Postagem em destaque

Sobre o blog Summa Mathematicae

Este é um blog sobre Matemática em geral, com ênfase no período clássico-medieval, também sobre as Artes liberais (Trivium e Quadrivium), so...

Mais vistadas

Mostrando postagens com marcador Trivium. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Trivium. Mostrar todas as postagens

Os Termos da Educação Clássica Católica

Um grupo de discípulos estuda uma lição com
seu mestre, que lê. Iluminura do século XIII
(Bibliothèque Sainte-Geneviève, Paris,
MS 2200, folio 58).

Para uma correta compreensão sobre a educação católica e os princípios da educação clássica, urge esclarecer o significado de alguns termos, tais como Educação, Artes Liberais e Ciências

Educação

É o cultivo da sabedoria e da virtude na alma através da promoção do verdadeiro, do bom e do belo. Deve ser distinguida de treinamento, que embora de necessário e grande valor, serve para formar as habilidades necessárias para uma carreira ou profissão, enquanto a educação vê o homem de uma maneira elevada.

Educação Clássica

É o cultivo da sabedoria e da virtude através da promoção do verdadeiro, do bom e do belo por meio das sete artes liberais e das quatro ciências. Historicamente, a educação clássica seguiu dois fluxos que frequentemente jorraram juntos:

A ênfase Retórica

Em que os professores guiam seus alunos a contemplar os grandes textos e obras de arte, acreditando que esta contemplação os ajudará a crescer em sabedoria e virtude

A ênfase Filosófica

Em que os professores guiam seus alunos através da análise de ideias por meio do diálogo Socrático, acreditando que o discernimento do coração das coisas permitirá aos alunos crescerem em conhecimento e virtude.

Historicamente, essas duas ênfases que embora muitas vezes estiverem em conflito mesmo não sendo mutuamente exclusivas, deram origem a dois modos de instrução: A Instrução Mimética, ou Didática, e a Instrução Socrática, que veremos mais adiante*.

Educação Clássica Católica

É o cultivo da sabedoria e da virtude através da promoção do verdadeiro, do bom e do belo por meio das sete artes liberais e das quatro ciências a fim de que em Cristo os estudantes possam melhor conhecer, glorificar e servir a Deus, como bons cristãos e cidadãos.

Como Santo Tomás de Aquino o expressou, resumindo o ensino dos padres da Igreja, a graça não destrói  a natureza, mas a aperfeiçoa. A Educação Clássica Católica purifica e aperfeiçoa os grandes feitos dos antigos gregos e romanos. Construir algo mais perfeito sobre o que foi bem construído no passado sempre foi a prática da Igreja, podemos ver isso claramente em Santo Agostinho. Foram os progressistas e pragmatistas do século XX que buscaram, contra o passado, minar essas conquistas.

Arte

Arte, no sentido de “Artes Liberais” é o modo de produzir algo além da própria arte. As artes liberais estão ordenadas a produzir conhecimento e por isso são as artes do pensamento.

De fato, a palavra latina artes é a tradução da grega τέχνες, ou techne, de onde originam palavras como tecnologia ou técnica. Quando uma pessoa aprende uma arte, dirige sua atenção para aprender uma habilidade, não apenas o conteúdo ou informação sobre o tema.

As artes liberais não estão, por isso, preocupadas com a familiaridade superficial em um grande leque de assuntos. Ao invés disso, preocupam-se com as habilidades mentais, com as competências fundamentais de pensamento que são necessárias para aprender qualquer assunto.

As sete Artes Liberais

As sete artes liberais são as artes do pensamento. De acordo com a tradição católica, a Razão separa o homem de todos os outros animais.

