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Este é um blog sobre Matemática em geral, com ênfase no período clássico-medieval, também sobre as Artes liberais (Trivium e Quadrivium), so...

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O que é o Quadrivium? - por Roberto Helguera

Um jovem sendo apresentado às sete
artes liberais, 1484-1486. Sandro Botticelli

Transcrevemos abaixo um vídeo sobre Quadrivium traduzido pela própria Sacros*. Vídeo original está neste link.

 ...são artes que nos explicam a harmonia
que existe nas coisas
e essa harmonia é contemplável em si mesma,
porque diretamente
nos aponta para aquele Deus que nos fez
imagem e semelhança...

...são coisas que nos surpreendem
e nos fazem rir
porque, assim como O Pequeno Príncipe, 
elas nos fazem cantar,
eles nos fazem rir
porque são lindas...

...para entender que eu
também sou chamado para ser um ser divino,
para ser um Filho de Deus...

Olá. Como vai? Mais uma vez, estamos juntos. Estamos aprendendo a educar. Estamos aprendendo sobre homeschooling e estamos aprendendo sobre um monte de coisas. Quero falar com você hoje. Já falei com você sobre o que fazer se no meio de sua vida você descobrir que não foi educado.

Depois, falei com você sobre em que consiste uma boa educação. Mencionei a você que uma boa educação requer as artes do trivium e do quadrivium: as artes liberais ou aquelas artes que tornam o homem livre. Era o que os antigos, até não muito tempo atrás consideravam que tinha que saber qualquer pessoa capaz de participar politicamente ou governar a polis. Por quê? Porque essas artes liberais da gramática, lógica, retórica, aritmética, geometria, música e astronomia foram aquelas que moldam a alma e inteligência de tal forma que você pudesse se tornar um homem sábio, porque elas lhe permitiram não apenas nomear o que existe, mas ver bem o que existe nessas coisas. Prudência, como adaptar seu intelecto a uma realidade que está fora de você.

Hoje quero falar com você sobre o quadrivium, as quatro artes liberais, cujo objeto é, se você preferir, a matéria, mas me referir a elas como artes cujo objeto é a matéria, pode lhe dar uma ideia errada de que o quadrivium é mais do que qualquer outra coisa artes servis e não liberais, ou seja, artes que são usadas para fazer coisas.

Por exemplo, a física é usada para construir pontes ou resolver problemas de construção de edifícios, ou balística, ou guerra, ou qualquer outra coisa. Esses são usos legítimos da física, usos legítimos de uma ciência, mas não é a forma como os antigos pensavam nisso.

A razão pela qual temos quatro artes liberais que é a aritmética, geometria, música e astronomia,  principalmente, é porque são artes que nos explicam a harmonia que existe nas coisas, e essa harmonia é contemplável em si mesma, porque diretamente nos aponta para aquele Deus que nos fez imagem e semelhança... Portanto, a maneira liberal de pensar nas artes, tanto na gramática quanto na lógica, retórica, bem como as artes do quadrivium, é pensar no que elas nos dão de harmonia.

Como posso alcançar a harmonia? Pois a harmonia é o repouso, o repouso de minha alma e esse repouso que é obtido pela contemplação e compreensão, aquele momento em que você diz: "ah, entendi" ou se não, pelo menos acho que isso deve ser ótimo. "Senhor - como o Pedro disse - estamos muito bem aqui, vamos fazer três tendas". Por que Pedro quis ficar com Cristo transfigurado? Porque ele estava vendo a harmonia daquele Deus criador.

As artes liberais nos permitem ver a harmonia e considerar a harmonia das coisas. E isso, essa permanência constante na beleza é uma questão que nos da esse repouso. Repousa a mente, repousa a alma e é muito sensato, é muito saudável para minha mente, é muito saudável para essa modernidade.

Vamos pensar: o que a modernidade nos oferece hoje?

A modernidade hoje nos oferece uma "desarmonia", música que não é harmônica, pura gritaria, pura percussão, puro pulo, um escapismo. Desconstrói, o ser humano e a alma em mil matérias e em mil aspectos, como se fôssemos uma coleção acidental de átomos. Não acredita em leis permanentes. Tudo está sujeito a mudanças. Sempre há gritos. Existe um desespero, uma falta de esperança. Por quê? Porque não há beleza. Porque não há beleza. Podemos ver isso de forma muito prática.

Na cidade de Buenos Aires, onde eu moro, por exemplo, é possível ver perfeitamente bem imagens da rua onde temos muito bonita arquitetura de uma época anterior, onde o homem que via harmonia e também tem arquitetura mais bem "original" e muitas vezes brutalista e feia, de uma mentalidade moderna que não acredita mais em harmonia, mas acredita no efêmero do ser humano. Acredita que estamos aqui por acidente e, na pior das hipóteses, também temos todas as calçadas e todas as paredes pichadas por pessoas que não acreditam mais em nada. Portanto, é muito importante trazer harmonia para sua vida. 

