam entre os mestres medievais da Homilética, uma filha cristã da Retórica clássica. E a Gramática especulativa, um movimento significativo de interpretação dos diversos modi significandi dos termos, gozou o seu tempo de ouro nos séculos XIII e XIV.

3 - O Quadrivium

Vou ater-me a uma apresentação ainda mais sumária das quatro artes matemáticas, por causa da sua complexidade e dos limites deste artigo. Algumas observações gerais, porém, bastariam para salientar o essencial.

Estas artes foram chamadas de artes reales, artes do real, quer dizer, não das palavras sobre o real, mas do real mesmo. O mesmo universo que nós acolhemos, elaboramos e exprimimos pelas artes verbais, enumeramos e medimos pelas artes reais. O "triângulo lingüístico" da Gramática, Lógica e Retórica se complementa pelo "quadrado matemático" de Aritmética, Geometria, Astronomia e Música.

O universo em redor de nós exibe pelo menos três polaridades fundamentais: céu e terra (céu no sentido astronômico), números e extensões (ou na língua filosófica: quantidade discreta e quantidade contínua), e a maneira em que eles todos se movem ou não, ou seja, movimento e repouso. Ora, começamos com a Geometria, porque é sobre a terra que passamos a nossa vida. Esta terra precisa ser medida, para construir um santuário ou uma cidade, fixar os campos para Agricultura, fazer uma estrada, determinar fronteiras. Aqui temos a terra, as extensões matemáticas, em repouso.

Mas em cima, o Sol, a Lua e as estrelas todas giram em redor do nosso lar. Eles seguem cursos, se relacionam uns aos outros por ângulos e graus. Aqui temos o céu, as extensões em movimento. A nossa experiência do tempo se mede principalmente segundo estes movimentos: o nascer e o pôr do Sol, o mês (uma unidade basicamente lunar), o ano (uma unidade solar) e assim por diante. A quantidade contínua, no seu aspecto estático e dinâmico: eis o estudo da Geometria e Astronomia.

O mundo, porém, não consta unicamente de extensões, proporções e dimensões. Há coisas nele. Quantas? Começamos a contar, somar, multiplicar, etc. A Aritmética se apresenta: os números em repouso. Mas os números podem também mover-se. Números em movimento - eis a essência da Música: a escala musical, os intervalos, os modos do canto gregoriano e os tons de música moderna.

4 - As artes liberais e a Filosofia

Já desde os primeiros séculos, a Idade Média tinha conhecimento de Aristóteles, mas os escritos acessíveis eram pouquíssimos. Como é sabido, provavelmente poucos conheciam mais do que as suas primeiras duas obras lógicas, as Categorias e o Sobre a interpretação, e só referências oblíquas às outras. Ademais, Aristóteles mesmo não seguia o esquema das sete artes liberais, mesmo quando toda a sua obra foi levada em consideração. A Gramática ele pressupõe, mas não trata ex professo. A sua Retórica parece mais como uma extensão da sua Lógica, estudando a Retórica antes como uma forma de argumentação do que um estudo com o alcance enorme que ganhou em Cícero e Quintilião. E sobre Matemática, Aristóteles não escreveu praticamente nada. Para ele, as artes matemáticas têm em qualquer caso um valor totalmente subordinado às ciências físicas do real.

Sendo assim a sua postergação do régime quadrivial e trivial, um confronto com toda a largura e profundeza dos seus tratados sistemáticos, como aconteceu só nos séculos XII e XIII, graças às traduções secundárias do Árabe, e finalmente do próprio Grego, só podia significar um desafio bastante ameaçador para a pedagogia tradicional das sete artes liberais.

