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Sobre o blog Summa Mathematicae

Este é um blog sobre Matemática em geral, com ênfase no período clássico-medieval, também sobre as Artes liberais (Trivium e Quadrivium), so...

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Instrução Didática, Mimética e Socrática

Tela "A Morte de Sócrates"
de Jacques-Louis David (1825)

Na respiração humana, a inspiração deve, necessariamente, preceder a expiração. Expira-se aquilo que previamente se inspirou. Podemos aplicar, analogicamente, o mesmo princípio à educação: Ensina-se o que foi previamente aprendido. Os atos e palavras empregados pelo professor são resultado daquilo que foi impresso em sua mente sobre aquele assunto. Antes de se ensinar, aprende-se. Esse princípio, que se aplica ao ato de ensinar – o estudante inspira aquilo que foi expirado pelo professor – também se aplica à própria maneira de aprender. A natureza do aprendizado é uma natureza dinâmica: inspira-se, através do recebimento da informação e de sua absorção, e expira-se, através de sua representação, a própria impressão daquele conhecimento na alma do estudante.

Um dos princípios-chave da Educação Clássica Católica é o respeito a esse princípio, é respeitar e honrar a natureza da criança e a natureza do aprendizado. Para atingir esse fim, a Educação Clássica emprega dois modos de instrução, a Instrução Mimética e a Instrução Socrática.

Instrução Didática

A instrução didática consiste principalmente na passagem de conteúdos do professor para o aluno de maneira passiva, por exemplo através de leituras, aulas discursivas. Discutiremos mais sobre a instrução didática no futuro. Apesar de não ser um modo próprio da Educação Clássica, é grandemente utilizada na Educação Mimética, mas não deve ser confundida com ela.

Instrução Mimética

E educação pode ser bem definida como o “cultivo da sabedoria e da virtude na alma através da promoção do verdadeiro, do bom e do belo". Em resumo, em aprender e crescer em virtude.

A Instrução Mimética fundamenta-se na ideia de que o ser humano aprende e cresce em virtude através da imitação. A Educação Clássica vê, porém, essa imitação não como um “macaquear” ou uma simples arremedação, mas como uma verdadeira mimesis, imitação interior, e não exterior. Ao aprender algo de maneira mimética, o aluno abstrai a ideia por meio do exemplo e da imitação e a internaliza, aplicando o que foi aprendido em sua vida. A educação mimética consiste em cinco etapas:

1. Pré-percepção

Pela memória, considera-se o que já se sabe sobre aquela ideia ou verdade, ou ideias correlatas.

2. Percepção

Pelos sentidos, considera-se a ideia em si mesma e sobre sua aplicação (por exemplo, ouvir a beleza de uma música ou de uma obra de arte)

3. Absorção

Imprime-se aquela ideia na alma através do senso comum, isto é, onde os sentidos físicos encontram a alma. Poderíamos considerar esse estágio como “contemplativo”, pois nele a alma une as diversas informações passadas pelos sentidos para construir uma ideia sobre o que está sendo tratado. Imaginemos uma escultura que expressa alegria. Os sentidos vêem apenas linhas, cores, formas. É o senso comum que une essas informações a fim de montar uma ideia na mente daquele que a admira.

4. Compreensão

Neste estágio, a mente apreende a ideia, isto é, compreende aquilo que foi absorvido para a alma. Aqui o aprendizado é feito. Aqui se conclui a inspiração

5. Representação

A ideia é impressa no estudante com uma nova forma. Aqui de fato a ideia ou verdade é personificada e imitada. Aqui se faz a expiração. Se apresenta a nova forma daquilo que foi impresso nos estágios precedentes.

Para compreender essas cinco etapas, consideremos, como exemplo, a ideia do Lar na Odisseia de Homero:

1. O que você considera um lar? Como é o seu lar? Você já esteve longe do seu lar por muito tempo?

2. Na leitura do livro, percebe-se a ideia de lar: casa de Nestor, de Zeus, de Menelaus, de Odisseu, etc.

3. Comparam-se os diferentes lares, incluindo o seu próprio: O que esses tipos (exemplos) de lar me ensinam sobre a ideia de “lar”?

4. O que um lar deve ser? O que torna algo um “lar”?

5. Representa-se o conhecimento adquirido por ideias, como num escrito, numa conversa ou numa explicação sobre o tema; ou por ações, como o cuidado maior pelo lar, a mudança de comportamento com relação a estar nele, etc.

A mimesis é a imitação, não da forma exterior, mas da ideia – não de uma ação, mas da ideia expressa nessa ação. Cada arte e habilidade é aprendida por essas etapas, seja na escola ou fora dela. É uma forma indutiva de instrução modificada, na qual os alunos são levados a entender ideias, contemplando modelos ou tipos deles. Esses modelos podem ser encontrados na literatura, história, matemática, música, artes, outras atividades humanas e na própria natureza.

Para educar de forma mimética, deve o professor seguir cinco estágios:

1. Preparação

O professor apresenta algo que o aluno já conhece ou cria a necessidade da ideia que será passada. Dessa maneira, o professor guia o aluno a preencher as lacunas que devem ser preenchidas pelo novo conhecimento a adquirir. Durante essa fase, a atenção, habilidade de raciocínio e imaginação do aluno estarão em grande atividade. O aluno ganhará confiança ao recordar os pontos que já conhece e percebê-los como ferramentas para o novo desafio. De igual maneira, o professor poderá melhor adaptar-se às necessidades dos alunos e o processo de aprendizado em geral será muito mais fácil e marcante. Essa é uma das partes mais importantes do processo de ensino e cerca de 40% do esforço e do tempo devem ser empregados nela, pois em grande parte da preparação depende o sucesso da instrução. Por exemplo, antes de se ensinar a multiplicar, o professor recorda a soma. Antes de se somar dois dígitos, deve-se apresentar a soma de um dígito só. Antes de se tratar da conjugação de determinado verbo, trata-se dos substantivos, etc.

2. Apresentação de tipos

O professor apresenta tipos, isto é, exemplos e ilustrações que incorporam e simbolizam a ideia que está sendo apresentada. Durante esta fase, a memória e a recordação ajudarão o estudante a resolver os problemas apresentados, participando neles. Cerca de 25% do tempo deve ser empregado nesta fase. Por exemplo, ao ensinar a multiplicar, o professor aplica dois ou três casos de multiplicação a partir do conhecimento já adquirido (soma). Ao ensinar a soma de dois dígitos, aplica alguns exemplos (por exemplo a quantidade de alunos na sala) em que essa soma de dois dígitos seja necessária, etc.

3. Comparação de tipos

Após verem vários tipos, os alunos naturalmente começam a compará-los. Nesta fase, cabe ao professor aprofundar essas comparações através de perguntas. Todo processo é fundamentado no uso da memória e do raciocínio dos estudantes que comparam e entendem a relação entre os tipos. Toda a ideia desta fase é guiar os alunos a encontrar padrões por si mesmos (embora guiados e induzidos pelo professor) de modo a chegarem ao entendimento da ideia apresentada. Por exemplo, ao ensinar a multiplicar, o professor induz os alunos a perceberem que a multiplicação nada mais é que repetir a soma. Isso pode ser feito, por exemplo, mostrando multiplicações simples como $3 \times 3$, $3 \times 4$ e $3 \times 5$ induzindo os alunos, através de perguntas e mesmo contra-exemplos, a perceber o padrão apresentado na ideia.

4. Compreensão e expressão da ideia

Após o encontro de padrões, o professor deve pedir aos alunos para explicar ou descrever a ideia utilizando suas próprias palavras, deve guiá-los para a apreensão da ideia e a exteriorização do que até então esteve apenas internamente neles. Deve-se verificar o aprendizado não apenas em um, mas em vários alunos, senão em todos. É importante fazer boas perguntas para que um aluno simplesmente não repita o outro, mas sempre demonstre seu entendimento. Pode ser útil fazer algo escrito para garantir o sucesso do exame. Caso os alunos não consigam explicar ou descrever a ideia ensinada, deve-se voltar ao ponto 3 e comparar os tipos com maior cuidado. Esta fase tende a ser a mais curta do processo. Por exemplo, ao ensinar a multiplicar, o professor pede multiplicações de alguns alunos, de outros pede para explicarem o conceito, a outros dá problemas matemáticos que se resolveriam aplicando o que foi aprendido, a outros pede-se que explique como fazer para outra pessoa. A analogia à inspiração e expiração aqui encontra sua maior similaridade: Uma vez adquirido o conhecimento, nesta fase os alunos devem ser guiados a expressá-lo. Este também é um bom momento para engajar os alunos de forma socrática, como veremos a seguir, a fim de chegarem ao conhecimento através do membro processo.

