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Sobre o blog Summa Mathematicae

Este é um blog sobre Matemática em geral, com ênfase no período clássico-medieval, também sobre as Artes liberais (Trivium e Quadrivium), so...

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Prática x Teórica: Educação Isocrática e Educação Platônica

Busto de Isócrates por
William Jennings Bryan e
Francis Whiting Halsey, 1906

Isócrates (não confundir com Sócrates) nasceu em Atenas, no ano de 436 a.C e  foi, essencialmente, um professor de eloqüência. Contemporâneo de Platão e dos socráticos, a tradição afirma que, além de aluno dos sofistas Górgias e Pródico, também acompanhou as andanças de Sócrates pelos ginásios e praças de sua cidade.*

Isócrates contra Platão

Eis nos já bem distantes da filosofia, e, mormente, da filosofia platônica. A atitude de Isócrates com relação a esta e ao programa de educação que ela preceitua faz-me lembrar o julgamento sumário de Pascal sobre Descartes: "Inútil e incerto!" Para compreendê-la é necessário, sem dúvida, colocar-nos no plano que Isócrates jamais consente em deixar, a saber, o da vida quotidiana e da eficácia prática. Platão pretende impor-nos um imenso ciclo de estudos, tão complexo e difícil que elimina, de princípio, a maioria dos candidatos, e isto com o quimérico objetivo de fazer-nos assomar à ciência perfeita. Mas na vida prática não há ciência possível, a tomar-se a palavra no sentido preciso que assume, em Platão, o termo πιστήμη: conhecimento racional e demonstrado (74). Situamo-nos diante de um problema concreto: trata-se de saber o que fazer e o que dizer. Jamais haverá uma ciência teórica bastante exata para ditar-nos a conduta a seguir. O homem "verdadeiramente culto" (πεπαιδευμένος) é, segundo professa Isócrates, o que tem o dom de "atinar" com a boa solução (πιτυγχάνειν) ou, então, com a menos má, com a mais adequada à conjuntura (καιρός), e isto pelo fato de ter uma "opinião" justa (δόξα) (75). Esta palavra, depreciada por Platão, define, ao contrário, para o modesto Isócrates, o horizonte efetivamente acessível, a única ambição que o homem possa realizar.

Se a ciência é inacessível, de que vale, na perspectiva de um resultado tão incerto, esforçar-se tanto e blasonar tantas pretensões?! Conforme o próprio Platão o declara, a ciência do filósofo é inútil, porquanto este, falto de uma cidade verdadeira e sadia, está condenado a voltar-se para a cidade ideal, para este sonho que ele transporta no bojo de sua alma, por isso que, na cidade real, está, como o vimos, fadado ao ridículo, ao malogro, à perseguição -- à morte!

Já Isócrates resolveu consagrar-se a uma tarefa de eficácia mais certa e cuja urgência é, ademais, imediata: plasma seus discípulos na experiência, na prática da vida política, preferindo ensiná-los a formarem uma opinião razoável sobre as coisas úteis, a fazê-los queimarem as pestanas em busca de certeza sobre questões perfeitamente inúteis (76), como a duplicação do cubo ou a classificação dicotômica do pescador de anzol (77). Não se cogita de ascender ao céu das Idéias nem de brincar com paradoxos: a conduta da vida reclama não idéias admiráveis e novas, mas comprovado bom senso, o bom senso da tradição (78).

"ESPRIT DE FINESSE, ESPRIT GÉOMÉTRIQUE"

Em última análise, a oposição de Isócrates a Platão é a do "esprit de finesse" ao "esprit géométrique". Isócrates procura desenvolver em seu discípulo o espírito de resolução, o sentido da intuição complexa, a percepção destes imponderáveis que dirigem a "opinião" e a tornam justa. A cultura literária, a arte (e não ciência) da palavra constituem o instrumento que pode servir para aguçar o senso de julgamento. O instrumento, por si só, não basta, mas é necessário, ainda, o dom, porque no domínio da realidade moral e humana não pode existir procedimento coercitivo que permita obter, de um espírito qualquer, desde que seja racional, um resultado certo. Nada de mais absurdo, aos olhos de Isócrates, que a pretensão socrática de fazer da "virtude" um conhecimento, uma ciência do gênero das matemáticas, e passível, por conseguinte, de ser ensinada (79).

Cumpre aprofundar a conexão empírica que estabelecemos entre retórica e moral e retomar, em um sentido muito mais sutil, a relação íntima que se estabelece, na arte oratória, entre a forma e o fundo. Estes dois aspectos são, como dizíamos, inseparáveis. Com efeito, o esforço para conseguir a expressão adequada exige e desenvolve uma agudeza de pensamento, um senso dos matizes que o pensamento conceptual não explicitaria sem esforço e que nem sempre é, talvez, capaz de explicitar. A idéia é familiar a todo leitor de Valéry ou de Bremond: há coisas que o poeta sente e faz sentir, e que o sábio, com seu passo lento, busca, em vão, alcançar. Conquanto esta educação oratória, de aparência puramente estética, vise formar apenas "virtuoses da frase", ela é, na realidade, entre todas, a mais eficaz para desenvolver a sutileza de pensamento.

"A palavra adequada é o mais seguro indício do pensamento reto" (80): esta idéia, fundamental em Isócrates, tem uma profundidade e um alcance de que ele próprio, talvez, não haja suspeitado. Teria sido bom fosse ele dotado ainda de mais "esprit de finesse", fosse menos prosaico e mais consciente dos valores propriamente poéticos da prosa de arte: teria, então, podido invocar, contra Platão, o exemplo do próprio Platão, e opor, ao cientificismo renitente de sua teoria, a prática do escritor; vimos tudo aquilo que, na pena de Platão, exprimem, como valores, o mito, a poesia, a arte pura -- a da preparação psicológica, do ritmo dos diálogos, a arte da frase, do vocábulo. Não terá sido aí, muitas vezes, mais que nos passos de dialética ressequida e laboriosa, que Platão alojou a essência mesma de sua mensagem, aquilo que há de mais sutil, de mais fino e de mais verdadeiro em todo pensamento?

AS DUAS COLUNAS DO TEMPLO

Tais são os dois tipos fundamentais de educação, as duas orientações rivais que Platão e Isócrates imprimiram à pedagogia grega, àquilo que se vai tornar a tradição clássica. Para defini-los, fui levado  a esquematizar e a enrijar um pouco a oposição entre um e outro. Com efeito, o ensino platônico e o ensino isocrático, paralelos e contemporâneos, jamais se defrontaram com tal rigor, como rivais e adversários.

Seria extremamente interessante -- mas, creio que, no estrado atual de nossa documentação, isto seja, de fato, impossível -- reconstituir a história, presumivelmente complexa e matizada, de suas relações [14]. Elas passaram por uma evolução. Cada um deles não tinha apenas um adversário único. Isócrates não era toda a retórica: vimo-lo opor-se à pura sofística de um Alcídamas. Platão não era toda a filosofia: os "erísticos" que Isócrates combate talvez sejam também, ou sobretudo, o Megára ou Antístenes. Entre os chefes das duas facções foi possível estabelecerem-se aproximações e alianças, para a luta contra um mesmo inimigo: uma frente comum dos Dogmáticos contra a crítica dissolvente da escola de Mégara, e mesmo uma frente dos "Ideólogos" ou apóstolos da alta cultura contra o espírito estreio dos políticos realistas.

Notar-se-á, sobretudo, que tais aproximações táticas foram acompanhadas, certamente, de troca de influências mútuas. Isócrates parece, realmente, receber influência de Platão ao conceder, às matemáticas e à filosofia, tão honroso lugar em sua cultura propedêutica. Não haverá, por outro lado, uma concessão de Platão a Isócrates, na forma de um reconhecimento de legitimidade da arte literária, neste manifesto em prol de uma retórica filosófica que é o Fedro, e que, no seio mesmo da Academia, precisamente o jovem Aristóteles, "docente-livre" de retórica, será incumbido de aplicar? [15].

