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Este é um blog sobre Matemática em geral, com ênfase no período clássico-medieval, também sobre as Artes liberais (Trivium e Quadrivium), so...

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Instrução Didática, Mimética e Socrática

Tela "A Morte de Sócrates"
de Jacques-Louis David (1825)

Na respiração humana, a inspiração deve, necessariamente, preceder a expiração. Expira-se aquilo que previamente se inspirou. Podemos aplicar, analogicamente, o mesmo princípio à educação: Ensina-se o que foi previamente aprendido. Os atos e palavras empregados pelo professor são resultado daquilo que foi impresso em sua mente sobre aquele assunto. Antes de se ensinar, aprende-se. Esse princípio, que se aplica ao ato de ensinar – o estudante inspira aquilo que foi expirado pelo professor – também se aplica à própria maneira de aprender. A natureza do aprendizado é uma natureza dinâmica: inspira-se, através do recebimento da informação e de sua absorção, e expira-se, através de sua representação, a própria impressão daquele conhecimento na alma do estudante.

Um dos princípios-chave da Educação Clássica Católica é o respeito a esse princípio, é respeitar e honrar a natureza da criança e a natureza do aprendizado. Para atingir esse fim, a Educação Clássica emprega dois modos de instrução, a Instrução Mimética e a Instrução Socrática.

Instrução Didática

A instrução didática consiste principalmente na passagem de conteúdos do professor para o aluno de maneira passiva, por exemplo através de leituras, aulas discursivas. Discutiremos mais sobre a instrução didática no futuro. Apesar de não ser um modo próprio da Educação Clássica, é grandemente utilizada na Educação Mimética, mas não deve ser confundida com ela.

Instrução Mimética

E educação pode ser bem definida como o “cultivo da sabedoria e da virtude na alma através da promoção do verdadeiro, do bom e do belo". Em resumo, em aprender e crescer em virtude.

A Instrução Mimética fundamenta-se na ideia de que o ser humano aprende e cresce em virtude através da imitação. A Educação Clássica vê, porém, essa imitação não como um “macaquear” ou uma simples arremedação, mas como uma verdadeira mimesis, imitação interior, e não exterior. Ao aprender algo de maneira mimética, o aluno abstrai a ideia por meio do exemplo e da imitação e a internaliza, aplicando o que foi aprendido em sua vida. A educação mimética consiste em cinco etapas:

1. Pré-percepção

Pela memória, considera-se o que já se sabe sobre aquela ideia ou verdade, ou ideias correlatas.

2. Percepção

Pelos sentidos, considera-se a ideia em si mesma e sobre sua aplicação (por exemplo, ouvir a beleza de uma música ou de uma obra de arte)

3. Absorção

Imprime-se aquela ideia na alma através do senso comum, isto é, onde os sentidos físicos encontram a alma. Poderíamos considerar esse estágio como “contemplativo”, pois nele a alma une as diversas informações passadas pelos sentidos para construir uma ideia sobre o que está sendo tratado. Imaginemos uma escultura que expressa alegria. Os sentidos vêem apenas linhas, cores, formas. É o senso comum que une essas informações a fim de montar uma ideia na mente daquele que a admira.

4. Compreensão

Neste estágio, a mente apreende a ideia, isto é, compreende aquilo que foi absorvido para a alma. Aqui o aprendizado é feito. Aqui se conclui a inspiração

5. Representação

A ideia é impressa no estudante com uma nova forma. Aqui de fato a ideia ou verdade é personificada e imitada. Aqui se faz a expiração. Se apresenta a nova forma daquilo que foi impresso nos estágios precedentes.

Para compreender essas cinco etapas, consideremos, como exemplo, a ideia do Lar na Odisseia de Homero:

1. O que você considera um lar? Como é o seu lar? Você já esteve longe do seu lar por muito tempo?

2. Na leitura do livro, percebe-se a ideia de lar: casa de Nestor, de Zeus, de Menelaus, de Odisseu, etc.

3. Comparam-se os diferentes lares, incluindo o seu próprio: O que esses tipos (exemplos) de lar me ensinam sobre a ideia de “lar”?

4. O que um lar deve ser? O que torna algo um “lar”?

5. Representa-se o conhecimento adquirido por ideias, como num escrito, numa conversa ou numa explicação sobre o tema; ou por ações, como o cuidado maior pelo lar, a mudança de comportamento com relação a estar nele, etc.

A mimesis é a imitação, não da forma exterior, mas da ideia – não de uma ação, mas da ideia expressa nessa ação. Cada arte e habilidade é aprendida por essas etapas, seja na escola ou fora dela. É uma forma indutiva de instrução modificada, na qual os alunos são levados a entender ideias, contemplando modelos ou tipos deles. Esses modelos podem ser encontrados na literatura, história, matemática, música, artes, outras atividades humanas e na própria natureza.

Para educar de forma mimética, deve o professor seguir cinco estágios:

1. Preparação

O professor apresenta algo que o aluno já conhece ou cria a necessidade da ideia que será passada. Dessa maneira, o professor guia o aluno a preencher as lacunas que devem ser preenchidas pelo novo conhecimento a adquirir. Durante essa fase, a atenção, habilidade de raciocínio e imaginação do aluno estarão em grande atividade. O aluno ganhará confiança ao recordar os pontos que já conhece e percebê-los como ferramentas para o novo desafio. De igual maneira, o professor poderá melhor adaptar-se às necessidades dos alunos e o processo de aprendizado em geral será muito mais fácil e marcante. Essa é uma das partes mais importantes do processo de ensino e cerca de 40% do esforço e do tempo devem ser empregados nela, pois em grande parte da preparação depende o sucesso da instrução. Por exemplo, antes de se ensinar a multiplicar, o professor recorda a soma. Antes de se somar dois dígitos, deve-se apresentar a soma de um dígito só. Antes de se tratar da conjugação de determinado verbo, trata-se dos substantivos, etc.