5. Aplicação da ideia

Somente após os alunos conseguirem expressar por si mesmos a ideia em questão deve o professor revisar a lição e apresentar exercícios de aplicação do que foi aprendido. O professor fará isso através de exercícios que pratiquem mediante a repetição e da diversidade o que foi ensinado e testem a apreensão da ideia pelo aluno por meio de aplicações reais dela. Essa fase é muito importante e não se deve satisfazer-se com pouco, nela.

Dorothy Sayers, em seu “The Lost Tools of Learning”*, indica que devemos ensinar as pessoas da mesma maneira como se faz o polimento de uma madeira: seguindo a direção da fibra, e não indo contra ela. A educação mimética está radicada nesta ideia: Os seres humanos só podem aprender movendo-se da parte ao todo, do particular – coisas específicas e concretas – para o universal – ideias gerais e abstratas.

Instrução Socrática

A Instrução Socrática é o processo dialético de examinar uma ideia “desconstruindo-a” para encontrar fraquezas e inconsistências no entendimento de alguém, e depois “reconstruindo-a” para esclarecer ou purificar o entendimento do aluno. Esses dois estágios são realizados envolvendo-se em discussão reflexiva (dialética) com o aluno, não para destruir, mas para purificar seu entendimento. Esta discussão reflexiva é realizada através do uso de perguntas penetrantes pelo professor.

Sem dúvidas, a Instrução Socrática é o modo de instrução mais mal compreendido, mas também é um dos mais poderosos. Mal compreendido porque facilmente se confunde com elementos da educação progressista em que se visa “desconstruir” as visões dos alunos para doutrinação ideológica ou elementos em que o professor não assume a postura de mestre, mas de alguém que também está querendo aprender com os alunos. Confunde-se também com simples discussões relativistas e debates vazios. A Instrução Socrática difere muito desses elementos empregados pela educação progressista sobretudo porque não encara a discussão como fim em si mesmo, mas é verdadeiro modo de ensino. É uma verdadeira lição, tal como a feita didaticamente, na qual o professor guia o aluno à verdade através de um processo dialético.

A Instrução Socrática não é um método que pode ser sempre empregado, nem mesmo pode ser “marcado para acontecer”. Ele deve ser empregado quando as condições assim o pedirem, em geral quando há uma falsa compreensão do assunto que precisa ser substituída pela correta compreensão.

Há, basicamente, três estágios na Instrução Socrática:

1. Estágio Irônico

O estágio irônico consiste em, com delicadeza, revelar os erros contidos na compreensão dos estudantes e desconstruir o pensamento errado do aluno. A primeira etapa do estágio irônico é realmente entender o que o aluno pensa. O professor deve fazer perguntas de comparação e definição com a intenção de encontrar contradições no pensamento do aluno. Esse estágio é vital, porque se o aluno pensa de maneira errada no pouco, isso no futuro resultará em grandes erros.

2. Estágio metanoico

Após ter entendido como o aluno pensa e encontrar as contradições nesse pensamento, o professor deve, com mais perguntas, levar o aluno a perceber as suas contradições e erros do seu pensamento e reconsiderar aquilo que antes pensava ser verdade. Essa etapa se chama metanoia, ou arrependimento, mudança de pensamento.

3. Estágio Maiêutico

Nesse ponto, o professor continua a fazer perguntas, orientando o aluno a enxergar a verdade e guiando-o na correta compreensão, é o momento de construir o pensamento correto no aluno. Pode-se fazer isso empregando a instrução mimética ou mesmo didática, sempre aplicando os princípios do questionamento socrático, ou ainda dando exemplos e analogias da ideia na vida real. O estudante, através dessa instrução, contempla e compara as analogias até “dar a luz” (1) à ideia na sua mente.

O professor aproxima o aluno da compreensão precisa de uma ideia através deste processo. A instrução socrática está enraizada na ideia de que a verdade é cognoscível, mas que geralmente somos descuidados sobre como sabemos disso. Nós tiramos conclusões muito apressadamente e depois as aplicamos amplamente. Para amadurecer em nosso raciocínio, devemos purificar nosso pensamento através de uma dialética crítica socrática.

Dada sua natureza, há alguns princípios que podem ajudar o professor a praticar a Instrução Socrática e levar os alunos à verdade. Em primeiro lugar, respeito e amor deve preencher toda a instrução. O professor deve ter grande respeito pelo aluno como um buscador da verdade. As perguntas, as respostas, a linguagem corporal e mesmo o tom de voz deve refletir essa atitude. Em segundo lugar, o professor deve garantir que entendeu o que o aluno quis dizer. Isso pode ser feito com perguntas “Você quer dizer isso, entendi corretamente?”.

Em terceiro lugar, o professor deve ser paciente e respeitar o tempo de cada aluno. Não dar de pronto a resposta da pergunta, mas guiar o aluno à resposta verdadeira. Por fim, o professor deve ter um inegociável e irreprimível compromisso com a verdade. A verdade é mais importante que se provar certo. Ser fiel à verdade é ser fiel à Verdadeira Verdade, Nosso Senhor Jesus Cristo, e guiar os alunos até Ele, como princípio da Educação Católica, é nosso dever inescusável como educadores.

(1) Este é o significado de maiêutico, estágio parteiro.

Retirado do site: Link

* Este livro da Dorothy Leigh Sayers foi publicado em português pelas Edições Kírion com o título "As ferramentas perdidas da aprendizagem" em 2023.


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Dez mandamentos para professores, por George Pólya

Apresentação do autor por Elon Lages Lima

George Pólya (1887 + 98 = 1985) nasceu em Budapest, Hungria, foi professor em Zurich de 1914 a 1940 e depois em Stanford, Estados Unidos, onde se aposentou em 1953 mas continuou ativo até praticamente sua morte, quase centenário. Pólya foi coautor de um notável livro, escrito juntamente com seu compatriota Gabor Szegõ, intitulado "Aufgaben und Lehrsãtze aus der Analysis" (Berlim, 1924) depois traduzido para o inglês com o título "Problems and Theorems in Analysis" (Berlim, 1972). Neste texto, em dois alentados volumes, os autores mostram como o ensino da Análise Matemática pode ser gradativamente desenvolvido, dos fundamentos até algumas fronteiras do conhecimento, através de uma judiciosa sequência de exercícios e problemas, alguns dotados de suprema elegância.

Pólya escreveu outros livros e inúmeros artigos originais, que lhe deram sólida reputação em Análise Clássica, Combinatória e Probabilidades. Suas obras completas, em 4 volumes, foram publicadas em 1984 pela MIT Press. Nos últimos quarenta anos de sua longa carreira, passou a interessar-se pelo ensino da Matemática, dedicando-se quase inteiramente ao estudo das questões referentes à transmissão do conhecimento matemático. A esse respeito escreveu muitos artigos e alguns livros extraordinários, como "How to Solve It" (traduzido para o português como "A Arte de Resolver Problemas"), "Mathematics and Plausible Reasoning" (Princeton Univ. Press, 1954) e "Mathematical Discovery" (2 vols., Wiley, 1962 e 1965).

O trabalho de Pólya sobre o ensino da Matemática é maravilhoso simplesmente porque não propõe truques, fórmulas miraculosas, ou muito menos pomposas teorias pseudo-psicológicas. O artigo que reproduzimos a seguir, de uma espontaneidade e de uma franqueza quase rudes, resume suas idéias de modo bastante claro.

Após anos de experiência como matemático de grande destaque e professor universalmente reconhecido por seus dotes de mestre, Pólya sintetiza suas conclusões em dez mandamentos e uma regra muito simples para treinar professores que saibam seguir esses mandamentos.

Para ser um bom professor de Matemática, você tem que vibrar com a sua matéria, conhecer bem o que vai ensinar, ter um bom relacionamento com os alunos para entender os problemas deles e dar a esses alunos a oportunidade de (pelo menos algumas vezes) descobrir as coisas por si mesmos. Deve ainda entender que "know-how" é mais importante do que informação. (Pólya lhe dirá no texto o que entende por "know-how".) E, para treinar professores a fim de que possam cumprir sua tarefa, o melhor a fazer é praticar com ele a arte de resolver problemas. Estou certo de que a leitura do artigo que se segue e, mais ainda, a releitura seguidas vezes, a meditação sobre o mesmo e a adoção dos princípios nele expostos, muito contribuirão para melhorar a qualidade das nossas aulas de Matemática.  

(*) Artigo publicado no "Journal of Education", University of British Columbia, Vancouver and Victoria (3) 1959, p. 61-69. Reproduzido nos "Collected Papers" de George Pólya, vol. IV, pp. 525-533, MIT Press 1984. Traduzido por Maria Celano Maia.  