Entre Isócrates e Platão há, portanto, não apenas rivalidades, mas emulação, e isso interessa ao desenvolvimento da nossa história: aos olhos da posteridade, a cultura filosófica e a cultura oratória aparecem, realmente, como rivais, mas também como irmãs; elas têm não apenas uma origem comum, mas também ambições paralelas e, por vezes, idênticas; são, como dizíamos, duas variedades de uma mesma espécie; o debate que mantiveram enriqueceu a tradição clássica, sem comprometer-lhe a unidade. À porta do santuário em que vamos entrar postam-se, de um lado e de outro como dois pilares, como dois robustos atlantes, as figuras destes dois grandes mestre, "equilibrando-se como que respondendo-se mutuamente" (ἀντιστρόφους καὶ σύζυγας)(81).


Referências:

(74) Isócrates, Sobre a Troca, 184.
(75) Idem, 271; Panatenaica, 30-32.
(76) Elogio de Helena, 5.
(77) Cf. PLATÃO, O Sofista, 218e s.
(78) ISÓCRATES, A Nícocles, 41.
(79) Contra os Sofistas, 21; Sobre a Troca, 274.
(80) Nícocles, 7; Sobre a Troca, 255.
(81) Cf. ISÓCRATES, Sobre a Troca, 182.

Notas complementares:

[14] As relações entre Isócrates e Platão foram objeto de inúmeros e contraditório estudos: a lista deles pode ser encontrada ap. A. DIÈS, Autour de Platon, II, p. 407, n. 1; MATHIEU, BREMOND, Introduction à sua edição de Isocrate, t. I, p. IX, n. 3 (cf. ps. 155-157); G. MÉRIDIER, em sua edição do Euthydème, ps. 133 segs., p. 137, n. 1; DIÈS, Introduction à La République, ps. LVI segs.; L. ROBIN, em sua edição do Phèdre, p. XXII segs., CLXI segs.; acrescentar: R. FLACELIÈRE, L'Éloge d'Isocrate à la fin du Phèdre, Revue des Études Grecques, XLVI (1933), ps. 224-232; G. MATHIEU, Les Premiers Conflits entre Platon et Isocrate et la date de l'Euthydème, Mélanges G. Glotz, Paris, 1932, II, ps. 555-564; Notice à sua edição de Antídosis, edição "Budé" de Isocrate, III, Paris, 1942, ps. 90-94; e, por último, W. JAEGER, Paideia, III, Londres, 1945, pass. (cf. p. 364, s. v. Isocrates and Plato).
Não ouso considerar incorporadas à ciência as conclusões de nenhum destes eruditos, Notem-se as razões por que tal pesquisa, aventurosa, está, até nova ordem, condenada ao fracasso: 1. Imprecisão da cronologia respectiva das obras dos dois autores; quaisquer que sejam os progresso realizados, particularmente no que tange aos Diálogos platônicos, desde Campell e Lutislawski, muitas incertezas subsistem: o Busiris é anteriores ou posterior a A República? Cf. A. DIÈS, Autour de Platon, II, p. 247.
   2. Imprecisão das alusões de Isócrates: um dos traços característicos de sua estética (e ele será largamente imitado por seus sucessores!) é evitar as designações precisas; ele fala de seus adversários, empregando fórmulas vagas, tais como "aqueles que se dedicam a discussões" ou "à filosofia". Tratar-se-á de Platão? De Antístenes? De ambos simultaneamente? Estão abertas as apostas. Também é possível que Isócrates esboce um retrato compositivo, cujos traços sejam tirados ora a um certo grupo de filósofos, ora a outro, quando não a sofista do tipo de Alcídamas.
    3. Finalmente, incerteza quanto ao valor que se deva atribuir aos juízos de Platão. Assim, no fim de Fedro (278d-279b), ele faz Sócrates pronunciar um elogio de Isócrates: cabe tomá-lo a sério (FLACELIÈRE, e já o próprio Isócrates, Ep., V)? Mas, não se trataria de ironia (ROBIN)? E mesmo a tomá-lo literalmente, que significa ele exatamente? Tratar-se-ia de um elogia ao Isócrates da data em que Platão escreve (WILAMOWITZ, Platon², II, p. 212), ou de uma nostálgica alusão às belas promessas que Isócrates justificativa em sua juventude, no momento em que Sócrates falava (suponhamos que por volta de 410) e que teriam falido (TH. GOMPERZ, Penseurs de la Grèce, II, p. 438)?

[15] Aristóteles e o ensino da retórica no seio da Academia: cf. por último W. Jaeger, Paideia, III, ps. 147, 185-186, que remete ao trabalho de seu discípulo F. SOLMSEN, Die Entwicklung der aristotelischen Logik und Rhetorik, Neue Philologische Untersuchungen, IV, Berlim, 1929.

* http://www.hottopos.com/mirand12/euzeb.htm

Texto retirado de MARROU, Henri-Irénée. História da Educação na Antigüidade. 4ª Impressão, São Paulo, Editora Pedagógica Universitária Ltda. e Editora da Universidade de São Paulo, 1973. (Esta obra foi reeditada pelas Edições Kírion, Campinas, 2017).


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Matemática: Ciência da Quantidade - Prof. Pedro Miranda

Criação do Cosmos - Cristo criando
o cosmos Gênesis 1 No princípio
- por Ted, 4 de março de 2011

Transcrevemos abaixo trechos da aula do prof. Pedro Miranda sobre Matemática: Ciência da Quantidade

O vídeo pode ser encontrado aqui: Link.

Interlocutor Pablo Cânovas: Sejam muito bem-vindos a mais um podcast da Contra Errores. Estamos aqui novamente com o professor Pedro. Dessa vez, como nós falamos no final do nosso último podcast, para falar sobre matemática. O professor Pedro também é professor de Matemática. O que o nosso professor vai fazer hoje é apresentar o desenvolvimento da Matemática de Aristóteles até hoje.

Professor Pedro Miranda: Bom dia, boa tarde, boa noite a todos os ouvintes. Agradeço mais uma vez ao Pablo por essa oportunidade de falar com vocês e de tratar desse assunto tão interessante, e que poucos falam nos dias de hoje. As Matemáticas são já bem desenvolvidas em diversas civilizações. Podem notar isso pelas descobertas arqueológicas. Como se observa os egípcios, os povos mesopotâmicos e os povos que formaram a civilização chinesa. Isso é algo que é cosmopolita esse trato com essas Matemáticas. No entanto, as Matemáticas, que são duas, estiveram sempre em torno de sua aplicabilidade. A Geometria deveu muito à agrimensura para delimitar o terreno para o plantio. A Aritmética deveu muito à contagem de quantidades de material para comercialização, quantidade de unidades de rebanho ou com unidades fixas de quantidade de grãos, por exemplo. 

