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Sobre o Ensino em S. Tomás de Aquino

Santo Tomás de Aquino, escrevendo em
frente do crucifixo, por Antonio Rodríguez

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Tempo de leitura: 46 minutos. 

Texto retirado do livro Sobre o ensino (De magistro) e Os sete pecados capitais, de S. Tomás de Aquino, com tradução e estudos introdutórios por  Luiz Jean Lauand, Editora Martins Fontes, 2000.

Apresentação

Apresentamos ao leitor dois importantes estudos de Tomás de Aquino: um dedicado ao ensino, outro à ética: Sobre o ensino e Os sete pecados capitais.

No estudo e apêndices que os acompanham, mais do que esmiuçar as teses que o leitor irá encontrar no próprio texto de Tomás, optamos por privilegiar, em cada caso, o referencial mais amplo que permita situar - no quadro de sua filosofia - cada um desses opúsculos do Aquinate: assim, apresentamos os conceitos fundamentais da antropologia e do conhecimento como prólogo ao Sobre o ensino e um enquadramento da ética - em sentenças do próprio Tomás - como Apêndice aos Pecados capitais, além de uma seleção especial de sentenças sobre a inveja e a avareza.

Sobre o ensino, o De magistro, é a questão 11 das Quaestiones Disputatae de Veritate [1] de Tomás e segue o sistema geral dessas aulas do Aquinate (por essa razão, retomamos em sua introdução algumas considerações que tecíamos ao apresentar, para esta mesma coleção, as questões sobre a verdade e o verbo [2]).

O opúsculo Os sete pecados capitais compõe-se de uma seleção de trechos das obras Questões disputadas sobre o mal [3] e da Suma teológica.

LUIZ JEAN LAUAND
março de 2000


Introdução

Sendo o De magistro de Tomás uma das questões disputadas sobre a verdade (a de nº 11), comecemos por relembrar o papel que essas questões tinham na universidade medieval .

A quaestio disputata, essência da universidade medieval

Da primeira regência de Tomás na Universidade de Paris procedem as Quaestiones Disputatae de Veritate. Essas questões foram disputadas em Paris de 1256 a 1259: as questões 1 a 7 (sobre a verdade; o conhecimento de Deus; as idéias divinas; o verbum; a Providência Divina; a predestinação e o "livro da vida") são do ano letivo 1256-7; as de 8 a 20 (sabedoria angélica; comunicação angélica ; a mente como imagem da Trindade; o ensino; a profecia como sabedoria; o êxtase; a fé; a razão superior e a inferior; a sindérese; a consciência; o conhecimento de Adão no Paraíso; o conhecimento da alma depois da morte e o conhecimento de Cristo nesta vida), de 1257-8, e as de 21 a 29 (a bondade; o desejo do bem e a vontade; a vontade de Deus; o livre-arbítrio; o apetite dos sentidos; as paixões humanas; a gra­ça; a justificação do pecador e a graça da alma de Cristo), de 1258-9.

A quaestio disputara, como bem salienta Weisheipl [1], integra a própria essência da educação escolástica: "Não era suficiente escutar a exposição dos grandes livros do pensamento ocidental por um mestre; era essencial que as grandes idéias se examinassem criticamente na disputa." E a disputatio, na concepção de um filósofo da universidade como Pieper, transcende o âmbito organizacional do studium medieval e chega até a constituir a própria essência da universidade em geral [2].

Para que o leitor possa bem avaliar o significado de uma quaestio disputara em S. Tomás, apresentaremos o modus operandi dessas quaestiones, procurando também indicar a ratio pedagógica que as informa.

Uma quaestio disputata está dedicada a um tema - como por exemplo a verdade ou o verbum - e divide-se em artigos, que correspondem a capítulos ou aspectos desse tema . Naturalmente, por detrás da "técnica pedagógica" está um espírito: a quaestio disputata, como analisaremos em tópico ulterior, traduz a própria idéia de inteligibilidade - devida ao Verbum (o Logos divino, o Filho) -, ao mesmo tempo que a de incompreensibilidade, a de pensamento "negativo" , também fundada no Verbum...

Procurando veicular, operacionalizar em método a vocação de diálogo polifônico - que constitui a razão de ser da universitas -, primeiro enuncia-se a tese de cada artigo (já sob a forma de polêmica: "Utrum... [3]") e a quaestio começa por um videtur quod non... ("Parece que não..."), começa por dar voz ao adversário pelas obiectiones, objeções à tese que o mestre pretende sustentar. 

Já aí se mostra o caráter paradigmático e atemporal (e atual...) da quaestio disputara, a essência da universidade, assim discutida por Pieper: "Houve na universidade medieval a instituição regular da disputatio, que, por princípio, não recusava nenhum argumento e nenhum contendor, prática que obrigava, assim, à considera­ção temática sob um ângulo universal. Um homem como Santo Tomás de Aquino parece ter considerado que precisamente o espírito da disputatio é o espírito da universidade." [4] E prossegue: "O importante é que, por trás da forma externa de disputa verbal regulamentada, a disputa - com toda a agudeza de um confronto real - dá-se no elemento do diálogo. Este ponto decisivo é hoje, para a universidade, mil vezes mais importante do que pode ter sido alguma vez para a universidade medieval."

Nos textos de Tomás, após as objeções, levantam-se contra-objeções (sed contra, rápidas e pontuais sentenças colhidas em favor da tese do artigo; ou algumas vezes in contrarium, que defendem uma terceira posição que não é a da tese nem a das obiectiones). Após ouvir estas vozes, o mestre expõe tematicamente sua tese no corpo do artigo, a responsio (solução) . Em seguida, a responsio ad obiecta, a resposta a cada uma das objeções do início.

Torna-se dispensável dizer que não se entende por quaestio disputata nada que tenha que ver com sutilezas enfadonhas e estéreis. Por outro lado, o que afirmamos acima sobre o diálogo e a impossibilidade de dar resposta cabal, de esgotar um assunto filosófico não significa, evidentemente, que na quaestio disputata não se deva tomar uma posição e defendê-la: não se trata, de modo algum, de agnosticismo. Podemos conhecer a verdade, mas não podemos esgotá-la. Posto que o homem pode conhecer a verdade (e na medida em que o pode fazer), a discussão filosófica chega a uma responsio, a uma certa determinatio.

Finalmente, dentre as características da quaestio disputata de S. Tomás de Aquino, destaquemos a de dar voz ao adversário com toda a honestidade, formulando sem distorções, exageros ou ironia (o que, em geral, nem sempre ocorre nas polêmicas e debates de hoje), as posições contrárias às que se defendem. Nesse sentido, Pieper faz notar que em S. Tomás a objetividade chega a tal ponto que o leitor menos avisado pode tomar como do Aquinate aquilo que ele recolhe dos adversários a modo de objeção. A propósito [5], é o caso do tão celebrado Carl Prantl, que interpretou como se fosse a posição de Tomás objeções brilhantemente por ele apresentadas às suas próprias teses.

O De magistro e a Antropologia Filosófica

Na "questão disputada" De magistro, Tomás de Aquino expõe sua concepção de ensino/aprendizagem em oposição às doutrinas dominantes da época. Por detrás de questões pedagógicas encontram-se, na verdade, concepções filosóficas - a Filosofia da Educação é inseparável da Antropologia Filosófica - e teológicas.

A antropologia de Tomás - revolucionária para a época - afirma o homem em sua totalidade (espiritual, sim, mas de um espí­rito integrado à matéria) e está em sintonia com uma teologia (também ela dissonante para a época) que, precisamente para afirmar a dignidade de Deus criador, afirma a dignidade do homem e da criação como um todo: material e espiritual. Sugestiva nesse sentido é, por exemplo, a luta que Tomás teve de travar na Universidade de Paris para defender a tese da unicidade da alma no homem: a mesma e única alma é responsável pelos atos mais espirituais e mais prosaicos no homem (a teologia dominante - pensando dar glória a Deus - separava "a alma espiritual" das "outras duas" - sensitiva e vegetativa - em favor de uma antropologia "espiritualista" e desencarnada).

Nesse quadro de oposição a um cristianismo demasiadamente espiritualista e que pretende exagerar o papel de Deus e aniquilar a criatura, compreendem-se as colocações de Tomás e até mesmo os artigos selecionados para a questão: art. 1 - Se o homem - ou somente Deus - pode ensinar e ser chamado mestre; art. 2 - Se se pode dizer que alguém é mestre de si mesmo; art. 3 - Se o homem pode ser ensinado por um anjo; art. 4 - Se ensinar é um ato da vida ativa ou da vida contemplativa.

Não é de estranhar, portanto, que Tomás comece discutindo a objeção: "Se o homem - ou somente Deus - pode ensinar e ser chamado mestre" (o fato curioso é que Tomás discuta isso precisamente como professor em sala de aula...). O exagero do papel de Deus - no caso em relação à aprendizagem - é por conta daquela teologia que considera tão sublime a intelecção humana que, em cada caso que ela ocorre, requereria uma iluminação imediata de Deus . Tomás, em seu realismo, admite uma iluminação de Deus, mas esta iluminação Deus no-la deu de uma vez por todas, dotando-nos da "luz natural da razão", aliás, dependente das coisas mais sensíveis e materiais...

Assim, no debate acadêmico no qual se gera o De magistro encontraremos - uma e outra vez - a objeção com que se abre o trabalho: "Diz a Escritura (Mt 23, 8): 'Um só é vosso mestre' (...) ao que diz a Glosa [6]: 'não atribuais a homens a honra divina e não usurpeis o que é de Deus'."

Para bem entender este e outros temas do De magistro é oportuno oferecer um resumo dos conceitos básicos da antropologia filosófica de Tomás (como se sabe, em boa medida tomada de Aristóteles).

O homem e a alma em Tomás

A palavra-chave para entendermos a doutrina de Tomás sobre o homem é "alma" , que, classicamente, designa o princípio da vida. Chamemos, desde já, a atenção para o fato de que, ao longo deste estudo, aparecerão outras palavras cujo sentido filosófico clássico não coincide exatamente com o sentido usual que lhes damos hoje: "potência", "ato", "matéria", "forma" etc.