 Dez mandamento para professores

Nos últimos cinco períodos letivos, todas as minhas aulas foram dirigidas a professores secundários que, após alguns anos de prática, voltaram à Universidade para mais treinamento. Eles desejavam, segundo entendi, um curso que fosse de uso prático imediato nas suas tarefas diárias. Tentei planejar um tal curso no qual, inevitavelmente, eu teria de expressar repetidas vezes minhas opiniões sobre o dia-a-dia do professor. Meus comentários foram aos poucos assumindo uma forma condensada e finalmente fui levado a enunciá-los como dez regras, ou mandamentos.

Para tornar claro o significado dos mandamentos deveria ter acrescentado exemplos ilustrativos mas, em vista da exiguidade de espaço, isso ficou fora de cogitação. Alguns pontos são ilustrados em meus livros (l) e (2), e outros serão discutidos noutro livro ao qual este artigo, ou seu conteúdo sob outra forma, será incorporado.  

Dez mandamentos para professores

1. Tenha interesse por sua matéria.  

2. Conheça sua matéria

3. Procure ler o semblante dos seus alunos; procure enxergar suas expectati­vas e suas dificuldades; ponha-se no lugar deles.  

4. Compreenda que a melhor maneira de aprender alguma coisa é descobri-la você mesmo.  

5. Dê aos seus alunos não apenas informação, mas know-how, atitudes mentais, o hábito de trabalho metódico.  

6. Faça-os aprender a dar palpites

7. Faça-os aprender a demonstrar.  

8. Busque, no problema que está abordando, aspectos que possam ser úteis nos problemas que virão -- procure descobrir o modelo geral que está por trás da presente situação concreta.

9. Não desvende o segredo de uma vez -- deixe os alunos darem palpites antes -- deixe-os descobrir por si próprios, na medida do possível.

10. Sugira; não os faça engolir à força. 

Comentário

Ao formular os mandamentos, ou regras, acima, tive em mente os participantes das minhas classes, professores secundários de Matemática. Entretanto, essas regras se aplicam a qualquer situação de ensino, a qualquer matéria ensinada em qualquer nível. Todavia, o professor de Matemática tem mais e melhores oportunidades de aplicar algumas delas do que o professor de outras matérias.

Vamos agora considerar as dez regras, uma por uma, prestando atenção especial à tarefa do professor de Matemática.  


Tenha interesse por sua matéria. Conheça a sua matéria.


1. É muito difícil prever com segurança o sucesso ou fracasso de um método de ensino. Mas há uma exceção: você aborrecerá a audiência com sua matéria se esta matéria o aborrece.

Isto deve ser suficiente para tornar evidente o primeiro e principal dos mandamentos do professor: Tenha interesse por sua matéria.

2. Se um assunto não interessa ao professor, ele não será capaz de ensiná-lo aceitavelmente. Interesse é sine qua non, uma condição indispensavelmente necessária, mas, em si mesma, não é uma condição suficiente. Nenhuma quantidade de interesse, ou de métodos de ensino, permitirá que você explique claramente um ponto a seus alunos se você próprio não entender mais claramente ainda esse ponto.

O argumento acima deve ser bastante para tornar claro o segundo mandamento para professores: Conheça a sua matéria.

3. Mesmo com algum conhecimento e interesse, você pode ser um professor ruim ou bem medíocre. O caso não é muito comum, admito, mas tampouco é raro: muitos de nós conheceram professores que sabiam suas matérias mas não eram capazes de estabelecer contato com os seus alunos.  

Procure ler o semblante dos seus alunos. ...ponha-se no lugar deles.

Para que o ensinar, por parte de um, resulte no aprender, por parte de outro, deve haver uma espécie de contato ou conexão entre professor e aluno: o professor deve ser capaz de perceber a posição do aluno; ele deve ser capaz de assumir a causa do aluno. Daí o próximo mandamento: Procure ler o semblante dos seus alunos; procure enxergar suas expectativas e suas dificuldades; ponha-se no lugar deles.

4. As três regras anteriores contêm a essência do bom ensino; elas formam, juntas, uma espécie de condição necessária e suficiente. Se você tem interesse e conhecimento, e é capaz de perceber o ponto de vista do aluno, você já é um bom professor ou logo se tornará um; só precisa de experiência.

Experiência é necessário, experiência prática, para pô-lo a par das interações entre professor e alunos na sala de aula, e para familiarizá-lo, tão intimamente e pessoalmente quanto possível, com o processo de aquisição de novas informações e habilidades — um processo que tem muitos e vários aspectos: aprendizagem, descoberta, invenção e compreensão... Os psicólogos fizeram trabalhos experimentais muito importantes e emitiram algumas opiniões teóricas interessantes sobre o processo de aprendizagem. Tais experiências e opiniões podem servir como uma base estimulante para um professor excepcionalmente receptivo, mas elas ainda não amadureceram suficientemente (e não amadurecerão por um bom tempo, temo eu) para ser de uso imediatamente prático naquelas fases da instrução que nos concernem aqui. Em seu trabalho diário, o professor deve basear-se, primeiro e antes de tudo, na sua própria experiência e no seu próprio julgamento.

Baseando-me em meio século de experiência em pesquisa e ensino, e de reflexão muito cuidadosa, apresento aqui, para consideração do leitor, alguns pontos sobre o processo de aprendizagem, os quais eu considero como os mais importantes para uso em sala de aula.

Já se disse repetidas vezes que a aprendizagem ativa é preferível à aprendizagem passiva, meramente receptiva. Quanto mais ativa, melhor é a aprendizagem: Compreenda que a melhor maneira de aprender alguma coisa é descobri-la você mesmo.

De fato, numa situação ideal, o professor seria somente uma espécie de parteira espiritual; ele daria oportunidade aos alunos de descobrirem por si mesmos as coisas a serem aprendidas. Este ideal é dificilmente alcançado na prática, sobretudo por falta de tempo. Contudo, mesmo um ideal inatingível pode guiar-nos indicando a direção correta -- ninguém ainda atingiu a Estrela Polar, mas muitas pessoas encontraram o rumo certo guiando-se por ela.

5. O conhecimento consiste em parte de informação e em parte de know-how. Know-how é destreza; é a habilidade em lidar com informações, usá-las para um dado propósito; know-how pode ser descrito como um apanhado de atitudes mentais apropriadas, know-how é em última análise a habilidade para trabalhar metodicamente.

Em Matemática, know-how é a habilidade para resolver problemas, construir demonstrações, e examinar criticamente soluções e demonstrações. E, em Matemática, know-how é muito mais importante do que a mera posse de informações.

Portanto, o mandamento seguinte é de especial importância para o professor de Matemática: Dê aos seus alunos não apenas informações, mas know-how, atitudes mentais, o hábito de trabalho metódico.

Já que know-how é mais importante em Matemática do que informação, a maneira como você ensina pode ser mais importante nas aulas de Matemática do que aquilo que você ensina.  

Faça-os aprender a dar palpites. Faça-os aprender a demonstrar. 

6. Primeiro conjecture, depois prove -- assim procede a descoberta na maioria dos casos. Você deveria saber disto (pela sua própria experiência, se possível) e deveria saber, também, que o professor de Matemática tem excelentes oportunidades de mostrar o papel da conjectura no processo de descoberta e assim imprimir em seus alunos uma atitude mental fundamentalmente importante. Este último ponto não é tão amplamente conhecido como deveria ser e, infelizmente, o espaço aqui disponível é insuficiente para discuti-lo em detalhes (2). Ainda assim, desejo que você insista com seus alunos a respeito. Faça-os aprender a dar palpites.

Alunos ignorantes e descuidados provavelmente vão dar palpites rudimentares. Os palpites que nós queremos estimular, naturalmente, não são os rudimentares, mas os educados, os razoáveis. Palpites razoáveis baseiam-se no uso judicioso de evidência indutiva da analogia, e englobam em última análise todos os procedimentos do raciocínio plausível que desempenham um papel no método científico (2).

7. "A Matemática é uma boa escola de raciocínio plausível". Esta afirmativa resume a opinião subjacente à regra anterior; ela soa incomum e é de origem muito recente; na realidade, o autor do presente artigo reivindica seu crédito.

"A Matemática é uma boa escola para o raciocínio demonstrativo". Esta afirmativa soa bem familiar -- algumas formas dela são provavelmente quase tão velhas quanto a própria Matemática. De fato, muito mais é verdade; Matemática tem quase o mesmo significado que raciocínio demonstrativo, o qual está presente nas Ciências na medida em que os seus conceitos se elevam a um nível lógico-matemático suficientemente abstrato e definido. Abaixo deste alto nível, não há lugar para raciocínio verdadeiramente demonstrativo (o qual não tem lugar, por exemplo, nas tarefas do dia-a-dia). Ainda assim (é desnecessário discutir-se tal ponto, tão amplamente aceito) os professores de Matemática devem colocar os seus alunos, salvo os das classes mais elementares, em contato com o raciocínio demonstrativo: Faça-os aprender a demonstrar.