2. Apresentação de tipos

O professor apresenta tipos, isto é, exemplos e ilustrações que incorporam e simbolizam a ideia que está sendo apresentada. Durante esta fase, a memória e a recordação ajudarão o estudante a resolver os problemas apresentados, participando neles. Cerca de 25% do tempo deve ser empregado nesta fase. Por exemplo, ao ensinar a multiplicar, o professor aplica dois ou três casos de multiplicação a partir do conhecimento já adquirido (soma). Ao ensinar a soma de dois dígitos, aplica alguns exemplos (por exemplo a quantidade de alunos na sala) em que essa soma de dois dígitos seja necessária, etc.

3. Comparação de tipos

Após verem vários tipos, os alunos naturalmente começam a compará-los. Nesta fase, cabe ao professor aprofundar essas comparações através de perguntas. Todo processo é fundamentado no uso da memória e do raciocínio dos estudantes que comparam e entendem a relação entre os tipos. Toda a ideia desta fase é guiar os alunos a encontrar padrões por si mesmos (embora guiados e induzidos pelo professor) de modo a chegarem ao entendimento da ideia apresentada. Por exemplo, ao ensinar a multiplicar, o professor induz os alunos a perceberem que a multiplicação nada mais é que repetir a soma. Isso pode ser feito, por exemplo, mostrando multiplicações simples como $3 \times 3$, $3 \times 4$ e $3 \times 5$ induzindo os alunos, através de perguntas e mesmo contra-exemplos, a perceber o padrão apresentado na ideia.

4. Compreensão e expressão da ideia

Após o encontro de padrões, o professor deve pedir aos alunos para explicar ou descrever a ideia utilizando suas próprias palavras, deve guiá-los para a apreensão da ideia e a exteriorização do que até então esteve apenas internamente neles. Deve-se verificar o aprendizado não apenas em um, mas em vários alunos, senão em todos. É importante fazer boas perguntas para que um aluno simplesmente não repita o outro, mas sempre demonstre seu entendimento. Pode ser útil fazer algo escrito para garantir o sucesso do exame. Caso os alunos não consigam explicar ou descrever a ideia ensinada, deve-se voltar ao ponto 3 e comparar os tipos com maior cuidado. Esta fase tende a ser a mais curta do processo. Por exemplo, ao ensinar a multiplicar, o professor pede multiplicações de alguns alunos, de outros pede para explicarem o conceito, a outros dá problemas matemáticos que se resolveriam aplicando o que foi aprendido, a outros pede-se que explique como fazer para outra pessoa. A analogia à inspiração e expiração aqui encontra sua maior similaridade: Uma vez adquirido o conhecimento, nesta fase os alunos devem ser guiados a expressá-lo. Este também é um bom momento para engajar os alunos de forma socrática, como veremos a seguir, a fim de chegarem ao conhecimento através do membro processo.

5. Aplicação da ideia

Somente após os alunos conseguirem expressar por si mesmos a ideia em questão deve o professor revisar a lição e apresentar exercícios de aplicação do que foi aprendido. O professor fará isso através de exercícios que pratiquem mediante a repetição e da diversidade o que foi ensinado e testem a apreensão da ideia pelo aluno por meio de aplicações reais dela. Essa fase é muito importante e não se deve satisfazer-se com pouco, nela.

Dorothy Sayers, em seu “The Lost Tools of Learning”*, indica que devemos ensinar as pessoas da mesma maneira como se faz o polimento de uma madeira: seguindo a direção da fibra, e não indo contra ela. A educação mimética está radicada nesta ideia: Os seres humanos só podem aprender movendo-se da parte ao todo, do particular – coisas específicas e concretas – para o universal – ideias gerais e abstratas.

Instrução Socrática

A Instrução Socrática é o processo dialético de examinar uma ideia “desconstruindo-a” para encontrar fraquezas e inconsistências no entendimento de alguém, e depois “reconstruindo-a” para esclarecer ou purificar o entendimento do aluno. Esses dois estágios são realizados envolvendo-se em discussão reflexiva (dialética) com o aluno, não para destruir, mas para purificar seu entendimento. Esta discussão reflexiva é realizada através do uso de perguntas penetrantes pelo professor.

Sem dúvidas, a Instrução Socrática é o modo de instrução mais mal compreendido, mas também é um dos mais poderosos. Mal compreendido porque facilmente se confunde com elementos da educação progressista em que se visa “desconstruir” as visões dos alunos para doutrinação ideológica ou elementos em que o professor não assume a postura de mestre, mas de alguém que também está querendo aprender com os alunos. Confunde-se também com simples discussões relativistas e debates vazios. A Instrução Socrática difere muito desses elementos empregados pela educação progressista sobretudo porque não encara a discussão como fim em si mesmo, mas é verdadeiro modo de ensino. É uma verdadeira lição, tal como a feita didaticamente, na qual o professor guia o aluno à verdade através de um processo dialético.

A Instrução Socrática não é um método que pode ser sempre empregado, nem mesmo pode ser “marcado para acontecer”. Ele deve ser empregado quando as condições assim o pedirem, em geral quando há uma falsa compreensão do assunto que precisa ser substituída pela correta compreensão.

Há, basicamente, três estágios na Instrução Socrática:

1. Estágio Irônico

O estágio irônico consiste em, com delicadeza, revelar os erros contidos na compreensão dos estudantes e desconstruir o pensamento errado do aluno. A primeira etapa do estágio irônico é realmente entender o que o aluno pensa. O professor deve fazer perguntas de comparação e definição com a intenção de encontrar contradições no pensamento do aluno. Esse estágio é vital, porque se o aluno pensa de maneira errada no pouco, isso no futuro resultará em grandes erros.