Em particular, apenas os homens são capazes de pensar usando símbolos, palavras, números, formas e representações musicais ou visuais. Por isso, a habilidade e competência no uso da linguagem são essenciais para o total desenvolvimento da pessoa. As artes dedicadas a refinar nossa habilidade de uso de linguagem são as três artes do Trivium:

Gramática

Arte de inventar e combinar símbolos

Lógica, ou Dialética

Arte de pensar

Retórica

Arte de comunicar-se

Adicionalmente, nenhum outro animal pode usar números e formas como o homem. Mesmo a música advém de nossa habilidade de ouvir com a alma a relação de números em suas razões e proporções. As artes desenvolvidas para refinar nossa habilidade de usar os números, as formas e suas relações são as quatro artes do Quadrivium:

Aritmética

Teoria do número

Música

Aplicação da teoria do número

Geometria

Teoria do espaço

Astronomia

Aplicação da teoria do espaço

Juntos, o Trivium e o Quadrivium são chamados artes liberais porque são as artes que todo homem livre pode dominar e as artes que são necessárias para ser livre. O que não é capaz de dominá-las, não é verdadeiramente livre. Por exemplo, aquele que não domina a arte da lógica será vítima de manipuladores, tanto externos (na sociedade) quanto internos (na alma); do mesmo modo, aquele que não domina a arte da retórica será incapaz de expressar seus pensamentos apropriadamente.

O Trivium

O Trivium consiste nas três artes verbais da gramática, dialética (ou lógica) e retórica.

Gramática

Do grego γραμματικός ou grammatikos, é melhor traduzido por letras, carregando todos os significados que essa palavra tem para nós. A gramática cultiva a habilidade de interpretar símbolos. Primeiro interpretamos letras individuais e fonemas, então interpretamos palavras e, finalmente, interpretamos textos, obras de arte e artefatos;

Lógica ou Dialética

É a arte de pensamento material e formal. A lógica formal pergunta “Como pensamos corretamente?”, isto é, “Qual a forma de um pensamento válido?” enquanto a lógica material pergunta “O que pensamos sobre?”, isto é, “Qual a matéria do pensamento?”;

Retórica

É a arte de expressar-se bem, embora Aristóteles a reduza para a arte da persuasão.

Dorothy Sayers em seu “Lost Tools of Learning”** desenvolveu uma teoria e aplicação do trivium que sugere que cada arte corresponde ao estado de crescimento de uma criança. Muito do movimento atual de renascimento da Educação Clássica se nutre dessa interpretação.

O Quadrivium

O Quadrivium consiste em quatro artes matemáticas. Para raciocinar de forma lógica e estética, o indivíduo deve ser apto a interagir com o que os antigos chamavam magnitude (geometria e astronomia) e multitude (aritmética e música ou harmonia). A mente que não é treinada no quadrivium não é, ainda, verdadeiramente educada.

Aritmética

É a arte de aprender as propriedades dos números, como se comportam, como se operam;

Geometria

É a a arte de aprender as propriedades de formas. É essencial para a lógica dedutiva e raciocínio espacial;

Música

É a arte da proporção. A Álgebra é um maneira muito eficiente e abstrata de expressar propriedades musicais, mas para nos beneficiar da música, não podemos nos reduzir à Álgebra. A música é uma janela ou mesmo uma porta ao espiritual. Quando um estudante ouve a ordenadas composições, a ordem da matemática penetra diretamente na alma pelo ouvido;

Astronomia

É a arte das formas em movimento. Poderíamos dizer que é a porta para a Física e demais ciências naturais.

As Ciências

A Ciência é o modo de investigação ou domínio de saber que surge do modo de investigação da Educação.

A palavra ciência vem do latim scientia que significa conhecimento e não é, absolutamente, limitada aos conhecimentos dados pelas ciências naturais. Posteriormente veremos como entre as ciências estão as ciências naturais, as ciências humanas ou morais, as ciências filosóficas e a ciência teológica, nessa ordem de gradação.

O objetivo da ciência é conhecer as causas das coisas. No século XVII, os cientistas naturais começaram a usar o termo ciência para suas próprias questões, rejeitando tudo o que estivesse fora de suas ferramentas de investigação.

Nós rejeitamos essa falsa asserção e usamos o termo em seu sentido mais correto e clássico.