8. Know-how é a parte mais valiosa do conhecimento matemático, muito mais valiosa que a mera posse de informação. Mas como devemos ensinar know-how? Os alunos só podem aprendê-lo através de imitação e prática.

Quando você apresentar a solução de um problema, enfatize convenientemente os aspectos instrutivos da solução. Um aspecto é instrutivo se merece imitação; isto é, se puder ser usado não somente na solução do presente problema, mas também na solução de outros problemas -- quanto mais puder ser usado, mais instrutivo. Enfatize os aspectos instrutivos não somente louvando-os (o que poderia causar efeito contrário em alguns alunos) mas através de seu comportamento (um pouco de dramatização é muito bom se você tiver uma pontinha de talento teatral). Um aspecto bem enfatizado pode converter a sua solução numa solução modelo, num padrão marcante; imitando-o, os alunos resolverão muitos outros problemas. Daí a regra: Busque, no problema que está abordando, aspectos que possam ser úteis nos problemas que virão -- procure descobrir o modelo geral que está por trás da presente situação concreta (l).  

...deixe-os descobrir por si próprios, na medida do possível.
... não os faça engolir à força.

9. Eu gostaria de indicar aqui um pequeno truque que é fácil de aprender e que todo professor deveria conhecer. Quando você começar a discutir um problema, deixe que seus alunos adivinhem a solução. O aluno que concebeu um palpite, ou mesmo que tenha anunciado seu palpite, empenha-se: ele tem que seguir o desenvolvimento da solução para ver se o seu palpite estava certo ou não. Ele não pode permanecer desatento.

Este é um caso muito especial da regra seguinte, que tem pontos em comum com as regras 4 e 6: Não desvende o segredo de uma vez -- deixe os alunos darem palpites antes -- deixe-os descobrir por si próprios, na medida do possível.

10. Um aluno apresenta um longo cálculo que ocupa várias linhas. Olhando para a última linha, vejo que o cálculo está errado, mas me abstenho de dizer isso. Prefiro acompanhar o cálculo com o aluno, linha por linha: "Você começou bem; sua primeira linha está correta. A linha seguinte também está correta, você fez isto e aquilo. A próxima linha está boa. Agora, o que você acha desta linha?" O engano está naquela linha e, se o aluno descobre o erro por si mesmo, ele tem uma chance de aprender algo. Se, no entanto, digo logo "Isto está errado", o aluno poderá se ofender e aí não ouvirá o que eu possa dizer depois. E se digo "Isto está errado" a todo instante, o aluno poderá odiar a mim e à Matemática, e todos os meus esforços estarão perdidos em relação a ele.

Evite dizer "Você está errado". Em vez disso, se possível, diga: "Você está certo, mas..." Se você procede assim, você não é hipócrita, você é somente humano. Que você deve proceder assim, está implicitamente contido na regra 4. Assim, nós podemos tornar o conselho mais explícito: Sugira; não os faça engolir à força.  

Sobre o currículo para futuros professores

Os mandamentos acima são simples e bastante óbvios, mas nem sempre é fácil segui-los no dia-a-dia. E nós também, nem sempre tornamos fácil para os professores segui-los. Por exemplo, os estudos universitários do professor ajudam-no muito pouco a obedecer a estes mandamentos.

E assim chegamos à questão penosa do currículo para futuros professores de escola secundária. Eu não tenho espaço, tempo, meios (ou coragem) suficientes, ao meu dispor para tratar desta questão adequadamente. Entretanto há alguns pontos que não posso omitir. Todos eles têm relação com professores de Matemática que ensinam Álgebra, Geometria ou Trigonometria (muito raramente alguma matéria mais avançada) numa escola secundária. Não estou preocupado com "Matemáticas gerais" ou assuntos desse tipo nos quais há uma porção de generalidades, mas muito pouca Matemática.

Não posso deixar de citar uma frase que ouvi de um participante de minhas aulas: "O futuro professor não é bem tratado pelo Departamento de Matemática nem pelo Departamento de Educação. O Departamento de Matemática nos oferece bife duro de roer e o Departamento de Educação, sopa rala sem nenhuma carne". Encontrei vários professores que expressaram a mesma opinião, talvez de modo mais tímido e menos contundente. Quais as origens dessas opiniões?

Todo mundo conhece casos em que a Álgebra ou Geometria são ensinadas por um professor que conhece menos do assunto do que se supõe que ele deveria exigir de seus alunos. E isto pode até acontecer se o instrutor em questão não é o professor particular nem o professor de economia doméstica, mas o professor de Matemática. Quão excepcionais ou difundidos são tais casos, eu não gostaria de discutir.

Acontece também, mais freqüentemente do que seria de se desejar, que um professor de Matemática capaz e bem intencionado não conheça bastante o back-ground da Matemática de nível secundário para satisfazer a curiosidade, ou ao menos entender as reações, dos seus melhores alunos. (Alguns pontos que deveriam ser, mas não são, geralmente conhecidos: decimais infinitas, números irracionais, divisibilidade, primeiras provas de Geometria sólida.) Por que isto acontece?

O futuro professor deixa a escola secundária, muito freqüentemente, sem nenhum conhecimento ou com um conhecimento hesitante da Matemática de nível secundário. Onde e quando ele deveria aprender a Matemática de nível secundário?

Ele segue um curso oferecido pelo Departamento de Matemática sobre tópicos mais avançados. Ele tem muita dificuldade de adaptar-se e de ser aprovado no curso, porque o seu conhecimento de Matemática de nível secundário é inadequado. Ele não consegue relacionar o curso com a sua Matemática de nível secundário. Por outro lado, ele recebe um curso oferecido pelo Departamento de Educação sobre métodos de ensino. Este é oferecido de acordo com o princípio de que o Departamento de Educação ensina somente métodos, não conteúdo. Nosso futuro professor pode ficar com a impressão errônea de que os métodos de ensino estão essencialmente relacionados com conhecimento inadequado, ou ignorância do conteúdo. De qualquer forma, seu conhecimento da Matemática de nível secundário permanece marginalizado.

Chego, agora, a um ponto que toca mais de perto o meu coração. O professor é exortado a fazer muitas coisas bonitas: ele deve dar a seus alunos não só informações mas know-how, ele deve encorajar sua originalidade e trabalho criativo, ele deve fazê-los experimentar a tensão e o triunfo da descoberta. Mas, e o professor, ele próprio? Há em seu currículo alguma oportunidade de trabalho independente em Matemática, de adquirir o know-how que se espera que ele transmita a seus alunos? A resposta é não. Tanto quanto eu saiba, não há Universidade que dê ao professor oportunidade decente de desenvolver seu know-how, sua própria habilidade em Matemática.

Alguns pontos que deveriam ser, mas não são, geralmente conhecidos:
decimais infinitas, números irracionais, divisibilidade, primeiras
provas de Geometria sólida. Onde e quando ele deveria aprender a Matemática de nível secundário?
... um seminário sobre resolução de problemas para professores

Eu reivindico o crédito por haver introduzido o remédio mais óbvio para esses defeitos mais óbvios ainda: um seminário sobre resolução de problemas para professores, onde o conhecimento requerido é de nível secundário e o grau de dificuldade dos problemas a serem resolvidos é apenas um pouco acima do nível da escola secundária.

Um tal seminário pode ter, se dirigido adequadamente, vários efeitos bons (3). Em primeiro lugar, os participantes têm uma oportunidade de adquirir um conhecimento sólido da Matemática de nível secundário -- conhecimento real, pronto para ser usado, não adquirido por mera memorização mas através de aplicação em problemas interessantes. Então o participante pode adquirir algum know-how; certa habilidade em lidar com Matemática de nível secundário; algum discernimento da essência da resolução de problemas.  

Além disso, eu usei meu seminário para dar aos participantes alguma prática em explicar problemas e dirigir suas soluções, na verdade, uma oportunidade para prática de ensino, para a qual, na maioria dos currículos usuais, não há bastantes oportunidades. Isto é feito da seguinte maneira: ao começar uma aula prática, cada participante recebe um problema diferente (somente um para cada) o qual espera-se que ele resolva naquela aula; ele não deve comunicar-se com seus companheiros, mas poderá receber alguma ajuda de seu instrutor.

Entre essa aula e a seguinte, cada participante deve completar, rever e, se possível, simplificar sua solução, procurar alguma outra abordagem para a solução, e assim por diante. Ele deve também, fazer um plano de aula para apresentar seu problema e sua solução para uma classe. Ele pode consultar o instrutor sobre qualquer dos pontos acima. Então, na aula prática seguinte, os participantes formam grupos de discussão; cada grupo composto de 4 membros selecionados, tanto quanto possível, de acordo com as suas afinidades. Um membro assume o papel do professor e três outros o papel dos alunos. O professor apresenta o seu problema aos alunos e tenta guiá-los para a solução, de acordo com a regra 9 e os outros mandamentos. Quando a solução for obtida, segue-se uma pequena crítica amistosa. Depois, outro membro toma o lugar do professor, apresenta o seu problema; e o procedimento se repete até que todos tenham tido sua vez. Alguns problemas particularmente interessantes ou apresentações particularmente boas são mostrados à classe completa e depois discutidos.