A primeira coisa que deve-se salientar é que as técnicas matemáticas se desenvolveram primeiro que sua conceituação. Na Índia antiga tiveram algoritmos que permitem a técnica da divisão, para o mesmo cálculo de áreas de polígonos ou a determinação dos poliedros. Tudo isso é bem cosmopolita. O que eu farei hoje em pouco tempo, pelo menos no meu ponto de vista, é investigar como Aristóteles considera a Matemática. Nós estamos com o pressuposto de que as Matemáticas têm como sujeito de sua ciência o ens quantum em latim ou το ποσό em grego. [ente quantidade]

Em Aristóteles, evidentemente, no seu Tratado dos Complexos nas Categorias, a primeira categoria que nós estudamos é a substância. Não vamos adentrar na substância. A segunda categoria na listagem de Aristóteles, nesta obra, é a quantidade. No entanto, é importante que nós saibamos de antemão que na Metafísica, Aristóteles coloca quantidade em segundo plano enquanto acidente. Acidente é aquilo que acontece na substância, é aquilo que acontece em outro. Ele coloca em primeiro lugar a qualidade. Por quê? Porque já na altura de sua vida ele escreve Metafísica e já estabelece a doutrina de forma e matéria. De onde a qualidade flui imediatamente da forma, enquanto a quantidade flui imediatamente da matéria. Então uma substância, quando possui a categoria quantidade, podemos chamá-la de certo aspecto de corpo. Um exemplo: os anjos não são exatamente corpóreos. Eles não estão restritos à categoria quantidade. Por isso que dizemos que são substâncias separadas. Quando um anjo age, ele não age com base na localidade, pois ele intensifica sua ação no lugar que ele deseja. Ou às vezes ele pode aparecer em forma corpórea, não por necessidade corpórea, mas para se apresentar de uma forma racionalizado para nós.

O que é quantidade? Para Aristóteles, a quantidade é o acidente, cuja característica central é ter parte, pode ser divisível. Vamos fazer uma comparação para podermos enxergar essa afirmação. Quando eu pego uma qualidade, por exemplo, o branco que está na parede. Vou ter uma parede branca diante de mim. A qualidade branca pode ser separada? Ela não tem parte para ser separada. A parede é branca. Mas existe uma tendência linguística de que se diz que essa parede é muito branca, quer dizer que há uma amplitude. A superfície em que ela que é branca é grande. Então, no fundo, muitas vezes a gente diz que é muito branca, porque ela é extensa. A superfície da parede é extensa. É nesse sentido e isso também faz sentido na sintaxe grega. Os gregos falavam que isso aqui é muito branco, no sentido de que a superfície, que tem a qualidade branca, é muito extensa. Notem que a superfície é uma quantidade.

A quantidade é o acidente que têm partes e pode ser dividida em discreta e contínua. E também de acordo com suas partes a quantidade pode ter posição entre as partes ou não. O que é essa posição? Pode haver ordem entre as partes. Pode ser primeira, segunda, terceira, quarta ou não.

Pois bem, então vamos aqui tratar de alguns exemplos de quantidades discretas. Aristóteles chama a atenção para dois tipos de quantidades, que são caracteristicamente discretas que são os números e o discurso. O discurso que ele está se referindo é ao texto mesmo. O número vai quantificar certas unidades. Quando Aristóteles fala [unidade], entenda aqui um número natural: um dois, três, quatro, cinco... Não têm $0,7$. Não temos números reais aqui em Aristóteles. Quando ele fala números, ele está se referindo aos naturais que são aqueles que nós podemos contar. Por outro lado, temos os números contínuos que são os nossos lugares geométricos. A linha, a superfície, o corpo, o tempo e os ciclos. Os ciclos porque tem aspecto de quantidade, a localização, posição dentro do espaço. Que podemos discernir quantidade discreta de quantidade contínua? Quando eu escrevo $5$. Isso aqui é um algarismo que indica um número. O símbolo é o algarismo. (Em algarismo romanos V). O símbolo pode mudar, pois o símbolo corresponde ao número.  O número, no sentido aristotélico, é aquilo que se obtém a partir de uma contagem. [o professor desenha cinco pontos no quadro] O que significa? Indica que alguém contou cinco unidades de alguma coisa, de pessoas, objetos, qualquer coisa que você quiser.

Recapitulando: uma coisa é o algarismo que simboliza o número, são algarismos arábicos e romanos ($5$ e V). Esses algarismos são símbolos que indicam o número. Do ponto de vista aristotélico, o número é o resultado de uma contagem. O que é uma contagem? Uma contagem é quando eu escolho uma unidade de critério de contagem. Por exemplo, aqui na minha mesa eu tenho diversos objetos. Eu crio um critério: o critério de contagem é o objeto individual. Eu vou começar a contar os objetos individuais que estão sob minha mesa: um celular, uma caneta, mouse, uma garrafa d'água. Toda vez que eu identifico uma das unidades, eu apreço uma unidade no meu número.

Notem uma coisa: quando eu desenho assim um “bifurcamento discreto” [há cinco pontos no quadro no formato da letra W], que é um exemplo de representação de uma contagem discreta. É possível notar que cada parte [ponto] não tem um limite em comum. Elas não tem um limite em comum. No entanto, quando estou considerando elas juntas, isso para mim é quantidade. Qual é a característica da quantidade discreta? As partes dessa quantidade não tem um limite em comum.

No caso do discurso, o discurso é composto por letras, por sílabas ou fonemas. O discurso falado são fonemas. Eu posso dividir? Posso tranquilamente. Qualquer palavra pode ser dividida em partes. Essas partes são discretas. Por que são discretas? As sílabas não têm um limite em comum entre elas. Então, por exemplo, a palavra: Nú-me-ro. Não existe nada que a separa, não existe algo que separa essas sílabas ou mesmo esse fonema: Nú-me-ro. É claro que quando eu falo rapidamente, vai diminuindo o intervalo entre os sons para formar a palavra articulada “Número”. Esses são os dois exemplos que Aristóteles traz de quantidades discretas. Hoje em dia a gente tem uma disciplina chamada Matemática Discreta, cujo princípio não mudou. O princípio é o mesmo. É claro que vamos ter teoremas, corolários, proposições acerca do que nós podemos fazer com as quantidades discretas.

Agora vamos para as quantidade contínuas. Temos caracteristicamente exemplos importante. Aqui nós damos o nome de lugares geométricos. A primeira delas é a linha. A linha é potencialmente infinita. O infinito aqui é matemático. Cuidado com isso. Já vou explicar. Agora temos aqui as quantidades contínuas. Nas quantidades contínuas, nós temos três elementos importantes a serem aprendidos. Aqui eu representei uma linha ou reta. Cuidado com isso [o professor desenha uma reta no quadro]. Na Matemática, a linha reta é potencialmente infinita. Significa que ela continua para um lado e para outro lado indefinidamente. É claro que não é possível que eu desenhe uma reta ou linha [por completa]. Eu posso representar um segmento de reta, representando a reta. Eu desenhei um pedaço dela, mas eu quero dizer que ela continua de um lado e continua do outro lado. A linha ou reta é uma quantidade contínua. Se ela é uma quantidade, por definição, ela possui partes, quer dizer, que eu posso dividir ela quantas vezes eu quiser. Quantas partes eu posso potencialmente dividir uma reta ou linha? Infinitas. Não tem limite para isso. Isso vai ser de fato infinito? Não. Em Matemática, dizemos que tende indefinidamente a crescer.

Interlocutor: Eu me lembrei de uma aula de Química que eu tive no Ensino Médio. Nessa aula de química, ele compara a teoria do átomo com uma suposta teoria de Aristóteles, que era justamente quanto a infinitude das divisões da quantidade contínua. Ele dizia que, quando se descobriu o átomo, refutou Aristóteles, porque se descobriu que tinha um limite na divisão.

Professor: Eu vou falar sobre isso. Esse assunto será a cereja do nosso bolo hoje. De fato, nós podemos potencialmente dividir uma reta e infinitas partes. Potencialmente, isso pode ser atualizado, isso pode ser feito? Não. Por que falta tempo e falta ato para isso. Bom, eu tenho infinitas partes, quando eu divido uma reta, quando eu corto* uma reta. Vamos supor que eu pegue uma faca e passe a faca [numa reta]. Eu vou ter quantas partes se eu cortar aqui? Eu vou ter duas partes. Uma de um lado, outra do outro lado. Note uma coisa: se eu cortei eu tenho um ponto. O ponto é uma intersecção da parte à esquerda e da parte da direita. Esse ponto pertence tanto à parte à esquerda quanto à parte direita. Então, qual é a característica essencial da quantidade contínua? Eu sempre terei um limite entre as partes. Existe um limite. Na quantidade discreta, não existe um limite. No caso de entes de uma dimensão que é a reta, (a reta é um ente de uma dimensão) o limite de entes de uma dimensão são entes de dimensão zero que são pontos.