Ciências Naturais

As Ciências Naturais são ciências de ordem física, tal qual a biologia, a química e a física. Todas as ciências combinam ou refinam essas três. A ciência é o domínio do saber ordenado a um princípio unificador, o logos. O mundo clássico buscou durante séculos este princípio integrador, até que Ele mesmo se fez carne e habitou entre nós. Cristo é o Logos que liga todos os assuntos em uma harmonia universal, faz sentido de todas as coisas e eleva o aprendizado e o conhecimento ao reino do significado eterno.

Biologia

é a ciência ordenada a buscar compreender as causas do ser e da mudança nos seres vivos;

Física

é a ciência ordenada a investigar sobre as forças que provocam mudança no mundo físico;

Química

é a ciência ordenada a investigar sobre os elementos constitutivos das coisas físicas

O modo de investigação das ciências naturais é a investigação das causas materiais e eficientes. A observação e a medida são particularmente aptas a esse domínio. O objetivo das ciências naturais é conhecer as causas da mudança no mundo físico, de modo a agir sabia e virtuosamente em relação ao cosmos

Ciências Humanas

As Ciências Humanas são as ciências de ordem moral; isto é, são as ciências do comportamento e da alma humana, nomeadamente a ética e a política.

Ética

é a ciência que questiona sobre o cumprimento do potencial e sobre o fim do homem. Em uma palavra, pergunta-se como o homem pode se tornar virtuoso. Muitos estudos descendem da ética, como a psicologia.

Política

é a ciência que questiona sobre o conjunto de homens e como ele pode habilitar seus membros e a si mesma para cumprir seu potencial e seu fim. Em uma palavra, pergunta-se como um grupo de homens pode atingir a virtude. Muitos estudos descendem da política, como a economia, história, etc.

As ciências humanas são erguidas sobre, de maneira mais elevada, as artes naturais. O modo de investigação das ciências humanas é o compromisso dialético com obras das artes, investigações históricas e reflexões sérias no movimento da alma humana. O objetivo das ciências humanas é conhecer as causas do comportamento humano, de modo a conseguir a virtude para si mesmo e a cultivar nos outros.

Ciências Filosóficas

As Ciências Filosóficas são as ciências da metafísica e da epistemologia. O objetivo das ciências filosóficas é conhecer as causas e os limites do conhecimento humano e conhecer a causalidade em si. As ferramentas da investigação filosófica são uma forma altamente refinada de dialética e a contemplação.

É na metafísica que a distinção entre educação modernista e educação clássica é mais claramente vista. Para o modernista, especialmente depois de John Dewey, a metafísica é uma perda de tempo porque só podemos saber o que as ciências naturais nos revelam. Assim, a educação moderna é impulsionada pela experimentação e medição. O educador modernista determinou que o conhecimento é a adaptação de um organismo ao seu ambiente.

O educador clássico, por outro lado, é deliberadamente metafísico e não se aproxima da filosofia com desespero. Ele acredita que o mundo em que vivemos é real e é cognoscível. Portanto, para o educador clássico, o conhecimento é adquirido quando aquele que o busca encontra uma ideia incorporada ou encarnada em uma realidade concreta.

Quando o educador modernista ensina, seu objetivo é uma adaptação ao ambiente, ou o que é comumente chamado de aplicação prática. Quando um educador clássico ensina, seu objetivo é sabedoria e virtude. Isso terá muitas aplicações práticas, mas também incluirá a capacidade de saber quando se adaptar ao ambiente – quando resistir e quando ser martirizado por ele.

A grande ironia é que o modernista torna o aluno incapaz de fazer aplicações práticas sólidas porque ele deturpa a realidade e, assim, dificulta a adaptação a ela. Enquanto isso, o educador clássico permite que o estudante pense em termos de circunstâncias sem abandonar a virtude.

Ciências Teológicas

A Ciência Teológica é a ciência do conhecimento da causa primeira, ou do próprio Deus.

Todas as ferramentas das ciências inferiores são usadas para conhecimento teológico, mas o cristão reconhece que a Revelação Divina revela coisas que outras ciências não podem descobrir. O objetivo da teologia é ordenar todo conhecimento para essa primeira causa.