O referencial a que Tomás se remete nestes temas é a doutrina basicamente estabelecida por Aristóteles em seu Peri PsychéSobre a alma. A "psicologia" de Aristóteles emergiu como uma reação de equilíbrio e moderação ante o exagerado espiritualismo da antropologia de Platão (que tem encontrado sucessivas versões tanto no Ocidente como no Oriente...). O espiritualismo platônico é uma certa tomada de posição radicalmente dualista diante da questão: "O que é o homem?". Platão situa espírito e matéria como realidades justapostas, disjuntas, em união fraca e extrínseca no homem. O homem, para Platão, seria primordialmente espírito (e o corpo seria, nessa visão, algo assim como um mero cárcere do espírito) [7].

Do ponto de vista aristotélico, esse dualismo platônico atenta contra a intrínseca unidade substancial do homem, ao desprezar a dimensão material do ser humano, exagerando a separação entre o espiritual e o corpóreo. E é esta unidade o que, afinal, permite a cada homem proferir o pronome "eu", englobando tanto o espírito quanto o corpo. Para os platônicos (e para a teologia dominante em Paris no tempo de Tomás), o homem seria essencialmente espírito, em extrínseca união com a matéria: a matéria não faria parte da realidade propriamente humana. Já para Tomás há, no homem, uma união intrínseca de espírito e matéria [8].

Do ponto de vista de Aristóteles e Tomás, a questão "O que é o homem?" é inquietante porque a realidade humana se apresenta como fenômeno muito complexo, integrando em si a unidade harmônica de espírito e matéria. Assim, a dimensão corporal é plenamente afirmada e reconhecida como integrante da natureza humana: o fato, afinal evidente, de que o homem é um animal , compartilhando uma dimensão material - um corpo, uma bioquímica... - com os outros animais [9]. Mas, se por um lado afirma-se a realidade corpórea, por outro afirma-se, com igual veemência, que há também, no homem, uma transcendência do âmbito meramente biológico: certas características que, classicamente, têm sido chamadas de espirituais, ligadas - como veremos mais adiante - às duas faculdades espirituais da alma humana : a inteligência e a vontade.

Potência-Ato. Matéria-Forma. Alma

O realismo aristotélico é considerado um dualismo equilibrado e apresenta uma grande unidade em sua concepção teórica, uma unidade centrada no conceito de "alma". É muito importante destacar essa unidade. Para Aristóteles e para Tomás a filosofia do homem é uma extensão da filosofia do ser vivo em geral, e esta, por sua vez, continua a mesma linha de análise filosófica do ser material em geral. Afirma-se pois, plenamente, a realidade espiritual, mas em articulação, em íntima conexão com a matéria.

A filosofia de Tomás reconhece uma impressionante unidade no mundo material: a mesma estrutura de análise filosófica do ente físico em geral, de uma pedra, digamos, é aplicada a todos os viventes e, também, ao homem, que é um ente espiritual.

Não é o caso aqui de examinarmos com detalhes técnicos os conceitos filosóficos que integram essa análise. Em todo caso, vale a pena mencionar, brevemente, alguns desses conceitos como: potência e ato; matéria e forma; alma e espírito.

Potência e ato são dois modos distintos e fundamentais de ser. Sendo modos fundamentais de ser são, a rigor, indefiníveis. Aristóteles contenta-se com descrevê-los: potência é a possibilidade, a potencialidade de vir a ser ato. E o ser-em-ato é aquele que propriamente é, enquanto o ser-em-potência pode vir a ser ato. O exemplo clássico é o da semente (potência) que pode vir a ser árvore (a árvore real é o ato contido na potência, na potencialidade da semente). Encontramos, ainda hoje, vestígios desse uso aristotélico da palavra "ato". Nesse sentido, é interessante notar o tributo que a língua inglesa paga a Aristóteles : para referir-se ao que realmente é, à realidade de fato, o inglês diz actually, que significa, ao pé da letra, o advérbio do ato, atualmente, significando: de verdade, de fato. E quando, em português, dizemos que algo é exato, estamos pensando em ex-actu, ex - a partir de / - actu, a realidade [10]

Para a análise do ser vivo (como para a análise do ser físico em geral) Tomás, seguindo Aristóteles, aplica o binômio ato-potência, sob a formulação matéria-forma. Devemos pensar estas palavras "matéria" e "forma" não no sentido usual que lhes damos hoje, mas num outro sentido, naquele que recebem no quadro da filosofia aristotélica da natureza, denominada hilemoifismo (literalmente: matéria-forma; hilé-morjé).

Assim, matéria ou matéria-prima [11] deve ser entendida simplesmente como potencialidade, como pura possibilidade de ser ente físico. Uma potência que se vê realizada (atualizada) pela união com o ato que é a forma (substancia [12]) . Desse modo, um ser físico qualquer, digamos, um diamante é composto de maté­ria e forma, em união intrínseca : a matéria-prima é a pura potência de ser ente físico e a forma substancial é o ato primeiro, fundamental, que determina a atualização dessa potência. Assim, se o diamante é um ser físico, é porque tem possibilidade, potencialidade de sê-lo (e assim todo ser físico tem matéria-prima, potencialidade de ser um ente físico).

Essa potencialidade da matéria-prima é realizada, atualizada, recebe seu ato, sua realidade, pela forma substancial: aquele componente que faz com que o diamante seja diamante e não, digamos, um gato ou uma orquídea . O diamante, a orquídea, o gato e o homem têm algo em comum: todos são seres físicos que se constituem, portanto, da pura potencialidade indeterminada que é a matéria-prima. Mas são distintos pela forma que cada um tem e que faz com que cada um seja o que é: o diamante é diamante porque tem forma substancial de diamante; Mimi é gato porque tem forma substancial de gato; João é homem porque tem forma substancial de homem [13].

E é tal a unidade de sua consideração do cosmos, que Tomás emprega o mesmo binômio matéria-forma para indicar tanto a composição substancial de uma pedra quanto a de um homem, que é um ser espiritual.

Nesse contexto é fácil entender o conceito de alma. Alma é pura e simplesmente uma forma: a forma substancial do vivente. Certamente, a alma é uma forma muito especial (daí que também receba um nome especial), mas é uma forma [14].

Sempre que houver vida - e a vida caracteriza-se por um modo especial de interagir com o exterior a partir de uma interioridade - essa vida implica uma especialidade de forma do vivente: a alma. Desse modo, pode-se falar em alma de um vegetal, alma de uma samambaia, em alma de uma formiga ou de um cão e, também, em alma humana (neste caso, trata-se de uma alma espiritual) . A alma (como, aliás, todas as formas substanciais) é um princípio de composição substancial dos viventes. Ou melhor, um co-princípio (em intrínseca união com o outro co-princí­pio: a matéria-prima). É pela alma que se constitui e se integra o vivente enquanto tal , e ela é também a fonte primeira de seu agir, de suas operações.

Estas são, aliás, as duas definições que Aristóteles e Santo Tomás dão da alma.

1ª definição: Alma é o ato primeiro do corpo natural organizado (Tomás de Aquino, De anima II, 1, 412, a 27, b.S).

Esta definição diz, pura e simplesmente, que a alma é forma substancial para o vivente: o princípio ativo constituinte da unidade e do ser do vivente.

2ª definição: Alma é aquilo pelo que primeiramente vivemos, sentimos, mudamos de lugar e entendemos... (Tomás de Aquino, De anima II, 2, 414, a 12).

Também esta segunda definição caracteriza a alma como forma substancial, mas, neste caso, enfatizando a forma substancial enquanto fonte radical das operações do sujeito. O cão late ou morde não porque tem boca, sim, mas em última instância, porque é vivo, porque tem forma substancial, alma de cão.

A alma e suas potências: os fatores na operação

A alma não opera diretamente, e é por esta razão que Aristó­teles diz: "A alma é aquilo pelo que primeiramente sentimos, mudamos de lugar etc." "Primeiramente" , aqui, significa que não é a alma diretamente que vê, anda, conhece ou quer, mas o vivente opera tudo isto por meio das potências ("potências" aqui, não no sentido entitativo, mas no sentido de potências operativas: faculdades) da alma: a potência visual, a potência motriz etc.

É conveniente, portanto, distinguir os diversos fatores presentes numa operação qualquer de um vivente. O mesmo vivente pode estar exercendo ou não tal operação e, no entanto, está continuamente vivo, está sendo informado pela alma. Daí que seja necessário distinguir a alma (substancial, sempre atuante) de suas potências operativas (que podem estar operando ou não). A potência visual ou a motriz não estão atuando quando, por exemplo, estou dormindo, mas a alma, princípio vital, está sempre presente, como forma substancial do vivente.

Enumeremos os diversos fatores que concorrem nas opera­ções do vivente.

1) O próprio vivente. O sujeito, João, que faz esta ou aquela operação (por exemplo, ver ou ouvir).

2) A alma. Se João realiza tais e tais operações é porque é vivente e, em última instância, porque é dotado de alma. Se ele fosse pedra, não veria nem ouviria.

3) As potências da alma. Pois não é a alma diretamente que vê , ouve, se locomove etc. Ela realiza estas operações por meio de suas potências. A alma é dotada de uma potência visual, que realiza o ato de ver; de uma potência auditiva , que realiza o ato de ouvir etc.

4) Os atos das potências. Sabemos que a alma é dotada de diferentes faculdades, precisamente porque são distintos os atos que o vivente realiza: o ato de ver é diferente do de ouvir; pensar é distinto de querer etc.

5) Os objetos (formais) dos atos. Podemos dizer que se esses atos (de ver e de ouvir, por exemplo) são diferentes é porque são diferentes seus objetos: o objeto do ato de ver é a cor; o objeto do ato de ouvir é o som.

6) O objeto material. Claro que o mesmo objeto material - uma fogueira, por exemplo - pode ser apreendido por diversas potências, mas cada uma o apreende pelo seu particular objeto formal (a potência visual capta a cor do fogo; a auditiva , seu crepitar; o olfato se ocupa do cheiro de queimado etc.).

