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Este é um blog sobre Matemática em geral, com ênfase no período clássico-medieval, também sobre as Artes liberais (Trivium e Quadrivium), so...

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Dos sintomas às causas da Crise na Educação

Análises das condições atuais

Uma vez mais necessitamos partir do significado das palavras, e desta vez de ‘sintoma’ e ‘causa’, para tentar entender o que se passa com a educação em nossos dias [1].

É claro que estas palavras tomamos emprestadas do contexto da medicina ou da ciência biológica. Mas elas muito servirão, a modo de analogia, para fazermos esta análise.

A palavra ‘sintoma’ refere-se a sinal, indício, traço. É geralmente a descrição que o próprio paciente faz da própria situação, como por exemplo uma dor ou mal-estar, e de onde o médico procurará traçar o diagnóstico. A palavra ‘causa’ – que encontra maiormente no contexto filosófico seu significado – refere-se a origem, ao motivo e a razão; ou, em outras palavras, é o que faz com que algo exista ou aconteça; é o princípio pelo qual uma coisa é ou se torna aquilo que é [2].

Não vamos adentrar na discussão filosófica propriamente dita, mas apenas utilizar uma analogia ao contexto da medicina ou da ciência.

Ao traçar o diagnóstico, ainda que interaja com os sintomas, o médico deve estar certo da causa e agir a partir desta de modo a sanar o paciente daquilo que o torna enfermo. Interagir apenas com os sintomas não é suficiente, é preciso conhecer a causa. Por exemplo, uma dor de cabeça é um sintoma ou um sinal, porém a causa pode ser desde uma enxaqueca até uma sinusite ou problema na coluna, entre outros.

Entendido isto, podemos perceber que determinadas situações, como a degradação intelectual e moral da juventude e a incapacidade de mudar esta situação, inclusive da parte de profissionais de muito boa intenção, tratam-se de sintomas – a causa deve ser procurada. Inclusive a expropriação da educação daquilo que lhe é próprio, ao ponto de escolas de todo tipo serem transformadas em campo de doutrinação ideológica, ao invés de lugares onde se forma o homem sábio e virtuoso, eleva o intelecto e assim a moral e a sociedade, é sintomático e não causal [3].

Nosso tempo vive as consequências de alguns eventos históricos tanto a nível social quanto de pensamento [4]. E aqui não é nossa intenção seguir a ideologia do “politicamente correto”, como que querendo equilibrar os pratos na balança dizendo: “mas tem sempre o lado bom!”. Se pensarmos assim nunca chegaremos a causa e se não o fizermos, não haverá resposta suficiente, mas apenas e sempre medidas paliativas que longe de intervir na causa do mal, apenas protelarão e quando não agravarão ainda mais a crise.

Ao contrário do que muito se diz, o auge do pensamento humano e a ascensão do direito natural deu se na Idade Média [5]. Citemos por exemplo, a custódia, o aprimoramento e elevação da filosofia grega e do direito romano; e a defesa da civilização de heranças do paganismo grego e romano, da ameaça bárbara e muçulmana, inclusive mediante a educação; a salvaguarda dos direitos da criança e da mulher; a produção de enorme quantidade de obras filosóficas, literárias, científicas e culturais, não obstante as condições rudimentares da época, entre outros. A educação teve o seu valor nesta construção lenta, mas consistente e robusta aos longo dos séculos.

A concepção da educação para o medieval é levar o homem a contemplação, que é nada mais nada menos que meditar na busca da verdade através do reto pensar [6]. A Igreja por disposição da própria História e é claro de sua missão foi a guardiã a mantenedora da educação enquanto busca da sabedoria pela contemplação da verdade [7].

Do século XVI em diante houveram sucessivas convulsões sociais de larga difusão e que vieram a abalar esta ordem constituída em séculos de história e inclusive a concepção da própria educação. Cada revolução trouxe consigo uma negação [8], que interferindo no modo de pensar interferiu na própria organização social. Por isso devemos ver nestas revoluções uma verdadeira crise espiritual e não somente social. Elas derivam de algo que não funcionou bem no pensamento humano e assim desencadeou uma série de erros, que não puderam ser contidos – antes de tudo a nível intelectual e moral.

A primeira convulsão trata-se da Revolução Protestante (1517), oriunda não só da cessão às heresias que já pululavam pela Europa, mas também de interesses e alianças políticas e, assim a larga difusão de tais ideias. Com essa revolução veio a primeira negação: Cristo sim, Igreja não!

Seguidamente, e fomentada sobretudo pelo Iluminismo – cujo próprio nome já denota oposição ao período histórico anterior, isto é, à Idade Média, definida ainda mais pejorativamente e intencionalmente como “idade das trevas” – acontece a Revolução Francesa (1789). Desta convulsão emergirá não só revolução contrária a ordem social constituída, mas sim e uma vez mais ao pensamento humano, e com isso também uma tentativa de impor sua própria “religião”, a razão ou a ciência, sempre segundo as formulações do próprio Iluminismo. O pensamento emancipado e a sociedade também, já não podia-se aceitar a possibilidade da Encarnação de Cristo e igualmente a autoridade absoluta da Divina Revelação da qual a Igreja é guardiã. Segunda negação: Deus sim, Cristo não!

A convulsão sucessiva, a Revolução Comunista (1917), sempre fomentada por ideologias de tipo filosóficas, trará a negação seguinte: O homem sim, Deus não! Apoiada principalmente no materialismo marxista nega tudo que possa denotar-se espiritual, não só enquanto fato religioso, mas enquanto capacidade de conhecimento mediante a busca da verdade – aqui nega-se a metafísica e, consequentemente, tudo que nela se apoia como, por exemplo, os fundamentos da moral. Uma vez que o homem é produto do aperfeiçoamento da matéria a este cabe a interação ou a transformação; partindo desse princípio tudo torna-se relativo ou produto da cultura, inclusive instituições fundamentais como a família. O que acontece a partir daqui ainda mais é a degradação do intelecto humano muito mais propenso a ideologias que ao reto pensar na busca da verdade.

E, por fim, a última convulsão antes de nossos dias, a Revolução Sexual (1968) ou da Sourbone, Paris. Filha não só do progresso industrial e científico, mas do declínio cada vez mais acentuado do intelecto humano no que tem de mais nobre: a busca pela verdade. E diga-se que quanto mais subjugado aos instintos primários, menos o homem terá condições de alçar-se em direção a verdade, de cuja contemplação emana a sabedoria. As consequências são as piores possíveis. Reduzido ao patamar dos instintos o homem assemelha-se aos seres irracionais e perde seu valor, sua dignidade e sua nobreza.