Princípios Curriculares

1. Verdade

2. Bondade

3. Beleza

4. Sabedoria

5. Virtude

6. Personalidade

7. Liberdade

8. Justiça

9. Comunidade

10. O Ser

11. Modo

12. Mudança

13. Glória

14. Honra

15. Imortalidade

Retirado do site: Link

*Postei este texto aqui: Link

** Este livro da Dorothy Leigh Sayers foi publicado em português pelas Edições Kírion com o título "As ferramentas perdidas da aprendizagem" em 2023


Curta nossa página no facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.


Receba novos posts por e-mail:

Para entender O Trivium, por José Monir Nasser

A Filosofia apresenta as sete Artes Liberais a Boécio (c. 1460-1470).
Iluminura atribuída ao Mestre Coëtivy (ativo entre 1450 e 1485).

Prefácio de José Monir Nasser ao ‘Trivium’, de Miriam Joseph

No Brasil, nunca se comemora em excesso o lançamento de uma obra fundacional como O Trivium, da irmã Miriam Joseph (1898-1982), já que não é todo dia que a indústria editorial nacional se arrisca a penetrar na pretensa selva escura do Medievo. O desprezo da intelectualidade nacional pelos assuntos da Idade Média é a razão da esquelética oferta por aqui de obras escolásticas, comparadas por Erwin Panofsky (1) às próprias catedrais góticas, e a explicação do nosso tímido vol d’oiseau por sobre os fundamentos civilizatórios do Ocidente, entre eles a própria ideia de educação no sentido de Paideia, de formação.

Curiosamente, nada deveria parecer mais enigmático ao cidadão brasileiro medianamente informado, que vive por aí a falar em idade das trevas, do que o escandaloso fiasco deste monstrengo chamado sistema nacional de ensino. No Brasil, depois de sequestrarmos as crianças de suas casas pelo menos cinco horas por dia e gastarmos com elas um quarto do orçamento, descobrimos, oito anos depois, atônitos, que a maioria não sabe ler… E isto apesar de todas as siglas atrás das quais se esconde a bilionária incompetência pública.

O enigma da baixíssima eficiência do ensino, que não é fenômeno exclusivamente brasileiro, foi em parte resolvido na década de 1970 pelo padre austríaco Ivan Illich (1926-2002), que propôs a sociedade sem escolas tout court. (2) A tese de Illich, cujo mérito avulta na proporção direta do fracasso educacional geral, é que o sistema de ensino não tem por objetivo realmente educar, mas somente distribuir socialmente os indivíduos, por meio do ritual de certificados e diplomas. A escola formal, esta que Illich deseja suprimir, não é um meio de educação, mas um meio de “promoção” social, fato que as pessoas humildes revelam perceber quando insistem com o Joãozinho: estude, meu filho, estude…

Como se vê, vamos decifrando o mistério à medida que desprezamos a falsa equação entre ensino e educação. O sistema de ensino não produz educação, porque está ocupado demais em produzir documentos. Educação terá de ser buscada preferencialmente alhures, fora do sistema. É claro, sempre haverá um professor ou outro que, valendo-se da apatia do sistema, dará, por sua própria conta, aulas magistrais e educará de fato, contanto que seus alunos o desejem, o que, obviamente, nem sempre é o caso.

Temos aí uma espécie de lei geral com correlação inversa: a capacidade de educar alguém é inversamente proporcional à oficialidade do ato e diretamente proporcional à liberdade de adesão do educando. A educação prospera mais quando é procurada livremente. Este é o sentido da palavra “liberal” (de liber, livre) nas Sete Artes “liberais” da Idade Média, que eram ensinadas ao homem livre, por oposição às artes “iliberais”, ensinadas ao homem “preso”, controlado por guildas. Estas corporações de ofícios faziam grosseiramente o papel do sistema de ensino moderno, regulando privilégios econômicos e sociais.