Assim como a palavra do trivium nos deu harmonia nos nomes, em nomear, em dizer: "sim, de fato, esse som, essa palavra, ela significa justamente essa realidade" e isso nos dá repouso. A lógica junta essas palavras em uma sintaxe harmônica: sujeito, verbo, predicado, etc., que nos dá satisfação em completar uma ideia, em dar uma ideia completa e expressá-la. A retórica nos dá... diz o grande Andrew Kern do Instituto CIRCE, que é um grande pensador, nos diz: o propósito da retórica é trazer harmonia para a comunidade. Por quê? Porque com a palavra da gramática e da lógica argumentamos para convencer o outro do que é bom, belo e verdadeiro, e para manter a paz, para obter paz para a comunidade.

Dessa forma podemos considerar a Ilíada, aqueles que a leram, a Ilíada, onde tudo é guerra  como uma falha de harmonia como uma falha na retórica. Por outro lado, na Odisseia, onde se trata de uma jornada de um personagem, Ulisses ou Odisseu, desde o naufrágio e a pobreza, de ter perdido todos os seus tesouros de guerra e seus homens para recuperar sua pátria, botim e riquezas e tudo graças à sua boa retórica.

Bem, hoje Quero falar com você sobre harmonia em números, em quantidade ou magnitude, no tempo e no espaço. Vamos falar sobre aritmética. A aritmética é harmônica, por quê? Porque os números, (a quantidade é natural para o homem e os números). Brincando com os números, aqueles que são bons em matemática sabem que há muitas regras.

Por exemplo. Como posso saber qual número é divisível por determinados números? Eu sei que todo número par é divisível por dois. Por que isso acontece? Porque eu tenho uma ideia do que significa a unidade e do que o dois significa. Dois não é somente um mais um, dois tem suas próprias características, é por isso que o chamamos de número par, entre outras coisas.

Quais números são divisíveis por três ou por seis ou por nove? Muitas vezes sabemos que se for divisível por três e por dois é divisível por seis, ou que, se a soma de seus dígitos dá nove, é divisível por nove. Isso é muito interessante porque nos diz que que há uma harmonia desde o início.

Tendo mencionado o "(princípio)", você quer ir embora. O que lemos em São João?

"No princípio era o Verbo, e a Palavra era Deus - ou é Deus - e a Palavra era Deus e a Palavra está com Deus, e sem a Palavra nada foi criado".

A Palavra é uma só, mas Deus é uno e trino. Como sabemos disso? Porque Deus cria o homem à sua própria imagem e semelhança e fala no plural. E nós sabemos que Deus é três e criou o homem, macho e fêmea: dois. E criou o homem com quatro, digamos, elementos da natureza: o úmido, o seco, o quente e o frio, como diriam os antigos. E assim por diante temos números em toda a natureza.

De fato, aqueles que estão familiarizados com o número áureo ou a proporção áurea sabem que a sequência de Fibonacci. Pesquise: "Sequência de Fibonacci". É uma sequência que indica uma ordem absolutamente permeável por toda a criação. Essa sequência é como um logaritmo que indica que cada número é o resultado da soma dos dois anteriores.

Então é $1$; 
$2=1+1$;
$3=2+1$; 
$5=3+2$; 
$8=5+3$, e assim por diante...

E se fizermos isso logaritmicamente, geometricamente, isso nos dará uma curva específica que você vê na forma como as sementes crescem, os galhos das árvores, a forma do nautilus, esse caracol, tão bonito das profundezas do mar e tantas outras figuras da natureza. Isso nos mostra que Deus utiliza a quantidade de forma harmoniosa, mas também a magnitude, porque a matéria tem, além de quantidade, além de ser quantificável. Por quê? Porque ela tem partes. A matéria tem magnitude, tem comprimento, tem largura, profundidade, volume e tudo isso está dentro dos limites. Isso significa que a matéria tem formas.

A geometria é o estudo das formas, por assim dizer. Mas essas formas também são harmônicas porque elas nos trazem repouso na compreensão das propriedades, por exemplo, dos quadriláteros. O que acontece quando eu divido um segmento, por exemplo, em partes iguais e desiguais e construo um quadrado nesse segmento? Percebo que a área desse quadrado, por exemplo, é a soma da área dos dois quadrados menores formados pelos segmentos mais dois quadriláteros, formados por um lado por um segmento longo e o outro lado por um segmento curto. Isso nada mais é do que a equação quadrática, mas expressa geometricamente, ela tem uma beleza enorme.