Estágio atual da negação: o homem não! [9]

Não sejamos ingênuos em pensar que estas revoluções foram o curso da História, ou seja, inevitáveis, ou ainda, que foram frutos do acaso, em outras palavras, elas tinham de acontecer. Precisamos recordar que a mesma História nos dá exemplos claríssimos de que o mal pode e deve ser evitado. Lembremos apenas dois momentos [10]: a invasão dos bárbaros durante a decadência do Império Romano combatida e contornada pela ação da Igreja; do mesmo modo que a expansão e a ameaça muçulmana da Europa em diferentes pontos, desde a Península Ibérica, passando pelo Mediterrâneo até a Áustria, igualmente combatida pela Igreja. Do contrário nosso cenário hoje seria todo outro.

É preciso perceber que cada convulsão antes do seu auge foi alimentada e se ganhou força o ganhou em razão de uma fraqueza da parte do que se lhe poderia conter e evitar.

Há quem situe o início da decadência do pensamento humano no momento em que surgem as grandes universidades, que não são um mal em si, mas pelo modo como as coisas passariam a desenrolar-se dali por diante: a intenção ao entrar para uma daquelas universidades não seria mais a busca e a contemplação da verdade, mas com fins no diploma, ou seja, a autorização para se exercer um determinado ofício, e inclusive aquele de ensinar. O fim não seria mais a busca da sabedoria, mas o diploma.

Daí em diante haveria que dissociar-se cada vez mais o compromisso com a busca e a contemplação da verdade – e se diga, com todo rigor filosófico que havia até então – e a obtenção a todo custo de um pergaminho que, de certo, trazia consigo um status e uma série de oportunidades e privilégios. A preocupação com a formação do homem sábio fica cada vez mais à deriva e, evidentemente, as ideologias, isto é, ideias produzidas por erro de cognição ou intencionais, ficariam cada vez mais propensas de serem aceitas sem maiores questionamentos e reflexões como uma vez se fazia tendo por bandeira sempre a honra da verdade.

Com isso é possível entrever que por detrás daquelas convulsões estão pensamentos cada vez mais declinados à ideologia que a retidão da verdade. É o que acontecerá principalmente a partir de Immanuel Kant, se tratando da educação moderna, com a esquizofrenia que ele criará a respeito da constituição interior humana: no plano racional ele situa o homem no nível dos animais (Crítica da Razão Pura) pois este é incapaz de contemplar e definir as coisas tais e quais elas são; e já no plano moral, eleva o homem – segundo a filosofia tomista – ao nível dos anjos (Crítica da Razão Prática), pois aí sim o homem consegue ver as coisas como realmente são e isto a medida em que interage com elas. Por aí se vê que não é difícil formular a educação não mais como busca da sabedoria, mas como formação do homem para o agir moral, uma vez que no plano racional não é possível que este conheça ou abstraia.

O parágrafo anterior, longe de iniciar um debate ou aprofundamento filosófico apenas acena que por detrás de cada convulsão social como as que elencamos está uma série de erros de cognição que não foram combatidos e contidos, mas inclusive lançados ao seu modo para as massas ao ponto de influenciar uma inteira época e sucessivamente. E como o engenheiro da educação não é o pedagogo, mas o filósofo, não é difícil perceber que a educação começou a ser usada como instrumento potente na difusão de ideologias e não mais na formação do homem sábio. Assim sendo a decadência do ensino se deu quando o próprio pensamento humano degradou-se produzindo não mais homens sábios, mas, por erros de cognição ou falta de retidão lógica, começou a produzir e disseminar ideologias.

Percorrendo este caminho é possível diferenciar os sintomas das causas na crise educacional hodierna. Os sintomas os observamos não sem perplexidade. Mas é preciso procurar pelas causas. E assim nos damos conta de que os sintomas são oriundos de um longo caminho de convulsões sociais, isto é, de revoluções cuja intencionalidade foi principalmente a subversão da ordem constituída [11]. E que por detrás encontramos ideias, manipuladas ou não, mas que fogem ou erram o caminho na busca da verdade, ou nem mesmo tem interesse pela verdade.

Assim entendemos que a crise do educação, mas também aquela moral e religiosa, é uma crise de alma. Por isso o “combate”, ou seja, o seu enfrentamento, não se dará eximindo-se desta realidade. Trata-se de um verdadeiro combate espiritual a medida em que as faculdades inteligíveis deverão ser soerguidas não enquanto fato meramente racional, mas enquanto capacidade de buscar a verdade pela contemplação [12]. Aqui o trunfo da educação será o que o educador medieval conhecia muito bem e cujo ideal educativo era formar antes de tudo homens sábios. E aí entendemos porque a filosofia e a teologia eram altamente apreciadas. Justamente pelo fato de elevarem o homem a contemplação, a natural e a infusa, uma pela razão outra pela fé. E jamais uma separada da outra [13].


Referências

[1] Podemos dizer sem medo de errar que as problemáticas educacionais, mas também em outras instancias são em boa parte afetadas pela dificuldade em relação aos conceitos. E não se trata de questão meramente etimológica, mas metafísica e depois de que lógica. Com o declínio da capacidade de abstração, justamente aquela que define o ser, declina também o processo que conduz a tal definição. De um lado está o baixo grau de abstração e de outro os erros de cognição.

[2] N. ABBAGNANO. Dizionario di Filosofia. Roma, 2016.

[3] Em relação ao aparelhamento das escolas e do sistema educativo para doutrinação ideológica, subtraindo da educação a sua finalidade, citamos o site www.escolasempartido.org que traz inúmeras denúncias a este respeito, como também o livro online Escola sem mordaça – Um guia para doutrinação de alunos, de Paulo FREIRE. Disponível em https://www.jr.blog.br/2016/10/escola-sem-mordaca.html?m=1.

[4] Nos próximos parágrafos faremos uso de P. C. DE OLIVEIRA. Revolução e Contra Revolução. São Paulo, 2009. E evidentemente vamos entrelaçar a análise deste livro com outros eventos oriundos ou sucessivos as revoluções.

[5] Existem inúmeras obras de historiadores e intelectuais idôneos que fazem justiça a este período da história tão deturpado e tratado na maior parte das vezes de modo pejorativo e desprezível. Eles trazem à tona a verdade a respeito da Idade Média. Citamos alguns. Jacques HEERS. A Idade Média, uma impostura. Porto, 1994. Régine PERNOUD. Idade Média, o que não nos ensinaram. Rio de Janeiro, 1979. Thomas E. WOODS Jr. Como a Igreja Católica construiu a Civilização Ocidental. São Paulo, 2011.