Não só não existiu na Idade Média nenhuma obrigação estatal de ir à escola para aprender as Sete Artes, como ninguém imaginava usar este conhecimento como alavanca para forçar os ferrolhos do mercado de trabalho. Para ficar mais claro, com a licença da comparação, a diferença entre o ensino e a educação é a mesma que há entre a polícia e o detetive particular do cinema. A primeira tem a obrigação de desvendar o crime, e por isso precisa parecer que o está resolvendo e, enquanto tem todo esse trabalho de fingir, só consegue esclarecer uns poucos casos pingados. O detetive resolve todos porque está aí para isso mesmo e vai até as últimas consequências, acabando sempre com o olho roxo.

Tamanha despretensão econômica certamente soa estranhíssima aos modernos, que julgam tudo sob o ponto de vista da quantidade e imaginam que entre a educação medieval e a moderna só exista uma diferença de quantum. Na verdade, a diferença é de tal dimensão qualitativa que, no contrapé desse engano, perdeu-se de vista a própria ideia de educação, hoje entendida como adestramento coletivo de modismos politicamente corretos (a tal da “escola cidadã”). Nos tempos das “trevas”, educação era simplesmente ex ducare, isto é, retirar o sujeito da gaiolinha em que está metido e apresentar-lhe o mundo. Como já se disse, nem sempre o que vem depois é melhor.

A primeira condição para entender O Trivium da irmã Miriam Joseph, editado pela primeira vez no Brasil na corajosa e esmerada tradução de Henrique Paul Dmyterko, é entender que ensinar retórica, gramática e lógica fazia parte de um verdadeiro projeto de educação de que não há nada equivalente no mundo moderno.

As Sete Artes Liberais da Idade Média, divididas em trivium (retórica, gramática e lógica) e quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia), tomaram esta forma por volta do ano oitocentos, quando se inaugurou o império de Carlos Magno, primeira tentativa de reorganizar o Império Romano, e são o resultado de lenta maturação a partir de fontes pitagóricas e possivelmente anteriores, com decisivas influências platônicas, aristotélicas e agostinianas e complementações metodológicas de Marciano Capela (início do século V), Severino Boécio (480-524) e Flávio Cassiodoro (490-580), até chegar a Alcuíno (735-804), o organizador da escola carolíngia em Aix-en-Chapelle.

Como essas Sete Artes estão vinculadas a conhecimentos tradicionais, apresentam grandes simetrias com outros aspectos da estrutura da realidade, permitindo, por exemplo, analogia com o sentido simbólico dos planetas, relacionando a retórica com Vênus; a gramática com a Lua; a lógica com Mercúrio; a aritmética com o Sol; a música com Marte; a geometria com Júpiter e a astronomia com Saturno. Que ninguém pense, portanto, que haja arbitrariedade na concepção septenária do sistema. Simbolicamente, o sete representa, como ensina Mário Ferreira dos Santos, (3) “a graduação qualitativa do ser finito”, isto é, um salto qualitativo, uma libertação, como um sétimo dia de criação que abre um mundo de possibilidades. Como se poderia representar a educação melhor que por esse simbolismo?

O estudante das Artes começava a vida escolar aos quatorze anos (tardíssimo para os padrões modernos, mas não sem alguma sabedoria), participava de um regime de estudo flexível com grande liberdade individual e vencia em primeiro lugar os “três caminhos” do trivium, mais tarde descritos por Pedro Abelardo (1079-1142) como os três componentes da ciência da linguagem. Para Hugo de São Vítor (1096-1141), no Didascálicon, “a gramática é a ciência de falar sem erro. A dialética (4) é a disputa aguda que distingue o verdadeiro do falso. A retórica é a disciplina para persuadir sobre tudo o que for conveniente”. (5) A irmã Miriam Joseph, muito acertadamente, diz no primeiro capítulo que “o trivium inclui aqueles aspectos das artes liberais pertinentes à mente, e quadrivium, aqueles aspectos das artes liberais pertinentes à matéria”. No entanto, ninguém expressou com mais contundência o valor das Artes como Honório de Autun (ca. 1080-1156), com a famosa fórmula: “O exílio do homem é a ignorância, sua pátria a ciência (…) e chega-se a esta pátria através das artes liberais, que são igualmente cidades-etapas”. (6)

De fato, uma vez vencido o desafio da mente, o trivium, o estudante medieval passava ao quadrivium, o mundo das coisas, e, dele, lá pelos vinte anos, se pudesse e quisesse, para a educação liberal superior, que, na época, se resumia a teologia, direito canônico e medicina, as faculdades das universidades do século XIII. As profissões de ordem artesanal, como construção civil, não eram liberais, mas associadas a corporações de ofícios, como a dos mestres-construtores, às vezes com conotações iniciáticas (maçons).