Resolução de problemas por grupos de discussão é muito popular e eu tenho a impressão de que os seminários, como um todo, são um sucesso. Os participantes são professores experientes e muitos deles sentem que a sua participação lhes dá idéias úteis para suas próprias aulas.

Referências

(1) A arte de resolver problemas. Interciência, Rio de Janeiro 1975.

(2) Mathematics and Plausible Reasoning, 2 vols. Princeton University Press.

(3) No "American Mathematica! Monthly", vol. 65 (1958), p. 101-104, escrevi um pequeno artigo onde apresentei alguns dos pontos de vista aqui expressos.

    Texto retirado da Revista do Professor de Matemática, da Sociedade Brasileira de Matemática, nº 10, 1º semestre de 1987, disponível no site: Link


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Elementos de Euclides

Introdução

Os Elementos de Euclides formam um dos mais bonitos e influentes trabalhos da ciência na história da Humanidade. A sua beleza acentua no desenvolvimento lógico da geometria e de outros ramos da Matemática.

Os Elementos são, a seguir à Bíblia, um dos livros mais reproduzidos e estudados na história do mundo ocidental. Foi praticamente o único livro de texto usado no ensino da Matemática durante mais de dois milénios.

Os Elementos são uma compilação de resultados de autoria diversa, alguns já conhecidos desde há muito tempo. Por este fato, não devemos considerar que Euclides foi o descobridor da totalidade, nem sequer da maioria dos teoremas ou das teorias que apresenta nos seus livros.

Os treze volumes que constituem a sua obra, foram ao longo dos tempos estudados por muitos.

Na antiga Grécia, esta obra foi comentada por Herão (10-75), Proclo (410-485) e Simplício (490-560).

Na Idade Média, foi traduzido em latim e árabe, e após a descoberta da imprensa, fizeram-se numerosas edições na maioria das línguas europeias. A primeira foi de Campano (1220-1296), em latim, publicada após a sua morte (1482) e que foi muitas vezes citada por Pedro Nunes (1502-1578). Em Portugal, Angelo Brunelli em 1768, publicou uma tradução em português dos seis primeiros livros, do décimo primeiro e do décimo segundo.

Vários temas são abordados ao longo dos treze volumes.

Os livros I-IV tratam de geometria plana elementar. Partindo das mais elementares propriedades de retas e ângulos que conduzem à congruência de triângulos, à igualdade de áreas, ao teorema de Pitágoras (proposição 47, Livro I) e ao seu recíproco (proposição 48, Livro I), à construção de um quadrado de área igual à de um retângulo dado, à secção de ouro, ao círculo e aos polígonos regulares.

Como a maioria dos treze livros, o livro I começa com uma lista de definições, sem qualquer comentário como, por exemplo, as de ponto, reta, círculo, triângulo, ângulo, paralelismo e perpendicularidade de retas tais como:

"um ponto é o que não tem parte",

"uma reta é um comprimento sem largura"

"uma superfície é o que tem apenas comprimento e largura".

A seguir às definições, aparecem os postulados e os axiomas por esta ordem:

1. Dados dois pontos, há um segmento de reta que os une;

2. Um segmento de reta pode ser prolongado indefinidamente para construir uma reta;

3. Dados um ponto qualquer e uma distância qualquer pode-se construir um círculo de centro naquele ponto e com raio igual à distância dada;

4. Todos os ângulos retos são iguais;

5. Se uma linha reta cortar duas outras retas de modo que a soma dos dois ângulos internos de um mesmo lado seja menor do que dois retos, então essas duas retas, quando suficientemente prolongadas, cruzam-se do mesmo lado em que estão esses dois ângulos (É este o célebre 5º Postulado de Euclides).

Axioma 1

Coisas que são iguais à mesma coisa também são iguais entre si.

Axioma 2

Se iguais forem somados a iguais, então os todos são iguais.

Axioma 3

Se iguais forem subtraídos a iguais, então os restos são iguais.

Axioma 4

Coisas que coincidem umas com outras são iguais entre si.

Axioma 5

O todo é maior que a parte.

Assim, três conceitos fundamentais - o de ponto, o de reta e o de círculo - os cinco postulados e axiomas, a eles referentes, servem de base para toda a geometria euclidiana.

O livro V apresenta a teoria das proporções de Eudoxo (408 - 355 a. C.) na sua forma puramente geométrica.

O livro VI, aplica a teoria das proporções, à semelhança de figuras planas. Aqui voltamos ao teorema de Pitágoras e à secção de ouro (proposições 31 e 30, Livro VI), mas agora como teoremas respeitantes a razões de grandezas. É de particular interesse o teorema (proposição 27, Livro VI) que contém o primeiro problema de maximização que chegou até nós, com a prova de que o quadrado é, de todos os retângulos de um dado perímetro, o que tem área máxima.

Os livros VII-IX, são dedicados a conceitos sobre teoria dos números tais como a divisibilidade de inteiros, a adição de séries geométricas e algumas propriedades dos números primos. Encontramos também, o "algoritmo de Euclides", para determinar o máximo divisor comum entre dois números (proposição 2, Livro VII), o mais antigo registro, de uma prova formal, por recorrência, (proposição 31, Livro VII), e ainda o "Teorema de Euclides", segundo o qual existe uma infinidade de números primos (proposição 20, Livro IX).

O livro X, o mais extenso de todos e muitas vezes considerado o mais difícil, contém a classificação geométrica de irracionais quadráticos e as suas raízes quadráticas. Neste livro surge a prova da irracionalidade de $\sqrt {2}$.

Os livros XI-XIII, são conhecidos pelo nome de livros estereométricos, por neles serem consideradas figuras da geometria tridimensional. O livro XI é dedicado ao paralelismo e à perpendicularidade de retas e planos, e ao estudo de ângulos sólidos e de prismas. No livro XII, Euclides estabelece razões entre áreas de figuras planas e entre volumes de sólidos, por um método que mais tarde passou a ser designado por método de exaustão. Finalmente, o livro XIII, trata do estudo dos cinco poliedros regulares, atualmente conhecidos por sólidos platónicos.

No link abaixo é possível acessar a obra completa em inglês:

http://aleph0.clarku.edu/~djoyce/java/elements/toc.html

Elementos (de Geometria) de Euclides. A tradução dos seis primeiros livros, do décimo primeiro e décimo segundo livro da versão latina de Frederico Commandino pode ser encontrada em domínio público aqui: Link.

Fonte:

ARAÚJO, Helena; GARAPA, Marco; LUÍS, Rafael. Elementos de Euclides - Livros VII e IX. Universidade da Madeira. Funchal, 2005.


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Definição de Número, por Elon Lages Lima

Elon Lages Lima

Números Naturais

"Deus criou os números naturais. O resto é obra dos homens." Leopold Kronecker

1. Introdução

Enquanto os conjuntos constituem um meio auxiliar, os números são um dos dois objetos principais de que se ocupa a Matemática. (O outro é o espaço, junto com as figuras geométricas nele contidas.)

Números são entes abstratos, desenvolvidos pelo homem como modelos que permitem contar e medir, portanto avaliar as diferentes quantidades de uma grandeza.

Os compêndios tradicionais dizem o seguinte:

"Número é o resultado da comparação entre uma grandeza e a unidade. Se a grandeza é discreta, essa comparação chama-se uma contagem e o resultado é um número inteiro; se a grandeza é contínua, a comparação chama-se uma medição e o resultado é um número real."

Nos padrões atuais de rigor matemático, o trecho acima não pode ser considerado como uma definição matemática, pois faz uso de idéias (como grandeza, unidade, discreta, contínua) e processos (como comparação) de significado não estabelecido. Entretanto, todas as palavras que nela aparecem possuem um sentido bastante claro na linguagem do dia-a-dia. Por isso, embora não sirva para demonstrar teoremas a partir dela, a definição tradicional tem o grande mérito de nos revelar para que servem e por qual motivo foram inventados os números. Isto é muito mais do que se pode dizer sobre a definição que encontramos no nosso dicionário mais conhecido e festejado, conforme reproduzimos a seguir.

Número. [Do lat. numeru.] S.m. 1. Mat. O conjunto de todos os conjuntos equivalentes a um conjunto dado. 

(...)