Portanto, a geometria é importante para a educação porque ela nos traz harmonia, porque é cheia de maravilhas. Temos admiração por esse tipo de regras que acabei de mencionar para você, ou que os ângulos internos de um triângulo somam dois ângulos retos. Sempre. Essas são coisas que nos surpreendem e nos fazem rir porque, assim como O Pequeno Príncipe, elas nos fazem nos fazem cantar, nos dão, nos fazem rir porque são lindas.

A geometria também é bonita. Há pelo menos três fontes de beleza na geometria. Primeiro, as próprias figuras que são perfeitas, dentro de sua espécie, são perfeitas. Cada um dos sólidos, por exemplo, a simetria e a proporção. Isso também é algo que nos dá prazer. E finalmente, há uma beleza nas próprias verdades geométricas,

E já estou falando de forma abstrata, que não estou falando de geometria ou aritmética como algo útil para construir pontes. Ela pode ser usada para isso, e por ter essas propriedades que estão descobrindo e há uma grande alegria, um grande descanso em harmonia quando se vê essas coisas.

Além disso, a geometria está repleta de elementos fundamentais para a filosofia. É por isso que vemos na famosa Academia de Platão uma placa na entrada que dizia que ninguém que seja ignorante de matemática ultrapassa esse limite. Ou seja, que ninguém que seja ignorante de matemática faça filosofia. Isso é importante porque na modernidade o filósofo é visto como alguém que lida com palavras, ciências sociais e não em ciências exatas. As ciências exatas são para engenheiros. Mentira. Não há melhor filósofo do aquele que entende bem de física, que entende bem a beleza e a harmonia da matemática.

Por quê? Bem, porque Platão viu muitos dos princípios universais facilmente descobertos na matemática, e são princípios que são fundamentais para a filosofia, que o todo é maior do que a parte. Você vai me dizer: óbvio. Mas isso é frequentemente negado. Que uma coisa não pode ser tanto par ou ímpar, por exemplo. Isso me mostra o princípio da não-contradição. Os gregos eram muito, muito realistas que não iam além das três dimensões. Para eles, quatro, cinco ou seis dimensões não têm sentido.

A matemática moderna muitas vezes segue uma física moderna que contém muitos dos erros filosóficos, mas isso não impede ninguém, qualquer físico, prefira às equações mais elegantes, mais bonitas, mais sintéticas e que melhor e mais elegantemente expressam uma realidade. É por isso que Einstein, apesar de sua belíssima equação da relatividade, estudou todo o fenômeno da relatividade tentando salvar as equações de Maxwell, as equações da eletricidade, porque ele as viu de forma tão bela que disse que elas não podem deixar de ser verdadeiras, não podem não ser verdadeiras, porque naquela época eles não podiam provar que as equações de Maxwell eram verdadeiras.

Então, isso é interessante. É um aspecto da vida de alguém que realmente considera a geometria ou a matemática, a aritmética como algo belo em si mesmo, como algo que tem um valor em si mesmo. A geometria, além disso, exercita a mente de uma forma elevada. É por isso que os gregos estudavam a geometria como algo fundamental e necessário, algo que mostra, se você preferir, a ordem divina das coisas.

E isso nos leva ao o estudo da música. A música, diriam os antigos, é o conhecimento prático, segundo eles, da modulação, "modulatio" que constitui o som e o canto e a música deriva da palavra musa. As nove musas dos gregos, que inspiravam os poetas para expressar verdades divinas sem compreendê-las. Ou seja, como se os deuses falassem por meio dos poetas, ao homem normal. Mas como eles falavam em um idioma superior, eles falavam de uma forma poética, de uma forma intuitiva, como metafórica ou alegórica, ou, exatamente, dessa forma: analógica. Essa linguagem que é tão importante saber e que eu já falei com você em outros vídeos sobre a importância importância de conhecer esse modo de conhecer, é uma linguagem que, é expressa na música.

A música também é muito matemática. Como assim? Porque as notas são uma questão de relações matemáticas. Se você souber, uma nota, por exemplo, uma oitava, é uma proporção de 1 para 2. Se eu tiver uma corda com comprimento de um metro e eu a cortar pela metade, por 50 centímetros, esses 50 centímetros vai soar uma oitava acima do que a corda, ela vibrará duas vezes mais rápido, do que a corda inteira. E assim sabemos que, por exemplo, uma 5ª é uma proporção de 2 para 3 e uma 4ª é uma razão de 3 para 4, e a segunda é uma proporção de 9 para 11 ou 9 para 12, se não estou enganado.