[6] “(…) a expressão educação era entendida estando associada à sua raiz etimológica latina: educe, “fazer sair”. Como o conhecimento já existia inato no indivíduo, restava responder à seguinte pergunta: de que modo o estudante era conduzido da ignorância ao saber? Como o aluno aprendia? Essa era a questão básica dos educadores medievais. Preocupados com a forma da aquisição, os pedagogos de então tiveram uma importante consciência: cabia ao professor “acender uma centelha” no estudante e usar seu ofício para formar e não asfixiar o espírito de seus alunos. Na Espanha medieval, por exemplo, usava-se a palavra nutrir (nodrir) para definir o ato de educar: o professor era o nutritor, aquele que deveria alimentar intelectualmente o estudante; o aluno, o nutritur, o que era alimentado. Os medievais, seguindo a etimologia das palavras como se disse há pouco, recuperavam a plenitude do conceito de saber. Saber, sabor; a aquisição do conhecimento deveria ser saborosa, pois a meta do filósofo era não só alcançar a sabedoria, mas transmiti-la como uma representação teatral, algo cênico, enfim, um alimento saboroso para o intelecto. Muito moderna a educação medieval”. In.: https://www.ricardocosta.com/artigo/reordenando-o-conhecimento-educacao-na-idade-media-e-o-conceito-de-ciencia-expresso-na-obra. Acesso em: 28/02/2017. Citamos ainda: B. MONDIN. Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso D’Aquino. Bologna, 2000. vb.: Educazione.

[7] Quanto ao sistema pedagógico, indicamos: F. CAMBI. História da Pedagogia. São Paulo, 1999. pp. 121-192.

[8] Sugiro a leitura do artigo “Do Protestantismo ao Ateísmo Moderno e Relativismo Contemporâneo: Uma leitura dos acontecimentos históricos” de Daniel MARQUES. In.: www.zenit.org de 28/06/2012. Acesso em 10/03/2017. (Obs.: O site zenit.org não está mais disponível: outro link para acesso do artigo: https://cleofas.com.br/do-protestantismo-ao-ateismo-moderno-e-relativismo-contemporaneo-uma-leitura-dos-acontecimentos-historicos/)

[9] A “filha predileta” desta última revolução e “neta” do marxismo cultural é a ideologia de gênero, cujo golpe mortal é deferido contra a natureza humana na sua dimensão mais fundamental que é a sexualidade, masculino e feminino. Ideologia esta que tenta a todo custo entrar porta adentro das famílias e das sociedades principalmente utilizando-se do sistema educativo. Sobre a gênese marxista da Ideologia do Gênero recomendo a leitura do livro de Dale O’LEARY, A Agenda de Gênero, Redefinindo a Igualdad. Disponível em espanhol em https://s3.amazonaws.com/padrepauloricardo-files/uploads/2z3wlfcfgx1x1wxzr644/la-agenda-de-genero-redefiniendo-la-igualdad.pdf. Acesso em 10/03/2017. (Obs.: o link citado não está mais disponível. Novo link para acesso https://cnp-files.s3.amazonaws.com/uploads/2z3wlfcfgx1x1wxzr644/la-agenda-de-genero-redefiniendo-la-igualdad.pdf)

[10] Amplamente tratados por D. ROPS em A História da Igreja de Cristo, volumes II e III.

[11] Esta tentativa de implementar uma nova ordem mundial, contemplando diversos instrumentos para alcançar tal objetivo, principalmente através da educação, já tem sido denunciada. E quanto mais degradado estiver o sistema educacional e assim a menta humana, mais tal engenharia correrá a passos largos. Referente a este tema citamos: J.C. SANAHUJA. Poder Global e Religião Universal. Campinas, 2012. P. BERNARDIN. Maquiavel Pedagogo ou Ministério da Reforma Psicológica. Campinas, 2013.

[12] Sobre este assunto é importante ler o Opúsculo de Hugo de São Vítor, Sobre o modo de aprender e de meditar. Disponível em https://cristianismo.org.br/h-opusc.htm. Acesso em 10/03/2017.

[13] A obra Didascalikón, de Hugo de São Vítor, nos dá um exemplo brilhante desta afirmação. Mas elas não excluem as outras ciências, pelo contrário, ajudam a entender a verdade de cada uma. Vejamos numa fonte da época: “A Teologia existe para que o homem fale de Deus (…) a Filosofia existe, filho, pela intenção de conhecer Deus, e tal conhecimento é demonstrado pela obra natural; (…) e Deus também colocou uma intenção nas outras ciências existentes, pois nenhuma ciência foi criada sem alguma intenção”. RAMON LLULL. O Livro da Intenção, V.19, 1. Apud.: https://www.ricardocosta.com/artigo/reordenando-o-conhecimento-educacao-na-idade-media-e-o-conceito-de-ciencia-expresso-na-obra. Acesso em: 28/02/2017.

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Texto de autoria do Padre Alexandre Alessio e retirado do link. Sobre o autor: Pe. Alexandre Alessio, CR - Religioso da Congregação da Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo (CR). Concluiu os estudos de Filosofia no Instituto São Basílio Magno, Curitiba - PR, sua formação teológica ocorreu em Roma pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Atualmente é pároco da Paróquia Imaculada Conceição em Franco da Rocha, Diocese de Bragança Paulista - SP, local onde iniciou o Projeto de Evangelização Jesus ao Centro, sustentado pela Associação Bento XVI, da qual é o fundador.


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Os paradoxos de Zenão e a solução de Aristóteles

Retrato de Zenão de Eleia
por Jan de Bisschop
(1628 - 1671)
Trecho retirado de BOYER, Carl Benjamin. História da Matemática. Tradução de Elza F. Gomide. 2ª ed. São Paulo, Edgard Blücher, 1996, 496 p., p. 51-53.