2.3 O Conjunto dos Números Naturais

Lentamente, à medida em que se civilizava, a humanidade apoderou-se desse modelo abstrato de contagem (um, dois, três, quatro, ...) que são os números naturais. Foi uma evolução demorada. As tribos mais rudimentares contam apenas um, dois, muitos. A língua inglesa ainda guarda um resquício desse estágio na palavra thrice, que tanto pode significar "três vezes" como "muito" ou "extremamente".

Algo parecido ocorre no idioma francês, onde as palavras très (muito) e trop (demasiado) são claramente vocábulos cognatos de trois (três), bem como em italiano, onde troppo (excessivamente) derivada de tre (três). É curioso observar que, em alemão, o fenômeno se dá com viel que significa "muito" enquanto vier quer dizer "quatro". Coincidência, ou os germânicos estavam um passo à frente dos bretões gauleses e romanos?

As necessidades provocadas por um sistema social cada vez mais complexo e as longas reflexões, possíveis graças à disponibilidade de tempo trazida pelo progresso econômico, conduziram, através dos séculos, ao aperfeiçoamento do extraordinário instrumento de avaliação que é o conjunto dos números naturais.

Decorridos muitos milênios, podemos hoje descrever concisa e precisamente o conjunto $\mathbb{N}$ dos números naturais, valendo-nos da notável síntese feita pelo matemático italiano Giuseppe Peano no limiar do século 20.

$\mathbb{N}$ é um conjunto, cujos elementos são chamados números naturais. A essência da caracterização de $\mathbb{N}$ reside na palavra "sucessor". Intuitivamente, quando $ n,\ \ n' \in \mathbb{N}$, dizer que $n'$ é o sucessor de $n$ significa que $n'$ vem logo depois de $n$, não havendo outros números naturais entre $n$ e $n'$. Evidentemente, esta explicação apenas substitui "sucessor" por "logo depois", portanto não é uma definição. O termo primitivo "sucessor" não é definido explicitamente. Seu uso e suas propriedades são regidos por algumas regras, abaixo enumeradas:

a) Todo número natural tem um único sucessor;

b) Números naturais diferentes têm sucessores diferentes;

c) Existe um único número natural, chamado um e representado pelo símbolo $1$, que não é sucessor de nenhum outro;

d) Seja $X$ um conjunto de números naturais (isto é, $X \subset \mathbb{N}$). Se $1\in X$ e se, além disso, o sucessor de todo elemento de $X$ ainda pertence a $X$, então $X =\mathbb{N}$.

As afirmações a), b), c) e d) acima são conhecidas como os axiomas de Peano. Tudo o que se sabe sobre os números naturais pode ser demonstrado como conseqüência desses axiomas.

Um engenhoso processo, chamado sistema de numeração decimal, permite representar todos os números naturais com o auxílio dos símbolos $0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8$ e $9$. Além disso, os primeiros números naturais têm nomes: o sucessor do número um chama se "dois", o sucessor de dois chama-se "três", etc. A partir de um certo ponto, esses nomes tornam-se muito complicados, sendo preferível abrir mão deles e designar os grandes números por sua representação decimal. (Na realidade, os números muito grandes não possuem nomes. Por exemplo, como se chamaria o número $10^{1000}$?).

Deve ficar claro que o conjunto $\mathbb{N} = \{1,2,3, . . . \}$ dos números naturais é uma seqüência de objetos abstratos que, em princípio, são vazios de significado. Cada um desses objetos (um número natural) possui apenas um lugar determinado nesta seqüência. Nenhuma outra propriedade lhe serve de definição. Todo número tem um sucessor (único) e, com exceção de $1$, tem também um único antecessor (número do qual é sucessor).

Vistos desta maneira, podemos dizer que os números naturais são números ordinais: $1$ é o primeiro, $2$ é o segundo, etc.

Um Pequeno Comentário Gramatical

Quando dizemos "o número um", "o número dois" ou "o número três", as palavras "um", "dois" e "três" são substantivos, pois são nomes de objetos. Isto contrasta com o uso destas palavras em frases como "um ano, dois meses e três dias", onde elas aparecem para dar a idéia de número cardinal, isto é, como resultados de contagens. Nesta frase, "um", "dois" e "três" não são substantivos. Pertencem a uma categoria gramatical que, noutras línguas (como francês, inglês e alemão, por exemplo) é chamada adjetivo numeral e que os gramáticos brasileiros e portugueses, há um par de décadas, resolveram chamar de numeral apenas. Este comentário visa salientar a diferença entre os números naturais, olhados como elementos do conjunto $\mathbb{N}$, e o seu emprego como números cardinais. 

(...)

Recomendação

1. Não se deve dar muita importância à eterna questão de saber se $0$ (zero) deve ou não ser incluído entre os números naturais. (Vide "Meu Professor de Matemática", pág. 150.) Praticamente todos os livros de Matemática usados nas escolas brasileiras consideram $0$ como o primeiro número natural (conseqüentemente $1$ é o segundo, $2$ é o terceiro, etc). Como se viu acima, não adotamos esse ponto-de-vista. Trata-se, evidentemente, de uma questão de preferência. Deve-se lembrar que o símbolo $0$ (sob diferentes formas gráficas) foi empregado inicialmente pelos maias, posteriormente pelos hindus, difundido pelos árabes e adotado no ocidente, não como um número e sim como um algarismo, com o utilíssimo objetivo de preencher uma casa decimal vazia. (No caso dos maias, a base do sistema de numeração era $20$, e não $10$.) De resto, a opção do número natural para iniciar a seqüência não se limita a escolher entre $0$ e $1$. Freqüentemente esquecemos que, do mesmo modo que conhecemos e usamos o zero mas começamos os números naturais com $1$, a Matemática grega, segundo apresentada por Euclides, não considerava 1 como um número. Nos "Elementos", encontramos as seguintes definições:

"Unidade é aquilo pelo qual cada objeto é um. Número é uma multitude de unidades".

(...)

A palavra "número" no dicionário

As vezes se diz que os conjuntos $X$ e $Y$ são (numericamente) equivalentes quando é possível estabelecer uma correspondência biunívoca $f: X \rightarrow Y$, ou seja, quando $X$ e $Y$ têm o mesmo número cardinal.

Isto explica (embora não justifique) a definição dada no dicionário mais vendido do país. Em algumas situações, ocorrem em Matemática definições do tipo seguinte: um vetor é o conjunto de todos os segmentos de reta do plano que são equipolentes a um segmento dado. (Definição "por abstração".) Nessa mesma veia, poder-se-ia tentar dizer: "número cardinal de um conjunto é o conjunto de todos os conjuntos equivalentes a esse conjunto." No caso do dicionário, há um conjunto de defeitos naquela definição, com um número cardinal razoavelmente elevado. Os três mais graves são:

1. Um dicionário não é um compêndio de Matemática, e muito menos de Lógica. Deve conter explicações acessíveis ao leigo (de preferência, corretas). As primeiras acepções da palavra "número" num dicionário deveriam ser "quantidade" e "resultado de uma contagem ou de uma medida".

2. A definição em causa só se aplica a números cardinais, mas a idéia de número deveria abranger os racionais e, pelo menos, os reais.

3. O "conjunto de todos os conjuntos equivalentes a um conjunto dado" é um conceito matematicamente incorreto. A noção de conjunto não pode ser usada indiscriminadamente, sem submeter-se a regras determinadas, sob pena de conduzir a paradoxos, ou contradições. Uma dessas regras proíbe que se forme conjuntos a não ser que seus elementos pertençam a, ou sejam subconjuntos de, um determinado conjunto-universo. Um exemplo de paradoxo que resulta da desatenção a essa regra é "o conjunto $X$ de todos os conjuntos que não são elementos de si mesmos." Pergunta-se: $X$ é ou não é um elemento de si mesmo? Qualquer que seja a resposta, chega-se a uma contradição.

(...)

Números Reais

4.1 Segmentos Comensuráveis e Incomensuráveis

Seja $AB$ um segmento de reta. Para medi-lo, é necessário fixar um segmento-padrão $u$, chamado segmento unitário. Por definição, a medida do segmento $u$ é igual a $1$. Estipularemos ainda que segmentos congruentes tenham a mesma medida e que se $n - 1$ pontos interiores decompuserem $AB$ em $n$ segmentos justapostos então a medida de $AB$ será igual à soma das medidas desses $n$ segmentos. Se estes segmentos parciais forem todos congruentes a $u$, diremos que $u$ cabe $n$ vezes em $AB$ e a medida de $AB$ (que representaremos por $\overline {AB}$) será igual a $n$.

Pode ocorrer que o segmento unitário não caiba um número exato de vezes em $AB$. Então a medida de $AB$ não será um número natural. Esta situação conduz à idéia de fração, conforme mostraremos agora.