Os três graus de vida. Espírito e inteligência no homem

Vida é a capacidade de realizar operações com espontaneidade e imanência, portanto, por iniciativa própria, a partir de si mesmo e operações que terminam no próprio sujeito.

Três graus de vida correspondem a três graus de espontaneidade e de imanência na realização das operações. E correspondem também a três tipos de alma: vegetativa, sensitiva e intelectiva.

Ao primeiro grau de vida - a vida vegetativa - corresponde um ínfimo grau de espontaneidade e imanência: o vegetal é senhor apenas da mera execução da operação: do seu "nutrir-se", do seu crescimento, de sua reprodução.

Note-se de passagem que, na medida em que subimos na escala da vida, ao mesmo tempo que a alma vai crescendo em espontaneidade e imanência ocorre também uma ampliação de seu campo de relacionamento: desde o limitado meio que circunda uma planta ao mundo sem fronteiras do espírito humano.

A alma em cada grau de vida é - como princípio vital - única e realiza todas as funções dos graus inferiores: a alma espiritual responsável pelas delicadas poesias que João da Silva compõe é a mesma e única que é o princípio de operações vegetativas, como a circulação de seu sangue ou sua digestão.

Para além da mera execução das operações - que caracteriza a vida vegetativa -, a alma sensitiva do animal é responsável também - e isto diferencia o animal da planta - pelo sentir, pelo conhecimento sensível: pela apreensão (cognoscitiva) de realidades concretas e particulares que o circundam.

Assim, pelo conhecimento, que é claramente um fator importante em suas operações, o animal é mais dotado de espontaneidade e imanência do que o vegetal : o gato Mimi percebe este pires de leite, apreende-o com seus sentidos, e este conhecimento é responsável pelo seu movimento em direção a ele. Assim, os animais têm uma dimensão de vida superior à das plantas: são mais donos de suas operações e de suas interações com o ambiente, porque são capazes de sentir, isto é, são capazes de conhecimento de realidades sensíveis, de conhecimento de realidades particulares e concretas.

Essas faculdades do sentir ou faculdades do conhecimento sensível são os sentidos: a visão, a audição etc. [15]. Estão presentes nos animais e no homem. O conhecimento dos outros animais, porém, não transcende o âmbito do sensível, do concreto: esta cor, este cheiro, este som...

No caso do homem (que é o caso da vida intelectiva), sua alma, além das características próprias e peculiares, realiza todas as operações dos graus inferiores de vida. A alma humana não só é responsável pela realização das operações ligadas às faculdades da vida vegetativa - a circulação do sangue, a digestão etc. -; a mesma e única alma realiza também as operações sensitivas (pró­prias da vida animal, como o conhecimento sensível) e, além de tudo isto, essa mesma alma irrompe numa dimensão nova: a do espírito.

A alma humana está dotada de duas potências espirituais: a inteligência e a vontade.

Para nossa questão, interessa-nos especialmente a inteligência. Se o conhecimento sensível versa sobre a realidade particular e concreta (este vermelho, este sabor salgado, esta forma triangular etc.), a inteligência humana transcende, supera esse âmbito do particular, do material e do concreto e pode versar sobre o universal. A geometria, por exemplo, como conhecimento intelectual humano, não se ocupa desta forma triangular do recorte de papel que tenho diante dos olhos; ela trata, sim, do triângulo abstrato. E diz: "A soma dos ângulos internos do triângulo vale dois retos. "Destaquemos, nessa afirmação, seu caráter abstrato e universal: pouco importa se o triângulo é azul ou amarelo, se é acutângulo, retângulo ou obtusângulo; a inteligência versa sobre "o triângulo". E para "o triângulo": "A soma dos ângulos internos é dois retos. " Já a medicina estuda hepatologia, independentemente deste ou daquele fígado concreto.

Esta capacidade da inteligência de apreender o universal e abstrato abre um mundo sem fronteiras para o conhecimento: ele não se limita à realidade concreta que o circunda, mas atinge todo o ser. E precisamente essa abertura para a totalidade do real é o que se chama de espírito. Espírito é a capacidade de travar relações com a totalidade do real. Daí que Tomás repita, uma e outra vez, a sentença aristotélica: "Anima est quodammodo omnia", "A alma humana, sendo espiritual, é, de certo modo, todas as coisas"...

Podemos agora, com base na definição de inteligência como faculdade de conhecimento espiritual do homem, rever, com luzes novas, os conceitos básicos de Tomás.

Contra todo dualismo que tende a separar exageradamente no homem a alma espiritual e a matéria, Tomás afirma a intrínseca união, a substancial união de ambos os princípios: a alma espiritual, como forma, requer - em tudo e por tudo - a integração com a matéria. Pense-se, por exemplo, em todo o tema - hoje mais agudo e atual do que nunca - das doenças psicossomáticas: da relação, digamos, entre um desgosto ou uma crise existencial, por um lado, e uma gastrite ou uma úlcera, por outro. Mas o exemplo mais veemente dessa integração é encontrado na discussão do objeto próprio da inteligência humana.

Como dizíamos, não operamos diretamente pela alma, mas por meio de suas potências operativas. Ora, cada potência da alma é proporcionada a seu objeto: a potência auditiva não capta cores, a potência visual não atua sobre aromas.

Dizer que a inteligência é uma potência espiritual é dizer que seu campo de relacionamento é a totalidade do ser: todas as coisas - visíveis e invisíveis - são inteligíveis, "calçam" bem, combinam com a inteligência. Contudo, a relação da inteligência humana com seus objetos não é uniforme. Dentre os diversos entes e modos de ser, há alguns que são mais direta e imediatamente acessíveis à inteligência. É o que Tomás chama de objeto próprio de uma potência: aquela dimensão da realidade que se ajusta, por assim dizer, "sob medida" à potência (ou, melhor dizendo, é a potência que se ajusta àquela realidade). Não que a potência não incida sobre outros objetos, mas o objeto próprio é sempre a base de qualquer captação: se pela visão captamos, por exemplo, nú­mero e movimento (e vemos, digamos, sete pessoas correndo), é porque vemos a cor, objeto próprio da visão. Ora, próprio da inteligência humana - potência de uma forma espiritual acoplada à matéria - é a abstração: seu objeto próprio são as essências abstratas das coisas sensíveis. Próprio da inteligência humana é apreender a idéia abstrata de "cão" por meio da experiência de conhecer pelos sentidos diversos cães: Lulu, Duque e Rex...

Assim, Tomás afirma: "O intelecto humano, que está acoplado ao corpo, tem por objeto próprio a natureza das coisas existentes corporalmente na matéria. E, mediante a natureza das coisas visíveis, ascende a algum conhecimento das invisíveis" (S. Th. I, 84, 7). E nesta afirmação, como dizíamos, espelha-se a própria estrutura ontológica do homem: mesmo as realidades mais espirituais só são alcançadas, por nós, através do sensível. "Ora - prossegue Tomás -, tudo o que nesta vida conhecemos, é conhecido por comparação com as coisas sensíveis naturais." Esta é a razão pela qual o sentido extensivo e metafórico está presente na linguagem de modo muito mais amplo e intenso do que, à primeira vista, poderíamos supor.

Contra todo dualismo que tende a separar exageradamente no homem a alma espiritual e a matéria, Tomás afirma a intrínseca união e mútua ordenação de ambos os princípios. Contra todo "espiritualismo", Tomás conclui: "É evidente que o homem não é só a alma, mas um composto de alma e de corpo" (Summa theologica I, 75, 4). E esta união se projeta na operação espiritual que é o conhecimento: "A alma necessita do corpo para conseguir o seu fim, na medida em que é pelo corpo que adquire a perfeição no conhecimento e na virtude" (C.G. 3, 144.).

Para Tomás o conhecimento intelectual (abstrato) requer o conhecimento sensível. É sobre os dados do conhecimento sensí­vel que atua o intelecto, em suas duas funções: intelecto agente e paciente.

A seguir apresentaremos um resumo tipificado (com as limitações que se dão nesses casos...) de como ocorre uma apreensão intelectual: o sujeito cognoscente está diante de um objeto determinado, digamos, João diante de um gato, Mimi. O que se conhece, segundo Tomás, é a própria realidade (ainda que para isso sejam necessários certos intermediários: as espécies...). Na passagem da impressão sensível para a idéia abstrata, o intelecto vai exercer duas funções: a de intelecto agente e a de intelecto paciente (ou passivo). Por isso, Tomás compara o intelecto a um olho que emite luz sobre aquilo que ele mesmo vê.

Todo conhecimento começa pelos sentidos: uma vez que os sentidos apreendem uma imagem (imagem em qualquer dimensão sensível, não só visual, mas também auditiva etc.), essa imagem assim interiorizada (que recebe o curioso nome de "fantasma") é oferecida ao intelecto (agente) para que - para além das impressões sensíveis (a determinada cor, aspecto, cheiro etc. deste gato concreto) - torne "visível" sua essência abstrata de gato. Nesse sentido, um filósofo contemporâneo, ]ames Royce, compara a ação do intelecto agente a um tubo emissor de raios X que torna visí­vel a estrutura óssea (na comparação: a essência) subjacente à pele (comparada aos aspectos sensíveis): esta é visível em nível de luz normal (conhecimento sensível); aquela (a essência), em nível de raios X (na comparação: o conhecimento intelectual). Esse "fantasma" despojado de suas características particularizantes [16], abstraído, é oferecido ao intelecto passivo (que só é passivo no sentido de que depende da ação do intelecto agente), para que produza o conceito. Na metáfora, o intelecto paciente poderia ser comparado ao filme virgem de raios X (com a ressalva de que o filme é totalmente passivo, enquanto o intelecto reage ativamente para formar o conceito) . O conceito, por sua vez, é meio para a união com o próprio objeto. O intelecto agente está assim ligado à atividade de aquisição do conhecimento; o paciente, ao estado de saber.

O conhecimento é assim uma apropriação imaterial, intencional [17] de formas (acidentais ou substanciais) sensíveis ou não, pelas quais o sujeito se une à própria realidade do objeto (que tem a forma materialmente, constituindo-o como tal ente). A potência intelectiva de posse de formas está in-formada, conhece.