Quanto mais harmônico o som, mais simples a proporção, quanto mais atonal ou "inarmônico" for o som, mais complexa será a relação para o ouvido, o número é maior. E é dito que, por exemplo, os planetas circulam, há uma sinfonia famosa do som dos planetas por Holst, que me parece ser baseada no Timeu, onde os planetas circulam em órbitas que têm relações matemáticas com respeito ao resto das órbitas, e essas relações formam sons, sons do universo.

O antigo tinha um ouvido capaz de ouvir muitas harmonias e muitas coisas que nós perdemos por causa do barulho de toda a tecnologia da modernidade. Nós perdemos, mas podemos recuperá-lo sempre buscando isso.

Portanto, a terceira arte do quadrivium é a música e ela é tão fundamental e tão embutida na criação que não é à toa que um poeta, por assim dizer, como Tolkien escreve em seu Silmarillion, que no início Ilúvatar, que é um nome para Deus, cantou, fez música e essa música era criativa, criou.

E a Liturgia nós a cantamos ou deveríamos cantá-la. E quando estamos felizes, ou apaixonados ou alegres, o que fazemos? Começamos a assobiar ou cantar. E por que cantar é orar duas vezes? Porque quando alguém canta afirma que o que ele está cantando é bonito, é bom, é bonito e é verdadeiro. Afirma duas coisas: é verdadeiro e é belo portanto, é digno de uma canção. É por isso que a música é uma das artes mais importantes e não deve faltar em sua educação ou na educação de seus filhos.

Se você nunca fez nada sobre música, bem, nunca é tarde demais para começar a estudar um instrumento, um instrumento clássico: violino, violoncelo, algum instrumento agradável se você tiver um bom ouvido. O piano é o mais simples, porque as notas já estão predeterminadas. O violão é um pouco mais difícil, mas é muito satisfatório. E cantar. Cante, cante, coloque música em sua vida, em sua alma. Isso é importante.

Na modernidade, estamos acostumados a não fazer música, mas a ouvir música transmitida eletronicamente. E é muito bom, mas eu te encorajo a tentar fazer música você mesmo, participe de um coral, cantar, fazer aulas de voz, aulas de canto faça alguma coisa.

Finalmente, astronomia. A astronomia, aqui podemos lembrar dessa pequena rima de Estrelinha, com a música de Mozart, que resume todo o espírito da astronomia.

«Twinkle, Twinkle twinkle little star. How I wonder what you are».

Brilha, brilha, estrelinha. Eu me pergunto o que você é.

E isso é como O Pequeno Príncipe. Aqui chega um estudo que nos leva ao espaço. E o espaço nos atrai porque é misterioso e cheio de ordem e previsibilidade. Todo dia o sol nasce, todo dia o sol se põe, todo dia nós vemos a lua de minguante, de meia-lua, de lua cheia, até cheia e assim por diante. Ela cresce e cresce a cada 29 dias, é regular, há uma regularidade nos planetas, nas órbitas que quando as entendemos, nos causa uma enorme harmonia na alma.

Saber que esses seres misteriosos que estão lá, essas criaturas que são esses planetas e sóis gigantescos que estão lá, alguns que nós nunca chegaremos a ver como seres humanos. E Deus os colocou lá pelo prazer, para nos mostrar a beleza e que a beleza como é Deus é harmônica, porque Deus Trino e Uno e Trino faz tudo em harmonia.

Por exemplo, é dito que o universo começou no dia 25 de março. E por quê? Porque a encarnação ocorreu no dia 25 de março e também no dia 25 de dezembro, nove meses depois Cristo nasce e assim tudo tem uma harmonia, certo? E se você me dissesse: «adivinha que dia poderia ser o dia em que tudo acabaria" E eu diria: Não sei quando, não sei em que ano, mas apostaria no dia 25 de março.

Então, no quadrivium temos a aritmética da quantidade, a geometria da magnitude, música, que é quantidade, magnitude e tempo colocados em uma harmonia. E a astronomia que me causa, me mostra essa harmonia de toda a criação que eu contemplo para entender que eu também fui chamado para ser um ser divino, para ser um Filho de Deus... para me alegrar como o Pequeno Príncipe.

E quando eu olhar para as estrelas, rir e ouvir a risada do Pequeno Príncipe, esse é o quadrivium, muito importante faça com que isso faça parte de sua vida, coloque em prática em seu programa, eduque seus filhos com isso ou se eduque também nessas artes. Eu te incentivo.

Nos vemos na próxima vez para continuarmos falando sobre educação.

* Para saber mais sobre a Sacros clique aqui.