Procuramos um pequeno segmento de reta $w$, que caiba $n$ vezes no segmento unitário $u$ e $m$ vezes em $AB$. Este segmento $w$ será então uma medida comum de $u$ e $AB$. Encontrado $w$, diremos que $AB$ e $u$ são comensuráveis. A medida de $w$ será a fração $1/n$ e a medida de $AB$, por conseguinte, será $m$ vezes $1/n$, ou seja, igual a $m/n$.

Relutantes em admitir como número qualquer objeto que não pertencesse ao conjunto $\{2, 3, 4, 5, \}$, os matemáticos gregos à época de Euclides não olhavam para a fração $m/n$ como um número e sim como uma razão entre dois números, igual à razão entre os segmentos $AB$ e $u$.

Na realidade, não é muito importante que eles chamassem $m/n$ de número ou não, desde que soubessem, como sabiam, raciocinar com esses símbolos. (Muito pior eram os egípcios que, com exceção de $2/3$, só admitiam frações de numerador $1$. Todas as demais, tinham que ser expressas como somas de frações de numerador $1$ e denominadores diferentes. Por exemplo, $7/10$ no Egito era escrito como $1/3 + 1/5 + 1/6$.)

O problema mais sério é que por muito tempo se pensava que dois segmentos quaisquer eram sempre comensuráveis: sejam quais fossem $AB$ e $CD$, aceitava-se tacitamente que haveria sempre um segmento $EF$ que caberia um número exato n de vezes em $AB$ e um número exato $m$ de vezes em $CD$. Esta crença talvez adviesse da Aritmética, onde dois números naturais quaisquer têm sempre um divisor comum (na pior hipótese, igual a $1$).

A ilusão da comensurabilidade durou até o quarto século antes de Cristo. Naquela época, em Crotona, sul da Itália, havia uma seita filosófico-religiosa, liderada por Pitágoras. Um dos pontos fundamentais de sua doutrina era o lema "Os números governam o mundo". (Lembremos que números para eles eram números naturais, admitindo-se tomar razões entre esses números, formando as frações.) Uma enorme crise, que abalou os alicerces do pitagorismo e, por algum tempo, toda a estrutura da Matemática grega, surgiu quando, entre os próprios discípulos de Pitágoras, alguém observou que o lado e a diagonal de um quadrado são segmentos de reta incomensuráveis.

O argumento é muito simples e bem conhecido.

Figura 4.1

Se houvesse um segmento de reta $u$ que coubesse $n$ vezes no lado $AB$ e $m$ vezes na diagonal $AC$ do quadrado $ABCD$ então, tomando $AB$ como unidade de comprimento, a medida de $AC$ seria igual a $m/n$ enquanto, naturalmente, a medida de $AB$ seria $1$. Pelo Teorema de Pitágoras teríamos $(m/n)^2 = 1^2 + 1^2$, donde $m^2/n^2 = 2$ e $m^2 = 2n^2$. Mas esta última igualdade é absurda, pois na decomposição de $m^2$ em fatores primos o expoente do fator 2 é par enquanto em $2n^2$ é ímpar.

A existência de segmentos incomensuráveis significa que os números naturais mais as frações são insuficientes para medir todos os segmentos de reta.

A solução que se impunha, e que foi finalmente adotada, era a de ampliar o conceito de número, introduzindo os chamados números irracionais, de tal modo que, fixando uma unidade de comprimento arbitrária, qualquer segmento de reta pudesse ter uma medida numérica. Quando o segmento considerado é comensurável com a unidade escolhida, sua medida é um número racional (inteiro ou fracionário). Os números irracionais representam medidas de segmentos que são incomensuráveis com a unidade. 

No exemplo acima, quando o lado do quadrado mede $1$, a medida da diagonal é o número irracional $\sqrt{2}$. (O fato de que esta conclusão não depende do tamanho do quadrado que se considera, deve-se a que dois quadrados quaisquer são figuras semelhantes.)

Recomendação

1. Nos meios de comunicação e entre pessoas com limitado conhecimento matemático, a palavra incomensurável é muitas vezes usada em frases do tipo: havia um número incomensurável de formigas em nosso piquenique. Nunca diga isso. Incomensurabilidade é uma relação entre duas grandezas da mesma espécie; não dá idéia de quantidade muito grande. Uma palavra adequada no caso das formigas seria incontável ou imenso. Noutros casos, como um campo gigantesco, poderia ser imensurável ou imenso. Mas nada é incomensurável, a não ser quando comparado com outro objeto (grandeza) da mesma espécie.

(...)

Recomendação 2

A maioria de nossos livros escolares define número racional como "o número que pode ser expresso como quociente de dois inteiros", número irracional como "o número que não é racional" e $\mathbb{R}$ como o conjunto dos números racionais mais os irracionais. Como seus autores não dizem o que entendem por "número", resulta de suas definições que um número musical ou um número de uma revista são números irracionais. Não se deve adotar esse tipo de atitude. É verdade que a apresentação rigorosa da teoria dos números reais (conforme feita nos cursos de Análise) foge inteiramente ao nível e aos objetivos do ensino médio. Mas isto não deve ser motivo para escamoteações. Pelo contrário, quando se tem que falar sobre números reais para uma audiência matematicamente imatura, tem-se aí uma boa oportunidade para fazer a ligação entre a Matemática e o cotidiano, apresentando-os como resultados de medições, como tentamos explicar aqui.

Retirado do livro A Matemática do Ensino Médio, Volume 1. Autores: Elon Lages Lima, Paulo Cezar Pinto Carvalho, Eduardo Wagner e Augusto César Morgado. 10 ed. - Rio de Janeiro: SBM, 2012.


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Os Termos da Educação Clássica Católica

Um grupo de discípulos estuda uma lição com
seu mestre, que lê. Iluminura do século XIII
(Bibliothèque Sainte-Geneviève, Paris,
MS 2200, folio 58).

Para uma correta compreensão sobre a educação católica e os princípios da educação clássica, urge esclarecer o significado de alguns termos, tais como Educação, Artes Liberais e Ciências

Educação

É o cultivo da sabedoria e da virtude na alma através da promoção do verdadeiro, do bom e do belo. Deve ser distinguida de treinamento, que embora de necessário e grande valor, serve para formar as habilidades necessárias para uma carreira ou profissão, enquanto a educação vê o homem de uma maneira elevada.

Educação Clássica

É o cultivo da sabedoria e da virtude através da promoção do verdadeiro, do bom e do belo por meio das sete artes liberais e das quatro ciências. Historicamente, a educação clássica seguiu dois fluxos que frequentemente jorraram juntos:

A ênfase Retórica

Em que os professores guiam seus alunos a contemplar os grandes textos e obras de arte, acreditando que esta contemplação os ajudará a crescer em sabedoria e virtude

A ênfase Filosófica

Em que os professores guiam seus alunos através da análise de ideias por meio do diálogo Socrático, acreditando que o discernimento do coração das coisas permitirá aos alunos crescerem em conhecimento e virtude.

Historicamente, essas duas ênfases que embora muitas vezes estiverem em conflito mesmo não sendo mutuamente exclusivas, deram origem a dois modos de instrução: A Instrução Mimética, ou Didática, e a Instrução Socrática, que veremos mais adiante*.

Educação Clássica Católica

É o cultivo da sabedoria e da virtude através da promoção do verdadeiro, do bom e do belo por meio das sete artes liberais e das quatro ciências a fim de que em Cristo os estudantes possam melhor conhecer, glorificar e servir a Deus, como bons cristãos e cidadãos.

Como Santo Tomás de Aquino o expressou, resumindo o ensino dos padres da Igreja, a graça não destrói  a natureza, mas a aperfeiçoa. A Educação Clássica Católica purifica e aperfeiçoa os grandes feitos dos antigos gregos e romanos. Construir algo mais perfeito sobre o que foi bem construído no passado sempre foi a prática da Igreja, podemos ver isso claramente em Santo Agostinho. Foram os progressistas e pragmatistas do século XX que buscaram, contra o passado, minar essas conquistas.

Arte

Arte, no sentido de “Artes Liberais” é o modo de produzir algo além da própria arte. As artes liberais estão ordenadas a produzir conhecimento e por isso são as artes do pensamento.

De fato, a palavra latina artes é a tradução da grega τέχνες, ou techne, de onde originam palavras como tecnologia ou técnica. Quando uma pessoa aprende uma arte, dirige sua atenção para aprender uma habilidade, não apenas o conteúdo ou informação sobre o tema.

As artes liberais não estão, por isso, preocupadas com a familiaridade superficial em um grande leque de assuntos. Ao invés disso, preocupam-se com as habilidades mentais, com as competências fundamentais de pensamento que são necessárias para aprender qualquer assunto.

As sete Artes Liberais

As sete artes liberais são as artes do pensamento. De acordo com a tradição católica, a Razão separa o homem de todos os outros animais.