O trivium, de fato, funcionava como a educação medieval, ensinando as artes da palavra (sermocinales), a partir das quais é possível tratar os assuntos associados às coisas e às artes superiores. A escolástica, o mais rigoroso método filosófico já concebido, e que floresceria sobretudo no século XII, foi construída sobre os alicerces do trivium: a gramática zela para que todos falem da mesma coisa, a dialética problematiza o objeto de discussão (disputatio), e a lógica é antídoto certo contra a verborragia vazia, o conhecido fumus sine flamma.

A expressão universitária americana master-of-Arts guarda, até hoje, resquícios dessa graduação inicial, base dos estudos superiores, que convergiam para o doutorado (no sentido medieval, não no sentido moderno). A faculdade de Artes liberais, frequentemente associada às universidades medievais, sem ser um curso superior propriamente dito, era o que lhe dava sustentação e de certo modo bastava-se a si própria. Explica Jacques Le Goff:

Lá (na faculdade de Artes) é que se tinha a formação de base, daquele meio é que nasciam as discussões mais apaixonadas, as curiosidades mais atrevidas, as trocas mais fecundas. Lá é que podiam ser encontrados os clérigos pobres que não chegaram até a licença, muito menos ao custoso doutorado, mas que animavam os debates com suas perguntas inquietantes. Lá é que se estava mais próximo do povo das cidades, do mundo exterior, que se ocupava menos em obter prebendas e em desagradar à hierarquia eclesiástica, que era mais vivo o espírito leigo, que se era mais livre. Lá é que o aristotelismo produziu todos os seus frutos. Lá é que se chorou como uma perda irreparável a morte de Tomás de Aquino. Foram os artistas que, numa carta comovedora, reclamaram da ordem dominicana os despojos mortais do grande doutor. (7)

Cada elemento do trivium contém potencialmente as habilidades filosóficas da vida intelectual madura. Esta é a razão pela qual o projeto educacional da irmã Miriam, profundamente influenciado pelo filósofo americano Mortimer Adler (1902-2001), foi concebido como preparação de estudantes para a vida universitária, fosse qual fosse o curso. Em 1935, quando incorporado ao currículo do Saint Mary’s College, o curso “The Trivium” era exigido de todos os calouros e durava dois semestres, com aulas cinco vezes por semana. Santo Agostinho (354-430), mil e seiscentos anos antes, havia feito, a seu modo, a mesma tentativa de preparação intelectual com sua "Doutrina Cristã" (8), uma espécie de iniciação intelectual para estudar as Escrituras.

Na prática e salvo engano, no mundo moderno a única tentativa de recuperar o espírito do trivium foi a parceria da irmã Miriam Joseph com Mortimer Adler. Este querendo restaurar a cultura clássica na universidade americana, e aquela preparando o aluno para poder debater os conteúdos dos grandes autores com precisão gramatical e coerência, concordando com Heráclito, (9) que pregava a seus alunos a impossibilidade da retórica sem a lógica.

O mundo moderno, Brasil incluído, hipnotizado pelo esquema do ensino universal, perdeu completamente de vista a conotação individual e “iniciática” que é a alma da verdadeira educação e a essência do trivium. Mesmo nos Estados Unidos, a experiência da irmã Miriam Joseph ficou restrita a pequeno grupo de universidades católicas. Por aqui, quase não há interlocutores capacitados para debater o assunto.