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Desse modo, o Mundo é regido pelo Número - por Instituto Hugo de São Vitor

Anônimo, “Deus, o Arquiteto do
Universo” (1220-1230), Bíblia
Moralisée, iluminação em pergaminho,
 34,4 × 26 cm, Österreichische
Nationalbibliothek, Viena, Áustria

O cálculo nos ensina como combinar, das mais diversas formas, os números. Mas não o porquê do número, a sua causa. As raízes dessa questão são profundas.

Por isso, quando ouvimos dizer que Pitágoras de Samos, o grande matemático grego, dizia que o mundo era regido pelo número, podemos estranhar. Alguns até debocham dessa assertiva.

Pitágoras tinha uma razão para pensar assim. E quando os antigos sábios tinham uma razão, isso em geral significa que eles tinham uma boa razão.

A boa razão de Pitágoras era que os números são obtidos por uma abstração maior do que a abstração que retira a forma da matéria. Assim sendo, para ele isso demonstrava que os números são algo mais universal que as formas. E, de fato, as formas, nas coisas da natureza, se deterioram, mas o número, de algum modo, permanece sempre. Dessa ótica, o número parece realmente ser mais perene que a forma, e, por isso, parece regê-la.

 Você até pode rejeitar essa visão pitagórica com outros argumentos. Porém, não pode alegar que ela seja irracional.

O que é inegável é a importância do número. Sem ele, cairíamos na total desordem, no caos mais completo, de tal modo que qualquer vida seria inimaginável. Pois mesmo a imaginação, muitas vezes alcunhada de fantástica, precisa respeitar o número.

Daí que o livro da sabedoria afirme que Deus criou o mundo com número, peso e medida. Daí que sem a compreensão do universo dos números, não se caminhe em direção à sabedoria.

Daí que os antigos tenham estabelecido um currículo básico para o estudo dos números. Seu nome era Quadrivium. A Aritmética era o estudo da quantidade discreta; a Geometria, o estudo da quantidade contínua; a Música, o estudo aplicado da quantidade discreta; a Astronomia, o estudo aplicado da quantidade contínua. Sem dúvida era um currículo completo e acabado, como não vemos mais, por ser um estudo ordenado e coeso.

Estudando-o, aprenderemos certamente muito melhor a natureza do número do que pelo currículo atual, em que se misturam graus básicos com graus avançados de matemática, de modo a confundir mais do que elucidar a mente do aluno.

Texto retirado de Link


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Definição de Número, por Elon Lages Lima

Elon Lages Lima

Números Naturais

"Deus criou os números naturais. O resto é obra dos homens." Leopold Kronecker

1. Introdução

Enquanto os conjuntos constituem um meio auxiliar, os números são um dos dois objetos principais de que se ocupa a Matemática. (O outro é o espaço, junto com as figuras geométricas nele contidas.)

Números são entes abstratos, desenvolvidos pelo homem como modelos que permitem contar e medir, portanto avaliar as diferentes quantidades de uma grandeza.

Os compêndios tradicionais dizem o seguinte:

"Número é o resultado da comparação entre uma grandeza e a unidade. Se a grandeza é discreta, essa comparação chama-se uma contagem e o resultado é um número inteiro; se a grandeza é contínua, a comparação chama-se uma medição e o resultado é um número real."

Nos padrões atuais de rigor matemático, o trecho acima não pode ser considerado como uma definição matemática, pois faz uso de idéias (como grandeza, unidade, discreta, contínua) e processos (como comparação) de significado não estabelecido. Entretanto, todas as palavras que nela aparecem possuem um sentido bastante claro na linguagem do dia-a-dia. Por isso, embora não sirva para demonstrar teoremas a partir dela, a definição tradicional tem o grande mérito de nos revelar para que servem e por qual motivo foram inventados os números. Isto é muito mais do que se pode dizer sobre a definição que encontramos no nosso dicionário mais conhecido e festejado, conforme reproduzimos a seguir.

Número. [Do lat. numeru.] S.m. 1. Mat. O conjunto de todos os conjuntos equivalentes a um conjunto dado. 

(...)

2.3 O Conjunto dos Números Naturais

Lentamente, à medida em que se civilizava, a humanidade apoderou-se desse modelo abstrato de contagem (um, dois, três, quatro, ...) que são os números naturais. Foi uma evolução demorada. As tribos mais rudimentares contam apenas um, dois, muitos. A língua inglesa ainda guarda um resquício desse estágio na palavra thrice, que tanto pode significar "três vezes" como "muito" ou "extremamente".