De modo completamente análogo, quando eu tenho uma superfície como plano ou superfície [o professor desenha uma plano no quadro]. A superfície continua é indefinidamente para lá e para cá, mesma coisa (todas as direções). Ela é infinita também e eu desenho ela como um pedaço dela, um fragmento da nossa superfície. Se eu estabelecer uma divisão em nossa superfície, vamos supor agora que eu passe uma reta aqui cortando [o professor desenha no plano uma reta o intersectando diagonalmente]. Portanto, superfície ou área é um ente geométrico de duas dimensões. Enquanto que o limite que eu coloquei na superfície é um ente de uma dimensão. Porque agora o limite das partes que contém essa superfície, (tenho duas partes: a parte de cá [à esquerda] e a parte de cá [à direta]) o limite entre as partes é uma reta.

Eu tenho um sólido, [o professor desenha um cubo no quadro] um cubo torto, um paralelepípedo, agora um tijolo. O sólido é um lugar geométrico de três dimensões. Como é que eu corto* um sólido de modo a produzir partes? Eu tenho que vir aqui agora e traçar um plano no meu sólido [o professor desenha plano intersectando o sólido]. O plano é um ente geométrico de dimensão dois. Se eu quiser, eu posso continuar em todas os lados, mas pode ser do tamanho que eu quiser. Potencialmente infinito. Infinito quantitativamente. Cuidado com isso. Uma coisa é o infinito na Teologia e na Metafísica, outra coisa é o infinito usado na Matemática. Aproveitando para falar sobre o infinito, tem uma pergunta sobre o infinito que daqui a pouco vou responder. 

Interlocutor: Uma pergunta: quando você divide uma quantidade contínua, ela já pode ser considerada como quantidade discreta, enquanto duas partes discretas?

Professor: Não. A quantidade contínua [quando dividida] continua sempre sendo contínua, por que ela continua tendo partes cujos limites existem. Eu não separei o sólido. Eu só identifiquei um limite entre duas partes do sólido aqui. Ele não se tornou discreto.

O que mais que Aristóteles considera como contínuo? O tempo é contínuo para Aristóteles. O tempo pode ser visto de certo ângulo, como uma quantidade. Cuidado com isso. Quais são as partes do tempo? Os instantes. Só que eu posso ter instantes intermediários. Qual é o limite entre passado e futuro? É o instante presente e esse instante presente está sempre caminhando adiante em direção ao futuro. Se eu imaginar o instante presente como um ponto, ele vai caminhando e vai se unindo simultaneamente. Ele vai conectar passado e futuro. Então, nesse sentido, eu posso considerar o tempo como uma quantidade contínua. O que mais é quantidade? O situs, o lugar também é quantidade continua, porque eu posso localizar corpos ou coisas usando pontos dentro do espaço. O espaço é contínuo porque o espaço, as partes do espaço possuem o limite em comum. Quando é uma reta, o limite em comum são pontos. Quando é uma superfície, o limite em comum é uma reta. O que quer dizer limite em comum? Significa que essa reta pertence tanto a esta parte [à esquerda] quanto a esta parte [à direita] (o professor se refere ao plano interceptado por uma reta). No sólido, esse plano vermelho aqui [na lousa] pertence tanto à parte de trás quanto à parte da frente. Então, existe um limite em comum entre as partes da quantidade contínua.

Além disso, existem quantidades cujas partes têm posição recíproca entre si. O que é posição recíproca? Eu tenho uma ordem. Eu posso associar uma reta ou uma direcionalidade, por exemplo, a reta dos números reais. Nós [a] simbolizamos assim [o professor desenha a reta real no quadro]. Hoje se coloca uma direção aqui no meio, o zero. Então, do zero adiante [à direita], eu tenho os números que são positivos e aumentam indefinidamente. Do zero à esquerda, eu tenho os números negativos, que também "aumentam". Na verdade, diminui indefinidamente. Aqui vai para menos infinito ($-\infty$) [lado esquerdo] e mais infinito ($+\infty$) [lado direito]. Quando um matemático e um físico usam esse símbolo ($\infty$), não estão se referindo ao infinito da Metafísica e da Filosofia. [Isso] está querendo dizer que para cá, [esquerda da reta real] os números decrescem indefinidamente. Ou seja, potencialmente tem um potencial infinito para crescer para cá [direita da reta real] para aumentar. Então aqui temos os números grandes [positivos] e para cá, os números pequenos, menores [negativos].

Tudo o que nós falamos até agora, pelo menos para Aristóteles, são quantidades em sentido próprio, per si. Mas nós usamos a quantidade de modo incorreto como, por exemplo, isso aqui é mais branco, ou é mais rápido ou o movimento é mais longo. Então, linguisticamente falamos certas coisas, pronunciamos certas coisas como se fossem quantidades, mas não são. É um recurso linguístico, mas do ponto de vista lógico é incorreto usá-los. 

Agora vamos às três propriedades da quantidade. A primeira propriedade da quantidade é que a quantidade não admite o contrário. Por exemplo, se eu tenho uma quantidade de dois metros, qual é o contrário de dois metros? Não tem sentido lógico. Não é $-2$! O $-2$ também é uma quantidade diferente de dois metros. Na verdade, $-2$ metros não existe. Não existe comprimento negativo. Usamos os números negativos na Matemática, porque são entes de razão, devido a necessidade algébrica. Mas os números negativos não representam coisas. Eles representam a ausência de coisas. Quando eu tiver um saldo negativo no meu banco, vai aparecer um número negativo, mas ele não corresponde a uma concretude, em grego, σύνολον. Ele não representa um σύνολον. Ele é um ente de razão, assim como a privação que vemos na filosofia. A privação também é um ente de razão.

Segunda propriedade da quantidade: a quantidade não admite mais ou menos. Esses são os termos de Aristóteles. O que significa mais ou menos? Se eu tenho a quantidade dois, eu contei dois feijões e depois contei duas vacas. Sobre os dois feijões, o número dois que eu abstraí dessa contagem é mais dois do que as duas vacas que eu contei? Não, são o mesmo. Uma vez que eu tenho uma quantidade igual a outra, não é mais do que a outra. Então não cabe, não faz sentido lógico, dar intensidade às quantidades.

Propriedade três da quantidade. É característico da quantidade (dizemos que é um τόπος, é o modo característico de usar linguisticamente e logicamente a quantidade) a seguinte coisa: é o mais próprio poder ser igual ou desigual. Eu posso comparar duas quantidades ou elas são iguais ou desiguais. Em Matemática, nós desenvolvemos sinais para isso. Nós temos o sinal de igualdade ($=$). Quando uma relação matemática possui um sinal de igualdade, nós damos o nome a essa expressão matemática de equação. Eu tenho sinais de desigualdade, menor ($<$) e maior ($>$). Quando uma relação matemática possui esses sinais, nós damos o nome a essa expressão de inequação, porque expressam desigualdades. Uma desigualdade implica que os números comparados ou um é menor do que outro, ou um é maior do que o outro. Acho que isso é uma das coisas mais importantes a serem ditas a partir das Categorias de Aristóteles. 