A segunda potência espiritual: a vontade

Mas o homem - tal como os outros animais - não é só inteligência. Há nele, além disso, uma dinâmica , um tender à posse efetiva (e não meramente cognoscitiva) de objetos, e isto é o que se chama, classicamente, apetite. Um animal, um cachorro, por exemplo, não só tem um conhecimento, digamos, de um osso (conhecimento que, no caso do animal, não supera o âmbito do sensível, do particular, do concreto), mas tende a esse osso realmente, tende à posse efetiva do osso: é o que, como dizíamos, se chama apetite (um apetite que, no caso dos animais, está limitado também ao âmbito do sensível, do particular, do concreto).

Apetite é a tendência a aproximar-se do bem (daquilo que o conhecimento apresenta como bem) e afastar-se do mal. Naturalmente, o apetite está ligado ao conhecimento e dele decorre: porque farejou o osso é que o cachorro procura roê-lo; porque viu o lobo é que a ovelha foge... Ora, assim como no homem há, além do conhecimento sensível um conhecimento intelectual, assim também, além do apetite sensível, estamos dotados de uma outra potência apetitiva que se articula com o conhecimento intelectual: é a vontade. A vontade é, pois, a potência apetitiva espiritual, o apetite que decorre do conhecimento intelectual. Esta é a razão pela qual podemos nos motivar não só pela obtenção de uma realidade particular e concreta, digamos, um sorvete de creme, mas também ser motivados por: "a justiça", "a dignidade", "o bem", "os direitos do homem", "a honra" etc. Se o objeto formal de todo apetite é o bem, o objeto formal da vontade, enquanto apetite intelectual, é o bem intelectualmente conhecido como tal.

O problema do ensino no De magistro

O problema do ensino, como não poderia deixar de ser, é proposto por Tomás nos quadros de sua antropologia e doutrina sobre o conhecimento.

A própria palavra "educação", ainda que não apareça em Tomás, é como que sugerida diversas vezes em suas análises: trata-se de um eduzir o conhecimento em ato a partir da potência: "scientia educatur de potentia in actum (art. 1, obj. 10); a mente extrai o ato dos particulares dos conhecimentos universais (ex universalibus cognitionibus mens educitur - art. 1, solução); leva ao ato (educantur in actum - art. 1, ad 5) [18].

Ensinar é, pois, uma edução do ato; uma condução da potência ao ato que só o próprio aluno pode fazer. Tomás está distante de qualquer concepção do ensino como transmissão mecâ­nica; o professor, tudo o que faz é en-signar (insegnire), apresentar sinais para que o aluno possa por si fazer a edução do ato de conhecimento, no sentido da sugestiva acumulação semântica que se preservou no castelhano: enseñar (ensinar/mostrar): o mestre mostra! Nesse contexto, é altamente sugestiva a genial comparação da aprendizagem com a cura e a do professor com o médico, no art. 1.

Tomás, ainda no art. 1 (solução) , contesta algumas concep­ções da época, como a da existência de um único intelecto agente, separado, para todos os homens. Para ele, os que afirmam que Deus é o único agente (também no caso do ensino) atentam contra o plano do próprio Deus, causa primeira que age também pelas criaturas (causas próximas): "Ignoram a dinâmica que rege o universo pela articulação de causas concatenadas: Deus pela excelência de sua bondade confere às outras realidades não só o ser, mas também que possam ser causa."

No art. 2, Tomás aprofunda na discussão do ensino em oposição à aquisição de conhecimentos por si próprio. E conclui afirmando a superioridade do ensino.

O art. 3 é dedicado à curiosa questão da possibilidade de o homem ser ensinado por um anjo: "se bem que só Deus infunda na mente a luz da verdade, o anjo ou o homem podem remover impedimentos para a percepção da luz" (Em contr. 6). E estuda também de que formas o homem pode ser ensinado por um anjo (o anjo, ao contrário do homem, não raciocina - o intelecto angé­lico atinge diretamente o conhecimento e não precisa dos enlaces lógicos e dos silogismos, que classicamente se chamam razão).

No art. 4, Tomás mostra o caráter, ao mesmo tempo ativo e contemplativo, do ensinar

Cronologia

Contexto em que ocorre o nascimento de Tomás

c. 1170. Nascimento de São Domingos em Caleruega (Castela).

1182. Nascimento de Francisco de Assis. Francisco e Domingos irão fundar, no começo do séc. XIII, as ordens mendicantes: franciscanos e dominicanos. As ordens mendicantes, voltadas para a vida urbana, e, posteriormente, para a Universidade, sofrerão duras perseguições em Paris.

c. 1197. Nascimento de Alberto Magno, um dos primeiros grandes pensadores dominicanos, mestre de Tomás.

1210. Primeira proibição eclesiástica de Aristóteles em Paris.

1215. Estatutos fundacionais da Universidade de Paris. Inglaterra: Carta Magna.
Fundação da Ordem dos Pregadores.

1220. Coroação do imperador Frederico II.

1224-5. Nascimento de Tomás no castelo de Aquino, em Roccasecca (reino de Nápoles). Filho de Landolfo e Teodora. Seu pai e um de seus irmãos pertencem à aristocracia da corte de Frederico II.
Frederico II funda a Universidade de Nápoles para competir com a Universidade de Bolonha (pontifícia).

1226. Morte de São Francisco de Assis.

Infância e adolescência no Reino de Nápoles

1231. Tomás é enviado como oblato à abadia de Monte Cassino (situada entre Roma e Nápoles). Monte Cassino, além de abadia beneditina, é também um ponto crucial na geopolítica da região: é um castelo de divisa entre os territórios imperiais e pontifícios.

1239-44. Tomás estuda Artes Liberais na Universidade de Nápoles e toma contato com a Lógica e a Filosofia Natural de Aristóteles, em pleno processo de redescoberta no Ocidente. Conhece também a recém-fundada ordem dominicana, que - junto com a franciscana - encarna o ideal de pobreza e de renova­ção moral da Igreja.

Juventude na Ordem dos Frades Pregadores

1244. Tomás integra-se aos dominicanos de Nápoles, sob forte oposição da família, que tinha para o jovem Tomás outros planos que não o de ingressar numa
ordem de pobreza.

1245-8. Superada a oposição da família, Tomás faz seu noviciado e estudos em Paris. A Universidade de Paris, desde há muito, goza de um prestígio incomparável.

1248. Sexta Cruzada.

1248-52. Tomás com Alberto Magno em Colônia, onde em 1250-1 recebe a ordenação sacerdotal.

1250. Morre Frederico II.

Os anos de maturidade

1252-9. Tomás professor em Paris. Inicialmente (1252-6), como bacharel sentenciário e, de 1256 a 1259, como mestre regente de Teologia. Escreve o Comentário às sentenças de Pedro Lombardo. Em 1259, come­ça a redigir a Summa contra Gentiles. Em defesa da causa das ordens mendicantes, perseguidas, escreve em 1256 o Contra impugnantes Dei cultum et religionem.

1260-1. Tomás é enviado a Nápoles para organizar os estudos da Ordem. Continua a compor a Contra
Gentiles.

1261-4. O papa Urbano IV - pensando numa união entre o Oriente cristão e a cristandade ocidental - leva Tomás por três anos a sua corte em Orvieto.

1264. Tomás conclui a Summa contra Gentiles.

1265. Tomás é enviado a Roma com o encargo da dire­ção da escola de Santa Sabina. Começa a escrever seus comentários a Aristóteles e a Summa theologica. Nascimento de Dante Alighieri.

1266. Nascimento de Giotto.

1267. Um novo papa, Clemente IV, chama Tomás à sua corte em Viterbo, onde permanece até o ano seguinte.

1269-72. Tomás exerce sua segunda regência de cátedra em Paris. Escreve o Comentário ao Evangelho de João. Recrudesce a perseguição contra as ordens mendicantes na Universidade de Paris.

1272-3. Tomás regente de Teologia em Nápoles.

1274. Tomás morre a caminho do Concílio de Lyon.

1277. Condenação, por parte do bispo de Paris, de 219 proposições filosóficas e teológicas (algumas de Tomás) em Paris.

1280. Morte de Alberto Magno.

1323. Tomás é canonizado por João XXII

Notas:

Apresentação

[1] O texto latino de que fundamentalmente nos valemos para essa tradução do De Veritate é o da edição eletrônica feita por Roberto Busa, Thomae Aquinatis Opera Omnia cum hypertextibus in CD-ROM. Milão, Editaria Elettronica Editei, 1992 (Textus Leoninus aequiparatus).

[2] Cf. Tomás de Aquino, Verdade e conhecimento, São Paulo, Martins Fontes, 1999; trad. e estudos introdutórios de Luiz Jean Lauand e M. B. Sproviero. Nessa edição, o leitor encontrará um estudo biobibliográfico sobre Tomás que traz também alguns outros textos do Aquinate (das Questões disputadas sobre a verdade e do Comentário ao Evangelho de João). E em outro volume desta mesma "Coleção Clássicos"- Cultura e Educação na Idade Média, L. J. Lauand (org.) - encontram-se outros quatro pequenos estudos de Tomás de Aquino sobre o amor, o estudo, o bom humor e o reinado de Cristo (comentário ao salmo 2).

[3] O texto latino de que nos valemos para a tradução dos artigos do De Malo é o texto crítico da edição leonina: S. Thomae Aquinatis Doctoris Angelici, Opera Omnia iussu Leonis XIII, P. M. edita, curo et studio fratrum praedicatorum, Romae 1882 ss., reproduzido na edição I vizi capitali (intr., trad. e nota di Umberto Galeazzi), Milão, Biblioteca· Universale Rizoli, 1996. A Summa e as sentenças seguem a edição eletrônica feita por Roberto Busa, Thomae Aquinatis Opera Omnia cum hypertextibus in CD-ROM. Milão, Editoria Elettronica Editel, 1992.

Introdução

[1] Weisheipl, ]ames A. Tomás de Aquino - Vida, obras y doctrina, Pamplona, Eunsa, 1994, p. 235.

[2] Pieper, Abertura para o todo: a chance da Universidade, São Paulo, Apel, 1989, p. 44.