Paradoxo de Zeno*
* Zeno ou Zenão são traduções do nome da mesma pessoa.
        A doutrina pitagórica de que "Número formam o céu todo" enfrentava agora um problema realmente sério: mas não era o único, pois a escola enfrentava também os argumentos dos vizinhos eleático, um movimento filosófico rival. Os filósofos jônios da Ásia Menor tinham procurado identificar um primeiro princípios para todas as coisas. Tales julgara achá-lo na água, outros preferiam pensar no ar ou fogo como elemento básico. Os pitagóricos tinham tomado direção mais abstrata, postulando que o número em toda a sua pluralidade era a matéria básica dos fenômenos; esse atomismo numérico, lindamente ilustrado na geometria dos números figurativos, tinha sido atacado pelos seguidos de Parmênides de Eléia (vivem por volta de 450 a.C.). O artigo de fé básico dos eleáticos era a unidade e permanência do ser, visão que contrastava com as idéias pitagóricas de multiplicidade e mudança. Dentre os discípulos de Parmênides o mais conhecido Zeno Eleático (viveu por volta de 450 a.C) que enuncio argumentos para provar a inconsistência dos conceito de multiplicidade e divisibilidade. O método adotado por Zeno era dialético, antecipando Sócrates nesse modo indireto de argumento: partindo das premissas de seus oponentes, ele as reduzia ao absurdo.
        Os pitagóricos tinham assumido que o espaço e o tempo podem ser pensados como consistindo de pontos e instantes; mas o espaço e o tempo têm também uma propriedade, mais fácil de intuir do que de definir, conhecida como "continuidade". Supunha-se que os elementos terminais, que constituíam uma pluralidade, de um lado possuíam as características de unidade geométrica --- o ponto --- e por outro possuíam certas características de unidades numéricas, Aristóteles descrevia um ponto pitagórico como uma "unidade tendo posição" ou "unidade considerada no espaço". Sugeriu-se {1} que foi contra tal visão que Zeno propôs seus paradoxos, dos quais aqueles sobre o movimento são citados mais freqüentemente. Na forma em que chegaram a nós, através de Aristóteles e outros, quatro parecem ter causado maior perturbação: (1) a Dicotomia (2) o Aquiles (3) a Flecha (4) o Estádio. O primeiro diz que antes que um objeto possa percorrer uma distância dada, deve percorrer a primeira metade dessa distância; mas antes disto, deve percorrer o primeiro quarto; e antes disso, o o primeiro oitavo e assim por diante, através de uma infinidade de subdivisões. O corredor que que pôr-se em movimento precisa fazer infinitos contatos num tempo finito; mas é impossível exaurir uma coleção infinita, logo é impossível iniciar o movimento. O segundo paradoxo é semelhante ao primeiro, apenas a subdivisão infinita é progressiva em vez de regressiva. Aqui Aquiles aposta corrida com uma tartaruga que sai com vantagem e é argumentado que Aquiles por mais depressa que corra, não pode alcançar a tartaruga, ela já terá alcançado um pouco mais. E o processo continua indefinidamente, com o resultado que Aquiles nunca pode alcançar a lenta tartaruga.
    A Dicotomia e o Aquiles argumentam que o movimento é impossível sob a hipótese de subdivisibilidade indefinida do espaço e do tempo; a Flecha e o Estádio, de outro lado, argumentam que também é impossível, sob a hipótese contrária --- de que a subdivisibilidade do tempo e do espaço termina em indivisíveis. Na Fecha, Zeno argumenta que um objeto em vôo sempre ocupa espaço igual a si mesmo; mas aquilo que sempre ocupa um espaço igual a si mesmo não está em movimento. Logo a flecha que voa está sempre parada, portanto seu movimento é uma ilusão.
        O mais discutido dos paradoxos sobre o movimento e o mais complicado de descrever é o Estádio (ou Stadium), mas o argumento pode ser descrito como segue. Sejam $A_1, A_2, A_3, A_4$ corpos de igual tamanho, estacionários; sejam $B_1, B_2, B_3, B_4$ corpos de mesmo tamanho que os $A$, que se movem para a direita de modo que cada $B$ por um $A$ num instante --- o menor intervalo de tempo possível. Seja $C_1, C_2, C_3, C_4$ também do mesmo tamanho que os $A$ e os $B$, e movendo-se uniformemente para a esquerda com relação aos $A$, de modo que cada $C$ passa por um $A$ num instante do tempo. Suponhamos que num dado momento os corpos ocupem as seguintes posições relativas:


      Então, passado um único instante, isto é, após uma subdivisão indivisível do tempos, as posições serão:


        É claro então que $C_1$ terá passado por dois dos $B$; logo o instante não pode ser o intervalo de tempo mínimo, pois podemos tomar como uma unidade nova e menor o tempo que $C_1$ leva para passar por $B$.
       Os argumentos de Zeno parecem ter influenciado profundamente o desenvolvimento da matemática grega, influência comparável à descoberta dos incomensuráveis, com a qual talvez se relacione. Originalmente, nos círculos pitagóricos, as grandezas eram representadas por pedrinhas ou cálculos, de onde vem a nossa palavras calcular, mas na época de Euclides surge completa mudança de ponto de vista. As grandezas não são associadas a números ou pedras, mas segmentos de reta. Em Os elementos os próprios inteiros são representados por segmentos. O reino dos números continuava a ser discreto, mas o mundo das contínuas (e esse continha a maior parte da matemática pré-helênica e pitagórica) era algo à parte dos números e devia ser tratado por métodos geométricos. Essa foi talvez a conclusão de maior alcance da Idade Heróica e não é provável que se deveu em grade parte a Zeno de Eléia e Hipasus de Metaponto.


Notas:

{1} Veja Raul Tannery, La géometrie grecque (Paris, 1887) pp. 217-261. Para uma opinião diferente, ver B.L. van der Waerden, "Zenon und die Grundlagenkrise der griechischen Mathematik", Mathematische Annale, 117 (1940), 141-161.


* * *

COMENTÁRIO SOBRE OS PARADOXOS DE ZENÃO POR ARISTÓTELES DE ESTAGIRA (384 - 322 a.C.) 

Trecho extraído da Física (significando O Estudo da Natureza), de Aristóteles, [disponível no link]. Escrito em torno de 350 a.C., sendo que o livro VIII foi escrito em separado. Zenão de Eléia viveu c. 490-430 a.C. Baseado na tradução inglesa de R. Waterfield, Oxford U. Press, 1996, pp. 142-6, 161-2, 219-20. Há traduções para o inglês disponíveis na internet. Seleção de trechos, títulos das seções e tradução do inglês feitos para o curso de Filosofia da Física (FLF0472), USP, por Osvaldo Pessoa Jr., 2o semestre de 2009.

Distância e tempo são contínuos (VI. 2, 232 b 20 - b 27, 233 a 13 - a 20) 

Dado que toda mudança ocorre no tempo, e não há tempo em que uma mudança não possa ocorrer, e dado que qualquer objeto mutante pode mudar mais rapidamente ou mais lentamente, então não há tempo em que não possa ocorrer uma mudança mais rápida ou mais lenta. Segue-se necessariamente destes fatos que também o tempo [além da distância] deve ser contínuo. Por “continuidade” refiro-me àquilo que é divisível em partes que, por sua vez, são sempre divisíveis. Se aceitarmos essa definição de continuidade, segue-se necessariamente que o tempo é contínuo. Pois, conforme já demonstramos, um objeto mais rápido leva menos tempo para cobrir uma mesma distância. [...] 