2. Estágio metanoico

Após ter entendido como o aluno pensa e encontrar as contradições nesse pensamento, o professor deve, com mais perguntas, levar o aluno a perceber as suas contradições e erros do seu pensamento e reconsiderar aquilo que antes pensava ser verdade. Essa etapa se chama metanoia, ou arrependimento, mudança de pensamento.

3. Estágio Maiêutico

Nesse ponto, o professor continua a fazer perguntas, orientando o aluno a enxergar a verdade e guiando-o na correta compreensão, é o momento de construir o pensamento correto no aluno. Pode-se fazer isso empregando a instrução mimética ou mesmo didática, sempre aplicando os princípios do questionamento socrático, ou ainda dando exemplos e analogias da ideia na vida real. O estudante, através dessa instrução, contempla e compara as analogias até “dar a luz” (1) à ideia na sua mente.

O professor aproxima o aluno da compreensão precisa de uma ideia através deste processo. A instrução socrática está enraizada na ideia de que a verdade é cognoscível, mas que geralmente somos descuidados sobre como sabemos disso. Nós tiramos conclusões muito apressadamente e depois as aplicamos amplamente. Para amadurecer em nosso raciocínio, devemos purificar nosso pensamento através de uma dialética crítica socrática.

Dada sua natureza, há alguns princípios que podem ajudar o professor a praticar a Instrução Socrática e levar os alunos à verdade. Em primeiro lugar, respeito e amor deve preencher toda a instrução. O professor deve ter grande respeito pelo aluno como um buscador da verdade. As perguntas, as respostas, a linguagem corporal e mesmo o tom de voz deve refletir essa atitude. Em segundo lugar, o professor deve garantir que entendeu o que o aluno quis dizer. Isso pode ser feito com perguntas “Você quer dizer isso, entendi corretamente?”.

Em terceiro lugar, o professor deve ser paciente e respeitar o tempo de cada aluno. Não dar de pronto a resposta da pergunta, mas guiar o aluno à resposta verdadeira. Por fim, o professor deve ter um inegociável e irreprimível compromisso com a verdade. A verdade é mais importante que se provar certo. Ser fiel à verdade é ser fiel à Verdadeira Verdade, Nosso Senhor Jesus Cristo, e guiar os alunos até Ele, como princípio da Educação Católica, é nosso dever inescusável como educadores.

(1) Este é o significado de maiêutico, estágio parteiro.

Retirado do site: Link

* Este livro da Dorothy Leigh Sayers foi publicado em português pelas Edições Kírion com o título "As ferramentas perdidas da aprendizagem" em 2023.


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Alcuíno de York: difusor do Trivium e Quadrivum

Carlos Magno cercado por seus chefes, recebeu
Alcuin, que apresentou os manuscritos, uma
obra de seus monges em 781. Detalhe da
pintura de Jules Laure (1806-1861). 1837.

Alcuíno (730-804) nasceu em York, originário de uma família nobre, estudou na escola catedralícia da sua cidade. Alcuíno se voltou para as letras antigas e foi um grande entusiasta de Virgílio, preferindo mais o poeta romano que os salmos. Tornou-se um grande difusor das sete artes liberais (Trivium e Quadrivium) que tiveram destaque na antiguidade, sendo posteriormente debatidos e cristianizados.

Alcuíno de York, de "As
Verdadeiras Puridades e
 Vidas dos Homens Ilustres"
de Andre Thevet, 1584

Em 757, Alcuíno é alçado à posição de mestre, após a ascensão de seu antigo tutor ao cargo de arcebispo. Na escola da catedral procurou preservar o acervo que mantinha na biblioteca, sendo responsável por todas as obras que lá se encontravam. O zelo pelos clássicos influenciou não só a sua formação como também no surgimento do renascimento carolíngio.

Carlos Magno (768-814), que já conhecia Alcuíno, o convidou para ser mestre na escola palatina de Aix-la-Chapelle, em 781. Alcuíno se tornou um dos principais conselheiros e mestres do imperador. O monge Eginhardo (770-840) o descreveu como um grande educador, o melhor de seu tempo. Como pedagogo buscou combater o analfabetismo e, todavia, não se limitou a isto, mas procurou propagar as artes liberais, começando pelo imperador e expandindo-a para clérigos e leigos.

Manuscrito Carolíngio
de 814. Alcuíno está no
meio, entre Rábano
Mauro e Odgar de Mainz

Com Alcuíno, Carlos Magno foi instruído nas artes: retórica, dialética, cálculo e astronomia. Alcuíno foi o responsável pela educação do filho do imperador, Pepino, e desenvolveu um jogo de perguntas e respostas que buscava ensinar a criança com brincadeiras. As atividades pedagógicas de Alcuíno foram registrados na obra Proposições para Instruir os Jovens onde estão reunidos 53 exercícios de lógica matemática, ou matemática recreativa. No problema 18, Alcuíno propôs o seguinte desafio:

Um lobo, uma cabra e uma couve têm de atravessar um rio num barco que transporta um de cada vez, mais o remador. Como é que o remador os levará para o outro lado de forma que a cabra não coma a couve e o lobo não coma a cabra?


Manuale di grammatica, 
copia più antica (anno
800 circa). Abbazia di
San Martino  a Tours
(Francia)
.

Além das contribuições no campo da matemática, Alcuíno dedicou-se também a organizar uma pequena gramática intitulada De Orthographia que propunha uma padronização do uso do latim. O esforço demonstrado por Alcuíno para sistematizar a escrita do latim insere-se em um esforço dos letrados carolíngios de resgatar os textos clássicos greco-romanos e a escrita do latim culto. A De Orthographia de Alcuíno é um texto extremamente significativo para os estudos histórico-linguísticos medievais, mas ainda é muito pouco explorado pelos pesquisadores brasileiros. Segundo Everton Grein e Gabrielly Geisler, que se dedicam ao etudo dessa obra no Brasil, “[…] é indiscutível a importância do monge para o latim medieval, pois ele foi responsável por uma nova perspectiva de estudo da língua na Idade Média, e inclusive pela tentativa da construção de uma fonética do latim medieval.” (GREIN e GEISLER, 2021, 170).