[3] Utrum é o "se" latino que indica uma entre duas possíveis opções (daí neutrum, "nem um nem outro").

[4] Pieper, Abertura..., pp. 44-5.

[5]. Cf. Pieper, Wahrheit der Dinge, Munique, Kösel, 1951, pp. 113 ss.

[6] Entre as autoridades citadas por Tomás está a Glosa. A Glosa - ordinária e interlinear (esta mais breve) - deriva dos ensinamentos de Anselmo de Laon e de sua escola (séc. XII) e utiliza muito material exegético anterior.

[7] Platão chega a admitir a existência de três almas no homem, que correspondem às três funções da mesma e única alma humana na doutrina aristotélica.

[8] União extrínseca é a que se dá, digamos, entre um indivíduo e sua roupa ou entre o queijo e a goiabada; união intrínseca é a que ocorre, por exemplo, entre um objeto e sua cor (a cor não se dá sem o objeto e nem se dá objeto sem cor).

[9] E aqui é interessante notar a força do realismo de Tomás: a própria expressão "outros animais", em suas diversas formas latinas - alia animalia, aliis animalibus etc. - aparece nada menos do que cerca de quatrocentas vezes na obra do Aquinate.

[10] Um terno exato em suas medidas e feitura é um terno feito a partir da realidade do sujeito que vai usá-lo, e não, digamos, um terno comprado pronto e mal-ajustado a quem o usa...

[11] Conceito que, aliás, não coincide com a acepção industrial que hoje damos à expressão "matéria-prima".

[12] A forma substancial é aquela que, em união com a matéria-prima, constitui a substância do sujeito. Naturalmente, há também formas acidentais (cor, tamanho etc.) que inerem na substância.

[13] Cabe aqui uma breve explicação sobre o modo como a filosofia chegou a esses conceitos. Para analisar a realidade material, Aristóteles parte da experiência dos fenômenos da unidade substancial de cada ente, de cada sujeito. Aristóteles parte também da realidade das mudanças substanciais, isto é, aquelas, por assim dizer, mais sérias, nas quais o que muda é não já esta ou aquela qualidade acidental do sujeito (que ficou mais alto, mais gordo, mais corado, ou mudou de lugar...), mas o próprio sujeito: uma coisa, X deixa de ser o que era e passa a ser outra coisa: Y (para mero efeito de exemplificação didática, pensemos em um pedaço de madeira que se queima e deixa de ser a substância que era - madeira - e passa a ser outra coisa: cinza). Nesses casos de mudança substancial, o novo ser Y não proveio do nada (mas, evidentemente, de X) e o ser X não se reduziu ao nada (deixou de ser X e passou a ser Y). Examinando, portanto, esses casos de mudança de substância, vemos que há algo que permanece e algo que muda (o que indica que a substância é composta de dois elementos: um que permanece, outro que muda). O que permanece é a matéria-prima, realizada, atualizada, em cada caso, por um fator determinante dessa potência que faz com que X seja X e Y seja Y: a forma substancial.

[14] Sempre que falo desse ponto, lembro-me do comentário jocoso (mas pleno de sentido...) feito por um aluno. "Com a palavra 'alma' (em relação às demais formas)- dizia ele- dá-se algo de semelhante ao que ocorre com certas denominações de sanduíche: os sanduíches com queijo são prefixados por cheesecheese-burger, cheese-dog etc. Mas o 'misto quente' é um sanduíche tão tradicional, tão especial, que ninguém o chama de cheese-presunto, mas por um nome também especial: 'misto quente'". Brincadeiras à parte, podemos dizer que a alma é uma forma, mas uma forma muito especial, porque atua, in-forma o vivente, constituindo o princípio da vida e, portanto, recebe o nome especial de alma.

[15] A filosofia clássica divide as potências dos conhecimentos sensíveis, ou seja, os sentidos, em: sentidos externos (basicamente os tradicionais cinco sentidos) e sentidos internos, em número de quatro: sentido comum, imagina­ção, memória e capacidade estimativa.

[16] Outra operação importante nesse processo é a collatio, a confrontação (feita pelo sentido interno chamado "capacidade cogitativa", que participa do intelecto) entre esta impressão e outras semelhantes, preparando a formação do conceito intelectual.

[17] No sentido de intentio, o conhecimento que se apropria de uma forma.

[18] Daí também que Tomás afirme que a aquisição do conhecimento, com as devidas ressalvas, pode ser comparado às "razões seminais", aquelas potencialidades que "não se tornam ato por nenhum poder criado, mas estão inscritas na natureza só por Deus" (obj. 5). Ressalvas, pois se trata de potencialidades que não procedem da criatura, mas que podem ser conduzidas ao ato pela ação do ensino humano (resposta ã obj. 5).

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Leia mais em O professor e a docência em S. Tomás de Aquino

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A Educação e a Verdade

 

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Tempo de leitura: 7 minutos.

Texto retirado do livro A ideia de verdade e a educação de Ruy Afonso da Costa Nunes, publicada pela editora Kírion, em 2019.

O conceito de verdade através do tempo

João Pedro da Fonseca
O Estado de São Paulo, 28 de janeiro de 1979.

Quando lemos jornais ou revistas e conhecemos várias versões de um mesmo fato, quando confrontamos opiniões divergentes a respeito de um mesmo assunto, quando lemos a exposição de motivos de uma lei e o editorial de um jornal a respeito do mesmo documento, quando tomamos conhecimento de dados estatísticos, contestados por especialistas, quando estudamos doutrinas divergentes a respeito dos mais diferentes problemas, quando comparamos as "verdades” da situação e da oposição, enfim, quantas vezes não teremos perguntado a nós mesmos: onde está a verdade? O que é a verdade? 

Que relação existe entre a verdade e a educação? Em que consiste o papel da escola e do professor diante da verdade?

Ruy Afonso da Costa Nunes nos apresenta neste livro um denso estudo a respeito das concepções de verdade de vários autores da Antigüidade, da Idade Moderna e Contemporânea. O autor declara que "não tivemos a intenção de elaborar uma exposição exaustiva a respeito das concepções de verdade através dos tempos. Dada a dimensão do tema e a extensão deste trabalho, procuramos cingir-nos ao essencial".

O livro é dividido em três partes, em que são tratados sucessivamente os seguintes temas: a concepção clássica da verdade, as concepções modernas da verdade e as concepções contemporâneas da verdade. Na conclusão, o autor correlaciona a verdade e a educação, sobre verdade e educação e magistério e verdade, sendo que este último merece destaque especial.

Os principais autores estudados são: na concepção clássica da verdade, Platão, Aristóteles e Santo Tomás de Aquino; na concepção moderna: Bacon, Descartes, Hegel, Marx, William James, John Dewey e Kierkegaard; na concepção contemporânea, Husserl, Karl Jaspers, Heidegger, Sartre, Gabriel Marcel, os do Círculo de Viena, Ayer, Bertrand Russell e Tarski.

Pela relação de nomes, é fácil perceber a impossibilidade de se aprofundar estudo de cada filósofo, mas, com as limitações reconhecidas do autor, temos uma visão geral muito boa das concepções de verdade ao longo dos tempos. Isso é conseguido, principalmente, graças à clareza de pensamento, ao caráter didático da obra, à quantidade de pesquisas efetuadas, à riqueza de informações e ainda à veia crítica presente nos comentários, não faltando, às vezes, boa dose de ironia.

O autor não poupa severas críticas a alguns filósofos, por exemplo, aos do Círculo de Viena: "augustos cientistas que resolveram fazer filosofia das ciências sem a filosofia", a Ayer:

Nessa obra de juventude [Linguagem, verdade e lógica], escrita com o fervor adquirido no Círculo de Viena, Ayer pontifica que nada existe na natureza da filosofia que justifique a existência de 'escolas' filosóficas rivais, e assegura, do alto de sua insuficiência juvenil, que ele, Alfred Jules Ayer, vai apresentar a solução definitiva dos problemas que no passado causaram controvérsias entre os filósofos. Durmam tranquilos Platão e Aristóteles, Duns Scotus, Descartes, Hume, Kant, e tantos outros, pois Alfred Jules Ayer chegou para acabar com as dúvidas e resolver para sempre a questão da filosofia.

Ao discorrer sobre Heidegger, além de criticar sua linguagem arrevesada, não poupa seus endeusadores:

Fala-se muito do grande momento representado pelo opúsculo Sobre a essência da verdade, como se Heidegger tivesse feito uma descoberta do outro mundo, e como se a concepção clássica da verdade tivesse sido exorcizada para sempre como puro avantesma. Além disso, há quem chegue ao delírio, ao tecer ditirambos à incalculável profundeza desse opúsculo heideggeriano. De fato, parece-me que a coisa é mais simples do que freqüentemente se quer fazer acreditar.

Esses exemplos dão uma idéia do estilo franco e aberto do professor Ruy Afonso que pode agradar ou não agradar aos leitores. Louve-se, porém, o fato é um autor que interpreta e que assume posições elogiando, criticando, de que às vezes, ironizando, como faz ainda ao comentar Ayer:

É pena que o filósofo não tenha percebido, e nenhum dos seus consultores o tenha advertido antes da publicação do livro, o engano filosófico de sua concepção de verdade [...]. Até mesmo um filósofo inglês não consegue, às vezes, ter senso de humor para rir dos próprios enganos.

Quanto à correlação entre verdade e educação, o autor trata do tema em dois capítulos, tendo apresentado algumas idéias gerais que precisam ser mais aprofundadas e merecem momentos de reflexão, principalmente o segundo. Neste capítulo, o problema do magistério é tratado de forma quase dramática, com muita felicidade, equilíbrio e lucidez. Às vezes, o capítulo tem o caráter de denúncia:

Os governos, pelo menos em nossa pátria, preocupados com o desenvolvimento econômico, e apesar das numerosas advertências feitas pelos educadores, continuam de ouvidos moucos aos apelos do professorado, de tal modo que os mestres não dispõem de recursos que lhes permitam uma vida tranquila e consagrada ao estudo e ao ensino.