Podemos também mostrar que a continuidade da distância segue-se da continuidade do tempo, considerando as coisas que normalmente falamos sobre eles, já que leva metade do tempo para cobrir metade da distância, e geralmente menos tempo para cobrir uma distância menor; tanto o tempo quanto a distância estão sujeitos às mesmas divisões. E se qualquer um deles for infinito, o outro também o será. E a maneira em que um deles é infinito será também a maneira em que o outro o será. Por exemplo [considerando um corpo em movimento retilíneo uniforme], se o tempo tem extensão infinita, a distância também o terá; se o tempo é infinitamente divisível, a distância também o será; e se o tempo é infinito nesses dois aspectos, a distância também o será. 

Zenão errou, pois há infinitos instantes em uma duração finita (VI. 2, 233 a 21 - 31) 

É por isso que o argumento de Zenão [a Dicotomia] parte de uma suposição falsa, de que é impossível cobrir o que é infinito ou entrar em contato com um número infinito de coisas, uma a uma, em um tempo finito. O ponto é que há duas maneiras pelas quais a distância e o tempo, e em geral qualquer contínuo, são descritos como infinitos: eles podem ser infinitamente divisíveis ou infinito em extensão. Assim, mesmo sendo impossível num tempo finito entrar em contato com coisas que são infinitas em quantidade, é possível fazer isso com coisas que são infinitamente divisíveis, já que o tempo também é infinito dessa maneira. Portanto, a conclusão é que leva tempo infinito, e não finito, para cobrir uma distância infinita, e leva um número infinito de agoras, e não um número finito, para se entrar em contato com um número infinito de coisas. 

É assim impossível cobrir uma distância infinita em um tempo finito, e é também impossível cobrir uma extensão finita em um tempo infinito. 

O “agora” é indivisível, portanto nada se move no agora (VI. 2, 233 b 31 - 2; VI. 3, 233 b 33 - 234 a 4, 234 a 24 - 33, 234 b 8 - 9) 

Está claro, então, que não há algo como um contínuo que não seja divisível em partes. 

[No entanto,] o agora, em seu sentido primário, deve ser indivisível. Este é o tipo de agora que ocorre em qualquer e toda duração de tempo, que é o limite do passado, pois não há nada do futuro deste lado, e também o limite do futuro, pois não há nada do passado deste outro lado. Dizemos então que é um mesmo limite de ambos. E a demonstração de que há tal limite, de que o limite do passado é o mesmo que o limite do futuro, seria simultaneamente a demonstração de sua indivisibilidade. [...] 

As seguintes considerações mostrarão que nada se move no agora. Se fosse possível para algo se mover no agora, poderia haver nele tanto movimento mais rápido quanto mais lento. Seja N o agora, e seja AB a distância que o objeto mais rápido percorreu. No mesmo agora, então, o objeto mais lento terá coberto uma distância menor do que AB, que chamamos AC. Mas dado que o movimento do objeto mais lento dura todo o agora para percorrer AC, o objeto mais rápido levaria menos tempo para cobrir AC, e conseqüentemente o agora seria dividido. Mas vimos que o agora é indivisível. Portanto, é impossível haver movimento no agora. 

Também é impossível haver repouso no agora. Pois falamos de repouso somente no caso de algo cuja natureza seja mover, mas que não está se movendo. Assim, dado que não há nada cuja natureza seja mover no agora, obviamente também não há nada cuja natureza seja estar em repouso no agora. [...] 

Segue-se necessariamente, portanto, que qualquer coisa em movimento e qualquer coisa em repouso estão em movimento e em repouso no tempo [e não no agora]. 

Os quatro argumentos de Zenão sobre o movimento (VI. 9, 239 b 5 - 240 a 18) 

O raciocínio de Zenão é inválido. Ele afirma que se é sempre verdadeiro que algo está em repouso quando está em oposição a algo igual a si mesmo [ou seja, quando ocupa uma distância que é igual ao seu comprimento], e se um objeto movente está sempre no agora, então uma flecha movente está em repouso. Mas isso é falso, porque o tempo não é composto de agora indivisíveis, e nem qualquer outra grandeza. 

Zenão elaborou quatro argumentos sobre o movimento, que têm trazido dificuldades para as pessoas. O primeiro [a Dicotomia] é sobre um objeto movente que não se moveria, porque precisaria alcançar metade do caminho antes de chegar ao fim. Isso foi discutido anteriormente [em VI. 2, 233 a 21 - 31]. 

O segundo é chamado “Aquiles”, e afirma que um corredor mais lento nunca será alcançado pelo corredor mais veloz, porque o que está atrás tem que primeiro alcançar o ponto no qual o que está na frente começou, de maneira que o mais lento sempre ficaria na frente. Este argumento, de fato, é igual à Dicotomia, com a diferença que a distância restante não é dividida por dois. Vimos que o argumento leva à conclusão de que o corredor mais lento não é alcançado, mas isso depende do mesmo ponto que a Dicotomia: em ambos os casos, a conclusão de que é impossível alcançar um limite é resultado de se dividir a distância de certa maneira. No entanto, o último argumento inclui, em seu relato, a característica adicional de que nem aquilo que é a coisa mais veloz do mundo pode sobrepujar a coisa mais lenta do mundo. A solução, portanto, deve ser a mesma em ambos os casos. É falsa a afirmação de que quem está na frente não pode ser alcançado. Ele não é alcançado enquanto continua na frente, mas ele é alcançado se Zenão admitir que o objeto movente pode percorrer uma distância finita.

Isso resolve dois dos seus argumentos. O terceiro é o que mencionei acima [a Flecha, em 239 b 5 - 9], que afirma que uma flecha movente está parada. Essa conclusão depende da suposição de que o tempo é composto de “agoras”, mas se essa suposição não é aceita, o argumento fracassa. 

Seu quarto argumento é o que trata de corpos iguais em um Estádio [uma pista de corrida], corpos que se movem em sentidos opostos e passam um pelo outro. Um conjunto sai do fim do estádio, e o outro do meio, com a mesma rapidez. O resultado, de acordo com Zenão, é que metade de um certo tempo é igual ao dobro deste tempo. O erro em seu raciocínio está em supor que leva o mesmo tempo para um corpo movente passar por outro em movimento, com mesma rapidez e sentido oposto, quanto leva para o corpo movente passar por um corpo em repouso, onde todos os corpos têm o mesmo tamanho. Isso é falso. [Aristóteles parece ter entendido errado o argumento de Zenão.] 