Mesmo sem pretender tratar aqui fenômeno tão complexo, registre-se que o sistema educacional tradicional entrou em declínio já no século XIV, lentamente minado por fora e por dentro, sob a orquestração do nascente “humanismo”, até desabar no Renascimento, pela mão do teólogo e místico tcheco Jean Amos Comenius (1592-1670), que, em sua principal obra, Magna Didactica, não apenas faz pouco das Sete Artes como estabelece as bases das pedagogias modernas, desenhadas para fins de ensino e não de educação. Entre outras coisas, Comenius inventou o jardim da infância. Na advertência ao leitor, que abre sua Magna Didactica, o teólogo rascunha o plano mestre de seu admirável mundo novo pedagógico:

Ouso prometer uma grande didática, uma arte universal que permita ensinar a todos com resultado infalível; ensinar rapidamente, sem preguiça ou aborrecimento para alunos e professores; ao contrário, com o mais vivo prazer. Dar um ensino sólido, sobretudo não superficial ou formal, o qual conduza os alunos à verdadeira ciência, aos modos gentis e à generosidade de coração. Enfim, eu demonstro tudo isso a priori, com base na natureza das coisas. Assim como de uma nascente correm os pequenos riachos que vão unir-se no fim num único rio, assim também estabeleci uma técnica universal que permite fundar escolas universais. (10)

Mesmo uma análise rápida desta declaração descobrirá nela o DNA da pedagogia moderna nas suas características estruturantes: triunfalismo, epicurismo, massificação do ensino, uniformização do conteúdo, automatização da aprendizagem e insensibilidade às individualidades. A Unesco, naturalmente, homenageia Comenius com sua maior condecoração. Se a miséria do ensino moderno tem pai, o seu nome é Comenius. E se alguma coisa vai na direção contrária do trivium é esta “natureza das coisas” de onde vêm estas “escolas universais” e cujo resultado até agora parece ter-se limitado a produzir milhões de indivíduos idiotizados.

Visto desta perspectiva histórica, O Trivium, este tesouro redescoberto pela irmã Miriam Joseph, é mais que um manual para desenvolver a inteligência, é uma luz brilhando na escuridão dos abismos em que atiramos a verdadeira educação.

José Monir Nasser (1957-2013 - In memoriam)
Professor, escrito e autor de O Brasil que Deu Certo e A Economia do Mais (Tríade Editora). Durante anos, ministrou no Espaço Cultural É Realizações suas "Expedições pelo Mundo da Cultura", umas seria de conferências sobre grandes livros da literatura ocidental, inspirado pelo modelo de educação liberal proposto por Mortimer Adler.

Referências:

(1) Erwin Panofsky, Arquitetura Gótica e Escolástica. São Paulo, Martins Fontes, 1991.

(2) Ivan Illich, Sociedade sem Escolas. Trad. Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis, Vozes, 1985.

(3) Mário Ferreira dos Santos, Tratado de Simbólica. São Paulo, É Realizações, 2007. p. 240

(4) Depois da redescoberta da “nova lógica” de Aristóteles, no séc. XII, passou a denominar-se lógica.

(5) Hugo de São Vítor, Didascálicon. Petrópolis, Vozes, 2001.

(6) Em Jacques Le Goff, Os Intelectuais na Idade Média. Rio de Janeiro, José Olympio, 2003, p. 84.

(7) Ibid., p. 144-45.

(8) Santo Agostinho, A Doutrina Cristã. Trad. Nair de Assis Oliveira, C.S.A. 2. Ed. São Paulo, Paulus, 2007. (Coleção Patrística)

(9) Ernesto Sábato, Heterodoxia. Campinas, Papirus, 1993, p. 120.

(10) Jean-Marc Berthoud, Jean Amos Comenius et les Sources de l’Idéologie Pédagogique. Tradução de José Monir Nasser.

Trecho extraído do livro "O Trivium - As artes liberais da lógica, da gramática e da retórica" da Irmã Miriam Joseph. Editora É Realizações, 2014. Pág 13-18.


Curta nossa página no facebook Summa Mathematicae. Nossa página no Instagram.


Receba novos posts por e-mail:

Total de visualizações de página