Os últimos dias de Alcuíno foram passados tranquilamente em Tours, na França, onde faleceu no ano de 804. Alcuíno deixou um grande legado para a educação medieval, contribuindo significativamente para a preservação do conhecimento e da cultura latina.

[...]

Contribuição de:

Marta Silveira (Profa. Adjunta de História Medieval da UERJ)

Erik Patrick Magalhães da Silva (Graduado em História – UNESA)


FONTES PRIMÁRIAS

EINHARD. Vita Magni Caroli Magni. Disponível em: https://www.ricardocosta.com/traducoes/textos/vida-de-carlos-magno-c-817-829. Tradutor: Luciano Vianna e Cassandra Moutinho

DIÁLOGO ENTRE PEPINO E ALCUÍNO. In: LAUAND. Educação, teatro e matemática medievais. São Paulo: Perspectiva, 1986.


REFERÊNCIAS BIBIOGRÁFICAS

ABELSON, Paul. As Sete Artes Liberais: um Estudo Sobre a Cultura Medieval. Kírion, 2019.

FAVIER, J. Carlos Magno. São Paulo, Estação Liberdade, 2004.

LE GOFF. A civilização do Ocidente medieval. Vol. I,. Imprensa universitária. Editorial estampa. 1983, Lisboa.

GREIN, Everton e GEISLER, Gabrielly Cecília. O De Orthographia de Alcuíno de York: Estudo de um Manual do Século VIII. p. 156-171. In: SILVEIRA, M. de C. e MARTINS, R. G. R (org.). Nearco. Revista Eletrônica de Antiguidade e Medievo. v. 13, n.1., 2021. Disponível em https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/nearco/article/viewFile/58587/pdf

GILSON, Etienne. A filosofia na idade média. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes. 1995.

NUNES, Ruy Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média. E.P.U, 1979

OLIVEIRA, Priscila Sibim. Alcuíno e a educação de governantes (final do século XIII e inicio do século IX). Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Maringá. Orientadora: Dra.: Terezinha Oliveira. Maringá, 2008.

Texto completo disponível no link.


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Para entender O Trivium, por José Monir Nasser

A Filosofia apresenta as sete Artes Liberais a Boécio (c. 1460-1470).
Iluminura atribuída ao Mestre Coëtivy (ativo entre 1450 e 1485).

Prefácio de José Monir Nasser ao ‘Trivium’, de Miriam Joseph

No Brasil, nunca se comemora em excesso o lançamento de uma obra fundacional como O Trivium, da irmã Miriam Joseph (1898-1982), já que não é todo dia que a indústria editorial nacional se arrisca a penetrar na pretensa selva escura do Medievo. O desprezo da intelectualidade nacional pelos assuntos da Idade Média é a razão da esquelética oferta por aqui de obras escolásticas, comparadas por Erwin Panofsky (1) às próprias catedrais góticas, e a explicação do nosso tímido vol d’oiseau por sobre os fundamentos civilizatórios do Ocidente, entre eles a própria ideia de educação no sentido de Paideia, de formação.

Curiosamente, nada deveria parecer mais enigmático ao cidadão brasileiro medianamente informado, que vive por aí a falar em idade das trevas, do que o escandaloso fiasco deste monstrengo chamado sistema nacional de ensino. No Brasil, depois de sequestrarmos as crianças de suas casas pelo menos cinco horas por dia e gastarmos com elas um quarto do orçamento, descobrimos, oito anos depois, atônitos, que a maioria não sabe ler… E isto apesar de todas as siglas atrás das quais se esconde a bilionária incompetência pública.

O enigma da baixíssima eficiência do ensino, que não é fenômeno exclusivamente brasileiro, foi em parte resolvido na década de 1970 pelo padre austríaco Ivan Illich (1926-2002), que propôs a sociedade sem escolas tout court. (2) A tese de Illich, cujo mérito avulta na proporção direta do fracasso educacional geral, é que o sistema de ensino não tem por objetivo realmente educar, mas somente distribuir socialmente os indivíduos, por meio do ritual de certificados e diplomas. A escola formal, esta que Illich deseja suprimir, não é um meio de educação, mas um meio de “promoção” social, fato que as pessoas humildes revelam perceber quando insistem com o Joãozinho: estude, meu filho, estude…

Como se vê, vamos decifrando o mistério à medida que desprezamos a falsa equação entre ensino e educação. O sistema de ensino não produz educação, porque está ocupado demais em produzir documentos. Educação terá de ser buscada preferencialmente alhures, fora do sistema. É claro, sempre haverá um professor ou outro que, valendo-se da apatia do sistema, dará, por sua própria conta, aulas magistrais e educará de fato, contanto que seus alunos o desejem, o que, obviamente, nem sempre é o caso.

Temos aí uma espécie de lei geral com correlação inversa: a capacidade de educar alguém é inversamente proporcional à oficialidade do ato e diretamente proporcional à liberdade de adesão do educando. A educação prospera mais quando é procurada livremente. Este é o sentido da palavra “liberal” (de liber, livre) nas Sete Artes “liberais” da Idade Média, que eram ensinadas ao homem livre, por oposição às artes “iliberais”, ensinadas ao homem “preso”, controlado por guildas. Estas corporações de ofícios faziam grosseiramente o papel do sistema de ensino moderno, regulando privilégios econômicos e sociais.