Não são apenas os direitos do professorado que o autor defende, mas chama a atenção também para os seus deveres. Se afirma que o professor "precisa ganhar um salário que lhe permita trabalhar tranqüilo", adverte que ninguém "pode almejar tornar-se um argentário através do magistério".

Apresentando a fragilidade humana, a má vontade e a má fé como as principais responsáveis pela derrota da verdade, diz que precisamos de mestres de "mente límpida e de personalidade retilínea". Condena a hipocrisia, a duplicidade, a dissimulação, as criaturas de natureza viscosa e conclui:

O erro e o dolo provêm principalmente das nossas paixões, do amor-próprio, do espírito de campanário, da inveja, da preguiça, da sensualidade e do ódio, muito mais que dos desvios lógicos, do pensamento, da falta de atenção ou da acuidade intelectual.

*

Sobre o Autor: Ruy Afonso da Costa Nunes nasceu em Sorocaba no dia 13 de maio de 1928, filho de Heitor José da Costa Nunes e Cassilda Lobo da Costa Nunes. Realizou os primeiros estudos no Colégio Santa Escolástica — onde, muitos anos mais tarde, viria a lecionar —, e fez ali sua primeira comunhão. Com a morte do pai, em 1934, a família transferiu-se para Belém do Pará, onde residiam os familiares da mãe. Aos 12 anos, ingressou no Seminário Metropolitano Nossa Senhora da Conceição, dirigido pelos salesianos, e concluiu, em 1947, o estudo de humanidades e filosofia. Aos 19 anos decidiu regressar para a terra natal: mudou-se para São Paulo — onde vivia o tio Carlos Alberto da Costa Nunes — e iniciou o curso de filosofia na Universidade de São Paulo, no Centro Universitário Maria Antônia. Bacharel e licenciado em filosofia, Doutor em educação e Livre-docente de filosofia e ciências da educação da Faculdade de Educação da USP, foi também catedrático de filosofia do Instituto de Educação Dr. Júlio Prestes de Albuquerque, professor fundador da antiga Faculdade de Ciências e Letras de Sorocaba, hoje UNISO, e membro da Academia Sorocabana de Letras; proferiu as aulas inaugurais da Faculdade de Filosofia de Brusque e da Universidade São Judas Tadeu. Além dos quatro volumes de sua História da Educaçãona Antigüidade Cristã (1978), na Idade Média (1979), no Renascimento (1980), e no Século XVII (1981) — publicou A formação intelectual segundo Gilberto de Tournai (1970), Gênese, significado e ensino da filosofia no século XII (1974), A idéia de verdade e a educação (1978), além de inúmeros ensaios e artigos para os principais jornais do país e para as revistas culturais mais relevantes de sua época. Em fevereiro de 2006 celebrou as bodas de ouro com sua esposa Leonor Bruneli da Costa Nunes e suas filhas Maria Cecília, Maria Eleonor e Maria Heloísa, e faleceu no mesmo ano aos 11 de setembro, com 78 anos de idade. Ruy Nunes deixou uma imensa e rara biblioteca, de aproximadamente 30.000 volumes.

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Leia mais em Definição de educação

Leia mais em A verdadeira filosofia da educação



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Livro A Vida Intelectual

Capa do livro A Vida Intelectual

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Trecho retirado do Prefácio e Introdução do livro A Vida Intelectual de A.-D. Sertillanges publicado pela editora É Realizações, em 2010.

Sinopse: A Vida Intelectual, do padre A.-D. Sertillanges, redigida originalmente em 1920, ainda se mantém atual para os leitores do novo milênio. Para aqueles que desejam não apenas um manual prático que permita esboçar orientações de como entrar na vida dos estudos, o livro vai além e também oferece um exemplo de vida bem-sucedida no mundo intelectual – a do próprio padre Sertillanges, que por meio de dicas preciosas permite e disponibiliza, para qualquer pessoa que tenha abertura e coragem necessárias, uma nova forma de viver que abrange gradualmente a dimensão intelectual e todos os percalços que essa vida traz consigo. A vida intelectual não é uma dimensão separada da vida prática, e sim abarca e transcende esta, trazendo novas possibilidades e responsabilidades diante de si, dos outros e do mundo. Assim, o espírito de uma vida intelectual está no fato de que se ela transcende a vida prática, deve ser no sentido de propiciar um maior entendimento dela. Suas condições são os valores éticos, como a honestidade intelectual e a sinceridade. Seu método consiste nos exemplos que percorrem toda a escrita do padre Sertillanges. Este livro é dedicado a todos aqueles que desejam uma vida plena – em todas as suas potencialidades, e não há nada mais atual que esse desejo.

Prefácio à terceira edição

Será este o momento certo para reeditar um escrito assim? Quando o universo está em chamas, será oportuno jogar sobre as brasas umas folhas de papel para serem queimadas em vez de formar uma fila e bombear água do poço?

O que se há de fazer? De qualquer forma a sensação que se tem é de esmagadora impotência. Mas se o presente só traz tormento e desconcerto, não se deveria passar através de tudo e preocupar-se com o porvir?

O porvir cabe a Deus e a nós, mas numa dada ordem. Ele não cabe antes de tudo à força, e sim ao pensamento. Após uma medonha devastação, será preciso reconstruir. Todos os elementos da civilização devem ser retomados na base. Arquitetos aventurosos virão com projetos. Já alguns se alardeiam. Poderão nossos mestres de obra chegar a um acordo condizente com a amplidão, a harmonia e a solidez que seria de se esperar? Queira Deus! Em todo caso, haverá muito trabalho para a reflexão. Há futuro para o conhecimento sob todos os aspectos que ele pode assumir em nossas complexas civilizações, quer passadas, quer em vias de renascer. O pensamento católico não terá o direito de cruzar os braços, tampouco o terão outros. Para todos os homens de boa vontade a lide vai ser imensa. Convicto de ser detentor da verdade essencial a ele confiada pelo Cristo, o católico tem mais responsabilidade que qualquer um e, para estar à altura de assumi-la, ele tem de estar de posse de todos os seus meios, conferir seus métodos e preparar seu coração pela meditação sobre suas possibilidades bem como sobre suas obrigações.

Este livro não tem outro objetivo senão o de ajudá-lo nessa tarefa. Como em épocas mais calmas e entretanto necessitadas, o leitor saberá avivá-lo com uma chama nova que jorrará de sua própria consciência. Por si só, um texto não é nada, tal como uma viagem por si só tampouco é nada. Uma alma se faz necessária para concatenar entre si os méritos desta e as frases daquele, fazendo jorrar do contato essa luz misteriosa que se chama verdade ou que tem por nome beleza.

O efeito de um livro depende de cada um de nós. A última etapa definitivamente não é a do impresso que sai do editor, mas a do verbo mental que o próprio leitor elabora. Ante o chamado dos acontecimentos e em meio à aflição atual, mais do que nunca no dia seguinte a uma paz adquirida a tão alto preço e que recobrirá tantos destroços, confiamos que as considerações aqui expostas no tocante à vida intelectual encontrarão em nossos moços uma compreensão renovada e uma eficácia superior.

Eis porque reeditamos este trabalho. Sabemos que ele tem de se difundir em outros lugares, bem longe daquele onde veio ao mundo, e é-nos uma alegria pensar que amanhã, a necessidade devendo tornar-se universal, como hoje o caos, nosso humilde esforço poderá se unir ao dos melhores numa atmosfera comum renovada e nos dois mundos.


A.-D. SERTILLANGES, O.P.
Membro do Instituto
1944


Prefácio à segunda edição

A pequena obra hoje reeditada foi reimpressa já muitas vezes. Ela data de 1920. Eu não a havia relido. Eu me perguntava, ao abordá-la com um novo olhar e uma experiência quinze anos mais velha, se nela reconheceria meu pensamento. Encontro-o integralmente, salvo certos matizes que eu não deixarei de levar em consideração na revisão que ora assumo. A razão disso é que estas páginas, na verdade, não têm data. Elas saíram de meu âmago. Já as trazia em mim havia um quarto de século quando eclodiram. Escrevi-as como alguém que expressa suas convicções essenciais e abre seu coração.

O que me dá a confiança de que elas tiveram alcance é, com toda a certeza, sua repercussão de amplas proporções; mas é sobretudo o testemunho de cartas inumeráveis, umas me agradecendo pela ajuda técnica que eu levava até os obreiros do espírito, outras pelo calor que me diziam ter sido transmitido a ânimos jovens ou viris, a maioria por aquilo que parecia ao leitor a revelação dentre todas a mais preciosa: a do clima espiritual próprio à eclosão do pensador, a sua elevação, a seu progresso, a sua inspiração, a sua obra.

Eis aí efetivamente o principal. O espírito tudo rege. É ele que inicia, executa, persevera e conclui. Como ele preside a cada aquisição, a cada criação, ele dirige o trabalho mais secreto e mais exigente que opera sobre si o trabalhador por toda a sua carreira.

Não cansarei, assim espero, o leitor ao insistir uma vez mais nesse todo da vocação de pensador ou de orador, de escritor e de apóstolo. É verdadeiramente a questão prévia; é depois a questão de fundo, e é consequentemente o segredo do sucesso.

Querem os senhores compor uma obra intelectual? Comecem por criar em seu interior uma zona de silêncio, um hábito de recolhimento, uma vontade de despojamento, de desapego, que os deixem inteiramente disponíveis para a obra; adquiram esta disposição das faculdades mentais isenta do peso de desejos e de vontade própria, que é o estado de graça do intelectual. Sem isso, não farão nada, em todo caso, nada que valha.

O intelectual não é filho de si mesmo; ele é filho da Ideia, da Verdade eterna, do Verbo criador e animador imanente a sua criação. Quando pensa corretamente, o pensador segue Deus à risca; ele não segue sua própria quimera. Quando tateia e se debate no esforço da busca, ele é Jacó lutando com o anjo e “forte contra Deus”.

Não é natural, nessas condições, que o homem que recebeu o chamado repudie e esqueça deliberadamente o homem profano? Que deste ele rejeite tudo: sua leviandade, sua inconsciência, seu desleixo no trabalho, suas ambições terrenas, seus desejos orgulhosos ou sensuais, a inconsistência de seu querer ou a impaciência desordenada de seus desejos, suas complacências e suas antipatias, seus humores acrimoniosos ou seu conformismo, toda a inumerável rede de impedimenta [1] que obstruem o caminho do vero e impossibilitam sua conquista?