As primeiras reações das autoridades universitárias a este sistema aparentemente completo e abrangente de Filosofia eram, como sabemos, em grande parte negativas. Diversas condenações da parte das universidades nas primeiras décadas do século XIII pareciam ameaçar o aristotelismo com a anatematização. Mas precisamente o teor de respeito diante da verdade objetiva, que as próprias artes liberais tinham cultivado, gerava uma abertura intelectual entre os professores e alunos, que garantia por fim um acolhimento generoso ao corpus aristotelicum (sem minimizar as controvérsias tenazes entre o aristotelismo e o agostinismo.

A única arte liberal que achou nas obras de Aristóteles um tratamento extensivo era a Lógica. Quando, nos meados do século XII, as Primeiras Analíticas e as Segundas Analíticas foram traduzidas, toda uma teoria da ciência se apresentava pela primeira vez à mente medieval, e a mera classificação e organização dum patrimônio dava lugar a uma intuição na própria natureza da ciência. A aprendizagem de uma série de artes para a leitura dos dois "livros" da Bíblia e da Natureza começou a ocupar uma posição cada vez mais relativizada em face da teoria aristotélica da natureza da Filosofia especulativa e prática. Aqui compareceram a Filosofia da Natureza, a Psicologia, a Metafísica, a Ética, a Política, etc., cada uma assumindo a sua posição no currículo dos alunos.

Mesmo a Teologia, até então definida quase totalmente pela arte de glosar e comentar a Sagrada Escritura, de organizar em sententiae as opiniões dos Padres e de escrever homilias, assumiu ambições cada vez mais "científicas" para sua interpretação da revelação sobrenatural.

Que vai ficar das artes liberais neste brave new world de ciência peripatética? A Faculdade das Artes vai continuar a chamar-se assim pelo resto da Idade Média. E mesmo no mundo moderno, a Faculdade das Artes e Ciências vai continuar, em muitas universidades contemporâneas, a tradição de prestar os recursos básicos de uma educação propedêutica, capacitando os alunos a "ler" as ciências especializadas da pós-graduação.

A Gramática medieval continuou desenvolvendo-se independentemente dos debates universitários sobre aristotelismo e agostinismo. O próprio estudo humanista das línguas devia mais a esta tradição que seu desprezo do Latim medieval deixa enxergar. A Retórica desenvolveu-se no estudo das letras e de oratória no Renascimento. As artes matemáticas começaram já no século XIV e XV a declarar a sua independência da Filosofia e das artes verbais, encaminhando os primórdios das modernas ciências da Natureza.

Sem a cultura intelectual gerada pelas artes liberais, a recepção de Aristóteles nas universidades medievais teria sido um processo bem mais problemático, e por causa precisamente de um analfabetismo quanto à leitura dos "dois livros" que, na História da Filosofia medieval, prepararam o homem a ver sentido e razão na sua vida, e também ordem e racionalidade no mundo que o cercava. Sem dúvida, nós continuamos lendo o livro da Natureza hoje, mas com os novos óculos de uma ciência cada vez mais subordinada às exigências inconstantes da tecnologia. E as artes verbais perdem-se facilmente em Filologia e cálculos logísticos. Um remédio para esta perda do espirita "sinóptico" (para falar com Platão) seria a volta a urna leitura (esta vez literalmente falando!) dos livros da nossa tradição grego-romana e judaico-cristã. Sem a orientação intelectual oferecida por estes clássicos seminais, ao texto da nossa leitura da realidade, vai faltar freqüentemente, e às vezes tragicamente, o contexto.


Notas:

[*] A forma original deste artigo foi ministrada como conferência na III Semana de Estudos Medievais na Universidade de Brasília, em outubro, 1996. Esta revisão se dirige aos leitores de uma cultura mais filosófica.

[**] Universidade de Brasília.

[1] ver Republica, 1. VII.

[2] Filebus 16 c, 5-9.

[3] cf. J. Ritter, Aristoteles und die Vorsokratiker, p. 35.

***

Leia mais em O que é educação clássica

Leia mais em A verdadeira filosofia da educação



Curta nossa página no Facebook Summa Mathematicae

Nossa página no Instagram @summamathematicae e YouTube.


 

Total de visualizações de página