Não só não existiu na Idade Média nenhuma obrigação estatal de ir à escola para aprender as Sete Artes, como ninguém imaginava usar este conhecimento como alavanca para forçar os ferrolhos do mercado de trabalho. Para ficar mais claro, com a licença da comparação, a diferença entre o ensino e a educação é a mesma que há entre a polícia e o detetive particular do cinema. A primeira tem a obrigação de desvendar o crime, e por isso precisa parecer que o está resolvendo e, enquanto tem todo esse trabalho de fingir, só consegue esclarecer uns poucos casos pingados. O detetive resolve todos porque está aí para isso mesmo e vai até as últimas consequências, acabando sempre com o olho roxo.

Tamanha despretensão econômica certamente soa estranhíssima aos modernos, que julgam tudo sob o ponto de vista da quantidade e imaginam que entre a educação medieval e a moderna só exista uma diferença de quantum. Na verdade, a diferença é de tal dimensão qualitativa que, no contrapé desse engano, perdeu-se de vista a própria ideia de educação, hoje entendida como adestramento coletivo de modismos politicamente corretos (a tal da “escola cidadã”). Nos tempos das “trevas”, educação era simplesmente ex ducare, isto é, retirar o sujeito da gaiolinha em que está metido e apresentar-lhe o mundo. Como já se disse, nem sempre o que vem depois é melhor.

A primeira condição para entender O Trivium da irmã Miriam Joseph, editado pela primeira vez no Brasil na corajosa e esmerada tradução de Henrique Paul Dmyterko, é entender que ensinar retórica, gramática e lógica fazia parte de um verdadeiro projeto de educação de que não há nada equivalente no mundo moderno.

As Sete Artes Liberais da Idade Média, divididas em trivium (retórica, gramática e lógica) e quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia), tomaram esta forma por volta do ano oitocentos, quando se inaugurou o império de Carlos Magno, primeira tentativa de reorganizar o Império Romano, e são o resultado de lenta maturação a partir de fontes pitagóricas e possivelmente anteriores, com decisivas influências platônicas, aristotélicas e agostinianas e complementações metodológicas de Marciano Capela (início do século V), Severino Boécio (480-524) e Flávio Cassiodoro (490-580), até chegar a Alcuíno (735-804), o organizador da escola carolíngia em Aix-en-Chapelle.

Como essas Sete Artes estão vinculadas a conhecimentos tradicionais, apresentam grandes simetrias com outros aspectos da estrutura da realidade, permitindo, por exemplo, analogia com o sentido simbólico dos planetas, relacionando a retórica com Vênus; a gramática com a Lua; a lógica com Mercúrio; a aritmética com o Sol; a música com Marte; a geometria com Júpiter e a astronomia com Saturno. Que ninguém pense, portanto, que haja arbitrariedade na concepção septenária do sistema. Simbolicamente, o sete representa, como ensina Mário Ferreira dos Santos, (3) “a graduação qualitativa do ser finito”, isto é, um salto qualitativo, uma libertação, como um sétimo dia de criação que abre um mundo de possibilidades. Como se poderia representar a educação melhor que por esse simbolismo?

O estudante das Artes começava a vida escolar aos quatorze anos (tardíssimo para os padrões modernos, mas não sem alguma sabedoria), participava de um regime de estudo flexível com grande liberdade individual e vencia em primeiro lugar os “três caminhos” do trivium, mais tarde descritos por Pedro Abelardo (1079-1142) como os três componentes da ciência da linguagem. Para Hugo de São Vítor (1096-1141), no Didascálicon, “a gramática é a ciência de falar sem erro. A dialética (4) é a disputa aguda que distingue o verdadeiro do falso. A retórica é a disciplina para persuadir sobre tudo o que for conveniente”. (5) A irmã Miriam Joseph, muito acertadamente, diz no primeiro capítulo que “o trivium inclui aqueles aspectos das artes liberais pertinentes à mente, e quadrivium, aqueles aspectos das artes liberais pertinentes à matéria”. No entanto, ninguém expressou com mais contundência o valor das Artes como Honório de Autun (ca. 1080-1156), com a famosa fórmula: “O exílio do homem é a ignorância, sua pátria a ciência (…) e chega-se a esta pátria através das artes liberais, que são igualmente cidades-etapas”. (6)

De fato, uma vez vencido o desafio da mente, o trivium, o estudante medieval passava ao quadrivium, o mundo das coisas, e, dele, lá pelos vinte anos, se pudesse e quisesse, para a educação liberal superior, que, na época, se resumia a teologia, direito canônico e medicina, as faculdades das universidades do século XIII. As profissões de ordem artesanal, como construção civil, não eram liberais, mas associadas a corporações de ofícios, como a dos mestres-construtores, às vezes com conotações iniciáticas (maçons).

O trivium, de fato, funcionava como a educação medieval, ensinando as artes da palavra (sermocinales), a partir das quais é possível tratar os assuntos associados às coisas e às artes superiores. A escolástica, o mais rigoroso método filosófico já concebido, e que floresceria sobretudo no século XII, foi construída sobre os alicerces do trivium: a gramática zela para que todos falem da mesma coisa, a dialética problematiza o objeto de discussão (disputatio), e a lógica é antídoto certo contra a verborragia vazia, o conhecido fumus sine flamma.