Em particular, apenas os homens são capazes de pensar usando símbolos, palavras, números, formas e representações musicais ou visuais. Por isso, a habilidade e competência no uso da linguagem são essenciais para o total desenvolvimento da pessoa. As artes dedicadas a refinar nossa habilidade de uso de linguagem são as três artes do Trivium:

Gramática

Arte de inventar e combinar símbolos

Lógica, ou Dialética

Arte de pensar

Retórica

Arte de comunicar-se

Adicionalmente, nenhum outro animal pode usar números e formas como o homem. Mesmo a música advém de nossa habilidade de ouvir com a alma a relação de números em suas razões e proporções. As artes desenvolvidas para refinar nossa habilidade de usar os números, as formas e suas relações são as quatro artes do Quadrivium:

Aritmética

Teoria do número

Música

Aplicação da teoria do número

Geometria

Teoria do espaço

Astronomia

Aplicação da teoria do espaço

Juntos, o Trivium e o Quadrivium são chamados artes liberais porque são as artes que todo homem livre pode dominar e as artes que são necessárias para ser livre. O que não é capaz de dominá-las, não é verdadeiramente livre. Por exemplo, aquele que não domina a arte da lógica será vítima de manipuladores, tanto externos (na sociedade) quanto internos (na alma); do mesmo modo, aquele que não domina a arte da retórica será incapaz de expressar seus pensamentos apropriadamente.

O Trivium

O Trivium consiste nas três artes verbais da gramática, dialética (ou lógica) e retórica.

Gramática

Do grego γραμματικός ou grammatikos, é melhor traduzido por letras, carregando todos os significados que essa palavra tem para nós. A gramática cultiva a habilidade de interpretar símbolos. Primeiro interpretamos letras individuais e fonemas, então interpretamos palavras e, finalmente, interpretamos textos, obras de arte e artefatos;

Lógica ou Dialética

É a arte de pensamento material e formal. A lógica formal pergunta “Como pensamos corretamente?”, isto é, “Qual a forma de um pensamento válido?” enquanto a lógica material pergunta “O que pensamos sobre?”, isto é, “Qual a matéria do pensamento?”;

Retórica

É a arte de expressar-se bem, embora Aristóteles a reduza para a arte da persuasão.

Dorothy Sayers em seu “Lost Tools of Learning”** desenvolveu uma teoria e aplicação do trivium que sugere que cada arte corresponde ao estado de crescimento de uma criança. Muito do movimento atual de renascimento da Educação Clássica se nutre dessa interpretação.

O Quadrivium

O Quadrivium consiste em quatro artes matemáticas. Para raciocinar de forma lógica e estética, o indivíduo deve ser apto a interagir com o que os antigos chamavam magnitude (geometria e astronomia) e multitude (aritmética e música ou harmonia). A mente que não é treinada no quadrivium não é, ainda, verdadeiramente educada.

Aritmética

É a arte de aprender as propriedades dos números, como se comportam, como se operam;

Geometria

É a a arte de aprender as propriedades de formas. É essencial para a lógica dedutiva e raciocínio espacial;

Música

É a arte da proporção. A Álgebra é um maneira muito eficiente e abstrata de expressar propriedades musicais, mas para nos beneficiar da música, não podemos nos reduzir à Álgebra. A música é uma janela ou mesmo uma porta ao espiritual. Quando um estudante ouve a ordenadas composições, a ordem da matemática penetra diretamente na alma pelo ouvido;

Astronomia

É a arte das formas em movimento. Poderíamos dizer que é a porta para a Física e demais ciências naturais.

As Ciências

A Ciência é o modo de investigação ou domínio de saber que surge do modo de investigação da Educação.

A palavra ciência vem do latim scientia que significa conhecimento e não é, absolutamente, limitada aos conhecimentos dados pelas ciências naturais. Posteriormente veremos como entre as ciências estão as ciências naturais, as ciências humanas ou morais, as ciências filosóficas e a ciência teológica, nessa ordem de gradação.

O objetivo da ciência é conhecer as causas das coisas. No século XVII, os cientistas naturais começaram a usar o termo ciência para suas próprias questões, rejeitando tudo o que estivesse fora de suas ferramentas de investigação.

Nós rejeitamos essa falsa asserção e usamos o termo em seu sentido mais correto e clássico.

Ciências Naturais

As Ciências Naturais são ciências de ordem física, tal qual a biologia, a química e a física. Todas as ciências combinam ou refinam essas três. A ciência é o domínio do saber ordenado a um princípio unificador, o logos. O mundo clássico buscou durante séculos este princípio integrador, até que Ele mesmo se fez carne e habitou entre nós. Cristo é o Logos que liga todos os assuntos em uma harmonia universal, faz sentido de todas as coisas e eleva o aprendizado e o conhecimento ao reino do significado eterno.

Biologia

é a ciência ordenada a buscar compreender as causas do ser e da mudança nos seres vivos;

Física

é a ciência ordenada a investigar sobre as forças que provocam mudança no mundo físico;

Química

é a ciência ordenada a investigar sobre os elementos constitutivos das coisas físicas

O modo de investigação das ciências naturais é a investigação das causas materiais e eficientes. A observação e a medida são particularmente aptas a esse domínio. O objetivo das ciências naturais é conhecer as causas da mudança no mundo físico, de modo a agir sabia e virtuosamente em relação ao cosmos

Ciências Humanas

As Ciências Humanas são as ciências de ordem moral; isto é, são as ciências do comportamento e da alma humana, nomeadamente a ética e a política.

Ética

é a ciência que questiona sobre o cumprimento do potencial e sobre o fim do homem. Em uma palavra, pergunta-se como o homem pode se tornar virtuoso. Muitos estudos descendem da ética, como a psicologia.

Política

é a ciência que questiona sobre o conjunto de homens e como ele pode habilitar seus membros e a si mesma para cumprir seu potencial e seu fim. Em uma palavra, pergunta-se como um grupo de homens pode atingir a virtude. Muitos estudos descendem da política, como a economia, história, etc.

As ciências humanas são erguidas sobre, de maneira mais elevada, as artes naturais. O modo de investigação das ciências humanas é o compromisso dialético com obras das artes, investigações históricas e reflexões sérias no movimento da alma humana. O objetivo das ciências humanas é conhecer as causas do comportamento humano, de modo a conseguir a virtude para si mesmo e a cultivar nos outros.

Ciências Filosóficas

As Ciências Filosóficas são as ciências da metafísica e da epistemologia. O objetivo das ciências filosóficas é conhecer as causas e os limites do conhecimento humano e conhecer a causalidade em si. As ferramentas da investigação filosófica são uma forma altamente refinada de dialética e a contemplação.

É na metafísica que a distinção entre educação modernista e educação clássica é mais claramente vista. Para o modernista, especialmente depois de John Dewey, a metafísica é uma perda de tempo porque só podemos saber o que as ciências naturais nos revelam. Assim, a educação moderna é impulsionada pela experimentação e medição. O educador modernista determinou que o conhecimento é a adaptação de um organismo ao seu ambiente.

O educador clássico, por outro lado, é deliberadamente metafísico e não se aproxima da filosofia com desespero. Ele acredita que o mundo em que vivemos é real e é cognoscível. Portanto, para o educador clássico, o conhecimento é adquirido quando aquele que o busca encontra uma ideia incorporada ou encarnada em uma realidade concreta.

Quando o educador modernista ensina, seu objetivo é uma adaptação ao ambiente, ou o que é comumente chamado de aplicação prática. Quando um educador clássico ensina, seu objetivo é sabedoria e virtude. Isso terá muitas aplicações práticas, mas também incluirá a capacidade de saber quando se adaptar ao ambiente – quando resistir e quando ser martirizado por ele.

A grande ironia é que o modernista torna o aluno incapaz de fazer aplicações práticas sólidas porque ele deturpa a realidade e, assim, dificulta a adaptação a ela. Enquanto isso, o educador clássico permite que o estudante pense em termos de circunstâncias sem abandonar a virtude.

Ciências Teológicas

A Ciência Teológica é a ciência do conhecimento da causa primeira, ou do próprio Deus.

Todas as ferramentas das ciências inferiores são usadas para conhecimento teológico, mas o cristão reconhece que a Revelação Divina revela coisas que outras ciências não podem descobrir. O objetivo da teologia é ordenar todo conhecimento para essa primeira causa.

Princípios Curriculares

1. Verdade

2. Bondade

3. Beleza

4. Sabedoria

5. Virtude

6. Personalidade

7. Liberdade

8. Justiça

9. Comunidade

10. O Ser

11. Modo

12. Mudança

13. Glória

14. Honra

15. Imortalidade

Retirado do site: Link

*Postei este texto aqui: Link

** Este livro da Dorothy Leigh Sayers foi publicado em português pelas Edições Kírion com o título "As ferramentas perdidas da aprendizagem" em 2023


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