Algo parecido ocorre no idioma francês, onde as palavras très (muito) e trop (demasiado) são claramente vocábulos cognatos de trois (três), bem como em italiano, onde troppo (excessivamente) derivada de tre (três). É curioso observar que, em alemão, o fenômeno se dá com viel que significa "muito" enquanto vier quer dizer "quatro". Coincidência, ou os germânicos estavam um passo à frente dos bretões gauleses e romanos?

As necessidades provocadas por um sistema social cada vez mais complexo e as longas reflexões, possíveis graças à disponibilidade de tempo trazida pelo progresso econômico, conduziram, através dos séculos, ao aperfeiçoamento do extraordinário instrumento de avaliação que é o conjunto dos números naturais.

Decorridos muitos milênios, podemos hoje descrever concisa e precisamente o conjunto $\mathbb{N}$ dos números naturais, valendo-nos da notável síntese feita pelo matemático italiano Giuseppe Peano no limiar do século 20.

$\mathbb{N}$ é um conjunto, cujos elementos são chamados números naturais. A essência da caracterização de $\mathbb{N}$ reside na palavra "sucessor". Intuitivamente, quando $ n,\ \ n' \in \mathbb{N}$, dizer que $n'$ é o sucessor de $n$ significa que $n'$ vem logo depois de $n$, não havendo outros números naturais entre $n$ e $n'$. Evidentemente, esta explicação apenas substitui "sucessor" por "logo depois", portanto não é uma definição. O termo primitivo "sucessor" não é definido explicitamente. Seu uso e suas propriedades são regidos por algumas regras, abaixo enumeradas:

a) Todo número natural tem um único sucessor;

b) Números naturais diferentes têm sucessores diferentes;

c) Existe um único número natural, chamado um e representado pelo símbolo $1$, que não é sucessor de nenhum outro;

d) Seja $X$ um conjunto de números naturais (isto é, $X \subset \mathbb{N}$). Se $1\in X$ e se, além disso, o sucessor de todo elemento de $X$ ainda pertence a $X$, então $X =\mathbb{N}$.

As afirmações a), b), c) e d) acima são conhecidas como os axiomas de Peano. Tudo o que se sabe sobre os números naturais pode ser demonstrado como conseqüência desses axiomas.

Um engenhoso processo, chamado sistema de numeração decimal, permite representar todos os números naturais com o auxílio dos símbolos $0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8$ e $9$. Além disso, os primeiros números naturais têm nomes: o sucessor do número um chama se "dois", o sucessor de dois chama-se "três", etc. A partir de um certo ponto, esses nomes tornam-se muito complicados, sendo preferível abrir mão deles e designar os grandes números por sua representação decimal. (Na realidade, os números muito grandes não possuem nomes. Por exemplo, como se chamaria o número $10^{1000}$?).

Deve ficar claro que o conjunto $\mathbb{N} = \{1,2,3, . . . \}$ dos números naturais é uma seqüência de objetos abstratos que, em princípio, são vazios de significado. Cada um desses objetos (um número natural) possui apenas um lugar determinado nesta seqüência. Nenhuma outra propriedade lhe serve de definição. Todo número tem um sucessor (único) e, com exceção de $1$, tem também um único antecessor (número do qual é sucessor).

Vistos desta maneira, podemos dizer que os números naturais são números ordinais: $1$ é o primeiro, $2$ é o segundo, etc.

Um Pequeno Comentário Gramatical

Quando dizemos "o número um", "o número dois" ou "o número três", as palavras "um", "dois" e "três" são substantivos, pois são nomes de objetos. Isto contrasta com o uso destas palavras em frases como "um ano, dois meses e três dias", onde elas aparecem para dar a idéia de número cardinal, isto é, como resultados de contagens. Nesta frase, "um", "dois" e "três" não são substantivos. Pertencem a uma categoria gramatical que, noutras línguas (como francês, inglês e alemão, por exemplo) é chamada adjetivo numeral e que os gramáticos brasileiros e portugueses, há um par de décadas, resolveram chamar de numeral apenas. Este comentário visa salientar a diferença entre os números naturais, olhados como elementos do conjunto $\mathbb{N}$, e o seu emprego como números cardinais. 

(...)