É sempre importante relembrar que, quando Aristóteles escreve as Categorias (na verdade, são notas de aula, por isso que a tradução é difícil). Existem diversas interpretações das Categorias e os materiais que nós temos traduzidos e vertido ao português não são muito bons. Eu estou sendo sincero com vocês. O ideal é que vocês aprendam grego e leiam direto para não ter que fazer esse esforço de ter que interpretar a visão do tradutor. Nas Categorias, Aristóteles coloca a quantidade como a segunda categoria. Primeiro a substância, depois a quantidade e depois a qualidade. No entanto, na altura de sua vida, quando ele está escrevendo a Metafísica, ele coloca a qualidade em primazia, porque a qualidade é informada pela forma do ente (do σύνολον), enquanto que a quantidade pela matéria. Aristóteles dá primazia quase sempre para a forma que é o princípio de comunicação do ato daquele ente. Por que isso? Em Aristóteles, temos a quantidade discreta e contínua, mas entre as duas, qual é mais quantidade, caracteristicamente quantidade? É a quantidade continua. A quantidade contínua é mais quantidade do que a quantidade discreta, mas no sentido (é claro que isso é uma figura de linguagem) mais caracteristicamente quantidade.

A nossa realidade física é fundamentalmente contínua. No entanto, como havia colocado o Pablo anteriormente, nós temos unidades que são os átomos. Até hoje em dia, nós imaginamos que os átomos são coisas discretas, mas isso não faz o menor sentido. Na visão de Demócrito e Leucipo, que foram os primeiros a propor a teoria atômica, eles imaginavam que realmente era uma unidade indivisível. Átomos (ἄτομος) . O prefixo “a” é negação e “tomos” vem de parte: sem parte, indivisível. Isso foi encontrado alguma vez, de verdade? Verificamos isso experimentalmente? Não. O que dá a entender, de acordo com os estudos mais avançados, é que cada vez mais há mais partes, que há mais subpartículas. Cada vez mais se estuda, cada vez mais que se divide os átomos, encontramos mais e mais partes. Isso deixa os físicos doidos. Porque daí não conseguem compor o modelo padrão do átomo, da teoria atômica. A realidade, pelo menos, o espaço, nós sabemos que ele é contínuo. Todos os entes contidos no espaço também são contínuos, caracteristicamente contínuos. Os entes contados, as quantidades discretas são arbitrárias. Quem define a unidade é uma arbitrariedade humana. Eu tenho que escolher uma unidade de contagem. A quantidade discreta é mais artificial, por assim dizer, do que a quantidade contínua. Por isso que se dá primazia à caracterização da quantidade, pela quantidade contínua.

Agora vamos à pergunta que foi nos passada. A pergunta é seguinte: o conjunto dos naturais e dos reais possui infinitos elementos, mas a cardinalidade dos naturais é menor que a dos reais, porque não é possível preencher o corpo dos reais com uma bijeção do domínio dos naturais, dando certa ideia de que aquele ser “menos denso” que esse?

É uma excelente pergunta. Estudamos essa questão em Análise. O conjunto dos naturais, que são os números que naturalmente são produzidos pela contagem, é potencialmente infinito. Então eu posso contar, em matemática, indefinidamente. No entanto, na reta real entre o número $1$ e o número $2$, por ser o número real, eu tenho infinitos números. Melhor colocado: tenho potencialmente infinitos números. Significa, como [colocado] nessa pergunta, parece que o [conjunto dos] números reais é mais denso devido a bijeção. Eu posso estabelecer uma bijeção entre reais, entre intervalos dentro dos números reais, mas nenhum entre [intervalos de números] reais e naturais. Isso acontece porque existem em Matemática diferentes tipos de infinitos. Para isso, usamos a primeira letra do alfabeto hebraico. Para os números naturais, usa-se $\aleph_1$ [álefe 1], para os números reais, usa-se $\aleph_3$ [álefe 3]. Esse álefe é o conceito que nós atribuímos a esses conjuntos numéricos, para “estabelecer” quão infinitos eles são, que tipo de infinitude estamos tratando. Aqui é a infinitude matemática. Cuidado com isso. Acho que está respondida a pergunta.

Interlocutor: Importante falar que na Suma Teológica, São Tomás se pergunta se mesmo um corpo infinitamente extenso seria comparável à infinitude de Deus. É óbvio que não, porque mesmo se existisse um corpo infinitamente extenso, ele só pode ser infinitamente extenso se houver uma contagem de suas partes. Em certo momento, para algo ser três, precisou ser um e adicionou um e chegou a dois, adicionou outro e chegou a três. Enquanto Deus é simultaneamente todas suas partes, simultaneamente todas suas qualidades, melhor dizendo. Então essa é a maior diferença entre o infinito da Matemática, das quantidades e o infinito da Teologia: Deus é simultaneamente as perfeições, enquanto na quantidade há sucessão das perfeições. 

Professor: Exatamente. Essa questão também nos induz a falar sobre a questão do universo. O universo não pode ser infinito, do ponto de vista espacial. Isso é impossível pela Física moderna e é conhecido astronomicamente, porque as galáxias estão se afastando. Nós temos notícia experimental de que o universo está se expandindo. Se o universo é infinito, ele não aumenta: é uma contradição lógica. Se você olhar para o céu e ver o espaço, o universo físico está se expandindo e ao mesmo tempo você afirma que ele é infinito, tem que escolher [entre as duas condições]. Muitos físicos caem nisso, porque não pensaram direito sobre isso. O universo que é todo o espaço é finito. No entanto, [o universo] é imenso. O que significa imenso? Analisando a palavra imenso é não mensurado, “menso” é mensuração e “i” negação no português, imenso é sem medida. Porque todas as medidas são feitas dentro do universo. Não tem como sair fora do universo para medir ele. Isso implica em duas coisas: que o universo não pode ser medido de fora e que o universo não tem formato. Não tem formato geométrico, ele não é um cubo, ele não é uma esfera.

Interlocutor: Como diz o professor Nougué: a figura do universo é não ter figura.

Professor: Exatamente porque ele é imenso. Não faz sentido atribuir mensidão ao universo. Isso implica em uma terceira coisa que quase não é falada. O universo é auto-contido espacialmente. O que é auto-contido? Ele não tem um limite, tipo uma parede. Daqui para cá é o nada, daqui pra lá é o universo. Não dá pra fazer isso. O universo é auto-contido. Ele não tem um limite, no sentido de fora dele. Isso é um conceito difícil de ver e difícil de enxergar.

Esses são os três atributos fundamentais do universo. O universo é finito quantitativamente. Ele se apresenta para nós como infinito potencial. Parece que é potencialmente infinito, mas não é. Ele é finito de fato, e tem uma extensão dada. Tem o número que representa a sua extensão. Esse é o ponto. Existe esse número. Nós conhecemos ele? Não, mas ele existe. Então ele é finito.  Ele é imenso, não tem medida e não tem formato ou figura. O termo também usado é figura, como o Carlos Nougué usa. Em consequência de não ter figura e não ter formato, ele é auto-contido. As suas localizações são todas conectadas. 

Uma coisa importante de notar sobre essa questão das quantidades, é que o próprio espaço, visto como conjunto de τοποσ, de τοποι, é contínuo. Ele não é discreto. Então a natureza quantitativa das coisas é fundamentalmente contínua, como havia dito anteriormente.

É sempre importante ressaltar que Aristóteles diz que a Matemática não serve como ferramenta para a Física. A Física tem que usar outros métodos. Por que ele faz isso? Por que ele considera a Matemática uma ciência, um conhecimento que trabalha com quantidades bem conhecidas. Por que ele exclui a questão, por exemplo, da probabilidade. A probabilidade é uma quantidade também. Ela se caracteriza por ser uma quantidade. Como ele desconsidera a probabilidade, a questão de usar a Matemática dentro da Física é excluída.

No entanto, com a Física moderna, com a ciência moderna, tem a exclusão das outras categorias. Não importa mais a qualidade. Todas as qualidades que nós temos são reflexos da quantidade. Todas as relações, todo o tempo, espaço, lugar, posse. Então, dentro da mentalidade moderna, nós temos só quantidade. Essa é uma das pedras fundamentais do materialismo filosófico. Nem a substância eles consideram. 