Por exemplo, sejam AA... os corpos estacionários, cada um do mesmo tamanho que o outro; sejam BB... os corpos, iguais em número e tamanho a AA..., que se movem a partir da metade do estádio; e sejam CC... os corpos, iguais em número e tamanho aos outros, que partem do fim do estádio e se movem com a mesma rapidez que BB... Segue-se que o primeiro B e o primeiro C, à medida que as duas fileiras passam uma em relação à outra, alcançarão o final da outra fileira no mesmo tempo. Apesar de o primeiro C passar todos os Bs, segue-se que o primeiro B passou metade do número dos As; e assim, afirma Zenão, o tempo transcorrido para o primeiro B é metade do tempo transcorrido para o primeiro C, considerando-se que em ambos os casos temos corpos iguais passando por corpos iguais, [...] e o primeiro C permanece o mesmo tempo ao lado de cada B quanto permanece ao lado de cada A, já que tanto os Cs quanto os Bs permanecem o mesmo tempo passando pelos As. De qualquer maneira, esse é o argumento de Zenão, mas suas conclusões dependem da falácia que mencionei. 


Duas respostas a se é possível passar por infinitos pontos (VIII. 8, 263 a 4  - b 8) 

Devemos dar a mesma resposta para qualquer um que use o argumento de Zenão para perguntar se é sempre necessário primeiro cobrir metade da distância, apontando que há um número infinito de meia distâncias e que é impossível cobrir um número infinito de distâncias. Há também aqueles que apresentam o argumento de outra maneira, e afirmam que quando se está atravessando uma meia distância, é preciso contá-la antes de completá-la, e que é preciso fazer isso para cada meia distância sendo coberta, de maneira que cobrir a distância inteira envolveria ter que contar um número infinito, o que considerado impossível. 

Pois bem, ao discutirmos [em VI. 2, 233 a 21 - 31] o movimento e a mudança, resolvemos essas dificuldades levando em conta o fato de que o tempo contém em si um número infinito de partes. Afinal, não há nada de estranho em que alguém atravesse um número infinito de distâncias em um tempo infinito, e a infinitude é uma propriedade do tempo da mesma maneira que é uma propriedade da distância. Apesar de esta solução ser adequada como resposta à pergunta original, qual seja, se é possível atravessar ou contar infinitas coisas em um tempo finito, ela não serve de resposta para a questão relativa ao que de fato acontece. Pois se o nosso inquiridor fosse ignorar a distância, e ignorar a questão de se um número infinito de distâncias pode ser coberto em um tempo finito, e fizesse a pergunta apenas com respeito ao tempo, dado que o tempo é infinitamente divisível, a solução anterior não seria adequada. Teríamos, pelo contrário, de utilizar o relato verdadeiro que acabamos de apresentar, e dizer que qualquer um que divida uma linha contínua em duas metades está tratando o ponto único em que se dá a divisão como dois pontos, pois está tratando-o tanto como um ponto inicial quanto como um ponto final, e a contagem de metades não é diferente da divisão em metades. Mas fazer essas divisões equivale a destruir a continuidade do movimento, e também a linha, pois o movimento contínuo é um movimento sobre o contínuo, e apesar de haver infinitas metades em um contínuo, eles são potenciais, não atuais. Qualquer divisão atual põe um fim ao movimento contínuo e cria uma parada. É claramente isso o que acontece quando alguém conta metades sucessivas, pois ele inevitavelmente conta um mesmo ponto como sendo dois, dado que a consequência de se contar duas metades ao invés de uma linha contínua é que um único ponto passa a constituir o fim de uma metade e o começo da outra. Assim, a resposta que temos que dar para a questão de se é possível atravessar um número infinito de partes, sejam elas partes do tempo ou da distância, é que em um certo sentido isso é possível e em certo sentido não. Se elas existirem de maneira atual, isso é impossível, mas se elas existirem de maneira potencial, então é possível. Em outras palavras, qualquer um que esteja em movimento contínuo atravessa coincidentemente um número infinito de distâncias, mas isso não é feito sem qualificação; trata-se de uma propriedade coincidente [acidental] de uma linha que ela possui um número infinito de metades, mas isso não faz parte da essência de linha.

* * *

Apresentamos abaixo um artigo da Revista Professor de Matemática (RPM) 39 de 1999, que apresenta a matemática dos paradoxos de Zenão

OS PARADOXOS DE ZENÃO - Geraldo Ávila

Introdução

Vez por outra encontro um artigo tentando explicar os paradoxos de Zenão (descritos adiante). Mas as “explicações” que eles apresentam não passam, a meu ver, de tentativas frustadas, que apenas transferem a dificuldade para outro domínio do conhecimento, sem resolver o problema. O presente artigo tem por objetivo lançar alguma luz sobre esses paradoxos e outras questões a eles relacionadas.

 Zenão e o paradoxo de Aquiles

Os paradoxos de Zenão estão relatados em muitos livros: por exemplo, nas págs. 55 e 56 de [1], uma referência conhecida e de fácil acesso. São quatro paradoxos, mas vamos nos restringir apenas a dois deles.

O primeiro, conhecido como paradoxo da dicotomia, procura interpretar o movimento de um ponto  $A$ a um ponto  $B$  como uma seqüência infinita de movimentos: antes de se chegar ao ponto  $B$  é preciso chegar ao ponto  $C$  tal que $AC = CB$ (figura 1); mas, antes de se chegar a  $C$,  é preciso chegar ao ponto  $D$  tal que $AD = DC$;  e assim por diante, indefinidamente.

A conclusão de Zenão é que o movimento é impossível, pois sequer se iniciará.

O paradoxo de Aquiles (1)  refere-se a uma corrida entre o rápido Aquiles e a morosa tartaruga, esta se posicionando na frente (digamos, no ponto $A_1$ da figura 2, enquanto Aquiles se posiciona em $A$).

O paradoxo está na conclusão de que Aquiles nunca alcançará a tartaruga. De fato, segundo o raciocínio de Zenão, quando Aquiles chegar ao ponto $A_1$, a tartaruga já estará em $A_2$; e quando Aquiles chegar ao ponto $A_2$, a tartaruga já estará em $A_3$; e assim por diante, indefinidamente, um processo que não termina.

Zenão e sua época

Zenão viveu no século V a.C., era discípulo de Parmênides, que ensinava que só o ser imutável é real, portanto, é na imutabilidade do ser que se encontra a realidade e se fundamenta o conhecimento. Essas idéias estavam em direta oposição às de Heráclito, para quem a realidade fundamental está no movimento. Heráclito ensinava que tudo no universo está em permanente mudança, toda a realidade é um “vir-a-ser” contínuo. Ao que parece, Zenão quis evidenciar, com seus paradoxos, a fragilidade dessa idéia de Heráclito, apontando para as contradições a que leva a própria noção de movimento.