Recomendação

1. Não se deve dar muita importância à eterna questão de saber se $0$ (zero) deve ou não ser incluído entre os números naturais. (Vide "Meu Professor de Matemática", pág. 150.) Praticamente todos os livros de Matemática usados nas escolas brasileiras consideram $0$ como o primeiro número natural (conseqüentemente $1$ é o segundo, $2$ é o terceiro, etc). Como se viu acima, não adotamos esse ponto-de-vista. Trata-se, evidentemente, de uma questão de preferência. Deve-se lembrar que o símbolo $0$ (sob diferentes formas gráficas) foi empregado inicialmente pelos maias, posteriormente pelos hindus, difundido pelos árabes e adotado no ocidente, não como um número e sim como um algarismo, com o utilíssimo objetivo de preencher uma casa decimal vazia. (No caso dos maias, a base do sistema de numeração era $20$, e não $10$.) De resto, a opção do número natural para iniciar a seqüência não se limita a escolher entre $0$ e $1$. Freqüentemente esquecemos que, do mesmo modo que conhecemos e usamos o zero mas começamos os números naturais com $1$, a Matemática grega, segundo apresentada por Euclides, não considerava 1 como um número. Nos "Elementos", encontramos as seguintes definições:

"Unidade é aquilo pelo qual cada objeto é um. Número é uma multitude de unidades".

(...)

A palavra "número" no dicionário

As vezes se diz que os conjuntos $X$ e $Y$ são (numericamente) equivalentes quando é possível estabelecer uma correspondência biunívoca $f: X \rightarrow Y$, ou seja, quando $X$ e $Y$ têm o mesmo número cardinal.

Isto explica (embora não justifique) a definição dada no dicionário mais vendido do país. Em algumas situações, ocorrem em Matemática definições do tipo seguinte: um vetor é o conjunto de todos os segmentos de reta do plano que são equipolentes a um segmento dado. (Definição "por abstração".) Nessa mesma veia, poder-se-ia tentar dizer: "número cardinal de um conjunto é o conjunto de todos os conjuntos equivalentes a esse conjunto." No caso do dicionário, há um conjunto de defeitos naquela definição, com um número cardinal razoavelmente elevado. Os três mais graves são:

1. Um dicionário não é um compêndio de Matemática, e muito menos de Lógica. Deve conter explicações acessíveis ao leigo (de preferência, corretas). As primeiras acepções da palavra "número" num dicionário deveriam ser "quantidade" e "resultado de uma contagem ou de uma medida".

2. A definição em causa só se aplica a números cardinais, mas a idéia de número deveria abranger os racionais e, pelo menos, os reais.

3. O "conjunto de todos os conjuntos equivalentes a um conjunto dado" é um conceito matematicamente incorreto. A noção de conjunto não pode ser usada indiscriminadamente, sem submeter-se a regras determinadas, sob pena de conduzir a paradoxos, ou contradições. Uma dessas regras proíbe que se forme conjuntos a não ser que seus elementos pertençam a, ou sejam subconjuntos de, um determinado conjunto-universo. Um exemplo de paradoxo que resulta da desatenção a essa regra é "o conjunto $X$ de todos os conjuntos que não são elementos de si mesmos." Pergunta-se: $X$ é ou não é um elemento de si mesmo? Qualquer que seja a resposta, chega-se a uma contradição.

(...)

Números Reais

4.1 Segmentos Comensuráveis e Incomensuráveis

Seja $AB$ um segmento de reta. Para medi-lo, é necessário fixar um segmento-padrão $u$, chamado segmento unitário. Por definição, a medida do segmento $u$ é igual a $1$. Estipularemos ainda que segmentos congruentes tenham a mesma medida e que se $n - 1$ pontos interiores decompuserem $AB$ em $n$ segmentos justapostos então a medida de $AB$ será igual à soma das medidas desses $n$ segmentos. Se estes segmentos parciais forem todos congruentes a $u$, diremos que $u$ cabe $n$ vezes em $AB$ e a medida de $AB$ (que representaremos por $\overline {AB}$) será igual a $n$.

Pode ocorrer que o segmento unitário não caiba um número exato de vezes em $AB$. Então a medida de $AB$ não será um número natural. Esta situação conduz à idéia de fração, conforme mostraremos agora.

Procuramos um pequeno segmento de reta $w$, que caiba $n$ vezes no segmento unitário $u$ e $m$ vezes em $AB$. Este segmento $w$ será então uma medida comum de $u$ e $AB$. Encontrado $w$, diremos que $AB$ e $u$ são comensuráveis. A medida de $w$ será a fração $1/n$ e a medida de $AB$, por conseguinte, será $m$ vezes $1/n$, ou seja, igual a $m/n$.

Relutantes em admitir como número qualquer objeto que não pertencesse ao conjunto $\{2, 3, 4, 5, \}$, os matemáticos gregos à época de Euclides não olhavam para a fração $m/n$ como um número e sim como uma razão entre dois números, igual à razão entre os segmentos $AB$ e $u$.

Na realidade, não é muito importante que eles chamassem $m/n$ de número ou não, desde que soubessem, como sabiam, raciocinar com esses símbolos. (Muito pior eram os egípcios que, com exceção de $2/3$, só admitiam frações de numerador $1$. Todas as demais, tinham que ser expressas como somas de frações de numerador $1$ e denominadores diferentes. Por exemplo, $7/10$ no Egito era escrito como $1/3 + 1/5 + 1/6$.)