A expressão universitária americana master-of-Arts guarda, até hoje, resquícios dessa graduação inicial, base dos estudos superiores, que convergiam para o doutorado (no sentido medieval, não no sentido moderno). A faculdade de Artes liberais, frequentemente associada às universidades medievais, sem ser um curso superior propriamente dito, era o que lhe dava sustentação e de certo modo bastava-se a si própria. Explica Jacques Le Goff:

Lá (na faculdade de Artes) é que se tinha a formação de base, daquele meio é que nasciam as discussões mais apaixonadas, as curiosidades mais atrevidas, as trocas mais fecundas. Lá é que podiam ser encontrados os clérigos pobres que não chegaram até a licença, muito menos ao custoso doutorado, mas que animavam os debates com suas perguntas inquietantes. Lá é que se estava mais próximo do povo das cidades, do mundo exterior, que se ocupava menos em obter prebendas e em desagradar à hierarquia eclesiástica, que era mais vivo o espírito leigo, que se era mais livre. Lá é que o aristotelismo produziu todos os seus frutos. Lá é que se chorou como uma perda irreparável a morte de Tomás de Aquino. Foram os artistas que, numa carta comovedora, reclamaram da ordem dominicana os despojos mortais do grande doutor. (7)

Cada elemento do trivium contém potencialmente as habilidades filosóficas da vida intelectual madura. Esta é a razão pela qual o projeto educacional da irmã Miriam, profundamente influenciado pelo filósofo americano Mortimer Adler (1902-2001), foi concebido como preparação de estudantes para a vida universitária, fosse qual fosse o curso. Em 1935, quando incorporado ao currículo do Saint Mary’s College, o curso “The Trivium” era exigido de todos os calouros e durava dois semestres, com aulas cinco vezes por semana. Santo Agostinho (354-430), mil e seiscentos anos antes, havia feito, a seu modo, a mesma tentativa de preparação intelectual com sua "Doutrina Cristã" (8), uma espécie de iniciação intelectual para estudar as Escrituras.

Na prática e salvo engano, no mundo moderno a única tentativa de recuperar o espírito do trivium foi a parceria da irmã Miriam Joseph com Mortimer Adler. Este querendo restaurar a cultura clássica na universidade americana, e aquela preparando o aluno para poder debater os conteúdos dos grandes autores com precisão gramatical e coerência, concordando com Heráclito, (9) que pregava a seus alunos a impossibilidade da retórica sem a lógica.

O mundo moderno, Brasil incluído, hipnotizado pelo esquema do ensino universal, perdeu completamente de vista a conotação individual e “iniciática” que é a alma da verdadeira educação e a essência do trivium. Mesmo nos Estados Unidos, a experiência da irmã Miriam Joseph ficou restrita a pequeno grupo de universidades católicas. Por aqui, quase não há interlocutores capacitados para debater o assunto.

Mesmo sem pretender tratar aqui fenômeno tão complexo, registre-se que o sistema educacional tradicional entrou em declínio já no século XIV, lentamente minado por fora e por dentro, sob a orquestração do nascente “humanismo”, até desabar no Renascimento, pela mão do teólogo e místico tcheco Jean Amos Comenius (1592-1670), que, em sua principal obra, Magna Didactica, não apenas faz pouco das Sete Artes como estabelece as bases das pedagogias modernas, desenhadas para fins de ensino e não de educação. Entre outras coisas, Comenius inventou o jardim da infância. Na advertência ao leitor, que abre sua Magna Didactica, o teólogo rascunha o plano mestre de seu admirável mundo novo pedagógico:

Ouso prometer uma grande didática, uma arte universal que permita ensinar a todos com resultado infalível; ensinar rapidamente, sem preguiça ou aborrecimento para alunos e professores; ao contrário, com o mais vivo prazer. Dar um ensino sólido, sobretudo não superficial ou formal, o qual conduza os alunos à verdadeira ciência, aos modos gentis e à generosidade de coração. Enfim, eu demonstro tudo isso a priori, com base na natureza das coisas. Assim como de uma nascente correm os pequenos riachos que vão unir-se no fim num único rio, assim também estabeleci uma técnica universal que permite fundar escolas universais. (10)

Mesmo uma análise rápida desta declaração descobrirá nela o DNA da pedagogia moderna nas suas características estruturantes: triunfalismo, epicurismo, massificação do ensino, uniformização do conteúdo, automatização da aprendizagem e insensibilidade às individualidades. A Unesco, naturalmente, homenageia Comenius com sua maior condecoração. Se a miséria do ensino moderno tem pai, o seu nome é Comenius. E se alguma coisa vai na direção contrária do trivium é esta “natureza das coisas” de onde vêm estas “escolas universais” e cujo resultado até agora parece ter-se limitado a produzir milhões de indivíduos idiotizados.

Visto desta perspectiva histórica, O Trivium, este tesouro redescoberto pela irmã Miriam Joseph, é mais que um manual para desenvolver a inteligência, é uma luz brilhando na escuridão dos abismos em que atiramos a verdadeira educação.

José Monir Nasser (1957-2013 - In memoriam)
Professor, escrito e autor de O Brasil que Deu Certo e A Economia do Mais (Tríade Editora). Durante anos, ministrou no Espaço Cultural É Realizações suas "Expedições pelo Mundo da Cultura", umas seria de conferências sobre grandes livros da literatura ocidental, inspirado pelo modelo de educação liberal proposto por Mortimer Adler.

Referências:

(1) Erwin Panofsky, Arquitetura Gótica e Escolástica. São Paulo, Martins Fontes, 1991.

(2) Ivan Illich, Sociedade sem Escolas. Trad. Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis, Vozes, 1985.

(3) Mário Ferreira dos Santos, Tratado de Simbólica. São Paulo, É Realizações, 2007. p. 240

(4) Depois da redescoberta da “nova lógica” de Aristóteles, no séc. XII, passou a denominar-se lógica.

(5) Hugo de São Vítor, Didascálicon. Petrópolis, Vozes, 2001.

(6) Em Jacques Le Goff, Os Intelectuais na Idade Média. Rio de Janeiro, José Olympio, 2003, p. 84.

(7) Ibid., p. 144-45.

(8) Santo Agostinho, A Doutrina Cristã. Trad. Nair de Assis Oliveira, C.S.A. 2. Ed. São Paulo, Paulus, 2007. (Coleção Patrística)

(9) Ernesto Sábato, Heterodoxia. Campinas, Papirus, 1993, p. 120.