Interlocutor: Já começa com Descartes, ele que dividiu as coisas entre res extensa e res cogitans, como se o seu mundo concreto fosse só extensidão, só quantidade contínua, do ponto de vista do Descartes.

Professor: É claro que isso é uma loucura. Você tem a substância que existe em si. Os predicamentos ocorrem sobre a substância. Então isso é uma inversão. É claro que a ciência moderna permitiu certos conhecimentos. Só que eles são metafisicamente limitados. Quando ouvimos aquela frase: “o ser humano é poeira estelar”. Você está vendo o ser humano em termos de sua extensão. Compare a minha massa com a massa de uma estrela. Claro que vai ver uma diferença gigantesca. Mas por que eles pensam assim? Porque eles estão considerando, às vezes sem saber, que o tudo o que existe é a quantidade. É claro que vai sair uma afirmação dessa. “O ser humano é poeira de estrelas”. Claro, você está reduzindo o ser humano às suas quantidades e às suas extensões mensuráveis ainda.

Essa é a mentalidade que nós devemos primeiro entender e como é que ela funciona para saber responder essa gente. O Carl Sagan tem uma visão materialista das coisas. Mas se nós pudéssemos falar com ele: “Escuta, por que o senhor afirmou isso? O senhor afirmou isso porque o senhor pegou o ser humano e reduziu ele a suas quantidades. O Senhor pegou as estrelas e reduziu elas a suas quantidades. Aí você comparou essas quantidades. A massa do ser humano é muito menor que a massa da estrela. E disso, você tira esse bordão que nós somos poeira estelar”. Ele não nota quando ele faz isso, ele não sabe disso. 

Interlocutor: É algo poeticamente algo tão pobre. Se for comparar isso com nosso próprio linguajar cristão: “o homem é o pó da terra”. Tem uma mística, um valor poético muito diferente. 

Professor: É porque ele usa a palavra estrela. Nessa tentativa de ser humilde, na verdade, ele está colocando que ele conhece as estrelas. É isso que está por detrás dessa mentalidade materialista quando se arrisca a produzir esses adágios. Só sai coisa ridícula e totalmente desvirtuosa, fora do padrão, desequilibrado. 

Então é importante que conheçamos bem a quantidade, porque a nossa formação escolar é muito fraca nisso. Os professores só ensinam as técnicas de resolução de problemas matemáticos. Nunca nenhum professor me falou que há uma quantidade. Uma vez eu perguntei para um matemático: “o que é a quantidade?” Ele falou que nunca viu isso em nenhum livro. “Que teoria é essa?” Não é nenhuma teoria. Isso é uma coisa com uma categoria muito básica. E aquilo nunca tinha passado pela cabeça dele.

Interlocutor: É o fundamento do que ele faz.

Professor: Eu pensei: “isso é a Matemática, é o ens quantum, é o sujeito da ciência matemática!” O pessoal da universidade, de exatas, têm boa formação porque eles têm boas técnicas nesse sentido. Técnicas, computacionais, teoréticas, lógicas, mas eles mesmos não sabem muito da natureza daquilo que eles estão tratando. Esse é o ponto. Nós devemos estar formados, preparados para isso, para quando encontrarmos um desse, podermos fazer as perguntas certas e darmos as respostas certas também. Eu sei que entre nós, que temos uma formação um pouco mais tomista, tem pouca gente que trabalha com o conhecimento da categoria quantidade e com a própria Matemática. 

Hoje a Matemática está muito desenvolvida. Só que é uma Matemática descolada no seu fundamento. Ela tem a sua conexão com o fundamento que é o ens quantum, mas cada vez mais ela se tornou descolada desse fundamento. Em Matemática, nós temos os constructos, por exemplo, estudamos em álgebra: anéis, grupos, corpos, álgebra mesmo, que são conjuntos estruturados como operações. 

Interlocutor: Professor, antes de entrar em álgebra, eu gostaria de fazer uma pergunta que cai em meus interesses. Eu não sei exatamente qual seria o conceito estrito de álgebra, mas o fato é que mesmo eu trabalhando em pesquisa linguística, tenho de usar algo que eles chamam de álgebra. Tenho de fazer cálculos, seja para mexer em programa de computador, para ele ficar rodando ou para demonstrar alguma coisa. Eles chamam isso de álgebra. O que me parece mesmo eu não tendo nenhum conhecimento técnico aprofundado nisso, é que a álgebra é só uma técnica que pode ser usada em várias ciências. Não é exatamente algo, uma parte da Matemática, mas é uma técnica. Pode ser usado pela Linguística, pela Computação ou pela Matemática. Para o senhor, o que é a álgebra?

Professor: Bom, primeiramente, a Álgebra é uma palavra de origem árabe al-jabr. Que significa a recuperação no sentido de repor um equilíbrio. Esse é o conceito original de Álgebra. A Matemática é dividida em Geometria que vai se aprofundar em Topologia; é dividida em Álgebra, que é um aprofundamento da Aritmética. Primeiro a noção de Álgebra é um aprofundamento da Aritmética. Temos a Análise e temos a Matemática Aplicada. A Álgebra trata de conjuntos estruturados. Esse é o sujeito da ciência Álgebra. E a Álgebra tem suas técnicas.

A palavra álgebra hoje tem conotações que não é a álgebra matemática. Por exemplo, quando você tem que fazer um processo de decisão e você tem um algoritmo. Você pode chamar isso de modo muito aproximado de álgebra. Mas é uma espécie de figura de linguagem. Não é um termo técnico bem definido. Eu vou fazer algo que é uma álgebra dos lugares comuns ou uma álgebra dos topoi. Isso é uma figura de linguagem, porque a álgebra mesmo é a álgebra matemática.

É aquela coisa que falamos na reunião passada da palavra emergência. Hoje em dia, a palavra emergência é usada em diversos contextos que não cabe a ela, porque é um termo bem definido. Isso faz parte de uma língua viva. Esses usos não ortodoxos do conceito principal da palavra. Nesse caso, emergência, e noutro caso, álgebra. Não sei se respondi [sua pergunta].

Por hoje, é isso. É suficiente. Tem bastante coisa.

Obs.: Os grifos e as partes entre colchetes são nossos.

* Quando o professor se refere a corta a reta, ele está se referindo a intersecção desta reta com uma outra, no caso aquela reta pertencente a referida faca. De modo análogo, com o sólido.


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Boécio e Cassiodoro

Cassiodoro, em um manuscrito
do século XII
PAPA BENTO XVI
AUDIÊNCIA GERAL
Sala Paulo VI
Quarta-feira, 12 de Março de 2008

Boécio e Cassiodoro

Amados irmãos e irmãs

Hoje, gostaria de falar de dois escritores eclesiásticos, Boécio e Cassiodoro, que viveram nos anos mais atormentados do Ocidente cristão e, em particular, da península itálica. Odoacre, rei dos Erulos, uma etnia germânica, revoltou-se, pondo fim ao império romano do Ocidente (a. 476), mas depressa teve que sucumbir aos Ostrogodos de Teodorico, que por algumas décadas mantiveram o controle da península itálica. Boécio nasceu em Roma por volta do ano 480, da nobre linhagem dos Anísios, e entrou ainda jovem na vida pública, alcançando já com vinte e cinco anos de idade o cargo de senador. Fiel à tradição da sua família, comprometeu-se na política, convencido de que se podiam conciliar as linhas fundamentais da sociedade romana com os valores dos novos povos. E neste novo tempo do encontro das culturas, considerou como sua missão reconciliar e unir estas duas culturas, a clássica romana com a cultura nascente do povo ostrogodo. Foi igualmente activo na política, mesmo sob Teodorico, que nos primeiros tempos o estimava muito. Apesar desta actividade pública, Boécio não descuidou os estudos, dedicando-se em particular ao aprofundamento de temas de ordem filosófico-religiosa. Mas escreveu também manuais de aritmética, de geometria, de música e de astronomia: tudo com a intenção de transmitir às novas gerações, aos novos tempos, a grande cultura greco-romana. Neste âmbito, ou seja, no empenho de promoção do encontro das culturas, utilizou as categorias da filosofia grega para propor a fé cristã, também aqui em busca de uma síntese entre o património greco-romano e a mensagem evangélica. Precisamente por isto, Boécio foi qualificado como o último representante da cultura romana antiga e um dos primeiros intelectuais medievais.