Até hoje não se sabe ao certo se é isso mesmo que tencionava Zenão, ou se ele tinha outros objetivos em vista, pois não dispomos de nenhum escrito seu, nem sabemos se ele deixou alguma coisa escrita. Seus paradoxos são relatados por Aristóteles, cujo objetivo era refutar Zenão.

Portanto, Aristóteles pode não ter contado toda a história, ou, pelo menos, não ter retratado todas as intenções de Zenão. O que Aristóteles diz –– e que costuma ser repetido desde então –– é que Zenão queria, com seus paradoxos, demonstrar a impossibilidade do movimento. Mas seria ingênuo acreditar que ele duvidasse de uma realidade tão evidente como o movimento. Mais provável, portanto, é que Zenão quisesse, como dissemos, mostrar a fragilidade das idéias de Heráclito; ou apontar as deficiências dos conceitos formulados e do próprio raciocínio, isto é, as deficiências das bases racionais do conhecimento.

Os paradoxos

Os dois paradoxos descritos anteriormente são essencialmente iguais: o primeiro deles decompõe o movimento numa seqüência infinita de percursos cada vez menores “para trás”, nos trechos $CB,  DC$, etc.; ao passo que o segundo decompõe o movimento numa seqüência infinita de percursos cada vez menores “para a frente”, nos trechos $AA_1, A_1A_2$, etc. Assim, a dificuldade é a mesma nos dois casos.

Suponhamos que, partindo de um ponto $A$, Aquiles alcance a tartaruga ao final de duas horas num ponto $B$.  Assim contemplado, o movimento se apresenta como realizado por inteiro, como fenômeno completo e acabado. Outro modo é contemplar o movimento realizado por etapas, assim: durante a primeira hora Aquiles percorre o trecho $AA_1$, sendo $A_1$ o ponto médio entre $A$ e $B$ (figura 3); durante a meia hora seguinte ele percorre o trecho $A_1A_2$, sendo $A_2$ o ponto médio entre $A_1$ e $B$; durante mais 15 minutos ele percorre o trecho $A_2A_3$, sendo $A_3$ o ponto médio entre $A_2$ e $B$; e assim por diante. Em todos esses percursos ele estará sempre atrás da tartaruga. Poderá Aquiles alcançar a tartaruga no ponto $B$?

Há outras maneiras de interpretar o movimento de Aquiles até alcançar a tartaruga, mediante uma infinidade de movimentos sucessivos; mas basta essa última interpretação para a análise que faremos em seguida.

O paradoxo e a soma infinita

Em geral, as muitas tentativas que têm sido feitas ao longo dos séculos no sentido de resolver o paradoxo consistem simplesmente em aceitar a soma infinita dos percursos como resultando no percurso total, que dura duas horas. Ora, isso não alcança o âmago da questão, apenas transfere a dificuldade para o domínio das séries infinitas, pois se reduz a afirmar que

$$1 + \dfrac{1}{2} + \dfrac{1}{4} + \dfrac{1}{8} + \dfrac{1}{16} + \cdots = 2$$

Mas, somar números, uns após outros, sucessivamente, é uma idéia concebida para uma quantidade finita de números. Não se adapta ao caso de uma infinidade de parcelas, pois, por mais que somemos, sempre haverá parcelas a somar, e o processo de somas sucessivas não termina. E parece ser precisamente essa a dificuldade que Zenão queria apontar.

Os matemáticos têm consciência das dificuldades com as séries infinitas há mais de dois milênios. A primeira soma infinita que aparece na Matemática ocorre num trabalho de Arquimedes, onde ele calcula a área de um segmento de parábola; e faz isso através de um processo finito, justamente para evitar envolvimento com uma soma infinita, como no paradoxo de Aquiles (ver [2]).

A soma infinita é o limite de uma soma finita $S_n$, quando fazemos $n$ tender a infinito. Mas o que significa isso precisamente? A definição de limite, adotada no início do século XIX para fundamentar a Análise Matemática, é feita de maneira a evitar um envolvimento direto com a soma de uma infinidade de parcelas. Assim, dada uma série infinita.

$$a_1 + a_2 + a_3 + \cdots + a_n + \cdots ,$$

formamos a soma finita

$$S_n = a_1 + a_2 + a_3 + \cdots + a_n,$$

e dizemos que o número  S  é a soma da série, isto é, dizemos que

$$ S = a_1 + a_2 + a_3 + \cdots + a_n + \cdots ,$$

se a diferença $|S - S_n|$ puder ser feita menor do que qualquer número positivo, desde que se faça $n$ suficientemente grande. Em linguagem mais precisa, isso quer dizer o seguinte: dado qualquer número $\varepsilon > 0$, existe um índice $N$ tal que, para $n > N$, é verdade que $|S - S_n| < \varepsilon$.

Observe bem: atribuímos significado à “soma infinita” $a_1 + a_2 + a_3 + \cdots$ através de uma definição que “evita o infinito”. $S$ não é a soma de todos os termos da série infinita; ele é o número do qual as somas parciais finitas $S_n$ vão-se aproximando mais e mais quanto for maior for o índice  $n$.

Em vista dessas considerações, para comparar o movimento da figura 3 a uma soma infinita, temos de decompô-lo na seqüência $AA_1, A_1A_2, A_2A_3, \cdots, A_{n-1} A_n$ e $A_n B$, pois é essa seqüência, à execução do último trecho $A_n B$,  que corresponde à soma parcial $S_n$. Aí a dificuldade desaparece por completo, não importa quão grande tomemos  n,  pois estaremos evitando o infinito, exatamente como se faz no tratamento das somas infinitas. Mas esse expediente, como se vê, desfigura completamente o paradoxo, e é justamente por isso que não há como resolvê-lo em termos de séries infinitas.

Hilbert e o infinito

Vale lembrar aqui um artigo sobre o infinito, de um dos mais eminentes matemáticos do século XX, David Hilbert (1962–1943). A partir de 1917, ele se dedicou a investigar os fundamentos da Matemática e em 1925 pronunciou uma conferência que deixou escrita e ficou famosa, na qual aborda a natureza do infinito. Para nós aqui interessa lembrar que nessa conferência Hilbert insiste, de maneira bastante convincente, que o infinito não existe na explicação matemática de fenômenos físicos, certamente estamos procedendo a uma idealização, que necessariamente, passa a ser um modelo que não mais corresponde exatamente à realidade física.