(10) Jean-Marc Berthoud, Jean Amos Comenius et les Sources de l’Idéologie Pédagogique. Tradução de José Monir Nasser.

Trecho extraído do livro "O Trivium - As artes liberais da lógica, da gramática e da retórica" da Irmã Miriam Joseph. Editora É Realizações, 2014. Pág 13-18.


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Sobre o quadrivium - Didascalicon de Hugo de São Vítor

 

Filosofia e As Sete Artes liberais.
De Herrad de Landsberg da
obra Hortus Deliciarum (século XII).
Sobre o quadrivium

Se, como foi dito acima, cabe propriamente à matemática ocupar-se da quantidade abstrata, convém investigar suas espécies distintas em cada parte em que se divide a quantidade. A quantidade abstrata não é outra coisa senão a forma visível segunda a dimensão linear impressa na mente; ela se fixa na imaginação e é dividida em duas partes: uma contínua, como a árvore ou a pedra, chamada magnitude; outra descontínua, como o rebanho e o povo, chamada multitude.

Na multitude, algumas quantidades existem por si mesmas, como três, quatro, ou qualquer outro número, e outro número, e outras existes em relação, como duplo, metade, um e meio, um e um terço, ou outra quantidade semelhante. Na magnitude, com efeito, algumas quantidades são móveis, como uma esfera do universo, outras são imóveis, como a Terra.

Em vista disso, a multitude que existe por si é chamada "aritmética", e aquela que existe em relação é chamada "música". A geometria trata do conhecimento da magnitude imóvel, e a astronomia, por fim, reinvidica o conhecimento da magnitude móvel. Sendo assim, a matemática é divida em aritmética, música, geometria e astronomia.

Sobre a palavra "aritmética"

Ares, em grego, é traduzido por virtus (força) em latim, e rithmus por numerus (número). Donde "aritmética" signifique "a força do número", e que a força do número consista em todas as coisas terem sido formadas à sua semelhança.

Sobre a palavra "música"

"Música" vem da palavra "água", porque nenhuma eufonia, isto é, uma boa sonoridade, é produzida sem umidade. (23)

Sobre a palavra "geometria"

"Geometria " significa "medida da terra", isto porque esta técnica foi descoberta primeiramente pelos egípcios, os quais, quando a inundação do Nilo cobria de lama suas margens e confundia seus limites, começaram a medir a terra com varas e cordas. A partir daí seu uso foi aplicado e expandido pelos sábios para medir também extensões no mar, no céu, na terra, e noutros corpos.

Sobre a palavra "astronomia"

A diferença entre astronomia e astrologia parece consistir nisso: a astronomia assume este nome por tratar da lei dos astros, e, do mesmo modo, a astrologia assim é chamada por tratar de um discurso sobre os astros, pois nomia significa "lei" e logos, "discurso". Assim, a astronomia é a ciência que disserta sobre a lei dos astros e o movimento do céu, investigando as regiões, as órbitas, cursos, a aurora e o ocaso dos astros e o porquê do nome de cada um. A astrologia, por sua vez, é a que considera os astros relacionando-os com a observação do nascimento e da morte e de quaisquer outros eventos, ela que é parte natural e parte supersticiosa. É natural enquanto relacionada à conformação dos corpos, que varia de acordo com o arranjo dos corpos superiores, como é a saúde e a doença, a tempestade e a calmaria, a fertilidade e a esterilidade. (24) E é supersticiosa enquanto relacionada às coisas contingentes ou que dependem do livre-arbítrio; e esta é a parte da qual tratam os matemáticos. (25)

Sobre a aritmética

A aritmética tem como matéria o número par e o ímpar. O número par é ou parmente par, ou parmente ímpar, ou imparmente par. (26) O número ímpar também também tem três espécies. A primeira é o número primo e não-composto; a segunda é o número segundo e composto; e a terceira é o número que, por si, é segundo e composto e que, comparado a outros, é primo e não-composto. (27)

Sobre a música

Existem três tipos de música: a do universo, a humana e a instrumental. A do universo é encontrada nos elementos, nos planetas e nos tempos. Nos elementos, ela está no peso, no número e na medida; nos planetas, está na posição, no movimento e na natureza; e nos tempos, está nos dias, segundo a alternância de luz e escuridão, nos meses, segundo o crescer e minguar da Lua, e nos anos, segundo a variação da primavera, verão, outono e inverno.

A música humana é encontrada no corpo, na alma e na conexão entre os dois. No corpo, ela está na potência vegetal, segundo a qual cresce e que pertence a todos aqueles que nascem; está nos humores, (28) cuja conformação proporciona a subsistência do corpo humano e é comum em todos os seres dotados de sentidos; e está nas atividades, que correspondem especialmente aos seres racionais, sobre as quais reina a mecânica e que são boas se não ultrapassam seu limite justo, para que assim a avareza não seja nutrida com aquilo que a frouxidão deveria ser curada, como expressa Lucano em seu elogio a Catão: 

Para ele os banquetes eram para que dominasse a fome,
qualquer teto era um palácio para se proteger da tempestade,
e uma toda grosseira sobre o corpo era uma preciosa veste,
como usaria um nobre cidadão romano para adornar-se. (29)

A música encontrada na alma está nas virtudes, como a justiça, a piedade e a temperança, e está nas potências, como a razão, a ira e a concupiscência. A música encontrada na conexão entre corpo e alma é aquela amizade natural na qual a alma está ligada ao corpo não por vínculos corporais, mas por certos vínculos afetivos, para dotar o próprio corpo de movimento e sensibilidade, "devido a esta amizade ninguém teve ódio de sua carne". (30) Esta música existe para que seja amada a carne, mas mais o espírito, e para que seja alimentado o corpo e não destruída a virtude.