O temor a Deus é o começo da sabedoria, diz a Escritura. Esse temor filial não é no fundo senão o medo de si. No campo intelectual pode-se chamá-lo de atenção liberada de todas as preocupações inferiores e de fidelidade perpetuamente apreensiva ante a possibilidade de decair. Um intelectual deve estar sempre de prontidão para o pensar, isto é, para receber uma parte da verdade que o mundo carreia em seu curso e que lhe foi preparada, para tal ou qual curva desse curso, pela Providência. O Espírito passa e não volta. Feliz de quem está pronto para não perder, para de preferência até provocar e aproveitar o milagroso encontro!

Toda obra intelectual começa pelo êxtase; só depois se exerce o talento do arranjador, a técnica dos encadeamentos, das relações e da construção. Ora, o que é o êxtase senão um elevar-se para longe de si mesmo, um esquecimento de se viver, de si próprio, para que viva no pensamento e no coração o objeto de nossa embriaguez?

A memória mesma participa desse dom. Existe uma memória baixa, uma memória de papagaio e não de inventor: esta aí causa obstrução, tapando as vias por onde flui o pensamento em proveito de palavras e fórmulas fechadas. Mas há uma memória engatilhada em todas as direções e à espera de uma eterna descoberta. Em seu conteúdo, nada há que venha “já pronto”; suas aquisições são sementes de futuro; seus oráculos são promessas. Ora, tal memória é também extática; ela funciona pelo contato com as fontes de inspiração; de modo algum se compraz de si mesma; o que encerra é novamente intuição, sob o nome de lembrança, e o eu de quem é hóspede se entrega por seu intermédio à exaltante Verdade tanto quanto à busca.

O que é verdadeiro para as aquisições e as consecuções era já verdadeiro para o chamado no início do percurso. Depois das hesitações da adolescência, quase sempre angustiada e perplexa, foi inevitável chegar à descoberta de si, à percepção desse impulso secreto que persegue em nós não sei qual resultado longínquo que a consciência ignora. Supõem que isso seja simples? ”À escuta de si mesmo” é uma outra formulação para esta expressão: À escuta de Deus. É no pensamento criador que jaz nosso ser verdadeiro e nosso eu na forma autêntica. Ora, essa verdade de nossa eternidade, que domina nosso presente e prevê nosso porvir, é-nos revelada tão somente no silêncio da alma, silêncio dos vãos pensamentos que levam ao “divertimento” pueril e dissipador; silêncio dos barulhos de chamada que as paixões desordenadas não se cansam de fazer-nos escutar.

A vocação pede o atendimento, que, num esforço único para sair de si, escuta e atende. 

O mesmo se dará por ocasião da escolha dos meios para ser bem-sucedido, da estruturação de seu modo de vida, de seus relacionamentos, da organização de seu tempo, da partilha entre a contemplação e a ação, entre a cultura geral e a especialização, entre o trabalho e os descansos, entre as concessões necessárias e as intransigências ferozes, entre a concentração que fortalece e as expansões que enriquecem, entre o retrair-se e o relacionar-se com gênios, pessoas com quem se tem afinidade de ideias, com a natureza ou a vida social etc. etc. Tudo isso só é avaliado com sabedoria quando em êxtase também, perto do eternamente verdadeiro, longe do eu que cobiça e é tomado de paixão.

E ao final a dádiva dos resultados e sua extensão estipulada lá no alto exigirão a mesma virtude de acolhida, a mesma postura desinteressada, a mesma paz em uma Vontade que não seja a nossa. Chega-se ao que se pode, e nosso poder precisa avaliar-se, para não se subestimar, de um lado, ou, inversamente, transbordar de presunção e jactância vazia. De onde vem esse julgamento senão de um olhar fiel à verdade impessoal e da submissão a seu veredicto, mesmo que isso nos custe um esforço ou um desapontamento secreto?

Os grandes homens nos parecem ter uma grande ousadia; no fundo, eles são mais obedientes que os outros. A voz soberana os alerta. É porque um instinto provindo dela os aciona que eles tomam, com coragem sempre e às vezes com grande humildade, o lugar que a posteridade lhes conferirá mais tarde, ousando atitudes e arriscando inovações com muita frequência contrárias a seu meio, sendo até mesmo alvo de sarcasmos. Eles não têm medo porque, por mais isolados que pareçam, não se sentem sozinhos. A seu favor está o que tudo decide no final. Eles pressentem seu futuro poder.

Nós temos sem dúvida de lidar com uma humildade de natureza totalmente diversa, nós devemos entretanto ir colher nossa inspiração nas mesmas alturas. É a altitude que mede a pequenez. Quem não possui o sentido das grandezas se deixa exaltar ou abater facilmente, quando não as duas coisas ao mesmo tempo. É para não pensar no escaravelho gigante que a formiga acha o ácaro demasiadamente pequeno, e é para não sentir o vento dos cumes que o caminhante se demora languidamente nas encostas. Sempre conscientes da imensidão da verdade e da exiguidade de nossos recursos, jamais empreenderemos o que está além de nosso alcance, e iremos até o fim do nosso poder. Seremos felizes, então, com o que nos terá sido oferecido à nossa altura.

Não se trata aqui de pura mensuração. O motivo da observação é o fato de que o trabalho insuficiente ou pretensioso é sempre um trabalho malfeito. Uma vida empurrada muito para o alto ou largada muito lá embaixo é uma vida que se desorienta. Uma árvore pode ter uma rama e uma floração medíocre ou magnífica: ela não as chama e não as constrange; sua alma vegetal desabrocha pela ação da natureza no geral e das influências do ambiente. Nossa própria natureza geral é o pensamento eterno; recorremos a ele com as forças que dele provêm e com os instrumentos que ele nos fornece: deve haver concordância entre o que recebemos em matéria de dons – incluindo-se a coragem – e o que devemos esperar em matéria de resultados.

O que não haveria para se dizer sobre essa disposição fundamental, ante um destino inteiramente dedicado à vida pensante! Mencionei as resistências e as incompreensões que agem contra os grandes; mas elas atingem também os pequenos: como resistir a elas sem um puro apego ao verdadeiro e sem autoesquecimento? Quando não se procura agradar o mundo, ele se vinga; se por acaso se consegue agradá-lo, ele ainda assim se vinga nos corrompendo. A única saída é trabalharmos longe dele, tão indiferentes a seu julgamento quanto prontificando-nos a ser-lhe úteis. O bom é, talvez, que ele nos repele e nos obriga assim a retirar-nos para nosso próprio interior, a crescermos por dentro, a controlar-nos, a aprofundar-nos. Esses benefícios vêm à proporção que nosso desinteresse se torna superior, isto é, que nosso interesse se centra naquilo que é o unicamente necessário.

Estaríamos nós mesmos sujeitos, para com outrem, às tentações da difamação, da inveja, das críticas sem fundamento, das disputas? Teríamos então de nos lembrar que inclinações como essas, ao perturbar o espírito, são nocivas à verdade eterna e são incompatíveis com seu culto.

É preciso observar nesse particular que a difamação, até um determinado nível, é mais aparente do que real e tem algum valor para a formação da opinião geral. Nós nos enganamos com frequência sobre o modo como os mestres falam uns dos outros. Eles se criticam severamente, mas bem sabem, mutuamente, o que valem, e criticam os outros quando não atribuem importância a isso.

Seja como for, o progresso em comum precisa de paz e de ação conjunta e sofre grande atraso por conta de estreitezas. Diante da superioridade de outrem, só resta uma atitude honrosa: amá-la, e ela se torna assim nossa própria alegria, nossa própria fortuna.

Uma fortuna diferente poderá nos tentar: a que se obtém mediante um êxito exterior, a bem dizer, hoje em dia, bastante raro, quando se trata de um verdadeiro intelectual. O público, de modo geral, é vulgar e só gosta da vulgaridade. Os editores de Edgar Poe diziam ser obrigados a pagar-lhe menos do que a outros, porque ele escrevia melhor que os outros. Conheci um pintor a quem um marchand de arte dizia: “Seria bom tomar umas aulas.” – ?... – “Sim, para aprender a não pintar tão bem”. O homem dedicado à perfeição não entende essa linguagem; ele não aceita por preço algum, sob forma alguma, ser um seguidor do que Baudelaire chamava de zoocracia. Mas e se essa dedicação esmorecesse?...

Mesmo não dando importância aos juízos de terceiros, não estamos nós à mercê, quando a sós, dos tolos julgamentos da vaidade e da puerilidade instintiva? “Nunca cales, nunca escondas de ti o que se pode pensar contra teu próprio pensamento”, escreve Nietzsche. Já não se trata mais aí dos incompetentes e dos curiosos, e sim de nosso próprio testemunho em estado vigilante e íntegro. Quantas vezes não gostaríamos de desconversar, de alcançar a autossatisfação mesmo que enganosa, de dar-nos a preferência conquanto indevidamente! A severidade para consigo, tão propícia à retidão dos pensamentos e à preservação destes contra os mil riscos da busca, é um ato de heroísmo. Como declarar-se culpado e amar sua condenação sem o amor desvairado daquilo que julga?

Isso se corrige, é verdade, por um apego intransigente às nossas persuasões profundas, às intangíveis intuições que se encontram na base de nosso esforço e até de nossa crítica. Não se constrói sobre o nada, e os retoques do artesão não afetam os primeiros alicerces. O que está assimilado e averiguado deve ser resguardado de retratações infundadas e de escrúpulos. É o mesmo amor pela verdade que assim o quer; é o mesmo desinteresse que se interessa, em nós, por aquilo que nos supera e que nem por isso deixou de vir alojar-se em nossa consciência. Apreciações como essas são delicadas; elas são porém necessárias. Sob hipótese alguma as elevadas certezas sobre as quais se assenta todo o trabalho da inteligência devem ser abaladas.