Sem dúvida, a sua obra mais conhecida é o De consolatione philosophiae, que ele compôs no cárcere para dar um sentido ao seu aprisionamento injusto. Com efeito, fora acusado de conspiração contra o rei Teodorico, por ter assumido a defesa em juízo de um amigo, o senador Albino. Mas este era um pretexto: na realidade Teodorico, ariano e bárbaro, suspeitava que Boécio tivesse simpatias pelo imperador bizantino Justiniano. De facto, processado e condenado à morte, foi justiçado no dia 23 de Outubro de 524, com apenas 44 anos. Precisamente por este seu fim dramático, ele pode falar do interior da sua experiência também ao homem contemporâneo e sobretudo às numerosas pessoas que padecem a sua mesma sorte por causa da injustiça presente em muitas partes da "justiça humana". Neste obra, no cárcere busca a consolação, a luz, a sabedoria. E diz que soube distinguir, precisamente em tal situação, entre os bens aparentes na prisão eles desaparecem e os bens verdadeiros, como a amizade autêntica que mesmo na prisão não desaparecem. O bem mais excelso é Deus: Boécio aprendeu e ensina-nos a não cair no fatalismo, que apaga a esperança. Ele ensina-nos que não é o caso que governa, mas sim a Providência, e que ela tem um rosto. Pode-se falar com a Providência, porque Ela é Deus. Assim, também no cárcere lhe permanece a possibilidade da oração, do diálogo com Aquele que nos salva. Ao mesmo tempo, também nesta situação, ele conserva o sentido da beleza da cultura e evoca o ensinamento dos grandes filósofos antigos gregos e romanos, como Platão, Aristóteles, começara a traduzir estes gregos em latim Cícero, Sêneca e inclusive poetas como Tibulo e Virgílio.

A filosofia, no sentido da busca da verdadeira sabedoria, é segundo Boécio o autêntica remédio da alma (cf. lib. I). Por outro lado, o homem pode experimentar a verdadeira felicidade unicamente na sua interioridade (cf. lib II). Por isso, Boécio consegue encontrar um sentido, pensando na sua tragédia pessoal à luz de um texto sapiencial do Antigo Testamento (cf. Sb 7, 30-8, 1), que ele cita: "Contra a sabedoria, a maldade não pode prevalecer. Ela estende-se de um confim ao outro com força e governa com bondade excelente todas as coisas" (lib III, 12: PL 63, col. 780). A chamada prosperidade dos malvados, portanto, revela-se falsa (cf. lib. IV) e evidencia-se a natureza providencial da adversa fortuna. As dificuldades da vida não somente revelam como ela é efémera e de breve duração, mas chegam a demonstrar-se úteis para reconhecer e manter os relacionamentos genuínos entre os homens. A adversa fortuna permite, efectivamente, discernir os amigos falsos dos verdadeiros e faz compreender que nada é mais precioso para o homem que uma amizade autêntica. Aceitar de modo fatalista uma condição de sofrimento é absolutamente perigoso, acrescenta o crente Boécio, porque "elimina pela raiz a própria possibilidade da oração e da esperança teologal, que se encontram na base da relação do homem com Deus" (lib. V, 3: PL 63, col. 842).

A peroração final do De consolatione philosophiae pode ser considerada uma síntese de todo o ensinamento que Boécio dirige a si mesmo e a todos aqueles que viessem a encontrar-se nas suas mesmas condições. Assim escreve na prisão: "Combatei portanto os vícios, dedicai-vos a uma vida virtuosa, orientada pela esperança que eleva o coração a ponto de alcançar o céu com as orações alimentadas de humildade. A imposição que padecestes pode transformar-se, se rejeitardes a mentira, na enorme vantagem de ter sempre diante dos olhos o juiz supremo que vê e sabe como as coisas verdadeiramente são" (lib. V, 6: PL 63, col. 862). Cada prisioneiro, independentemente do motivo pelo qual terminou no cárcere, intui como é pesada esta particular condição humana, sobretudo quando é embrutecida, como acontece com Boécio, pelo recurso à tortura. Particularmente absurda é, além disso, a condição de quem, ainda como Boécio que a cidade de Pavia reconhece e celebra na liturgia como mártir da fé, é torturado mortalmente, sem qualquer motivo que não seja o das suas próprias convicções ideais, políticas e religiosas. Boécio, símbolo de um número imenso de aprisionados injustamente de todos os tempos e de todas as latitudes, é com efeito a objectiva porta de entrada para a contemplação do misterioso Crucificado no Gólgota.

Contemporâneo de Boécio foi Marcos Aurélio Cassiodoro, um calabrês nascido em Squillace por volta do ano 485, que faleceu em idade avançada em Vivarium, por volta de 580. Também ele, homem de alto nível social, se dedicou à vida política e ao compromisso cultural como poucos outros no ocidente romano do seu tempo. Talvez os únicos que podiam comparar-se com ele neste seu dúplice interesse foram o já recordado Boécio e o futuro Papa de Roma, Gregório Magno (590-604). Consciente da necessidade de não deixar esquecer todo o património humano e humanístico, acumulado nos séculos de ouro do império romano, Cassiodoro colaborou generosamente, e nos níveis mais elevados da responsabilidade política, com os novos povos que tinham atravessado os confins do império, estabelecendo-se na Itália. Também ele foi modelo de encontro cultural, de diálogo de reconciliação. As vicissitudes históricas não lhe permitiram realizar os seus sonhos políticos e culturais, que visavam criar uma síntese entre a tradição romano-cristã da Itália e a nova cultura gótica. Porém, aquelas mesmas vicissitudes convenceram-no da providencialidade do movimento monástico, que se ia confirmando nas terras cristãs. Decidiu apoiá-lo, dedicando-lhe todas as suas riquezas materiais e forças espirituais.

Concebeu a ideia de confiar precisamente aos monges a tarefa de recuperar, conservar e transmitir à posteridade o imenso património cultural dos antigos, para que não se perdesse. Por isso, fundou o Vivarium, um cenóbio no qual tudo era organizado de tal maneira que o trabalho intelectual dos monges fosse considerado extremamente precioso e irrenunciável. Ele dispôs que também os monges que tinham uma formação intelectual não deviam ocupar-se somente do trabalho material, da agricultura, mas também transcrever manuscritos e assim contribuir para transmitir a grande cultura às gerações vindouras. E isto sem qualquer desvantagem para o compromisso espiritual, monástico e cristão, nem para a actividade caritativa aos pobres. No seu ensinamento, distribuído em várias obras, mas sobretudo no tratado De anima e nas Institutiones divinarum litterarum, a oração (cf. PL 69, col. 1108), nutrida pela Sagrada Escritura e particularmente pela leitura assídua dos Salmos (cf. PL 69, col. 1149), tem sempre uma posição central como alimento necessário para todos. Eis, por exemplo, como este doutíssimo calabrês introduz a sua Expositio in Psalterium: "Rejeitando e abandonando em Ravena as solicitações da carreira política assinalada pelo sabor amargo das preocupações mundanas, e tendo experimentado o Saltério, livro descido do céu como autêntico mel da alma, mergulhei ávido como um sedento para o perscrutar sem cessar e para me deixar permear inteiramente por esta docilidade salutar, depois de me ter saturado das numerosas amarguras da vida activa" (PL 70, col. 10).