A música instrumental é encontrada no pulso, como se dá nos tímpanos e nas cordas, no sopro, como se dá nas flautas e nos órgãos, e na voz, como se dá nas líricas e nas cantigas. Três também são os gêneros de músicos: os que compõem a lírica, os que tocam os instrumentos e os que julgam a lírica e a execução dos instrumentos. (31)

Sobre a geometria

A geometria tem três partes: planimetria, altimetria e cosmometria. A planimetria mede o plano, isto é, o comprimento e a largura, o que se estende para frente e para trás, para a direita e para esquerda. A altimetria mede a altura, o que se estende para cima e para baixo. Assim é dito que o mar é alto, isto é, profundo, e que a árvore é alta, isto é, elevada. Cosmos significa mundo, (32) e daí que se tem a cosmometria, isto é, a medida do mundo. Ela mede os corpos esféricos, isto é, os globulosos e redondos, assim como a bola e o ovo. E devido à excelência da esfera do mundo foi chamada de cosmometria, não porque se ocupe somente da medição do mundo, mas porque a esfera do mundo é de todas a mais digna.

Sobre a astronomia

Isto não é contrário ao fato de termos atribuído acima a magnitude imóvel à geometria e a móvel à astronomia, porque isso foi dito devido à primeira descoberta, segundo a qual recebeu o nome de "geometria", medida da terra. Além disso, podemos dizer que o que a geometria considera na esfera do mundo, isto é, a dimensão das regiões e dos círculos celestes, é imóvel, e, assim sendo, pertence ao estudo geométrico. A geometria, então, não considera o movimento, mas o espaço. Já a astronomia observa o que é móvel, isto é, o curso dos astros e seus intervalos de tempos. E assim dizemos universalmente que a magnitude imóvel está submetida à geometria e a móvel, à astronomia, pois ainda que ambas se ocupem do mesmo objeto, uma contempla o que permanece e a outra observa o que transita.

A definição de quadrivium

A aritmética, portanto, é a ciência dos números. A música consiste na divisão dos sons e na variedade das vozes. Do outro modo, a música ou a harmonia é a concórdia da multiplicidade dos diversos reduzida à unidade. A geometria é a disciplina da magnitude imóvel e a descrição contemplativa das formas, pela qual os limites de cada coisa costumam ser declarados. Dito de outra maneira, a geometria é "a fonte dos sentido e a origem da expressão verbal". (33) A astronomia é a disciplina que investiga os espaços, os movimentos e os giros dos corpos celestes em períodos determinados.

Notas:

(23) Aqui, Hugo de São Vítor tem como subentendidas algumas relações que saíram do nosso horizonte. A música, entre todas as artes, é aquela que tem a maior capacidade de conformar a alma de quem a recebem entendendo por alma o que está entre o corpo e o espírito, ou seja, o nosso psiquismo, no mesmo sentido que Hugo de São Vítor usou acima referindo-se às três potências da alma. Portanto, a músicas está vinculada diretamente aos sentimentos, que por sua vez estão relacionados às águas, ao mar, pela sua inconstância e mutabilidade, assim com a Lua, que também possui, no simbolismo medieval, relação direta com a água e os sentimentos. Sendo assim, para que a música alcance seu objetivo, é preciso que ela tenha umidade.

(24) Vale ressaltar que esta ciência em nada é supersticiosa, como acaba de dizer Hugo de São Vítor, levando em conta esta impregnação contemporânea de qualquer estudo astrológico é supersticioso ou questão de crença. A variação de casos de uma mesma doença repetida anualmente devido mudanças de estações, a maré dos mares, e o próprio ciclo menstrual da mulher, que é regido pelo ciclo lunar, são exemplos mais concretos da validade desta astrologia que Hugo de São Vítor chama de natural.

(25) Chamaríamos vulgarmente de "astrólogos", mas são especificamente aqueles que fazem predições.

(26) Parmente par é o número que pode ser dividido várias vezes em duas partes iguais até chegar a 1, são os múltiplos de 2 (2, 4, 8, 16, 32); parmente ímpar é o número que pode ser dividido uma só vez em duas partes iguais, tornando-se logo ímpar (6, 10, 14); imparmente par é o número que pode ser dividido várias vezes por 2, mas o resultado final dessas sucessivas divisões não é 1, e sim um outro número ímpar qualquer (24, 40, 56).

(27) Primo e não-composto é o número que pode ser dividido somente por 1 ou por si mesmo (3, 5, 7); segundo e composto é o número ímpar que pode ser dividido por outros números além de 1 (9, 15, 21). Este terceiro tipo se refere ao que hoje conhecemos, na Teoria dos Números, como números primos entre si, que se dá quando o único divisor comum de dois números é a unidade, donde resulta que o MDC (máximo divisor comum) entre esses dois números é o número 1 (por exemplo, o 9 em relação ao 8). Também neste trecho Hugo de São Vítor está se baseando nas Etymologiae de Isidoro. Para aprofundamento deste tema, pode-se ler A matemática de Isidoro de Sevilha e a educação medieval, de Jean Lauand, disponível em http://www.hottopos.com/videtur30/jean-isid.htm.

(28) A acepção de "humor" usada por Hugo de São Vítor é pouco utilizada e conhecida em português: "qualquer fluido líquido contido nos corpos organizados".

(29) Lucano, De Bello Civile.

(30) Ef 5, 29.

(31) Boécio, De musica.

(32) Aqui temos o substantivo mundus, que era usado para designar o firmamento ou todo o universo, além da própria Terra. E este universo a que se refere é percebido e concebido em camadas de órbitas cada vez mais abrangentes, nas quais alguns astros realizam suas trajetórias individuais, até chegar o céu das estrelas fixas, o cristalino e o empíreo; tudo isso está contemplado em mundus.

(33) Cassiodoro, Institutiones.

Trecho extraído do livro "Didascalicon sobre a arte de ler" de Hugo de São Vítor. Edições Kírion, 2018. Pág. 77 a 89.


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