É inclusive o caso de defender-se, em nome desse mesmo apego, contra este melhor que se chamou muito adequadamente de inimigo do bom. Pode ocorrer, ao ampliar-se o campo da pesquisa, que ela se enfraqueça, e pode ocorrer, ao aprofundar-se nela para além de determinados limites, que o espírito fique perturbado e não consiga alcançar nada além de perplexidade. A estrela que se fita de modo por demais ardente e contínuo pode, em razão desse próprio fator, pôr-se a piscar cada vez mais e acabar desaparecendo do céu.

Não decorre daí que se deva evitar aprofundar-se, nem tampouco desprezar essa vasta cultura que é uma condição para o aprofundamento em qualquer setor; mas alerto contra os excessos, e aponto que o puro apego ao que é verdadeiro, sem paixão pessoal, sem frenesi, é o que constitui sua especificidade.

Existe ainda uma outra defesa contra a precipitação nos julgamentos e na elaboração das obras. Ninguém se deixa ofuscar, quando ama a verdade, por uma ideia brilhante à qual se deu por auréola meras banalidades. Não é assim que uma obra adquire seu valor. Pode acontecer que o mais medíocre dos seres encontre uma ideia, como se fosse um diamante bruto ou uma pérola. O difícil é lapidar essa ideia e sobretudo engastá-la na joia da verdade que será a verdadeira criação.

“Na categoria dos leitores precipitados de uma obra”, diz o sr. Ramon Fernandez usando uma formulação divertida, “eu incluiria de bom grado o autor da mencionada obra”. Está muito bem! Mas de onde provém essa pressa negligente, que absolve de antemão um leitor menos interessado e menos responsável? Ela deverá ser evitada, por uma dedicação mais profunda tão somente à verdade.

Será preciso igualmente abster-se de se lançar sobre um tema específico que se gostaria de desenvolver sem ter investigado seus antecedentes gerais e seus vínculos. Ser múltiplo por longo tempo é a condição para ser uno sem perder a riqueza. A unidade do ponto de partida não é senão um vazio. Isso se sente quando a elevada e misteriosa verdade tem nosso culto. Se não utilizarmos então tudo quanto aprendemos, restará no que dissermos uma ressonância secreta, e a confiança recompensa essa plenitude. É um grande segredo o de saber fazer com que uma ideia se irradie graças a seu fundo feito de noite crepuscular. Outro segredo é o de fazer-lhe conservar, apesar desse fulgor, sua força de convergência.

O fracasso nos espreita, ou chega a ser sequer sentido? É hora de se refugiar no culto imutável, incondicionado, que havia inspirado o esforço. “Meu cérebro se transformou num retiro para mim”, escreve Charles Bonnet. Acima do cérebro está aquilo a que ele se consagra, e o retiro, então, é de uma segurança toda especial. Mesmo à custa de muita dor, a criação é uma alegria, e, mais do que a criação, a veneração da ideia de onde ela procede.

De mais a mais, como observava Foch, “é com resíduos que se ganham as batalhas”. Um fracasso em tal coisa é o que prepara para uma vitória em tal outra, para uma vitória, em suma, como fica assegurado a qualquer um que tenha mérito e faça esforço.

*

Quero assinalar um último efeito da submissão absoluta da qual acabo de tecer o elogio. Ela limita nossas pretensões não apenas pessoais, mas também humanas. A razão não pode tudo. Sua última ação, segundo Pascal, consiste em constatar seus limites. Ela o faz tão somente se ela se entregou à sua primeira lei, que não é sua verdade própria, encarada como propriedade ou como conquista, mas a Verdade impessoal e eterna.

Aqui, mais nenhuma limitação para a honra, pelo próprio fato de se haver renunciado à fatuidade. O mistério compensa. A fé substituída à busca arrasta o espírito em vastidões que ele jamais teria conhecido por si mesmo, e a luminosidade de seu próprio plano só tem a ganhar com o fato de que astros longínquos o obriguem a voltar o olhar para o céu. A razão tem por ambição apenas um mundo; a fé lhe dá a imensidão.

*

Não quero prolongar mais esse discurso. Tornar-se-á necessariamente a encontrá-lo, visto ser seu objeto o de assinalar onde está o todo.

Este todo, defendi-lhe os direitos com uma incapacidade de que tenho plena consciência e pela qual peço desculpas. Faço votos de que minhas sugestões no que toca a ele, por mais insuficientes que sejam, contribuam para trazer até ele melhores panegiristas e mais ardentes servidores.


A.-D. Sertillanges
Dezembro de 1934


Introdução

Encontra-se entre as obras de Santo Tomás uma carta a um certo frei João, onde são enumerados Dezesseis Preceitos para Adquirir o Tesouro da Ciência. Essa carta, seja ela autêntica ou não, pede para ser examinada em si mesma; ela não tem preço; gostar-se-ia de deixar gravados todos os seus termos no íntimo do pensador cristão. Acabamos de publicá-la mais uma vez na sequência das Orações do mesmo Doutor, nas quais se condensa seu pensamento religioso e transparece sua alma [2].

Tivemos a ideia de comentar os Dezesseis Preceitos a fim de anexar-lhes o que pode vir a ser útil lembrar aos estudiosos modernos. Na prática, esse procedimento nos pareceu um tanto limitado, preferimos agir mais livremente. Mas a substância desse pequeno volume nem por isso deixa de ser totalmente tomista; nele se encontrará o que nos Dezesseis Preceitos, ou em algum outro escrito, o mestre sugere quanto aos caminhos por onde conduzir o espírito.

*

Este livrinho não tem a pretensão de substituir As Fontes; ele em parte faz referência a elas. O autor não esqueceu, não mais que muitos outros sem dúvida, a comoção de seus vinte anos, quando o padre Gratry estimulava nele o ardor pelo saber.

Numa época que tanto necessita de luz, vamos lembrar tão frequentemente quanto possível as condições que permitem obter-se luz e preparar sua difusão por meio de obras.

*

Não se tratará aqui da produção em si mesma: seria o objeto de um outro trabalho. Mas a mente é sempre a mesma, quer ao propiciar o enriquecimento, quer ao proceder a um sábio dispêndio.

Devendo dizer mais para a frente que o dispêndio é nesse caso um dos meios da aquisição, não podemos duvidar da identidade dos princípios que tornam, em ambas as situações, nossa atividade intelectual fecunda.

É uma razão para ter a esperança de ser útil a todos.


CHANDOLIN, 15 de agosto de 1920


Notas:

[1] Em latim no original. (N. E.)

[2] Les Prières de Saint Thomas d’Aquin [As Orações de Santo Tomás de Aquino]. Tradução e apresentação de A.-D. Sertillanges. Paris, Librairie de l’Art Catholique.


Sobre o autor: Antonin-Dalmace Sertillanges, conhecido também como Antonin-Gilbert Sertillanges ou Antonin Sertillanges (Clermont-Ferrand, 16 de novembro de 1863 – Sallanches, 26 de julho de 1948), foi um filósofo e teólogo francês, considerado como um dos maiores expoentes do neotomismo da primeira metade do séc. XX.

Em 1883 ingressa na ordem dos dominicanos, mudando o próprio nome para Antonin-Gilbert. Chefe de redação da Revue Thomiste, em 1900 é nomeado professor de Ética do Institut Catholique de Paris, onde permanecerá até 1922. A publicação do seu monumental Thomas D’Aquin (1910) dá-lhe notoriedade nacional e internacional. Em 1918 é eleito membro da Académie des Sciences Morales et Politiques. Depois de um longo período em Jerusalém (1923), transfere-se para o convento de Le Saulchoir como professor de Ética Social, fazendo-se cada vez mais notar como um dos principais representantes do neotomismo francês, ao lado de Jacques Maritain e Etienne Gilson. De volta a Paris em 1940, falece oito anos depois, aos 85 anos, de parada cardíaca durante uma convenção num convento de Haute Savoie.

Segundo Sertillanges, toda atividade humana e todo saber encontram a própria razão de ser no cristianismo. Em Le Christianisme et les Philosophies, publicado em dois volumes, em 1939 e em 1941, trata os dados do próprio pensamento segundo as relações entre cristianismo e filosofia. Depois da aparição dos Evangelhos não pode haver filosofia alguma que possa prescindir dos seus ensinamentos. Segundo Sertillanges: “Sem o cristianismo não haveria nenhuma filosofia aceitável (...) todas as que apareceram depois do Evangelho, por mais úteis que sejam se fundidas com ele, jamais poderiam sozinhas trazer qualquer benefício à nossa civilização (...)”.

O teólogo francês é também um profundo conhecedor e admirador de Santo Tomás, de quem se aproximou desde que, no final do séc. XIX, foi nomeado chefe de redação da Revue Thomiste. A sua biografia do santo, publicada, como já se disse, em 1910, é uma obra imprescindível a todos que desejam aprofundar-se no estudo da vida e da obra do Aquinate. Voltará a ocupar-se de Santo Tomás em La Philosophie Morale de Saint Thomas D’Aquin (1916) e Les Grandes Thèses de la Philosophie Thomiste (1928). De Santo Tomás, Sertillanges aprecia sobretudo a aguda inteligência amparada em sólida fé e em vigorosa tensão espiritual. Logra, além disso, extrair a radical modernidade da metafísica tomista do ser (em latim, esse) e sua profunda autonomia em relação a Aristóteles, que, não obstante, o santo tinha por modelo. Escreve o filósofo francês: “[Santo Tomás] não hesita em afastar-se da autoridade de Aristóteles sempre que lhe pareça justo (...) ele engrandece a doutrina de Aristóteles e a enriquece infinitamente (...)”.

Sertillanges também é conhecido por seus estudos sobre Pascal (Blaise Pascal, 1941) e sobre Bergson (Henri Bergson et le Catholicisme, 1941), a quem era ligado por uma profunda amizade. Os seus ensaios de divulgação têm tido difusão enorme, como os teológicos Catéchisme des Incroyants (1930) e Dieu ou Rien? (1933), além de La Vie Catholique (1921) e Recueillement (1935), de inspiração moral. O teólogo também tratou de aspectos estéticos do culto cristão, sobretudo em Un Pèlerinage Artistique à Florence (1895) e Art et Apologétique (1909).

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