A busca de Deus, orientada para a sua contemplação anota Cassiodoro permanece a finalidade permanente da vida monástica (cf. PL 69, col. 1107). Porém, ele acrescenta que, com a ajuda da graça divina (cf. PL 69, col. 1131-1142), uma melhor fruição da Palavra revelada pode ser alcançada através da utilização das conquistas científicas e dos instrumentos culturais "profanos" já possuídos pelos Gregos e pelos Romanos (cf. PL 69, col. 1140). Pessoalmente, Cassiodoro dedicou-se a estudos filosóficos, teológicos e exegéticos sem uma particular criatividade, mas atento às intuições que reconhecia válidas nos outros. Lia com respeito e devoção, sobretudo Jerónimo e Agostinho. Deste último, dizia: "Em Agostinho, há tanta riqueza que me parece impossível encontrar algo que não tenha já sido tratado abundantemente por ele" (cf. PL 70, col. 10). Citando Jerónimo, ao contrário, exortava os monges de Vivarium: "Alcançam a palma da vitória não somente aqueles que lutam até à efusão do sangue ou que vivem na virgindade, mas também todos aqueles que, com a ajuda de Deus, vencem os vícios do corpo e conservam a recta fé. Mas para que possais, sempre com a ajuda de Deus, vencer mais facilmente as solicitações do mundo e as suas seduções, permanecendo nele como peregrinos continuamente a caminho, procurai acima de tudo garantir para vós a ajuda salutar sugerida pelo primeiro Salmo, que recomenda meditar a lei do Senhor noite e dia. Com efeito, o inimigo não encontrará qualquer passagem para vos assaltar, se toda a vossa atenção for ocupada por Cristo" (De Institutiones Divinarum Scripturarum, 32: PL 70, col. 1147). É uma admoestação que podemos acolher como válida também para nós. De facto, agora vivemos num tempo de encontro de culturas, de perigo da violência que destrói as culturas e do necessário compromisso de transmitir grandes valores e de ensinar às novas gerações o caminho da reconciliação e da paz. Encontramos este caminho, orientando-nos para Deus com o rosto humano, o Deus que se nos revelou em Cristo.


Texto disponível aqui.


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Graus de Abstração - pelo prof. Ivo Fernando da Costa

Iluminura de um manuscrito da
De Consolatione Philosophiae,
feita em Itália no ano de 1385,
mostrando Boécio a ensinar os seus pupilos.

Santo Tomás, no seu Comentário ao livro De Trinitate de Boécio apresenta os 3 graus ou tipos de abstração. São eles: (1) abstractio totius; (2) abstractio formae e (3) separatio. 

Antes de partimos para a exposição dos graus de abstração, é preciso ter presente uma distinção feita por Santo Tomás referente à noção de matéria. Diz-se material tudo aquilo que tem uma razão de substrato que funge como princípio potencial distintivo dos entes. 

Assim a matéria prima é um substrato, de fato é o substrato último que sustém as transformações substanciais. Temos a matéria segunda, ou matéria afetada pelo acidente da quantidade. A própria substância inclui em si uma conotação material pois é o substrato dos acidentes. 

Por outro lado, com “abstração”, entendemos aquele processo mental que foca certos aspectos do ente desconsiderando outros. Em geral, dizemos que um conceito é mais abstrato na medida em que este se encontre mais depurado de elementos materiais. A abstração significa, portando, uma apreciação do ente em seus aspectos inteligíveis e imateriais.

Nesse sentido, ao falar dos graus de abstração, Santo Tomás distingue quatro tipos de matéria: a sensível e a inteligível que podem, respectivamente ser individual e comum. A matéria sensível é aquela ligada às qualidades que são objeto de apreciação imediata dos sentidos: cor, cheiro, tato... são os traços individuantes de um ente captados pelos sentidos. Esta matéria sensível pode ser individual ou comum. Santo Tomás fala de “esta carne” e “estes ossos” como exemplos de matéria sensível, mas poderíamos adicionar: “esta cor branca”, “esta altura”, “este cheiro” etc. Como exemplo de matéria sensível comum, ou seja, considera em geral temos: “carne”, “ossos”, “branco”, “altura”, “cheiro”.

Por matéria inteligível entendemos aqueles aspectos do ente que não são captados pelos sentidos, mas que conhecemos mediante a ação do intelecto que revela o que está por debaixo das qualidades sensíveis como seu substrato. Essa matéria inteligível pode ser também individual ou comum. Temos assim “esta extensão” que é o suporte para “esta cor” ou “extensão” em geral. Resumo estas ideias no quadro abaixo:


Agora podemos passar, de fato, à exposição dos graus de abstração:

(1) ABSTRAÇÃO DO TODO: processo pelo qual extraímos os conceitos gerais dos entes individuais. Da experiência, digamos, de vários cavalos formulamos a noção universal de “cavalo” que se inclui igualmente em cada um dos indivíduos concretos. Abstraímos do indivíduo a sua matéria sensível particular, e ficamos com a matéria sensível comum que entra em sua essência. Por exemplo, Sócrates é este homem concreto com “esta carne” e “estes ossos” que lhe são próprios como indivíduo. Agora, quando abstraímos a essência geral de “homem”, nela deve ser incluída necessariamente a matéria sensível comum: o “homem” é um “animal racional”, faz parte da essência humana a matéria, possui um corpo de “carne e osso”.

Santo Tomás afirma que este tipo de abstração é o que fundamenta a ciência física. No entanto, é preciso ter presente que a “física” para a filosofia antiga e medieval não é exatamente aquilo que hoje chamamos de física. Esse termo para os antigos tem um escopo mais amplo e seria para nós o que se entende hoje como ciências naturais. Ou seja, a física englobaria, por exemplo, a biologia, a química e, é claro, a própria física.

(2) ABSTRAÇÃO DA FORMA: esse grau de abstração está na base da matemática. Nele se consideramos da realidade somente aqueles aspectos que podem ser pensados à parte da matéria sensível tanto individual quanto comum. Isto é, enquanto o objeto das ciências naturais só existe nos singulares e se pensa vinculado aos singulares, os objetos matemáticos são aqueles que só existem no singular, mas que podem ser pensados de maneira separada. Um triângulo só existe nos triângulos concretos. Porém, na matemática, os conceitos estão mais afastados dos singulares. Enquanto o “cavalo” se pensa sempre pertencendo ao cavalo concreto com sua matéria sensível, a matemática pode ser elaborada sem referência a matéria sensível. Para o matemático não importa se o triângulo é de madeira ou de plástico, mas o cavalo é um animal que inclui em sua essência a corporeidade, ou seja, não posso pensar no cavalo sem considerá-lo em seus traços sensíveis corporais.

Santo Tomás, contudo, afirma que no nível da matemática ainda resta o que se chama de matéria inteligível comum. Podemos pesar dois triângulos retângulos como as mesmas medidas, mas que são distintos. Pelo fato de serem distintos há algo de material de marca a diferença deste para aquele triângulo pensado. Esta diferença é a extensão ou quantidade que, com sua propriedade de divisibilidade, funda a matemática.

(3) SEPARAÇÃO: aqui consideramos o ser mesmo das coisas. Aqui o intelecto abstrai tanto a matéria sensível como a inteligível. Neste nível se encontra a ciência Metafísica que estuda o ente enquanto ente e não o ente enquanto sensível ou marcado pelo acidente da quantidade.  O ser, ou ente, não depende da matéria pois se encontra também nos seres espirituais, como Deus e o anjos, e materiais. Em definitiva, a metafísica abarca tudo aquilo que é ou existe em suas propriedades (uno, bom, verdadeiro e belo), princípios e causas mais gerais.

***

REFERÊNCIAS:

SANTO TOMÁS DE AQUINO, Comentário ao Libro de Trinitate de Boécio, q. 5, a. 3.
SANTO TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I, q. 85, a. 1, ad 2

Texto retirado do site link.


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