É precisamente isso o que acontece quando construímos modelos matemáticos para movimentos físicos. Por exemplo, quando dizemos que uma bola de bilhar está animada de um movimento com velocidade uniforme de 3 m/s e escrevemos a equação horária do movimento $s=3t$ ($s$ representando o espaço percorrido em metros e $t$ o tempo em segundos), estamos, tacitamente, representando a bola por um de seus pontos, digamos, o centro de massa. A partir desse momento, passamos a contemplar o modelo matemático, deixando para trás o fenômeno físico! O movimento “matemático”, regido pela equação $s=3t$, é contínuo, isto é,  nele o ponto se desloca ao longo de uma reta, passando por todos os (infinitos) pontos que se situam entre a posição inicial do móvel e a posição final.

Completamente outra é a situação do movimento físico. Primeiro que um corpo físico qualquer –– seja uma bola de bilhar, uma bola de gude, um grão de areia, ou mesmo Aquiles ou um tartaruga –– é sempre uma coleção finita de partículas. Quando esse corpo está em movimento, cada uma de suas partículas executa um movimento particular. Mesmo quando procuramos simplificar, falando em corpo rígido, centro de massa, partícula ou elemento material, já estamos idealizando, portanto, saindo do domínio estritamente físico...

Na verdade, estamos tão acostumados a descrever o movimento por meios matemáticos, que acabamos identificando o fenômeno físico “movimento” com seu “retrato matemático”. As coisas que se movem no mundo físico são partículas, não pontos matemáticos. E não há como, rigorosamente, identificar a trajetória de um próton ou um elétron, por exemplo, com uma reta ou curva contínua. É um equívoco imaginar que o móvel físico possa passar por uma infinidade de posições mesmo porque, como nos ensina Hilbert, o infinito não existe no mundo físico.

A racionalização do conhecimento

A fundamentação racional do conhecimento se originou com Tales, no século VI a.C.; e adquiriu grande impulso com Pitágoras, que teve a genial idéia de que todos os fenômenos se fundamentam no número e podem ser explicadas em termos puramente numéricos. No fundo, o que Pitágoras propõe é a possibilidade da matematização do universo, coisa que só vem se tornando realidade –– e com muito sucesso, diga-se de passagem – nos últimos 400 anos, desde os tempos de Galileu, Kepler e Newton.

Com o surgimento da fundamentação racional do conhecimento na Grécia antiga, vários sábios passam a se ocupar do exercício da racionalidade na análise das idéias então em voga. São eles os sofistas, que eram verdadeiros “disseminadores do conhecimento”, que até então houvera sido cultivado em sociedades mais ou menos fechadas, como a dos pitagóricos. Dentre os sofistas havia os menos escrupulosos –– e até charlatães, como acontece mesmo nos dias de hoje, em todas as profissões –– e aqueles que usavam de suas habilidades até mesmo para exibição e divertimento, como bem retrata a história seguinte:

Dois personagens, Protágoras e Euatlus, chegaram a um acordo, segundo o qual Protágoras concordava em ensinar Euatlus a prática do Direito por um certo preço, que deveria ser pago em duas vezes, a metade durante o curso e a outra metade quando Euatlus começasse a praticar a profissão e ganhasse seu primeiro caso num tribunal.

Acontece que Euatlus, após terminar o curso, nunca iniciava sua prática. Protágoras foi ficando impaciente, cobrava e recebia sempre a mesma resposta de Euatlus: “pelo nosso trato, não tenho de lhe pagar ainda, pois não ganhei meu primeiro caso perante um tribunal”. Com sua paciência esgotada, Protágoras decidiu processar Euatlus para conseguir receber o que ele lhe devia.

Mas antes mesma da formalização do processo, numa última tentativa, Protágoras procurou Euatlus e o alertou: “em qualquer hipótese você vai ter de me pagar, pois, se o tribunal decidir a meu favor, você terá de obedecer a essa decisão e me pagar; e, se o tribunal decidir a seu favor, aí você terá ganho seu primeiro caso como advogado e, de acordo com nosso trato, terá de me pagar. Portanto, melhor me pagar antes que eu recorra à justiça”.

“Você está enganado”, respondeu Euatlus a Protágoras, “pois, se o tribunal decidir a meu favor, obedecerei a tal decisão e não lhe pagarei; e, se decidir a seu favor, aí ainda não terei ganho meu primeiro caso, portanto, de acordo com nosso trato, não terei de lhe pagar!”

Zenão, ao que parece, era filósofo sofista (dos sofistas sérios, é claro!), um crítico dos instrumentos que então se criavam para o estudo racional dos fenômenos. Assim, já naquela época se questionavam as bases do conhecimento, pondo em evidência as próprias limitações da racionalidade. Decerto que já se faziam perguntas mais ou menos deste tipo: o intelecto humano é realmente capaz de “penetrar” os fenômenos, de desvendar os segredos da Natureza? Até que ponto o homem realmente adquire o conhecimento? Será esse conhecimento uma revelação completa dos fenômenos? Ou tem apenas um caráter relativo e limitado? Ou será mesmo totalmente ilusório?

Questões como essas são tão atuais nos dias de hoje como teriam sido há mais de dois milênios, nos tempos de Sócrates, Platão, Aristóteles, e mesmo de seus predecessores.

É interessante notar que, com o progresso científico, principalmente a partir do século XVIII, sobretudo no terreno da Física e da Matemática neste nosso século XX, as bases do conhecimento nunca se revelaram tão frágeis. Os físicos têm hoje plena consciência de que suas teorias –– que vivem numa permanente busca de conciliação e consistência –– nada mais são do que instrumentos frágeis de interpretação da realidade, nunca um desvendamento completo dessa realidade.

Dissemos que é provável que Zenão estivesse procurando, com seus paradoxos, evidenciar as deficiências das bases racionais do conhecimento. A ser isso verdade, poderíamos então dizer que Zenão seria muito atual em nossos dias!

Os matemáticos, por seu turno, depois de perseguirem, por séculos, a fundamentação última de suas teorias, sabem hoje que isso é impossível. E um dos elementos centrais das dificuldades de se atingir tal objetivo e o infinito, do mesmo modo que o infinito é a pedra de tropeço dos paradoxos de Zenão.


Notas:

(1) Aquiles é um herói mitológico. Filho de deuses, foi por sua mãe mergulhado de cabeça para baixo nas águas de um rio encantado, tornando-se invulnerável na guerra, exceto pelo calcanhar, por onde sua mãe o segurou; daí a expressão “calcanhar-de-Aquiles”. Ele se notabilizou como o maior guerreiro nas batalhas contra Tróia e o mais rápido dos corredores.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] Boyer, C. B. História da Matemática. São Paulo: Edgard Blücher, 1974.
[2] Ávila, G. Ainda as séries infinitas. RPM 31, págs. 9 e 1wa0.


Para saber mais sobre o infinito e os paradoxos de Zenão, veja esse link.


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