O problema mais sério é que por muito tempo se pensava que dois segmentos quaisquer eram sempre comensuráveis: sejam quais fossem $AB$ e $CD$, aceitava-se tacitamente que haveria sempre um segmento $EF$ que caberia um número exato n de vezes em $AB$ e um número exato $m$ de vezes em $CD$. Esta crença talvez adviesse da Aritmética, onde dois números naturais quaisquer têm sempre um divisor comum (na pior hipótese, igual a $1$).

A ilusão da comensurabilidade durou até o quarto século antes de Cristo. Naquela época, em Crotona, sul da Itália, havia uma seita filosófico-religiosa, liderada por Pitágoras. Um dos pontos fundamentais de sua doutrina era o lema "Os números governam o mundo". (Lembremos que números para eles eram números naturais, admitindo-se tomar razões entre esses números, formando as frações.) Uma enorme crise, que abalou os alicerces do pitagorismo e, por algum tempo, toda a estrutura da Matemática grega, surgiu quando, entre os próprios discípulos de Pitágoras, alguém observou que o lado e a diagonal de um quadrado são segmentos de reta incomensuráveis.

O argumento é muito simples e bem conhecido.

Figura 4.1

Se houvesse um segmento de reta $u$ que coubesse $n$ vezes no lado $AB$ e $m$ vezes na diagonal $AC$ do quadrado $ABCD$ então, tomando $AB$ como unidade de comprimento, a medida de $AC$ seria igual a $m/n$ enquanto, naturalmente, a medida de $AB$ seria $1$. Pelo Teorema de Pitágoras teríamos $(m/n)^2 = 1^2 + 1^2$, donde $m^2/n^2 = 2$ e $m^2 = 2n^2$. Mas esta última igualdade é absurda, pois na decomposição de $m^2$ em fatores primos o expoente do fator 2 é par enquanto em $2n^2$ é ímpar.

A existência de segmentos incomensuráveis significa que os números naturais mais as frações são insuficientes para medir todos os segmentos de reta.

A solução que se impunha, e que foi finalmente adotada, era a de ampliar o conceito de número, introduzindo os chamados números irracionais, de tal modo que, fixando uma unidade de comprimento arbitrária, qualquer segmento de reta pudesse ter uma medida numérica. Quando o segmento considerado é comensurável com a unidade escolhida, sua medida é um número racional (inteiro ou fracionário). Os números irracionais representam medidas de segmentos que são incomensuráveis com a unidade. 

No exemplo acima, quando o lado do quadrado mede $1$, a medida da diagonal é o número irracional $\sqrt{2}$. (O fato de que esta conclusão não depende do tamanho do quadrado que se considera, deve-se a que dois quadrados quaisquer são figuras semelhantes.)

Recomendação

1. Nos meios de comunicação e entre pessoas com limitado conhecimento matemático, a palavra incomensurável é muitas vezes usada em frases do tipo: havia um número incomensurável de formigas em nosso piquenique. Nunca diga isso. Incomensurabilidade é uma relação entre duas grandezas da mesma espécie; não dá idéia de quantidade muito grande. Uma palavra adequada no caso das formigas seria incontável ou imenso. Noutros casos, como um campo gigantesco, poderia ser imensurável ou imenso. Mas nada é incomensurável, a não ser quando comparado com outro objeto (grandeza) da mesma espécie.

(...)

Recomendação 2

A maioria de nossos livros escolares define número racional como "o número que pode ser expresso como quociente de dois inteiros", número irracional como "o número que não é racional" e $\mathbb{R}$ como o conjunto dos números racionais mais os irracionais. Como seus autores não dizem o que entendem por "número", resulta de suas definições que um número musical ou um número de uma revista são números irracionais. Não se deve adotar esse tipo de atitude. É verdade que a apresentação rigorosa da teoria dos números reais (conforme feita nos cursos de Análise) foge inteiramente ao nível e aos objetivos do ensino médio. Mas isto não deve ser motivo para escamoteações. Pelo contrário, quando se tem que falar sobre números reais para uma audiência matematicamente imatura, tem-se aí uma boa oportunidade para fazer a ligação entre a Matemática e o cotidiano, apresentando-os como resultados de medições, como tentamos explicar aqui.

Retirado do livro A Matemática do Ensino Médio, Volume 1. Autores: Elon Lages Lima, Paulo Cezar Pinto Carvalho, Eduardo Wagner e Augusto César Morgado. 10 ed. - Rio de Janeiro: SBM, 2012.


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